sábado, 21 de janeiro de 2012

"Render-se à ignorância e chamá-la de deus sempre foi algo prematuro, e continua sendo hoje." (Isaac Asimov)" (

                                         

                                             O sacerdote
                                       Uma proposta de leitura em  “O Anticristo”


       Como instituição sócio-política, a religião sempre se serviu do poder para conservar sua influência. Historicamente, ela se via às voltas com o poder político vigente. Ela sempre necessitou do poder (do Estado, do Soberano, dos tiranos, das autoridades políticas em geral) para prosperar.
Se a Igreja cristã é hoje uma potência, devemos isso a um homem chamado Constantino. Se não fosse por este imperador romano, homem de vanguarda, tolerante, convertido ao cristianismo sinceramente (depois que em sonho recebera de Deus um sinal de que venceria a batalha de Ponte Milvio, vindo, de fato, a conquistar o subúrbio de Roma, às margens do Tigre, depois de matar seu opositor Maxêncio), o cristianismo continuaria sendo o que fora antes do aparecimento deste homem notável: uma seita. Cabia a ele uma missão gloriosa: a Salvação da humanidade! Ele assume a dianteira desta empresa, como homem a quem Deus outorgou (em sonho) o poder providencial. Conta-nos o historiador Paul Veyne, em Quando nosso mundo se tornou Cristão (2011), a respeito da nova missão de Constantino:

“(...) Constantino apreciava o fato de ter sido escolhido, destinado pelo Decreto divino a desempenhar um papel providencial na economia milenar da Salvação; ele disse, escreveu isso, em um texto autêntico que se vai ler mais adiante, mas tão exagerado que a maior parte dos historiadores o desprezam, pelo que tem de pretensioso, e dele não falam”.
(p. 13)

O fato de Constantino ter-se arvorado em ministro do poder de Deus na terra não nos surpreende; outros tantos, depois dele, o fizeram. Jesus Cristo acreditava-se realmente o filho de Deus e pregava não haver outro caminho de se chegar a Deus senão por ele. A despeito de seu desprezo pela política, de sua tentativa de elevar a Palavra de Deus sobre todas as formas de poder terreno, Cristo não deixou de ser um homem que exerceu uma influência política nas terras por que passou.
O exercício do poder é indispensável à religião. Este texto mostrará isso. Para tanto, vou-me valer da obra O Anticristo, de Nietzsche. Deter-me-ei num momento de seu texto em que ele se dedica a pensar sobre o papel do sacerdote. Antes de fazê-lo, contudo, o filósofo alemão nos contará sobre como era, nos tempos primitivos, a relação entre Israel e Yahwen (um dos nomes do Deus de Israel nos Livros Sagrados). Segundo Nietzsche, houve um tempo em que Israel concebia seu Deus como signo da justiça, como expressão de poder, de prazer e esperança em si. Por intermédio de Deus e na confiança nele, os hebreus daqueles tempos confiavam na natureza. A ele deviam a chuva. Assim, Nietzsche escreverá a respeito dessa relação harmoniosa:

“Yahweh é o deus de Israel e, por conseguinte, o deus da justiça: lógica de todo o povo que possui poder e a consciência tranquila. É no culto solene que se manifestam estes dois aspectos da afirmação própria de um povo: mostra-se agradecido pelos grandes destinos que o elevaram à dominação, sente gratidão pela regularidade do ciclo das estações e por qualquer êxito na criação de animais e na agricultura”.
(p. 59)

Primeiramente, cabe observar que por intermédio de Deus afirma-se a identidade nacional de um determinado povo; o Deus de Israel é um elemento da identidade deste povo. Em segundo lugar, é pela gratidão (ainda não é submissão) que o povo israelense se relaciona com seu Deus: agradece os benefícios e o sucesso em suas ações cotidianas (como na criação de animais e no cultivo da terra). O povo se investe de poder através de Deus. Há que considerar também a relação harmoniosa entre homens, Deus e natureza.
Esse estado harmonioso foi interrompido por dois acontecimentos: a guerra contra os assírios e a anarquia interna predominante. Não obstante, o povo conservou a imagem de um rei que reunia em si o coração de um bom soldado e a rigidez de um juiz. Nietzsche colocará na conta do profeta Isaías a maior responsabilidade pela conservação dessa imagem divina. Note-se bem: o povo passou a projetar uma imagem outra de Deus. Escreverá Nietzsche, nesse tocante:

“O deus antigo nada mais podia fazer do que o fizera em outros tempos. Deviam tê-lo deixado sucumbir. Em vez disso, que aconteceu? Modificaram a noção que dele tinham – deformaram essa noção: e por esse preço o conservaram. Yahweh, o deus da “Justiça”, já não mantém a sua unidade com Israel, já que não é a expressão do orgulho de um povo: não passa agora de um deus condicionado”.
(p. 59)

Essa passagem nos permite compreender um ponto importante da reflexão de Nietzsche. Note-se que a transição da imagem de Deus se deu na forma de um ser autônomo para um ser submisso. O deus de Israel, expressão de orgulho desse povo, passaria a ser um poderoso expediente para o exercício do poder. Concluirá Nietzsche que se operou uma falsificação da noção de Deus. E a quem caberá valer-se desse expediente para exercer seu poder, sua influência? Entra em cena a figura do sacerdote, sobre a qual Nietzsche vai dispensar seu desprezo:

“Esses sacerdotes realizaram o prodígio da falsificação de que permanece como documento comprovativo uma grande parte da Bíblia. Com desprezo ímpar por toda a tradição, afrontando toda realidade histórica, transcreveram em sentido religioso o seu próprio passado nacional, isto é, fizeram dele um estúpido mecanismo de salvação: a ofensa contra Yahweh merece punição; o amor por Yahweh, recompensa. Muito mais dolorosamente sentiríamos essa escandalosa se a milenar interpretação eclesiástica não nos houvesse tornado quase insensíveis às exigências da probidade in historicis [em questões históricas]

(p. 60)

Vale atentar para o uso das formas “transcrever” e “mecanismo”. Nietzsche acusa os sacerdotes de reproduzir a história da relação de Israel com seu Deus num outro sentido. Que sentido é este? O religioso. O sentido religioso instaura uma relação de submissão não do homem a Deus (que é um mecanismo), mas  de uma classe de homens a outra. Devemos ter em conta isso: Deus é um mecanismo para a expressão do poder de uma classe sobre outra, no caso, da classe dos sacerdotes sobre a população crédula. O poder da Igreja surgiria como uma forma de apagar aquela falsificação histórica, tornando essa população, como Nietzsche assinala bem, “insensíveis às exigências da probidade”, ou seja, insensíveis à honestidade daqueles que contam a história, a relatam. A história mesma é apagada na consciência dos que dela souberam por intermédio de outra voz, a voz do poder, que a deturpou.
Nietzsche não poupará críticas aos filósofos, que, segundo ele, apoiaram a Igreja. Para Nietzsche, a Igreja é “a mentira da “ordem moral universal” (p. 60). E nos esclarecerá sobre o que significa “ordem moral universal”. Eis um conceito central em seu raciocínio:

“Que existe, sem qualquer dúvida, uma vontade de Deus, que decide tudo o que o homem deve ou não fazer, que o valor de um povo ou de um indivíduo se gradua segundo a sua maior ou menor obediência à vontade de Deus; que nos destinos de um povo ou de um indivíduo mostra-se dominante a vontade divina que castiga ou recompensa segundo seu grau de consciência”.
(ibi.id).
(grifo meu)

O sacerdote introduzirá a doutrina do pecado (que tratei alhures como “flagelo psíquico”). Decerto, um instrumento de poder, pelo qual a Igreja conserva seus seguidores na obediência, na submissão, na escravidão psíquica, na ignorância. Para compreendermos como opera essa doutrina, devemos ter em conta o seguinte. Em primeiro lugar, os homens, como seres de linguagem, seres simbólicos, darão muita importância às palavras. Diremos, sem incorrer em erro, que as palavras têm poder, ou melhor, estão a serviço do poder. Muitas delas, certamente. Em segundo lugar, nossa mente ou nossa consciência tem base simbólica. Bakhtin já nos ensinara sobre isso: a realidade da consciência é o signo. Uma palavra de ordem proferida pelo pai tenderá a provocar a obediência da criança. O pai exerce sua autoridade sobre a criança não só do ponto de vista econômico e moral, mas também simbólico. Seus comandos verbais são formas de expressão de seu poder. Mesmo que sejam questionados ou que o pai se sinta afrontado pela desobediência da criança, a necessidade de exercer o poder pela palavra ainda sim estaria patente.  Mesmo a desobediência a um ato verbal de ordem, produzido por alguém que ocupa um lugar mais alto numa hierarquia, só prova que as palavras servem para determinar posições hierárquicas e fixar poderes.  
No entanto, o sacerdote não pode, por razões óbvias, exceder-se no grau de sua autoridade, dando-lhe uma face agressiva; é necessário certo tempero de docilidade hipócrita, a fim de cativar o fiel para que se submeta à Vontade de Deus, que não é senão a vontade do sacerdote. Lembremos que o sacerdote é o representante de Deus na terra; ele está na posse daquele mecanismo (a vontade de Deus) e exerce, por meio dele, a sua vontade.
Veja-se como Nietzsche entende o papel do sacerdote. O filósofo o chamará “parasita”.

“Posta em lugar desta lastimável mentira, a realidade significa certa espécie de homem parasita que não prospera senão a expensas de todas as formas sãs da vida, o sacerdote, abusa do nome de Deus, chama “reino de Deus” a um estado de sociedade no qual é ele quem fixa os valores; chama “vontade de Deus” aos meios que emprega para alcançar ou manter tal situação; com cinismo glacial, valoriza os povos, as épocas, os indivíduos, conforme forem úteis ou resistiram à preponderância sacerdotal”.

(ibi.id)

Interpretemos alguns pontos importantes aí. A palavra “parasita” é reveladora da natureza aproveitadora desses senhores da ingenuidade e credulidade. Eles, os sacerdotes, estabelecem com seus seguidores uma espécie de parasitismo ou, se preferirmos, esclavagismo. Neste último caso, um grupo se aproveita do trabalho, das atividades e dos produtos - delas resultantes - de outro grupo. O sacerdote vive, conforme escreve Nietzsche, à custa dos que se esforçam por atender à Vontade de Deus.
A natureza ideológica da religião começa aí a ganhar formas nítidas. Note-se que, por meio de representações, por meio de um aparato simbólico, constroem-se formas de realidade com vistas à reprodução e à conservação do poder. A Vontade de Deus aparece à consciência dos fiéis como realmente poder de decisão de deus, como expressão de sua soberania. Pela sua vontade, deus deseja atingir um propósito. Ele tem um propósito para os homens. Devemos-lhe obediência, a fim de sermos beneficiados, agraciados com a realização de sua intenção. Sucede, no entanto, que essa Vontade não é a de Deus, mas a da classe dominante: a dos sacerdotes.
O Reino de Deus também é uma expressão de sentido ideológico. Ela aparecerá à consciência como um verdadeiro reino instituído por Deus, onde a paz, a harmonia, a felicidade e o amor restarão, quando todo mal for definitivamente extirpado. Sucede, entretanto, que o Reino de Deus é produto do desejo que têm os sacerdotes de fixar seus valores, de estabelecer sua moral, fazendo com que os demais se submeta a ela. O Reino de Deus é o modelo de sociedade desejada por eles. Tacitamente, Sua Santidade Bento XVI tem nos dado provas dessa megalomania. Virá, inclusive, ao Brasil para discursar para os jovens sobre como deve ser uma sociedade segundo a vontade de Deus. Não pode faltar, é claro, a abstinência sexual e o abandono do uso do preservativo, porque o sexo só pode ser feito dentro dos limites rígidos do casamento. E isso é uma concessão do Reino de Deus, já que, ao que parece, nele o sexo não será mais uma necessidade. Por ora, deve-se permiti-lo com restrições.
Nietzsche continuará a tecer duras críticas ao papel do sacerdote. Mostrará que a “revelação” não será outra coisa senão a expressão da necessidade de consolidar a falsificação. Descobrem-se as “sagradas escrituras” (p. 61). Elas tornam-se o parâmetro para avaliar a obediência. A Vontade de Deus, já há muito estabelecida, agora conta com um expediente de controle, um poderoso instrumento literário com que se pode policiar o comportamento daqueles que se afastam da Vontade de Deus. Aliás, nos dirá Nietzsche, que o mal resulta do afastamento das Escrituras.
O sacerdote ordena os tributos que a ele devem ser pagos. Escreverá o filósofo:


“Desde então, todas as coisas da vida estão de tal modo ordenadas, que o sacerdote se torna por toda a parte indispensável, em todos os acontecimentos naturais da vida, nos momentos do nascimento, do casamento, da doença, da morte, para não falar do “sacrifício” (“a ceia”), aparece o santo parasita para os desnaturalizar – na sua linguagem: para “os santificar”.
(p. 61)

Não pode nos passar despercebido o fato de Nietzsche opor “santidade” a “natureza”, de tal sorte que tudo que é considerado santo é negação da natureza, do natural, da vida mesma, ou, como Nietzsche poderia dizer, “da potência da vida” (alusão a sua “vontade de poder”). A santificação é uma desnaturalização. Mais uma operação ideológica, portanto. Vale dizer, a esta altura, que estou entendendo por ideologia uma forma de representação/ construção da realidade que, falseando-a, serve à produção, reprodução e conservação de relações de poder. Sua Santidade é a personificação máxima da Ideologia da Igreja, já que ela encarna as aspirações à santidade, ou seja, a tudo que represente a negação da natureza, da vida mesma como a conhecemos. Isso explica a reprodução de discursos que atacam o valor da vida neste mundo (lugar de perdição e de pecado). Disso se segue o condenar práticas naturais como sexo, masturbação, homossexualismo, o apetite insaciável, etc. como pecados.
Na parte final de seu texto, o filósofo alemão articulará a noção de pecado ao papel do sacerdote e à noção de Deus. Dirá Nietzsche que pecado é a designação para a desobediência a Deus, que não é senão, insisto, desobediência à lei do sacerdote. Incorre em pecado quem transgride essa lei, quem desobedece ao sacerdote. Para Nietzsche, apenas ao sacerdote cabe o poder de “salvar”. As palavras finais de Nietzsche ajudar-nos-ão à compreensão do poder ideológico de que é portador o conceito de “pecado”. Lembro que, com Bakhtin, as palavras são tecidas de fios ideológicos. Toda palavra será portadora de um ponto de vista, pois que ela representará a realidade a partir de um lugar valorativo. Ela será ‘lugar’ também onde se expressam ou se deixam ver as lutas de classes; é lugar do conflito, da tensão, por excelência.

“Examinados psicologicamente, os “pecados” tornam-se indispensáveis em toda a sociedade organizada sacerdotalmente; são os verdadeiros instrumentos de poder, o sacerdote vive do pecado, tem necessidade de que se “peque”... Princípio supremo: “Deus perdoa a todo aquele que faz penitência” – ou, por outras palavras, ao que se submete...”

(p. 61)

A noção de “pecado”, um dispositivo ideológico, entra a fazer parte, pois, do círculo da submissão ao poder sacerdotal, que se expressa da seguinte forma:


                                                                   Pecado

                                Redenção                                          Obediência

          

                               Obediência                                        Redenção

                                                                  Pecado

                                                              

Não podemos perder de vista o poder da noção de pecado, mediante o qual se submete toda a humanidade. Refiro-me ao dogma esdrúxulo do Pecado Original. É muito mais fácil exercer e consolidar o poder quando não há resistência a ele. E, para que esta não se note, é preciso que o grupo sobre o qual outro faz valer seu poder não seja capaz de reconhecer neste exercício alguma forma de opressão. A ideologia serve a isso: ela permite que as formas de poder apareçam como justificáveis e válidas. A ideologia promove a aceitação da opressão, justamente por mascará-la, sob a forma de algo que é entendido como “natural”, dado a priori. Assim, os homens não mais se reconhecem como produtores de suas instituições, mas como produtos delas; se vêem como “dominados”, “controlados” por elas. A sociedade se sobrepõe a eles. No caso em questão, a Igreja se sobrepõe à comunidade humana constituída pelos seus seguidores.
Na ilustração, não é difícil ver que o pecado instaura a condição continuada de submissão. A condição de pecado pode ser superada, de tempo em tempo, pela restituição da obediência, mas a queda é inevitável (e é bom que seja assim, consoante nos ensina Nietzsche: a possibilidade mesma da perenidade do poder da Igreja depende de que nunca o homem deixe de ser pecador). O caminho para a redenção é a obediência, mas esta é frágil, e novamente o homem cai em pecado (ou seja, em desobediência). E o circuito é interminável: ele buscará obedecer para alcançar a redenção, mas voltará a pecar. O pecado, tal como concebido, nunca poderá ser superado, por duas razões: por exigir uma obediência a uma Vontade que não é senão a expressão do desejo de uma sociedade cujos valores são fixados por uma autoridade que se supõe acima do mundo (quer-se, pelo poder, construir uma sociedade ideal; acima da medida humana); por outro lado, o pecado recobrirá as paixões humanas, logo ele é a resposta para explicar as nossas tendências anticivilizatórias. A cobiça, a inveja, a avareza e outras tantas paixões que conturbam a ordem social, embora próprias da nossa natureza, serão consideradas pecaminosas. É pecado, em suma, tudo que diz respeito à naturalidade, que decorre da natureza. Entendo por natureza aquilo que nos define como seres humanos, o que diz respeito à essência dos homens (supondo-se a complexidade dessa essência). Pinker nos ensinará sobre nossa natureza, em seu livro “Tabula Rasa” (fica aqui o convite à leitura). Se a mente tem uma organização resultante da seleção natural, uma programação construída ao longo de milhares de ano no processo da evolução, e se essa organização explica nossos comportamentos e tendências tais como não só o egoísmo  mas também a capacidade de cooperação, o pecado penetrará na consciência a fim de nos culpar por nossos maus comportamentos, ainda que a estrutura de nossa mente, que nos predispôs a eles seja, como se acredita, resultado de uma criação divina. Deus é tão pecador quanto nós, não podemos escapar a essa conclusão.
Proponho aqui um ateísmo esclarecido, o que significa dizer que os ateus devem buscar posicionar-se de modo crítico, munido de conhecimentos indispensáveis a uma eficiente tática argumentativa. Reconhecer a vinculação da religião, da Igreja com a política, com o poder, com a ideologia dominante, com as classes dominantes (sem embargo da retórica em favor dos excluídos, dos desgraçados, dos menos favorecidos) é mister, para que possamos, como propus em outra postagem, atacar de dentro. Para que fique elucidada esta minha posição, quando digo que não podemos atacar de fora, quero dizer o seguinte: atacamos de fora quando nos perdemos na tentativa de ridicularizar o outro, de repisar um determinado argumento como falacioso ou produto de seu delírio; aliás, juízos de valor desse tipo só valem se os definimos bem. Julgamos ser a ideia de Deus fruto de um delírio, de fato; mas não basta tachar aqueles que a professam  de delirantes; isso é inútil, só gerará desavença. Não atacamos visando atingir a emoção, mas a razão. É provável que nossos esforços não logrem êxito, a principio; caso assim nos pareça, devemos rever nossas estratégias argumentativas. É possível que os caminhos tomados estejam equivocados. Atacamos as Escrituras, apontando seus erros, suas falsidades, suas fábulas, mas nos esquecemos de que o seu conteúdo é continuamente instilado na cabeça deles em constantes sessões de pregações, leituras e preleções. O seu conteúdo é martelado todas as vezes que eles vão à igreja para ouvir o padre ou o pastor falar-lhes: um ostentando uma veste pomposa e um ar solene, de superioridade; outro, mais formalmente adequado ao ambiente dos negócios, vociferando, escandalosamente, um discurso enfadonho e mais surpreendentemente penetrante e persuasivo. Não só seu discurso parece anestesiar as consciências que se sentam naqueles bancos (e choram, gritam, cantam, repetem em uníssono as palavras que o bispo/ pastor profere), mas também seus gestos, a entonação da voz (sempre elevada, berrante!) têm o poder de envolver, tem o impacto de terremoto, um terremoto psíquico, que abala as estruturas da racionalidade, da decência, da dignidade, do ser mesmo dos homens que estão ali e que se submetem, que se abandonam, com corações ingênuos e aflitos, desesperados mais desejosos de conservar a esperança, desejosos de que lhes seja revelada a Verdade, que nem o ateu, nem a ciência, nem a sociedade utilitária, consumista, individualista poderá rejeitar; a ela todos haverão de se submeter um dia, quando Deus vier reclamar seu lugar de soberano e instituir aqui ou além o seu Reino (depende de que livro lemos na Bíblia).
Se nós, ateus, não nos apercebermos da natureza ideológica da religião e não buscarmos compreender o vínculo entre fé - Igreja e Poder - política, nossa ação argumentativa, que é forma de participação social, cultural e política também, estará fadada ao fracasso.
Pensar a relação entre discurso e ideologia é indispensável ao sucesso de nossas investidas argumentativas, já que, com Miotello (2005: 176):

“(...) a ideologia é o sistema sempre atual de representação de sociedade e de mundo construído a partir de referências constituídas nas interações e nas trocas simbólicas desenvolvidas por determinados grupos sociais organizados. É então que se poderá falar do modo de pensar e de ser de um determinado indivíduo, ou de determinado grupo social organizado, de sua linha ideológica, pois que ele vai apresentar um núcleo central relativamente sólido e durável de sua orientação social, resultado de interações sociais ininterruptas, em que a todo momento se destrói e se reconstrói os significados do mundo e dos sujeitos”.

Nossas relações de mundo são, essencialmente, simbólicas, ou seja, relações mediadas por significados. O mundo é resultado da construção de significações pela função de simbolização da linguagem; essas formas de significar o mundo ganham caráter ideológico (porque a ideologia não é possível sem um material simbólico: o discurso é, por excelência, o lugar de sua manifestação), na medida em que servem para produzir e reproduzir (sustentar) relações de dominação. Nietzsche, tacitamente, nos chama atenção para isso.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

"Por simples bom senso, não acredito em Deus. Em nenhum." (Charles Chaplin)

        

     O ateísmo ativista
  Repensando o projeto


A palavra ativismo é definida, na Enciclopédia e Dicionário Koogan- Houaiss, tanto como ‘atitude moral que privilegia as necessidades da vida e da ação, sobre os princípios teóricos’ como ‘propaganda ativa em favor de uma doutrina’. O ateísmo propalado por autores como Richard Dawkins, Sam Harris e Christopher Hitchens tem sido compreendido como um ateísmo ativista justamente porque esses autores, ao publicar obras e participar de debates e conferências, em televisão e em universidades, atuam incisivamente contra a religião e a fé. Eles, realmente, partiram para o ataque. Cada qual do seu modo: Dawkins valendo-se de sua competência enquanto biólogo e expoente do darwinismo. Sua obra Deus: um delírio foi escrita sob a perspectiva baseada em sua formação. Ele considerará a fé um vírus, que contamina a consciência das pessoas, impedindo-as de pensar coerentemente sobre suas crenças religiosas e suas crenças sobre o modo como o mundo funciona.  Sam Harris, a seu turno, atacará de modo mordaz a fé religiosa e, particularmente, a fé islâmica. No Posfácio de seu livro A morte da Fé (2009), em resposta a uma das críticas que recebera de seus leitores (algumas por e-mail), o autor é claro:


“Se existe algum livro que ataca mais duramente a religião, eu o desconheço. Isso não quer dizer que meu livro não tenha muitas falhas; mas com certeza ele não pode ser acusado de tentar apaziguar a fé religiosa”.
(p. 272)

O excelente livro deus não é grande (2007), de Hitchens, conta com relatos de suas experiências como jornalista enviado a regiões de conflitos, com ataques sem peias a personalidades porta-vozes da fé, como Madre Teresa de Calcutá. Conhecimento e experiência conciliados de modo lúcido e ácido no ataque ao fenômeno da religião – é o que encontramos, em suma, na obra deste grande e saudoso intelectual.
Comum aos autores aqui mencionados é a tese segundo a qual a fé deturpa a razão, se alimenta da irracionalidade, embota a consciência. Veja-se, a título de exemplo, o que escreve Sam Harris nesse tocante:

“A fé religiosa, embora seja a única espécie de ignorância humana que não admite sequer a possibilidade de correção, continua a ser protegida contra as críticas em todos os cantos da nossa cultura. Ignorando todas as fontes de informação válidas acerca deste mundo (tanto espirituais como mundanas), nossas religiões assumiram antigos tabus e fantasias pré-científicas como se estes encerrassem o mais profundo significado metafísico. (...) Na melhor das hipóteses, a fé religiosa torna as pessoas, mesmo as bem-intencionadas, incapazes de pensar racionalmente sobre muitas das suas preocupações mais profundas e; na pior das hipóteses, é uma fonte contínua de violência entre os seres humanos”.

(p. 259)


Hitchens, por sua vez, apontará o fato de a larga propagação de religiões estar ligada à inversão ideológica que declara os homens não mais como criadores de deuses, mas como criaturas destes. O ventre das religiões é justamente essa ideologia. Nela se ancoram as doutrinas, os rituais, a fé. A dimensão da cultura (criação humana), onde devemos situar as religiões e os seus deuses, é apagada nessa concepção invertida (ideológica). A ideologia aqui referida mascara a verdadeira realidade que envolve homens e deuses: aqueles como os verdadeiros criadores; estes como suas verdadeiras criaturas.
Comum aos autores referidos aqui é também a ideia de que a religião nasce da ignorância sobre como o mundo é e de que se alimenta dessa ignorância. O alicerce da religião é a ignorância. E a fé religiosa estorva a capacidade de as pessoas desenvolverem o pensamento reflexivo e crítico.
É interessante ver que Dawkins, particularmente, se preocupa muito com a educação das crianças; ou melhor, se preocupa com a incapacidade de as crianças fazerem determinadas escolhas, como escolher se vão seguir ou não a religião de seus pais. Para ele, uma criança não se define como católica ou islâmica; ela não é nem uma nem outra, não tem maturidade para avaliar as implicações de assumir este componente de sua identidade; na verdade, segundo o autor, a ela é imposta a religião dos pais. A preocupação de Dawkins se justifica pelo fato de que a forma como o adulto se relacionará com a sua fé, defenderá suas crenças religiosas e encarará a religião em sua própria vida dependerá do modo como a doutrina religiosa foi inculcada nele, quando criança, pelos pais. É claro que, aliada aos pais, está a Igreja e seus cursos de doutrinação (no caso da Igreja Católica, o catecismo e a crisma). O modo como a religião influenciará o comportamento desse adulto durante a vida dependerá de como se desenvolveu a atividade de adestramento psicológico dele, quando criança, promovida pela família e Igreja.
Convém, agora, sintetizar a preocupação fundamental dessa corrente de ateístas: combater a ignorância religiosa, fonte de erros, irracionalidade e, em casos extremos, de violência. Mas é preciso elucidar esse ponto e a pergunta que devemos fazer é: no que consiste essa ignorância? Vale perguntar ainda: como ela se manifesta?
Os estudos filosóficos ensinaram-me a buscar o rigor na definição de termos e no tratamento de questões sobre a qual me debruço. Preciso, pois, me deter na definição de dois conceitos operacionais: o pensamento e a ignorância. O conceito de pensamento que me interessa aqui é aquele que se estrutura simbolicamente, ou seja, pela linguagem verbal. É o que devemos chamar de pensamento conceitual. Não existe fora dos quadros da linguagem, donde se segue que pensar é, com Kant, “conhecer através de conceitos”. Assim é que a mente constrói conceitos e os organiza na forma de juízos. Para mim, linguista, na forma de proposições, textos, discurso. O pensamento é essencialmente linguístico ou discursivo. Para Kant, pensar é julgar, é calcular. Quando tomamos os conceitos ‘menino’, ‘caiu’ e ‘no chão’ (as palavras criam conceitos) e os organizamos numa oração, formamos uma proposição ou pensamento: “O menino caiu no chão”. Essa frase reconstrói um estado-de-coisas no mundo tornando-o dado de nossa consciência, ou seja, forma de conhecimento. Posso desenvolver esse pensamento, articulando-o a outro pensamento. Por exemplo, posso articular àquela oração uma causa: “O menino caiu no chão, porque estava correndo do cachorro”. Casos há em que a oração introduzida pela conjunção “porque” não veicula a causa, mas a explicação para o que se enuncia anteriormente: “Deve ter chovido, porque o chão está molhado”. Note-se que “porque o chão está molhado” é uma justificativa para o ato de fala “deve ter chovido”, produzido na base de uma inferência feita a partir da constatação do estado do chão. É como se disséssemos: “Eu afirmo [deve ter chovido], porque o chão está molhado”. Diremos que a relação causal opera sobre proposições, de tal modo que B é causa de A; mas a justificativa ou explicação opera sobre atos de fala, de tal sorte que o que se apresenta é uma explicação/ justificativa para o ter dito B, ou seja, para a enunciação de B (Deve ter chovido).
Esses exemplos mostram que as relações entre os pensamentos envolvem também pensamentos não anunciados, ou seja, envolvem pressupostos e operações linguístico-cognitivas como inferências. Aliás, a inferenciação é uma atividade fundamental e indispensável na compreensão de textos, seja orais, seja escritos. Ao usarmos a linguagem, em nosso dia-a-dia, estamos em todo momento fazendo inferências. Um caso de pressuposição é ilustrado em “O carro parou de trepidar”. Desse enunciado depreendemos o pressuposto “O carro trepidava”. A unidade que ativa o pressuposto, ou que o sinaliza, é “parou de”. É por meio desse elemento linguístico que inferimos “o carro trepidava”. O pressuposto está inscrito no enunciado e é recuperado na base desse enunciado.
Em O que é Filosofia (2008), Caio Prado Jr. distinguirá entre o pensamento elaborador, que operando sobre conceitos e os articulando na forma de enunciados, é responsável pela produção de conhecimento, e o pensamento reflexivo, a saber, aquele que se volta sobre o já pensado (o conhecimento produzido).  O pensamento reflexivo é o pensamento sobre o pensamento. Na verdade, a conceituação, ou seja, a representação que a mente faz das ocorrências do real já é uma etapa do pensamento elaborador. Prado nos ensina sobre a relação entre essas duas formas de pensamento:

“Desse primeiro momento ou nível da atividade cognitiva (isto é, a elaboração da conceituação representativa da Realidade), o instrumento dessa atividade,que é o pensamento elaborador do conhecimento, se volta sobre si próprio e toma reflexivamente por objeto aquele mesmo conteúdo conceptual ou Conhecimento por ele elaborado”.
(p. 20)

O pensamento elaborador, responsável pela conceituação, se desenvolve a partir da experiência sensória do indivíduo. Ele se apóia nos dados acessíveis aos sentidos, conta com a experiência de mundo do indivíduo pensante. A transformação dos dados postos aos sentidos em dados de consciência, ou seja, em formas de conceitos, é no que consiste a conceituação.
Compreendida esta etapa, passo a considerar o conceito de ignorância. Não podemos deixar de referir o nome de Sócrates, considerado pelo Oráculo de Delfos, o homem mais sábio que já existiu, porque reconheceu sua ignorância, ao proferir a famigerada frase “só sei que nada sei”. Grosso modo, pensamos em ignorância como carência, insuficiência, falta ou ausência. Ignorar é desconhecer. Todos nós ignoramos em alguma medida. A ignorância reconhecida por Sócrates é o que eu chamaria de ignorância propulsora, a saber, aquela que nos impele ao conhecimento. Ela abre caminho para o conhecimento; uma vez reconhecida, o indivíduo se esforçará por saná-lo com o conhecimento. Ela é, assim, um vazio que deve ser preenchido com conhecimento(s).
A ignorância também pode ser pensada como um engano do indivíduo em relação à qualidade e correção de seus conhecimentos ou crenças. A ignorância faz com que ele tome por verdadeiro o que é falso, incorrendo em ilusão ou em erro. A ignorância mantém-no no nível das opiniões falsas ou da aparência, impedindo-o de alcançar a essência das coisas, a(s) verdade(s). Importa também entender, nessa discussão, o valor das evidências. Uma evidência é tudo aquilo que se impõe ao espírito de modo claro, distinto e para o qual se dispensa demonstração. A evidência racional importa às ciências. Descartes reconhecia a evidência intelectual como o único critério de objetividade. Consoante o filósofo, não podemos aceitar como verdade nada sem que antes se imponha ao espírito como evidente.
Entendemos por que Dawkins (e outros), ao ser indagado sobre o porquê de não acreditar na existência de Deus, responde de modo a fazer entender ao seu interlocutor que “faltam evidências”. Claro está que o conhecimento, para ter validade (incluindo-se, evidentemente, o conhecimento científico) precisa apoiar-se nas evidências. Elas constituem o conjunto de elementos necessários para corroborar ou negar uma dada teoria ou hipótese científica. É claro que as evidências não estão disponíveis de antemão; elas dependem de pesquisas desenvolvidas na base de um conjunto de pressupostos.
As evidências diferem dos indícios em termos de grau de confiabilidade ou certeza. As evidências são tomadas como provas de que uma crença ou ideia é verdadeira. Elas validam conhecimentos. Os indícios são sinais que apontam para a probabilidade de que algo tenha acontecido ou exista. No domínio da criminologia, da jurisprudência, do Direito, fala-se em indícios, sempre que na cena de um crime há pistas que podem ajudar para o conhecimento de quem foi o seu autor, bem como de como foi praticado.
A ignorância atacada pela corrente do ateísmo ativista representado nas figuras de Dawkins, Harris e Hitchens é uma espécie de ignorância que toma como verdades insuspeitas, inquestionáveis, inatacáveis determinadas crenças que carecem de evidências, de base empírica. Elas sequer contam com indícios. Mas também é uma ignorância que infertiliza o pensamento reflexivo. Ela o turva, obscurece-o e, não raro, o impede. A ignorância religiosa torna seu possuidor uma pessoa ingênua, incapaz, às vezes, de perceber as incoerências, contradições, disparates que vazam de seus pensamentos. Lembro que pensar é encadear proposições, frases, juízos; pensar implica um trabalho cuidadoso com a linguagem verbal, baseado em alguns princípios da lógica.
Vamos a um caso que constatei em uma postagem no facebook. Primeiramente, vale elencar algumas proposições vulgarmente produzidas sobre Deus, herança dos ensinamentos teológicos mediante a Igreja:

1. Deus é Pai;
2. Deus é amor;
3. Deus é bom;
4. Deus é todo-poderoso;
5. Deus é onipresente;
6. Deus é onisciente.

Na postagem, estampava-se a foto de um acidente de trânsito fatal. Quase toda uma família morta, exceto um menininho. A criança sobreviveu. A imagem incluía o dizer: “Quando Deus põe a mão”. Quer-se fazer crer que Deus, “pondo” suas mãos invisíveis, salvou a criança, evitando sua morte. Mas, inexplicavelmente, deixou seus familiares morrer. Devemos supor que Deus tenha um plano para aquela criança e outro “plano” para seus familiares? Mas o que dizer da criança que, além do trauma provocado pelo acidente e pela visão aterradora de ver seus familiares mortos, deverá levar uma vida na condição de órfã? Deus não foi bem sucedido. Um pai reconhece que uma criança necessita de seus pais; um pai que ama não deixaria seu filho abandonado; e o mais impressionante: se Deus é todo-poderoso, por que não salvou a todos, se não quis evitar o acidente (embora pudesse fazê-lo, já que seu poder de agir é absoluto)? Ele não parece tão plenamente presente assim, mas chegou a tempo de salvar a criança (devia estar ocupado naquele momento, mas se apressou em socorrê-la).
O que devemos reter, nesta ilustração, é o fato de que o que se diz de Deus entra em choque, em conflito com as ocorrências do real. A sobrevivência do menino surpreende, é claro; mas pode ser explicada pelas circunstâncias do acidente, por exemplo, a posição em que a criança se achava, seu tamanho, o ponto em que a força do impacto incidiu (provavelmente, no lado onde estava o motorista e as outras pessoas que morreram). Importa ver que não precisamos da hipótese de Deus para explicar o que parece ser um “milagre”, um acontecimento extraordinário e impressionante. Se lançamos mão dela, ficamos ainda sem explicação para o fato de Deus só ter salvado a criança e ter deixado morrer as demais pessoas no carro (seus familiares). Para os religiosos, em geral, crendo não ser a morte o fim da vida, não nos surpreendemos que possam dizer que a morte das outras pessoas que estavam no carro era plano de Deus, era a sua vontade. Essa crença absurda é para mim aterradora! Ter um ser todo-poderoso, senhor do universo, a decidir quem deve viver e quem deve morrer excede em horror qualquer história de terror já criada pelo gênio humano.
Lançar mão do dispositivo Deus para explicar os acontecimentos do mundo não só nos dá explicações errôneas sobre o modo como o mundo funciona, não só não nos fornece conhecimento nenhum, como também pode acarretar-nos mais inquietações do que serenidade. Talvez, essas inquietações não encontrem abrigo no coração dos fiéis, simplesmente porque eles não se ocupam em pensar seriamente sobre suas afirmações, sobre suas crenças a respeito da relação entre Deus e o mundo, a respeito do modo como Deus atuaria no mundo. Seria mais justo admitir que, se há um criador do Universo, esse criador se desinteressou de sua criação; ele não intervém em favor de suas criaturas, donde se conclui não evitar que terremotos matem milhares de pessoas, que um tsunami arrase uma cidade no Japão, que vulcões, epidemias causem choro e dor a muitos corações.
A ignorância a que se opõem ferrenhamente aqueles autores é também a ignorância da prepotência, da arrogância, da vaidade. As pessoas de fé não se permitem sequer pôr em xeque suas convicções. Raramente (ou nunca) se perguntam: “e se eu estiver errado?”. Essa pergunta honesta também poderia ser sugerida a nós, ateus, por eles, religiosos. Pode ser que estejamos errados; mas a falta de evidências a favor da existência de Deus tem corroborado até hoje a posição ateísta, a tem sustentado firmemente.
Quando o ateu nega a existência de Deus e se arvora na defesa de sua posição, ele, deve se esforçar por mostrar que muitos erros e crimes foram cometidos em favor da crença numa ideia ilusória. Devemos ter em conta que tudo que os homens fizeram até hoje (guerras, doutrinas, templos, vestimentas pomposas, sistemas hierárquicos, tratados de teologia, rituais, privações, etc.) em torno do nome de Deus fizeram-no em favor da consolidação e manutenção da crença em um ser que não pode ser experienciado sequer por microscópio ou outras técnicas avançadas (como as que são empregadas para estudar a complexidade de um átomo). Na escala existencial, Deus está abaixo de um micróbio, ou mesmo de um átomo (ou mesmo de um nêutron). A despeito de tantas crueldades, guerras, genocídios em seu nome, estranhamente, ele se mantém em profundos silêncio e omissão. Mas esse fato não incomoda as pessoas religiosas .
É verdade que não são todas as pessoas que chegam ao extremo de guerrear e cometer crimes em nome de Deus, mas muitas poderão, ao menos, romper relações ou evitá-las, caso descubram que um amigo ou colega nega-se a acreditar em Deus. Deus (a ideia de Deus) instaura uma cisão, uma discriminação, uma divisão no interior de uma sociedade ou comunidade. Sam Harris nos ensinou sobre o poder de uma crença, de uma ideia. A crença move as pessoas, leva-as a agir. Uma crença equivocada poderá (o faz) levar a ações equivocadas e, não raro, funestas.
Tem razão Gleiser ao nos chamar a atenção para o fato de que os ateístas da vertente ativista ignoram o que se passa nos corações dos fiéis, quando estes se entregam às suas orações, se envolvem em seus rituais e se relacionam com os imprevistos da vida. Por isso, o ataque ou a crítica não deve ser direcionado para o desejo ou o sentimento de que haja algo além da materialidade do mundo, da vida tal como a conhecemos. O problema dessa crença é a sua consequência. As pessoas que seguem tenazmente a doutrina da vida além-túmulo acabam por apregoar o desapego, o desinteresse pelas coisas desse mundo. Os mais extremistas, lançam aviões contra arranha-céus ou se suicidam com bombas presas ao corpo, levando consigo vários inocentes. Tudo porque acreditam que gozarão de felicidade eterna no paraíso reservado a eles por Deus (Alá).  É verdade que, entre nós, os cristãos católicos e evangélicos não alcançam esse grau de paixão envenenada; mas os últimos, especialmente, pregam um discurso apocalíptico e de conversão à causa de Cristo. Os católicos não fogem à regra. Também esperam pelo Juízo Final, com o retorno de Cristo. Há, como observou bem Onfray (2007), na doutrina cristã propagada por Paulo (embora nem todos os textos com seu nome tenham sido escritos por ele), obsessão pela morte, pelo fim absoluto.
O ataque deve ser dirigido, portanto, no sentido de evitar que a onda de ignorância alimentada pela religião em relação a questões éticas, políticas, sociais e culturais penetre as nossas instituições e sirva de parâmetro para estabelecer formas de convivência antidemocráticas e eivadas de preconceitos. Exemplos disso são a implementação por certas autoridades políticas da corrente evangélica do ensino da Bíblia nas escolas, a perseguição aos homossexuais, a disseminação da ideia absurda e repugnante de que a aids é um castigo de Deus aplicado aos homens, etc.
É claro que o debate aberto, a insistência em que a religião pode ser discutida sim devem constar da agenda ateísta. Se os religiosos participam, através de associações, pela mediação da igreja, social, cultural e politicamente, defendendo suas opiniões, seus valores, suas crenças, também nós, ateus, devemos lutar por maior participação nessas esferas. O conflito de percepções, de interpretações, de valores, de éticas é indispensável.
Devemos abandonar atitudes demasiado agressivas, as ofensas, as ridicularizações, sem deixar de sermos irônicos (quando necessário) e sagazes. A orientação de nosso discurso deve, não raro, situar-se no domínio em que as crenças religiosas são apresentadas e articuladas. É preciso atacar de dentro, e não de fora, o que significa apreender as conexões entre os dizeres. Se queremos pôr a nu a ignorância, devemos tateá-la nas entranhas de sua materialização verbal. Isso significa atentar para como os pensamentos são tramados e como reproduzem as gritantes incoerências da doutrina e das Escrituras.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

"Nós matamos o Deus, mas não matamos nossa angústia" (BAR)

                                     

                                 Até onde pode ir o ateísmo

O dogmatismo, em filosofia, consiste numa atitude rígida em face da possibilidade de a razão humana alcançar certezas e verdades absolutas. Ser dogmático é admitir que podemos estar sempre seguros da verdade de nossas crenças. Se eu digo “tenho certeza de que Deus existe”, estou sendo dogmático. O dogmático não se preocupa em fazer a crítica, em avaliar,  em repensar suas posições.
Nós, ateus, temos de ter cuidado para não manifestarmos posições dogmáticas. Como bem pondera Marcelo Gleiser, em Criação Imperfeita (2010), ao mencionar o ateísmo ativista de personalidades como Richard Dawkins, Sam Harris, o filósofo Daniel Denett e o saudoso jornalista Christopher Hitchens:

“O grupo prega um ateísmo radical, usando uma retórica extremamente agressiva, tão inflamada e intolerante quanto a do fundamentalismo religioso que se propõe a combater”.

(p. 40)

Este texto se propõe repensar a postura intelectual ateísta. Sabe-se que o ateísmo, enquanto discurso, é entretecido pelos fios da razão e lógica científicas. Trata-se de um discurso calcado sobre os discursos das ciências (física, biologia, antropologia, sociologia, psicologia...). A sua retórica é a de exaltação à racionalidade científica, aos avanços da biologia, da física, bem como o da incorporação das explicações sociológicas, antropológicas e psicológicas (também neurocientistas) numa tentativa de fazer ver a natureza humana das religiões. O ateísmo não só nos convoca a colocar os pés no chão, mas também a enterrar as nossas almas com nossos corpos. Gleiser é, aliás, incisivo ao nos alertar para a proposta ateísta:

“O que o ateísmo oferece – mesmo com todo o seu apelo à razão e à lógica da ciência – não vai funcionar. Ao menos não como costuma ser apresentado, sem qualquer vestígio de espiritualidade”.
(pp. 41-42)

A espiritualidade que alguns ateístas dizem ser possível experimentar é, evidentemente, de outra ordem. Mas demonstrar essa possibilidade é complicado. Vale dizer que espiritualidade não está necessariamente ligada à religião. Aliás, independe dela. Escusando-se essa questão, vou-me ater ao que me interessa fazer ver aqui.
Gleiser criticará a tendência de os “quatro cavaleiros do apocalipse”, como ficaram conhecidas aquelas personalidades, ridicularizar as pessoas que professam a crença em Deus. E nos mostrará que o ateísmo não satisfará as indagações mais profundas e comuns a todos nós, quer as anunciemos, quer não:

“A verdade é que provas empíricas não têm nada a ver com o poder da fé. Quanto mais misterioso o credo, mais ardente a crença. A grande maioria das pessoas acredita no sobrenatural por não aceitar que a morte possa ser o fim definitivo da vida. Não queremos ser esquecidos, reverter ao nada, perder nossos entes queridos. Quantas pessoas já não passaram por este mundo, ricas e pobres, reis e escravos, famosas e desconhecidas, belas e feias, pessoas que amaram e foram amadas, que sentiram alegria e dor, e que agora são apenas um punhado de pó? “Será que é só isso?” Será que vivemos, amamos e sofremos para sermos esquecidos após algumas gerações? Se temos apenas alguns anos de vida, nem sempre felizes, para que batalhar tanto? Qual o sentido da vida, se no final a morte e o esquecimento são inevitáveis?”

(p. 41)

A ciência não pode responder a essas indagações. Ela não pode satisfazer o sentimento, o desejo grandioso que jorra de corações aflitos, o desejo de que seja possível a inesgotabilidade da vida, de que o sofrimento que experimentamos neste mundo seja justificado ou compensado. Muitas experiências de mundo nos estarrecem! Há milhares de pessoas que nascem com alguma anomalia; problemas congênitos, retardamento mental, desenvolvem câncer, ficam paraplégicas, tetraplégicas, nascem cegas. Uns nascem em um meio familiar repleto de cuidados, amor e riqueza; outros, desamparados; outros ainda em regiões marcadas pela miséria, por sofrimentos inimagináveis. São coisas que acontecem, disse-me uma amiga atéia. Verdade, ou uma triste verdade – o vizinho ao lado não teve a mesma sorte! Mas não podemos ser indiferentes! Também não podemos viver os problemas dos outros, é claro; mas devemos ter em conta que somos filhos de uma mesma angústia: o medo (ou, se preferirem alguns, a lamentação, a desilusão...) , ainda que tácito, de que todos os nossos esforços, tudo pelo que lutamos, os amores por que choramos e que nos fizeram felizes, as pessoas que amamos e que nos amaram, as alegrias que experimentamos e as tristezas que tentamos em vão sufocar ou em que nos inundamos; todo o vivido, sentido, experimentado, retorne ao nada, ao pó.
Não defendo um retorno à crença no sobrenatural, tampouco dou à fé um valor merecido em face da consciência de que nem o ateísmo nem a ciência nos acalentarão, nos ampararão. O que me esforço por fazer ver é a necessidade de repensar o projeto ateísta. Diante da Vida, basta-nos a contemplação e a oportunidade que temos de pensá-la, de buscar compreendê-la. Não à resignação e à passividade; e sim à ação pelo intelecto e pelo coração!
No entanto, ecoará surdo o apelo de Richard Dawkins a que aproveitemos a Vida, a grandiosidade e os mistérios da Natureza, quando muitos dentre nós não podemos, por condições por que não fomos responsáveis, aproveitá-los. Que diremos às crianças que chegaram à vida sem poder compreendê-la, por uma deficiência neurológica? Que diremos de tantos que vivem em condições sociais e culturais desfavoráveis e que, portanto, não tiveram oportunidades de, freqüentando curso superior, experimentar o contentamento, a alegria das mais diversas formas de saber? Estes foram privados da beleza do conhecimento científico, do prestígio da cultura letrada... Eles nasceram naquelas condições e, por fatores sócio-culturais e econômicos que os excedem, viveram uma vida de privações.
Nem a ciência, nem a razão, nem Deus no centro. Apenas o Universo e a consciência de seu grandioso mistério. O ateus devem contentar-se com o Mistério. Os religiosos também. Reconhecer o absurdo constitutivo de nossa existência é o primeiro passo para conseguirmos lidar com ele.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

"A vida intelectual pede uma dose de solidão" (João Batista Libânio)

                           


                                     Para uma vida intelectual

Este texto tinha de ser escrito ontem, no instante em que experienciei aquela satisfação que me abarrotou a alma. Não era bem uma satisfação; era um regozijo. Um regozijo desencadeado pela leitura de um capítulo do livro Introdução à vida intelectual (2006), de João Batista Libano, um teólogo que, mesmo citando uma ou outra passagem bíblica em que se ensina sobre o valor do estudo e do conhecimento, preocupou-se em escrever seu livro com o propósito de iniciar seu leitor nas lides intelectuais. É preciso aprender a pensar e o autor se propõe ensinar-nos a trilhar os caminhos da atividade intelectual.
Não intento discorrer sobre o capítulo em cuja leitura me detive, mas quero citar algumas passagens em cujas linhas depreendem-se ideias que me interessarão para efeito de desenvolvimento deste texto. São ideias basilares.
No primeiro capítulo, Libano tratará da vocação intelectual, que será contraposta à profissão. Segue-se, na íntegra, o excerto em que Libano nos diz da vocação intelectual:

A vocação intelectual envolve o homem todo. Pede-lhe atitudes básicas. Muitas são comuns a toda vocação, mas adquirem uma feição própria no mister intelectual. Cultivá-las ao longo da vida torna-se a garantia de sua autenticidade. Preferimos trabalhar um número restrito de atitudes, que julgamos mais importantes. Veio-nos em socorro o provérbio latino: Non multa, sed multum – não a quantidade, mas a qualidade. (...) Passeamos pelo mundo da gratuidade, da realização humana profunda. Pretendemos superar o espaço da produtividade, da pura necessidade. Inserimo-nos na tradição que chama de humanidades um tipo de saber, uma qualidade de pensar que parte da experiência primigênia da admiração. Buscamos responder ao chamado interior que habita todo ser”

(p. 23)
(grifo meu)

O autor contrapõe o universo do trabalho, que se prende às esferas da produtividade e às necessidades básicas do ser humano, ao universo do cultivo intelectual, cuja recompensa consiste na “realização profunda” do homem. O exercício do pensamento reflexivo, ou seja, do pensamento que se volta sobre o já pensado, depende da atitude de admiração, gérmen da filosofia. A atividade intelectual é a forma de que os homens se valem para tornar o real um dado de sua consciência, ou seja, uma forma de conhecimento. Não basta viver numa relação imediata com o real, é preciso se distanciar para apreendê-lo. Pensar o real é descobrir-lhe o significado mais profundo.
Segundo Libano,

“Uma vida intelectual seria pobre se se restringisse unicamente a um saber preocupado com a utilidade imediata, com a análise dos objetos. Ela pergunta pelo significado da realidade. (...) A vocação intelectual pretende superar o mundo do dia de trabalho, marcado pela utilidade, oportunismo, produtividade, exercício de uma função. Este confina-se ao campo das necessidades, do produto, da fome, do modo de saciá-la. É dominado pelo objeto: comida, vestuário, habitação, estudos, trabalho; e finalmente gira em torno da atividade útil, utilidade comum. Tudo isso é parte essencial do bem comum. A atividade intelectual, sem negar nada disso, aponta para um bem comum mas amplo que a utilidade, antes à ligado à inútil vida da contemplação, da arte gratuita”.
(p. 30)

Importa ver que, nas sociedades modernas de hoje, marcadas pela técnica, pelo utilitarismo e pelo consumo de massa, não nos surpreendemos com a crença generalizada de que uma vida dedicada ao exercício da reflexão, ao cultivo do intelecto, ao desenvolvimento do senso crítico, etapas indispensáveis a todo processo de tornar-se intelectual, seja uma vida enfadonha. E não nos surpreendemos com a crença em que toda forma de conhecimento tem de ter uma utilidade prática. Como Libano nos ensina, à atividade intelectual basta a contemplação, a gratuidade.
Uma vez defendendo a ideia de que a vocação intelectual não se alimenta de algum propósito voltado para a aplicação, Libano lembra-nos as exigências dessa vocação. É preciso enfrentar um desafio: fazer ver aos indivíduos (estudantes, principalmente) que há prazer no exercício do pensamento; que há prazer em cultivar o intelecto; que há prazer na concentração, no convívio com os livros e na solidão indispensável a essas práticas.

“Há palavras que os ouvidos da pós-modernidade detestam: austeridade, renúncia, sacrifício. Pelo contrário, vive-se embalado pela palavra maior: prazer. O desafio da vida intelectual é saber mostrar que há um prazer que está no fim e não no início. É o prazer intelectual. Implica, porém, um caminho de disciplina, de responsabilidade, de horas e horas de estudo, de tenacidade, de vigílias, de trabalho, de aplicação. (...)
A vida intelectual pede uma dose de solidão, que não significa nem isolamento nem alienação, mas concentração, convívio com o mistério.  (...) A solidão é lugar de descanso, de repouso, de economia de energias, de tal modo que a atividade intelectual se torna mais operosa, intensa, profunda. Solidão casa-se com silêncio, recolhimento. A natureza recolhe suas energias à noite para no dia seguinte despertar radiosa pela manhã. A noite é propícia à solidão. No entanto, hoje torna-se cada vez mais difícil cultivá-la, já que o barulho do som e das imagens, das emoções  e paixões, entra pelos programas e filmes de TV, vídeo e Internet. (...) Só o amor à solidão permite que a inteligência depois se embriague no vinho da verdade e da beleza!

(p. 32)
(grifos no original)

Aprendemos, na Análise do Discurso, que, sendo a construção do sentido resultado de processos sócio-históricos, as palavras mudam de sentido conforme a formação discursiva em que apareçam. É interessante ver que a palavra solidão aparece no discurso de Libano designando uma experiência positiva, apreciável, desejável, muito diferente do modo como ela aparece no discurso, por exemplo, de nossos jovens adolescentes e das pessoas que, como aqueles, vivem voltadas para o exterior. Diga-se de passagem, que é uma tendência de nossa pós-modernidade o existir que busca continuamente se exteriorizar, negligenciado a interiorização, o autoconhecimento, o recolhimento. As pessoas vivem envolvidas pelos ruídos diversos provindos do exterior, buscam êxtases, prazeres fugazes nos lugares de agitações e movimentos incessantes e se sentem, em geral, entediadas sempre que precisam concentrar seus espíritos em atividades que demandam solidão. Para elas, isso é um sacrifício.
Há, pois, dois desafios para a vocação intelectual: reconhecer a relação entre dedicação ao cultivo do intelecto e prazer, de um lado; e, de outro, fazer ver a solidão como uma experiência necessária àquela atividade, mas também apaziguante. A solidão apazigua e a serenidade então alcançada é indispensável ao exercício do pensamento reflexivo.
Enquanto me ocupava com a leitura do referido livro, meus familiares estavam todos assistindo ao programa Big Brother Brasil; e, não para a minha surpresa, despertou-lhes a atenção o caso de um estupro de que teria sido vítima uma das participantes. A curiosidade, comum a todo ser humano, levou um deles ao computador, a fim de rever a cena em que, num quarto escuro e debaixo de lençóis, se podia ver a atividade sexual (que, em sendo um estupro, não fora consentida por um dos parceiros). Evidentemente, mantive-me envolvido em minha leitura, pois minha curiosidade está ligada a descobertas mais elevadas (ver alguém fazendo sexo ou insinuando a atividade sexual na televisão não me interessa nem um pouco). Mas isso interessa a muitas pessoas. E o programa Big Brother Brasil é um prato cheio para o empobrecimento intelectual. A sexualidade, de fato, me interessa, mas como um fenômeno humano. Leio sobre a história da sexualidade, que foi traçada pelo predomínio do masculino e submissão do feminino. Mas a mim não interessa o sexo gratuito banqueteado na televisão, tampouco a exposição de bundas avantajadas das mulheres fruta, como há em programas como Pânico na Tv.
Pessoas que, como eu, se dedicam tenazmente à prática intelectual; pessoas que, como eu, vivem segundo um imperativo mais elevado, a saber, a busca pelo conhecimento edificante, se incomodam com a influência nociva da televisão na vida do homem pós-moderno. Pessoas assim buscarão conhecer como se dá essa influência e quais suas consequências sociais, culturais, históricas.
É provável que a grande maioria de pessoas não vejam como negativo dedicar um espaço de tempo diário para assistir ao Big Brother. Para essas pessoas, trata-se de uma atividade de entretenimento. Elas buscam diversão, distrair-se. Há algum problema nisso? Afinal, o lazer não é indispensável na vida do homem comum? Certamente, não vivemos só para trabalhar (supondo-se, com o senso-comum, que quase toda forma de trabalho é penosa e enfadonha). O divertimento, para ser bem avaliado em termos de seu proveito, deve ser relacionado ao domínio da lógica da produção numa sociedade capitalista. Franco, em A televisão segundo Adorno: o planejamento industrial do “espírito objetivo”, artigo que consta do livro A Indústria Cultural hoje (2008), traz luzes  não só sobre o lugar da televisão hoje, mas também sobre sua relação com o entretenimento. Leiamos com atenção:

“A configuração do alcance e da natureza social da televisão adquire, dessa maneira, contornos nítidos. Ela se insere no universo da diversão e, nessa medida, parece se oferecer ao espectador com a promessa de que irá arrancá-lo do sofrimento imposto diariamente pelas exigências do processo de trabalho, quer sejam físicas ou psicofísicas. Essa oferta ilusória, segundo o autor, além de reforçar a tendência antiintelectualista da sociedade, de fato ludibria as expectativas de quem busca a diversão, já que objetivamente a televisão oferece o repouso físico e psíquico necessário para a recuperação da força de trabalho. A diversão, sustenta Adorno, implica resignação”.
(p. 113)

Aqui está a ideia-chave: a diversão implica resignação. Essa ideia abre uma porta, pois que nos permite pensar a diversão como uma etapa necessária ao melhor aproveitamento do indivíduo no processo de trabalho. A diversão, nesse sentido, é uma aliada do capitalista. A televisão, ao prometer diversão, é o espaço institucional que realimenta a vida psicofísica do trabalhador, permitindo-lhe que esteja no dia seguinte revigorado para o exercício de seu trabalho alienante. A força de trabalho, uma vez consumida num dia, é renovada diante da televisão, para ser novamente empregada no dia seguinte. Eis a lógica da produção, a que me referi.
Ainda segundo Franco, na mesma página

“Talvez fosse possível fazer uma ponderação a respeito desse raciocínio: tanto o processo de trabalho mecânico nas linhas de produção fordista quanto à diversão – extensão do tempo de produção – não requerem a atividade do pensamento. Ambos podem ser considerados modos interligados da moderna destruição da experiência. A televisão, nessa perspectiva, antes de reprimir a atividade do pensamento, simplesmente não o exige. De qualquer forma, Adorno extrai da tese acima consequência bastante esclarecedora: trabalho e diversão se articulam em processo extremamente dinâmico, o qual poderia ser denominado dialético.”

(grifo meu)

Vale notar que o processo dialético a que se referia Adorno diz respeito ao fato de a diversão preparar o indivíduo para a adaptação ao trabalho. É claro que essa adaptação nunca é total, tende a flutuar, sempre há espaço para o exercício da liberdade, da criatividade e da resistência; mas também cabe notar que a televisão, atenta a essa flutuação, buscará recursos para reforçar o condicionamento.
Se, no longo processo de nossa evolução enquanto espécie, a seleção natural legou-nos genes que nos dispuseram para adaptação eficiente às condições de existência e se disso pudermos concluir pela nossa suscetibilidade ao conformismo, à resignação, parece possível dizer que devemos a ela também um cérebro que, mesmo sob a influência de dispositivos de adaptação, pode, pelas práticas de aprendizagem, conseguir superá-los, ir além e resistir.
Um caminho sólido que deve ser trilhado na tentativa de escapar ao conformismo ou à resignação provocada e reforçada pelas promessas da televisão é, segundo Adorno, alcançar uma formação cultural mais ampla, pelo estudo da filosofia. Disso não se segue que devemos ser todos filósofos profissionais e saber de cor as filosofias dos mais diversos pensadores; significa dizer que devemos estimular o espírito de contemplação, de admiração latente em nós. A formação cultural a que se refere Adorno depende do desenvolvimento da consciência crítica, da capacidade de nos distanciar das vivências, da realidade mesma para olhá-la de fora. Depende ainda de uma incursão mais profunda na cultura letrada. Essa incursão nos leva ao convívio aturado com livros que nos edifiquem intelectualmente, que nos inquietem, nos estimulem, nos tragam mais do que respostas, tragam-nos inúmeras questões para reflexão continuada.
O tempo que se consome assistindo a programas como Big Brother, que não oferecem senão baixarias, vulgaridade, patuscadas, submissão de pessoas a situações de esgotamento, em troca de um prêmio milionário (num claro reforço da ideologia que entende a felicidade como consequência necessária do acúmulo de dinheiro e riqueza, e da conquista da fama, mesmo que efêmera, como tudo na (hiper)modernidade do eterno presente), poderia ser empregado em práticas que demandem alguma ginástica intelectual;  ler, por exemplo.
Libânio, no livro aqui citado, pergunta-nos sobre quanto tempo dedicamos à televisão ou à internet, e também sobre nossos hábitos de leitura. Ele nos pergunta ainda sobre nosso interesse por conversas sobre temas culturais; pergunta-nos se estamos atentos a lançamentos de livros que despertem nosso interesse. Disso tudo depende o grau de nossa vocação intelectual.
Embora me agrade ficar na internet e aprecie certos programas de humor na televisão (Chaves está entre eles), a leitura é uma atividade que preenche maior parte de tempo em minha vida cotidiana. O exercício intelectual é, para mim, uma necessidade e, ao mesmo tempo, uma forma de eu experienciar um prazer perene e profundo.
Uma vida dedicada ao exercício intelectual não dispensa formas de atividade que visam a entreter; não impede que saiamos com os amigos, que gozemos das festas, das conversas também sobre temas triviais; mas esta vida confere aquele exercício um lugar de maior destaque e importância; a ele está associada a felicidade de homens que não se contentam apenas em viver na realidade, mas precisam entendê-la.