O sacerdote
Uma proposta de leitura em “O Anticristo”
Como instituição sócio-política, a religião sempre se serviu do poder para conservar sua influência. Historicamente, ela se via às voltas com o poder político vigente. Ela sempre necessitou do poder (do Estado, do Soberano, dos tiranos, das autoridades políticas em geral) para prosperar.
Se a Igreja cristã é hoje uma potência, devemos isso a um homem chamado Constantino. Se não fosse por este imperador romano, homem de vanguarda, tolerante, convertido ao cristianismo sinceramente (depois que em sonho recebera de Deus um sinal de que venceria a batalha de Ponte Milvio, vindo, de fato, a conquistar o subúrbio de Roma, às margens do Tigre, depois de matar seu opositor Maxêncio), o cristianismo continuaria sendo o que fora antes do aparecimento deste homem notável: uma seita. Cabia a ele uma missão gloriosa: a Salvação da humanidade! Ele assume a dianteira desta empresa, como homem a quem Deus outorgou (em sonho) o poder providencial. Conta-nos o historiador Paul Veyne, em Quando nosso mundo se tornou Cristão (2011), a respeito da nova missão de Constantino:
“(...) Constantino apreciava o fato de ter sido escolhido, destinado pelo Decreto divino a desempenhar um papel providencial na economia milenar da Salvação; ele disse, escreveu isso, em um texto autêntico que se vai ler mais adiante, mas tão exagerado que a maior parte dos historiadores o desprezam, pelo que tem de pretensioso, e dele não falam”.
(p. 13)
O fato de Constantino ter-se arvorado em ministro do poder de Deus na terra não nos surpreende; outros tantos, depois dele, o fizeram. Jesus Cristo acreditava-se realmente o filho de Deus e pregava não haver outro caminho de se chegar a Deus senão por ele. A despeito de seu desprezo pela política, de sua tentativa de elevar a Palavra de Deus sobre todas as formas de poder terreno, Cristo não deixou de ser um homem que exerceu uma influência política nas terras por que passou.
O exercício do poder é indispensável à religião. Este texto mostrará isso. Para tanto, vou-me valer da obra O Anticristo, de Nietzsche. Deter-me-ei num momento de seu texto em que ele se dedica a pensar sobre o papel do sacerdote. Antes de fazê-lo, contudo, o filósofo alemão nos contará sobre como era, nos tempos primitivos, a relação entre Israel e Yahwen (um dos nomes do Deus de Israel nos Livros Sagrados). Segundo Nietzsche, houve um tempo em que Israel concebia seu Deus como signo da justiça, como expressão de poder, de prazer e esperança em si. Por intermédio de Deus e na confiança nele, os hebreus daqueles tempos confiavam na natureza. A ele deviam a chuva. Assim, Nietzsche escreverá a respeito dessa relação harmoniosa:
“Yahweh é o deus de Israel e, por conseguinte, o deus da justiça: lógica de todo o povo que possui poder e a consciência tranquila. É no culto solene que se manifestam estes dois aspectos da afirmação própria de um povo: mostra-se agradecido pelos grandes destinos que o elevaram à dominação, sente gratidão pela regularidade do ciclo das estações e por qualquer êxito na criação de animais e na agricultura”.
(p. 59)
Primeiramente, cabe observar que por intermédio de Deus afirma-se a identidade nacional de um determinado povo; o Deus de Israel é um elemento da identidade deste povo. Em segundo lugar, é pela gratidão (ainda não é submissão) que o povo israelense se relaciona com seu Deus: agradece os benefícios e o sucesso em suas ações cotidianas (como na criação de animais e no cultivo da terra). O povo se investe de poder através de Deus. Há que considerar também a relação harmoniosa entre homens, Deus e natureza.
Esse estado harmonioso foi interrompido por dois acontecimentos: a guerra contra os assírios e a anarquia interna predominante. Não obstante, o povo conservou a imagem de um rei que reunia em si o coração de um bom soldado e a rigidez de um juiz. Nietzsche colocará na conta do profeta Isaías a maior responsabilidade pela conservação dessa imagem divina. Note-se bem: o povo passou a projetar uma imagem outra de Deus. Escreverá Nietzsche, nesse tocante:
“O deus antigo nada mais podia fazer do que o fizera em outros tempos. Deviam tê-lo deixado sucumbir. Em vez disso, que aconteceu? Modificaram a noção que dele tinham – deformaram essa noção: e por esse preço o conservaram. Yahweh, o deus da “Justiça”, já não mantém a sua unidade com Israel, já que não é a expressão do orgulho de um povo: não passa agora de um deus condicionado”.
(p. 59)
Essa passagem nos permite compreender um ponto importante da reflexão de Nietzsche. Note-se que a transição da imagem de Deus se deu na forma de um ser autônomo para um ser submisso. O deus de Israel, expressão de orgulho desse povo, passaria a ser um poderoso expediente para o exercício do poder. Concluirá Nietzsche que se operou uma falsificação da noção de Deus. E a quem caberá valer-se desse expediente para exercer seu poder, sua influência? Entra em cena a figura do sacerdote, sobre a qual Nietzsche vai dispensar seu desprezo:
“Esses sacerdotes realizaram o prodígio da falsificação de que permanece como documento comprovativo uma grande parte da Bíblia. Com desprezo ímpar por toda a tradição, afrontando toda realidade histórica, transcreveram em sentido religioso o seu próprio passado nacional, isto é, fizeram dele um estúpido mecanismo de salvação: a ofensa contra Yahweh merece punição; o amor por Yahweh, recompensa. Muito mais dolorosamente sentiríamos essa escandalosa se a milenar interpretação eclesiástica não nos houvesse tornado quase insensíveis às exigências da probidade in historicis [em questões históricas]”
(p. 60)
Vale atentar para o uso das formas “transcrever” e “mecanismo”. Nietzsche acusa os sacerdotes de reproduzir a história da relação de Israel com seu Deus num outro sentido. Que sentido é este? O religioso. O sentido religioso instaura uma relação de submissão não do homem a Deus (que é um mecanismo), mas de uma classe de homens a outra. Devemos ter em conta isso: Deus é um mecanismo para a expressão do poder de uma classe sobre outra, no caso, da classe dos sacerdotes sobre a população crédula. O poder da Igreja surgiria como uma forma de apagar aquela falsificação histórica, tornando essa população, como Nietzsche assinala bem, “insensíveis às exigências da probidade”, ou seja, insensíveis à honestidade daqueles que contam a história, a relatam. A história mesma é apagada na consciência dos que dela souberam por intermédio de outra voz, a voz do poder, que a deturpou.
Nietzsche não poupará críticas aos filósofos, que, segundo ele, apoiaram a Igreja. Para Nietzsche, a Igreja é “a mentira da “ordem moral universal” (p. 60). E nos esclarecerá sobre o que significa “ordem moral universal”. Eis um conceito central em seu raciocínio:
“Que existe, sem qualquer dúvida, uma vontade de Deus, que decide tudo o que o homem deve ou não fazer, que o valor de um povo ou de um indivíduo se gradua segundo a sua maior ou menor obediência à vontade de Deus; que nos destinos de um povo ou de um indivíduo mostra-se dominante a vontade divina que castiga ou recompensa segundo seu grau de consciência”.
(ibi.id).
(grifo meu)
O sacerdote introduzirá a doutrina do pecado (que tratei alhures como “flagelo psíquico”). Decerto, um instrumento de poder, pelo qual a Igreja conserva seus seguidores na obediência, na submissão, na escravidão psíquica, na ignorância. Para compreendermos como opera essa doutrina, devemos ter em conta o seguinte. Em primeiro lugar, os homens, como seres de linguagem, seres simbólicos, darão muita importância às palavras. Diremos, sem incorrer em erro, que as palavras têm poder, ou melhor, estão a serviço do poder. Muitas delas, certamente. Em segundo lugar, nossa mente ou nossa consciência tem base simbólica. Bakhtin já nos ensinara sobre isso: a realidade da consciência é o signo. Uma palavra de ordem proferida pelo pai tenderá a provocar a obediência da criança. O pai exerce sua autoridade sobre a criança não só do ponto de vista econômico e moral, mas também simbólico. Seus comandos verbais são formas de expressão de seu poder. Mesmo que sejam questionados ou que o pai se sinta afrontado pela desobediência da criança, a necessidade de exercer o poder pela palavra ainda sim estaria patente. Mesmo a desobediência a um ato verbal de ordem, produzido por alguém que ocupa um lugar mais alto numa hierarquia, só prova que as palavras servem para determinar posições hierárquicas e fixar poderes.
No entanto, o sacerdote não pode, por razões óbvias, exceder-se no grau de sua autoridade, dando-lhe uma face agressiva; é necessário certo tempero de docilidade hipócrita, a fim de cativar o fiel para que se submeta à Vontade de Deus, que não é senão a vontade do sacerdote. Lembremos que o sacerdote é o representante de Deus na terra; ele está na posse daquele mecanismo (a vontade de Deus) e exerce, por meio dele, a sua vontade.
Veja-se como Nietzsche entende o papel do sacerdote. O filósofo o chamará “parasita”.
“Posta em lugar desta lastimável mentira, a realidade significa certa espécie de homem parasita que não prospera senão a expensas de todas as formas sãs da vida, o sacerdote, abusa do nome de Deus, chama “reino de Deus” a um estado de sociedade no qual é ele quem fixa os valores; chama “vontade de Deus” aos meios que emprega para alcançar ou manter tal situação; com cinismo glacial, valoriza os povos, as épocas, os indivíduos, conforme forem úteis ou resistiram à preponderância sacerdotal”.
(ibi.id)
Interpretemos alguns pontos importantes aí. A palavra “parasita” é reveladora da natureza aproveitadora desses senhores da ingenuidade e credulidade. Eles, os sacerdotes, estabelecem com seus seguidores uma espécie de parasitismo ou, se preferirmos, esclavagismo. Neste último caso, um grupo se aproveita do trabalho, das atividades e dos produtos - delas resultantes - de outro grupo. O sacerdote vive, conforme escreve Nietzsche, à custa dos que se esforçam por atender à Vontade de Deus.
A natureza ideológica da religião começa aí a ganhar formas nítidas. Note-se que, por meio de representações, por meio de um aparato simbólico, constroem-se formas de realidade com vistas à reprodução e à conservação do poder. A Vontade de Deus aparece à consciência dos fiéis como realmente poder de decisão de deus, como expressão de sua soberania. Pela sua vontade, deus deseja atingir um propósito. Ele tem um propósito para os homens. Devemos-lhe obediência, a fim de sermos beneficiados, agraciados com a realização de sua intenção. Sucede, no entanto, que essa Vontade não é a de Deus, mas a da classe dominante: a dos sacerdotes.
O Reino de Deus também é uma expressão de sentido ideológico. Ela aparecerá à consciência como um verdadeiro reino instituído por Deus, onde a paz, a harmonia, a felicidade e o amor restarão, quando todo mal for definitivamente extirpado. Sucede, entretanto, que o Reino de Deus é produto do desejo que têm os sacerdotes de fixar seus valores, de estabelecer sua moral, fazendo com que os demais se submeta a ela. O Reino de Deus é o modelo de sociedade desejada por eles. Tacitamente, Sua Santidade Bento XVI tem nos dado provas dessa megalomania. Virá, inclusive, ao Brasil para discursar para os jovens sobre como deve ser uma sociedade segundo a vontade de Deus. Não pode faltar, é claro, a abstinência sexual e o abandono do uso do preservativo, porque o sexo só pode ser feito dentro dos limites rígidos do casamento. E isso é uma concessão do Reino de Deus, já que, ao que parece, nele o sexo não será mais uma necessidade. Por ora, deve-se permiti-lo com restrições.
Nietzsche continuará a tecer duras críticas ao papel do sacerdote. Mostrará que a “revelação” não será outra coisa senão a expressão da necessidade de consolidar a falsificação. Descobrem-se as “sagradas escrituras” (p. 61). Elas tornam-se o parâmetro para avaliar a obediência. A Vontade de Deus, já há muito estabelecida, agora conta com um expediente de controle, um poderoso instrumento literário com que se pode policiar o comportamento daqueles que se afastam da Vontade de Deus. Aliás, nos dirá Nietzsche, que o mal resulta do afastamento das Escrituras.
O sacerdote ordena os tributos que a ele devem ser pagos. Escreverá o filósofo:
“Desde então, todas as coisas da vida estão de tal modo ordenadas, que o sacerdote se torna por toda a parte indispensável, em todos os acontecimentos naturais da vida, nos momentos do nascimento, do casamento, da doença, da morte, para não falar do “sacrifício” (“a ceia”), aparece o santo parasita para os desnaturalizar – na sua linguagem: para “os santificar”.
(p. 61)
Não pode nos passar despercebido o fato de Nietzsche opor “santidade” a “natureza”, de tal sorte que tudo que é considerado santo é negação da natureza, do natural, da vida mesma, ou, como Nietzsche poderia dizer, “da potência da vida” (alusão a sua “vontade de poder”). A santificação é uma desnaturalização. Mais uma operação ideológica, portanto. Vale dizer, a esta altura, que estou entendendo por ideologia uma forma de representação/ construção da realidade que, falseando-a, serve à produção, reprodução e conservação de relações de poder. Sua Santidade é a personificação máxima da Ideologia da Igreja, já que ela encarna as aspirações à santidade, ou seja, a tudo que represente a negação da natureza, da vida mesma como a conhecemos. Isso explica a reprodução de discursos que atacam o valor da vida neste mundo (lugar de perdição e de pecado). Disso se segue o condenar práticas naturais como sexo, masturbação, homossexualismo, o apetite insaciável, etc. como pecados.
Na parte final de seu texto, o filósofo alemão articulará a noção de pecado ao papel do sacerdote e à noção de Deus. Dirá Nietzsche que pecado é a designação para a desobediência a Deus, que não é senão, insisto, desobediência à lei do sacerdote. Incorre em pecado quem transgride essa lei, quem desobedece ao sacerdote. Para Nietzsche, apenas ao sacerdote cabe o poder de “salvar”. As palavras finais de Nietzsche ajudar-nos-ão à compreensão do poder ideológico de que é portador o conceito de “pecado”. Lembro que, com Bakhtin, as palavras são tecidas de fios ideológicos. Toda palavra será portadora de um ponto de vista, pois que ela representará a realidade a partir de um lugar valorativo. Ela será ‘lugar’ também onde se expressam ou se deixam ver as lutas de classes; é lugar do conflito, da tensão, por excelência.
“Examinados psicologicamente, os “pecados” tornam-se indispensáveis em toda a sociedade organizada sacerdotalmente; são os verdadeiros instrumentos de poder, o sacerdote vive do pecado, tem necessidade de que se “peque”... Princípio supremo: “Deus perdoa a todo aquele que faz penitência” – ou, por outras palavras, ao que se submete...”
(p. 61)
A noção de “pecado”, um dispositivo ideológico, entra a fazer parte, pois, do círculo da submissão ao poder sacerdotal, que se expressa da seguinte forma:
Pecado
Redenção Obediência
Obediência Redenção
Pecado
Não podemos perder de vista o poder da noção de pecado, mediante o qual se submete toda a humanidade. Refiro-me ao dogma esdrúxulo do Pecado Original. É muito mais fácil exercer e consolidar o poder quando não há resistência a ele. E, para que esta não se note, é preciso que o grupo sobre o qual outro faz valer seu poder não seja capaz de reconhecer neste exercício alguma forma de opressão. A ideologia serve a isso: ela permite que as formas de poder apareçam como justificáveis e válidas. A ideologia promove a aceitação da opressão, justamente por mascará-la, sob a forma de algo que é entendido como “natural”, dado a priori. Assim, os homens não mais se reconhecem como produtores de suas instituições, mas como produtos delas; se vêem como “dominados”, “controlados” por elas. A sociedade se sobrepõe a eles. No caso em questão, a Igreja se sobrepõe à comunidade humana constituída pelos seus seguidores.
Na ilustração, não é difícil ver que o pecado instaura a condição continuada de submissão. A condição de pecado pode ser superada, de tempo em tempo, pela restituição da obediência, mas a queda é inevitável (e é bom que seja assim, consoante nos ensina Nietzsche: a possibilidade mesma da perenidade do poder da Igreja depende de que nunca o homem deixe de ser pecador). O caminho para a redenção é a obediência, mas esta é frágil, e novamente o homem cai em pecado (ou seja, em desobediência). E o circuito é interminável: ele buscará obedecer para alcançar a redenção, mas voltará a pecar. O pecado, tal como concebido, nunca poderá ser superado, por duas razões: por exigir uma obediência a uma Vontade que não é senão a expressão do desejo de uma sociedade cujos valores são fixados por uma autoridade que se supõe acima do mundo (quer-se, pelo poder, construir uma sociedade ideal; acima da medida humana); por outro lado, o pecado recobrirá as paixões humanas, logo ele é a resposta para explicar as nossas tendências anticivilizatórias. A cobiça, a inveja, a avareza e outras tantas paixões que conturbam a ordem social, embora próprias da nossa natureza, serão consideradas pecaminosas. É pecado, em suma, tudo que diz respeito à naturalidade, que decorre da natureza. Entendo por natureza aquilo que nos define como seres humanos, o que diz respeito à essência dos homens (supondo-se a complexidade dessa essência). Pinker nos ensinará sobre nossa natureza, em seu livro “Tabula Rasa” (fica aqui o convite à leitura). Se a mente tem uma organização resultante da seleção natural, uma programação construída ao longo de milhares de ano no processo da evolução, e se essa organização explica nossos comportamentos e tendências tais como não só o egoísmo mas também a capacidade de cooperação, o pecado penetrará na consciência a fim de nos culpar por nossos maus comportamentos, ainda que a estrutura de nossa mente, que nos predispôs a eles seja, como se acredita, resultado de uma criação divina. Deus é tão pecador quanto nós, não podemos escapar a essa conclusão.
Proponho aqui um ateísmo esclarecido, o que significa dizer que os ateus devem buscar posicionar-se de modo crítico, munido de conhecimentos indispensáveis a uma eficiente tática argumentativa. Reconhecer a vinculação da religião, da Igreja com a política, com o poder, com a ideologia dominante, com as classes dominantes (sem embargo da retórica em favor dos excluídos, dos desgraçados, dos menos favorecidos) é mister, para que possamos, como propus em outra postagem, atacar de dentro. Para que fique elucidada esta minha posição, quando digo que não podemos atacar de fora, quero dizer o seguinte: atacamos de fora quando nos perdemos na tentativa de ridicularizar o outro, de repisar um determinado argumento como falacioso ou produto de seu delírio; aliás, juízos de valor desse tipo só valem se os definimos bem. Julgamos ser a ideia de Deus fruto de um delírio, de fato; mas não basta tachar aqueles que a professam de delirantes; isso é inútil, só gerará desavença. Não atacamos visando atingir a emoção, mas a razão. É provável que nossos esforços não logrem êxito, a principio; caso assim nos pareça, devemos rever nossas estratégias argumentativas. É possível que os caminhos tomados estejam equivocados. Atacamos as Escrituras, apontando seus erros, suas falsidades, suas fábulas, mas nos esquecemos de que o seu conteúdo é continuamente instilado na cabeça deles em constantes sessões de pregações, leituras e preleções. O seu conteúdo é martelado todas as vezes que eles vão à igreja para ouvir o padre ou o pastor falar-lhes: um ostentando uma veste pomposa e um ar solene, de superioridade; outro, mais formalmente adequado ao ambiente dos negócios, vociferando, escandalosamente, um discurso enfadonho e mais surpreendentemente penetrante e persuasivo. Não só seu discurso parece anestesiar as consciências que se sentam naqueles bancos (e choram, gritam, cantam, repetem em uníssono as palavras que o bispo/ pastor profere), mas também seus gestos, a entonação da voz (sempre elevada, berrante!) têm o poder de envolver, tem o impacto de terremoto, um terremoto psíquico, que abala as estruturas da racionalidade, da decência, da dignidade, do ser mesmo dos homens que estão ali e que se submetem, que se abandonam, com corações ingênuos e aflitos, desesperados mais desejosos de conservar a esperança, desejosos de que lhes seja revelada a Verdade, que nem o ateu, nem a ciência, nem a sociedade utilitária, consumista, individualista poderá rejeitar; a ela todos haverão de se submeter um dia, quando Deus vier reclamar seu lugar de soberano e instituir aqui ou além o seu Reino (depende de que livro lemos na Bíblia).
Se nós, ateus, não nos apercebermos da natureza ideológica da religião e não buscarmos compreender o vínculo entre fé - Igreja e Poder - política, nossa ação argumentativa, que é forma de participação social, cultural e política também, estará fadada ao fracasso.
Pensar a relação entre discurso e ideologia é indispensável ao sucesso de nossas investidas argumentativas, já que, com Miotello (2005: 176):
“(...) a ideologia é o sistema sempre atual de representação de sociedade e de mundo construído a partir de referências constituídas nas interações e nas trocas simbólicas desenvolvidas por determinados grupos sociais organizados. É então que se poderá falar do modo de pensar e de ser de um determinado indivíduo, ou de determinado grupo social organizado, de sua linha ideológica, pois que ele vai apresentar um núcleo central relativamente sólido e durável de sua orientação social, resultado de interações sociais ininterruptas, em que a todo momento se destrói e se reconstrói os significados do mundo e dos sujeitos”.
Nossas relações de mundo são, essencialmente, simbólicas, ou seja, relações mediadas por significados. O mundo é resultado da construção de significações pela função de simbolização da linguagem; essas formas de significar o mundo ganham caráter ideológico (porque a ideologia não é possível sem um material simbólico: o discurso é, por excelência, o lugar de sua manifestação), na medida em que servem para produzir e reproduzir (sustentar) relações de dominação. Nietzsche, tacitamente, nos chama atenção para isso.