Satã: o renegado da História
Breves considerações sobre esta personagem bíblica
Em Ímpio – o
evangelho de um ateu (2011), de Fábio Marton, o narrador nos conta sobre o
que costuma acontecer ao final de um culto evangélico. Após o pastor anunciar
“aceitem Jesus em seu coração”,
“Era nessa hora que podia acontecer o exorcismo
de um dos crentes com problemas ou caso algum dos recém-convertidos trouxesse
da rua um demônio avulso que precisasse ser removido antes de começar sua nova
vida. Neste dia, e em todos, meu pai e minha mãe não foram à frente. Quanto aos
demônios, como falei, meu avô não era muito dado a exorcismos, e parece que os
demônios respeitavam sua inclinação”.
(p. 24)
Mais adiante, o
narrador nos relata que o mundo dos crentes é repleto de emoções. Eles vivem
num mundo em que Deus atua constantemente, mas ele não está sozinho; também o
Diabo, seu adversário, costuma dar o ar de sua graça. Segundo o narrador, os
crentes vivem num mundo “em que Deus e o Diabo nos falam por nossos próprios pensamentos,
que, assim, nunca são nossos” (p. 26). Não é novidade que, no mundo dos
neopentecostais, Deus e o Diabo estão numa batalha cósmica eterna. Nesse
universo, as forças do mal exercem influência direta na vida dos crentes e as
sessões de exorcismos, bastante teatralizadas, são frequentes.
Neste texto, eu
me ocuparei com as formas como a personagem satã foi representada no Antigo e
no Novo Testamento. A questão básica sobre a qual assentam minhas reflexões é: O que a Bíblia tem a nos dizer sobre anjos,
demônios e satã? No imaginário popular, ainda hoje, demônios e satã (ou
Satanás) são seres malignos capazes de possuir pessoas e prejudicá-las. Muitos,
ainda hoje, evitam pronunciar essas palavras. Essa crença encontra abrigo na
Bíblia ou foi construída pelo pensamento cristão no período pós-Bíblico? Este
texto é destinado a contar um pouco sobre a história que está na origem da
crença em satã como um opositor de Deus.
A crença na
existência de forças ou espíritos malignos é comum a muitas tradições religiosas.
Embora este texto não seja destinado ao tratamento das representações de forças
malignas nas mais diversas tradições religiosas, vale referir aqui alguns
exemplos dessas representações em algumas tradições religiosas.
Comecemos pelo
Zoroatrismo, uma religião monoteísta muito antiga da Pérsia (atual Irã). Em
meados do século VII d.C., ela deixou de ser predominante nesse território,
devido à chegada do Islã. Atualmente, é praticada por uma pequena parcela da
população iraniana e por minorias na Índia e em outros países.
Seu profeta
chamava-se Zoroastro, conquanto seus seguidores costumassem se referir a ele
como Zaratustra. Ele pregou uma religião em que o deus criador, chamado
Aúra-Masda, estava envolvido numa luta eterna com o espírito maligno Angra Mainyu.
Estudiosos do passado acreditaram que o Zoroatrismo exercera influência na
representação da personagem Satã no Antigo (por ocasião do Exílio babilônico) e
no Novo Testamentos. Atualmente, parece haver consenso em que este não era o
caso, visto que a personagem Satã estava sempre subordinada a Deus nas
representações judaicas e cristãs, ao passo que Angra Mainyu nunca assume o
papel de acusador. Consoante veremos, na Bíblia Hebraica, um dos papeis
assumidos por satã é o de acusador ou querelante.
Os adeptos do
zoroatrismo ajudam o deus Aúra-Masda na luta contra Angra Mainyu, por meio da
prática do bem e do culto. Há uma forte ênfase à liberdade de escolha moral e
os crentes são estimulados a agir de modo moralmente bom.
As religiões
primais também constituem exemplos de religiões em que forças do bem concorrem com forças do mal. Consistem elas em sistemas de crenças e rituais típicos de
povos com um modo tradicional de vida tribal. Esses sistemas precederam às
grandes religiões organizadas. Como não havia escrita, quando do
desenvolvimento dessas religiões, suas crenças e tradições eram transmitidas
oralmente.
Nelas, há
milhares de espíritos ou divindades pelas quais os adeptos explicam as
poderosas forças naturais do cosmo. Suas práticas religiosas se destinam,
sobretudo, a cultuar ou a agradar esses espíritos, para prevenir desastres ou
para obter ajuda ou misericórdia quando sucedem problemas. Os espíritos
influenciam diretamente a vida e o destino dos indivíduos.
O panteão dessas
religiões é repleto de espíritos ou divindades que cumprem muitas funções e se
relacionam com os homens de modo bastante variado. Algumas divindades se
parecem com os deuses de outras religiões, controlando um ou mais aspectos do
cosmo. Por exemplo, Ogum, entre os iorubas na Nigéria, é a divindade do
trabalho em metal; Kukailimoku é o deus havaiano da guerra. Existem espíritos
benévolos e maus ou travessos; estes últimos devem ser aplacados pelos devotos
com preces e oferendas. Em algumas culturas, há um deus superior ou espírito
criador. No universo dessas religiões, os espíritos estão em toda parte. Eles
estão ligados à natureza, e essa ligação assinala o estreito vínculo entre os
povos tribais e a terra que habitam.
Há praticantes
dessas religiões, ainda hoje, entre os povos indígenas de partes das Américas
do Norte e do Sul (norte do Canadá e a baía amazônica), na África subsaariana,
na Austrália e em partes do norte e do leste da Ásia.
Não poderia
deixar de notar a importância do maniqueísmo como um exemplo representativo de
doutrina em que o mal está em conflito com o bem. O maniqueísmo foi uma
doutrina fundada por certo Corbicius (séc. III d.C), chamado Mani. Na língua
arameu-babilônica, Mani significa “Espírito do Mundo Luminoso”. O pensamento
maniqueísta assemelha-se muito ao cristianismo, e a semelhança é tal, que seu
fundador teria recebido um chamado do próprio Jesus, para que se tornasse seu
apóstolo e anunciasse a verdade. Conta-se que Mani também fora crucificado. O
maniqueísmo era uma religião do mistério ou uma espécie de religião-ciência.
Ela se difundiu pelo Império Romano e o Ocidente cristão, combinando elementos
do zoroatrismo, de outras religiões orientais e do próprio cristianismo.
Basicamente, a doutrina maniqueísta assenta numa visão dualista radical, segundo
a qual o mundo é habitado por forças do bem e do mal, que são princípios
absolutos em luta eterna. O maniqueísmo influenciou o desenvolvimento do
cristianismo em seus primórdios, atraindo inclusive o interesse de Santo
Agostinho; mas este, posteriormente, daquele se afastaria, tornando-se um tenaz
opositor.
Anjos e demônios na Bíblia
As
representações de anjos e demônios figuram em várias partes da Bíblia e estão
ligadas a ideias que se desenvolveram ao longo do tempo. Em primeiro lugar, é
preciso fazer ver que a palavra “anjo” tem origem no grego angelos, que significa ‘mensageiro’. É a forma que figura na
tradução da Septuaginta da Bíblia hebraica para o grego e corresponde ao
hebraico malak. O nome do profeta
Malaquias significa “meu mensageiro” (Swenson, 2010). Em segundo lugar, também
importa saber que angelos e malak são usados para se referir a
mensageiros humanos ou a mensageiros sobrenaturais de Deus. Por vezes, esses
mensageiros são maus.
No Antigo
Testamento, é a forma malak que é
usada, mais comumente, para se referir aos mensageiros sobrenaturais de Deus.
Os malaks, quer sejam divinos, quer
sejam quase divinos, não só entregam mensagens, mas também comandam as ações
humanas, protegem ou impingem castigos. Ainda no Antigo Testamento, é possível
se topar com a forma bene elohim que
significa, numa tradução livre, “filhos de Deus”. Trata-se de seres divinos,
também entendidos como “seres celestiais”. Eles integram a assembleia de Deus,
e uma representação desta assembleia se pode ver em 1 Reis 22:19-22.
A palavra “anjo”
também pode designar, no Antigo Testamento, seres humanos dotados de
características e habilidades não-humanas. Em Zacarias 1:7-17, se encontra uma
alusão tanto a um homem quanto a um malak
que instrui o profeta a realizar sua profecia. Em meados do século II a.C,
época em que o livro de Daniel já estava concluído, as representações de anjos
estavam bem assentadas e detalhadas. Anjos como Gabriel, que ajudou Daniel a
interpretar os sinais, e Miguel, que, em hebraico, era designado como
“príncipe” ou “funcionário” são exemplos de anjos com nomes de pessoa.
No tangente aos
seres sobrenaturais chamados serafins e querubins, Swenson (2010) nota que, na
Bíblia hebraica, “não são tanto “anjos” na forma como os concebemos, mas, digamos,
a fauna da esfera sobrenatural” (p. 230). A autora acrescenta:
“Eles não são intermediários entre o céu e a
terra; tampouco lidam com os seres humanos de muitas outras maneiras. Pelo
contrário, eles agem como guardiões protetores do divino (...) e podem servir
para proclamar a santidade de Deus (...); os serafins aparecem também como
agentes da ira de Deus contra os israelitas e como cobras ferozes cuja picada
pode ser letal (...)”.
(pp. 230-31)
No Novo
Testamento, os angelos não só
continuam a cumprir as funções dos malaks
da Bíblia hebraica, como também assumem outros papeis. Eles continuam sendo
mensageiros ou guias (como no Antigo Testamento), mas passam a ser guardiões de
seres humanos ou de toda uma comunidade. Particularmente importante é notar que
os anjos participam da vida de Jesus, ajudando-o do início ao fim de sua vida.
Os anjos ainda auxiliam nos julgamentos (ver Atos).
Tendo em conta,
agora, os demônios, interessa saber que, na Bíblia hebraica (o Antigo
Testamento cristão), Deus não só podia enviar mensageiros para realizar boas
obras na Terra; ele também era responsável por enviar ruach há’a, que se pode traduzir como ‘espírito malévolo’ (Swenson,
p. 231). Foi um desses espíritos que atormentou o rei Saul. Esses espíritos,
embora não fossem demônios, tais como os entendemos hoje, provinham de Deus.
O Antigo
Testamento não dispõe de apenas um termo específico que equivalha à palavra
“demônio”. Na Septuaginta, ocorre o termo shedim,
traduzido como daimonion (que, em
grego, era espírito ou alma), que se refere a deuses que não eram como Deus e
que os israelitas cultuavam.
Em suma, segundo
Swenson, “há simplesmente muito pouco na Bíblia hebraica sobre demônios, como
nós os imaginamos” (p. 232). Na verdade, o que figura no imaginário popular hoje
a respeito do que sejam demônios tem sua origem nos textos intertestamentais e
no Novo Testamento. A palavra daimon, ou
sua forma diminutiva daimonion, que,
em grego, não significa necessariamente um ser sobrenatural e malévolo, é
empregada aí para se referir ao que entendemos hoje como “demônio”. Os
judeus-cristãos daquele tempo acreditavam que doenças e deficiências físicas ou
mentais eram obra de demônios que podiam possuir pessoas.
Com a palavra,
Satã ou Satanás
Desde já, é
importante frisar que a Bíblia não endossa a interpretação segundo a qual a
serpente do Éden era Satanás. Na verdade, coube a Orígenes, teólogo cristão do
século III d.C, identificar a serpente com Satanás. De acordo com Swenson, na
maioria das vezes, na Bíblia, as serpentes são representadas como ameaças
naturais às pessoas, “mas elas não são retratadas como más em si mesmas” (p.
215).
Em seu livro Satã – uma biografia (2008), Henry
Ansgar Kelly, ao se dedicar a analisar a história biográfica da personagem Satã
na Bíblia, declara, na forma de tese, estar na mídia a origem da deturpação,
através dos tempos, da imagem desse ser mitológico:
“Minha tese é que a deterioração do personagem
Satã apresentado na Bíblia é simplesmente o resultado natural da “atenção
desfavorável da mídia”, o tipo de situação que acontece com qualquer personagem
impopular. A deterioração que acontece na época pós-bíblica, quando Satã foi
finalmente interpretado desde o início como um rebelde e um desterrado e no
final como praticamente um anti-Deus, nada mais do que uma extensão desse
desenvolvimento interno”.
(p. 13)
Antes de
prosseguir, preciso fazer algumas observações de ordem linguística, no que diz
respeito ao emprego das palavras satã e diabo na Bíblia hebraica. No Antigo
Testamento, a palavra hebraica para “satã” é um substantivo comum, cujo
significado é “adversário” (Kelly, p. 11). Quando traduzida para o grego,
assumiu a forma diabolos (diabo).
Ocorre, contudo, que, em hebraico, quando usado com artigo definido, “satã”
designa o substantivo comum “o adversário”. Quando usado sem acompanhar-se do
artigo, pode significar “um adversário” ou o nome próprio Satã. Em grego, todo
nome próprio se acompanha de artigo definido. Portanto, “o diabolos” significa “o diabo” ou “Diabo”. Diz-se o mesmo da palavra
Deus, que, em grego, se escreve ho theos,
significando “o deus” ou “Deus”.
Compreendamos,
pois, como esse personagem impopular e execrável fora representado na Bíblia.
Em hebraico, satan não se referia
originalmente a um indivíduo. Na Bíblia hebraica, satan é um nome ou um verbo
que significa “acusação”, “traição” ou “adversidade”. Segundo Swenson, apenas
em 1 Coríntios 21:1, a palavra satã designa um adversário de Deus. Nesse caso,
a palavra se acompanha de artigo definido, sugerindo que se trata de um nome
próprio, qual seja, Satanás. Deve-se notar, no entanto, que, nesse caso,
estamos falando do Novo Testamento. Foi no Novo Testamento que Satã, então
entendido como Satanás, acaba por personificar o mal.
No Antigo
Testamento, de modo geral, satã não é representado como um antagonista de Deus.
Em Jó, por exemplo, ele é uma espécie de acusador. Na Bíblia hebraica, satanás
é empregado para designar seres humanos ou adversários sobrenaturais. Satanás,
por exemplo, foi associado ao papel desempenhado por Davi no exército filisteu;
os filisteus estavam preocupados com que Davi pudesse se tornar um satanás
para eles. Em Números, Zacarias, 1 Crônicas e Jô, satanás designa seres
sobrenaturais; mas ele não era uma adversário de Deus. Na verdade, assumia o
papel de acusador ou promotor. Segundo Swenson, apenas em 1 Crônicas, Satanás
fora representado como um adversário personificado de Deus. Aprendemos bastante
sobre como a imagem de Satã se foi modificando neste trecho de Swenson:
“Dado o aumento na variedade de nomes pessoais
aplicados depois aos demônios na literatura intertestamental, parece que
mudanças nas visões de mundo (provavelmente influenciadas, em primeiro lugar,
pelo dualismo do zoroatrismo da Pérsia) permitiram o desenvolvimento de um
demônio tal como o reconhecemos. Comentários judaicos posteriores sobre as
escrituras hebraicas durante o período rabínico intertestamental atribuem muito
mais maldade a Satanás (...)”.
(p. 235)
Com a conclusão
do Novo Testamento, Satanás já se achava plenamente identificado com a figura
do mal e, portanto, com um adversário de Deus. Se, no Antigo Testamento,
Satanás operava sob a orientação de Deus, em geral, apenas contra seres
humanos, no Novo Testamento, Satanás passa a gozar de maior autonomia de ação e
a assumir uma forma totalmente diversa. Por volta do século I d.C, satanás
passou a ser um adversário de Deus. No Novo Testamento, satanás tem vários
nomes, um dos quais é “diabo”.
Interessante é
que a ideia de Satanás como um anjo decaído, chamado Lúcifer, não se encontra
na Bíblia. Essa ideia chegou até nós muito devido a contribuição dos teólogos
cristãos Orígenes e Tertuliano, no início do século II d.C. Com base na
passagem de Isaías 14:12 – “Como caíste, estrela da manhã! Tu, que uma vez
derrubaste nações, estás caída à terra” -, eles associaram a profecia de Isaías
a Satanás. Com vistas a esclarecer este ponto, convém notar que a profecia de
Isaías trata de uma estrela específica que aspirou a subir tão alto, que
excedesse em altura as estrelas de Deus. Ela, assim, se tornaria o Deus
supremo; no entanto, segundo Isaías, ela seria relegada a uma posição mais
baixa que a terra. O nome Lúcifer com que se designa Satanás é uma versão
latina do hebraico helel, que,
originalmente, significava “estrela da manhã”, mas que assumiu o significado
“portador de luz”, quando traduzido para o latim.
Belzebu, do
hebraico Baal zebub, também é outro
nome para Satanás. Essa forma se acha no livro dos Reis do Antigo Testamento.
Baal zebu era um deus filisteu a quem o rei israelita recorreu, após sofrer uma
queda que lhe causou danos. No período do Novo Testamento, Belzebu já tinha se
tornado uma outra forma para se referir a Satanás.
Conclusão
Não tive a
intenção de me alongar sobre o tema, de modo que muito ainda haveria de ser
dito. Não obstante a concisão com que o tema foi abordado, se levamos em conta
as formas como Satã é representado na vasta e diversa literatura bíblica,
devemos reconhecer o seguinte: para os antigos judeus, a incompatibilidade
entre a existência de um Deus bom e de um Satã não constituía um problema que
se deveria enfrentar. Na verdade, Satã, a considerar uma grande parte dos
registros do Antigo Testamento, estava subordinado a Deus e agia sob a tutela
deste. Satã não era, pelo menos na grande maioria dos escritos da Bíblia
hebraica, um adversário de Deus. A situação é diversa no Novo Testamento, e o
problema que surge quando se admite a existência de um ser maligno, em que pese
a existência de um ser bom, Criador e Todo-poderoso, se impõe. No Antigo Testamento,
Deus podia enviar seres malévolos para cumprir algum propósito; no Novo
Testamento, Satã passa a ter autonomia em relação a Deus e torna-se seu
opositor. Até onde eu sei, o cristianismo não oferece uma resposta, ao menos
satisfatória, para a questão: como conciliar a existência de Deus com a
existência do Diabo? Tampouco, parece ser uma preocupação da teologia cristã a
questão que se impõe quando se afirma que Deus criou tudo que há: Donde então provém Satanás? Se de Deus,
como, então, sustentar a benevolência de Deus?
Este texto
ilustra o que chamo de ateísmo
esclarecido. Um ateísmo esclarecido deve consistir numa reflexão séria
sobre a História cristã e deve se respaldar nas contribuições de estudos
crítico-históricos da Bíblia. Um ateísmo esclarecido é um ateísmo que não se
limita a declarar simplesmente absurdas as crenças religiosas, mas que busca
compreender a origem dessas crenças, a história que as tornou possíveis. Este
texto procurou mostrar que a personagem Satã fora construída em parte pela
literatura bíblica e em parte por interpretações posteriores. Subjacente ao
desenvolvimento deste texto está o pressuposto de que Satã não é um ser real,
mas um personagem da diversificada e vasta literatura bíblica. Ele tem uma
biografia, como salienta Kelly. Um ateu esclarecido, não se limitando a
vociferar que Satã é um mero ser imaginário, deve se esforçar por compreender
as suas raízes históricas. De fato, Satã não existe, se existisse, sua própria
existência deveria lançar sérias dúvidas sobre a existência de Deus, embora
isso não constitua um problema reconhecido pela maioria dos cristãos. No
entanto, para um ateu esclarecido, tanto Deus como Satã são personagens criados
por homens que viveram no Antigo Oriente Médio, a fim de lidar com as dificuldades
de seu tempo. Se o culto ao Diabo atormenta ou escandaliza os cristãos, ao ateu
esclarecido esse culto não deve ser encarado senão como uma realidade
favorecida numa cultura cujas raízes foram construídas por uma teologia e
História que o preveem e o explicam.