Mostrando postagens com marcador Filosofia. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Filosofia. Mostrar todas as postagens

sábado, 18 de setembro de 2021

“A filosofia não tem o poder de desesperar a humanidade”. ( Paul Veyne)




A NOSSA VÃ FILOSOFIA


“A filosofia não tem o poder de desesperar a humanidade”.

 Paul Veyne

 

 

Estou de acordo. Veyne pensa aqui o contrário do que pensa Deleuze sobre o papel da filosofia: uma filosofia que não desespera, que não entristece, perde sua razão de ser. Mas está bem. Veyne o diz no contexto em que considera a inquietação e o receio daqueles que viam em Nietzsche e em Foucault uma ameaça à inocência da juventude, que ainda se nutria do ideal revolucionário (à época de Foucault, evidentemente; hoje em dia, a juventude está mais preocupada em saber como se tornar uma celebridade de tik-tok ou de saber como pode se tornar um youtuber milionário).

Mas aqui insisto em que a filosofia parece ter um impacto ínfimo no modo de ser das coletividades humanas. Com ou sem filosofia, o mundo passaria bem ou mal... o mundo, de qualquer modo, levaria adiante sua marcha insensata em direção ao túmulo... Não quero parecer subestimar a influência das ideias sobre os modos de ser e sobre as mentalidades de uma época. Sim, Aristóteles moldou a visão de mundo dominante durante toda a Idade Média cristã, Descartes (e Newton) moldou a visão de mundo e do homem até o fim do século passado (a visão mecanicista de mundo fez escola). E não faltam exemplos de como o pensamento filosófico influencia os modos de ser e viver de uma época. Mas, em todo caso, não é a filosofia sozinha que causa as transformações; são necessárias, principalmente, mudanças no modo de organização socioeconômica e política, é necessário o desenvolvimento tecnológico, etc... Como diz Bachelard, o mundo em que se pensa não é o mundo em que se vive. Querem um exemplo? Veyne afirma que o páthos niilista que Nietzsche soube entrever parece incendiar mais a oratória do que a realidade. Niilismo? Quando me perguntam sobre o que versa minha pesquisa de doutoramento, a resposta que dou - “niilismo” - causa na face de meu interlocutor a mesma incompreensão e surpresa de quem ouve alguém falar que se interessa por “física quântica”. Para a maioria esmagadora dos animais humanos, “ o mais sinistro de todos os hóspedes” é tão invisível, misterioso; está tão distante - talvez não passe de um viajante que se perdeu vindo não sabemos de onde - quanto o espectro do comunismo que Marx dizia rondar a Europa de seu tempo.

Acho que, em parte, a filosofia, pelo menos desde Platão e Aristóteles, contribuiu para o seu ostracismo no viver comum, não porque tratasse, algumas vezes, de assuntos demasiado afastados da lida diária com a vida (talvez não só por isso), mas porque nos inculcou a crença ilusória de que a razão no homem era a sua parte mais elevada, o sinal do divino nele, que a filosofia se encarregaria de exercitar, para dignificá-lo, para torná-lo avizinhado com o próprio Deus (não o Deus cristão - fique claro -, que não aprecia concorrência) e tivemos de esperar um Nietzsche (sempre ele) para nos dizer que a nossa grande Razão não é mais do que um instrumento a serviço da sobrevivência da espécie... e a biologia , a paleontologia posteriormente viriam a dar razão a Nietzsche... nosso tão complexo e maravilhoso cérebro símio não foi projetado para elevadas elucubrações, para exaustivas ruminações espirituais... (claro que nosso cérebro é dotado de uma plasticidade impressionante, de uma capacidade incrível para desenvolver novos conhecimentos e habilidades; claro que ele é, em última instância, o criador do mundo humano, da cultura, da linguagem, da filosofia, da ciência, das artes, de tudo de que tanto se orgulha o macaco pelado que o carrega), mas este cérebro humano precisa de estímulos, de um meio ambiente rico de possibilidades criativas, de desafios, de uma paidéia para poder se desenvolver, sob pena de atrofiar-se, de adoecer, de ficar esclerosado e limitado ao que é: um pedaço esponjoso de carne... Aristóteles parece ter errado, ou melhor, parece ter superestimado a natureza humana, portanto, quando disse que somos naturalmente dispostos ao conhecimento teorético, à epistéme (ciência)... a filosofia não nos é conatural... no mais profundo de nós, ainda reside um caçador-coletor obstinado em garantir os recursos necessários à sua sobrevivência e não um Tales de Mileto interrogando-se sobre o primeiro princípio do Cosmo - aquele, por sinal, teria caído num poço enquanto, distraído caminhando olhava para o céu...( e parece que a maioria dos macacos pelados decidiu acolher a advertência da mulher de Trácia que troçou da imprudência do grande filósofo, enquanto ainda hoje riem da pavonice dele.

 


sexta-feira, 25 de junho de 2021

"Não há nada de errado com aqueles que não gostam de política, simplesmente serão governados por aqueles que gostam." (Platão)

 


               

                      Preleções sobre política

Uma contribuição para o enfrentamento

do analfabetismo político brasileiro

 

 

                                                PARTE 2


 

3. A política e a filosofia: um retorno às origens

 

Tendo analisado o bolsonarismo como um movimento autoritário de viés fascista, com ênfase em sua recusa aberta do pensamento e do conhecimento, na primeira parte deste estudo, dedico-me agora, nesta segunda etapa, a trazer à baila a experiência política da Atenas do século V-IV a.C. A Grécia Antiga, berço da civilização ocidental, é o solo progenitor da política. A filosofia nasce com os antigos gregos, e coube a Platão (427-347 a.C.) ser o primeiro filósofo a nos legar um sistema de pensamento político. Em outros termos, a filosofia política nasce com Platão. O que me interessa, então, é revisitar esta herança tão rica e preciosa do pensamento político da Antenas de Platão e Aristóteles (384-322 a.C.), com vistas a colher desse solo os subsídios necessários ao desenvolvimento de um debate público, no Brasil de hoje, mais amplo, mais elaborado, fundamentado teoricamente. Este será o objetivo que perseguirei também na terceira parte deste artigo, quando me debruçarei sobre a política tal como pensada e vivida na era moderna. Buscarei acenar para as contribuições de Nicolau Maquiavel e Thomas Hobbes, mas avançarei reflexões sobre conceitos tais como o de Estado, Democracia, Sociedade Civil, Poder, Política, Cidadania, entre outros, que precisam ser, segundo creio, bem definidos e esclarecidos para quem quer que esteja disposto a recusar-se a reduzir a atividade política a um negócio de plutocratas e de políticos profissionais que agem em proveito próprio para perpetuarem-se no poder. Não que esta não seja uma experiência política muito familiar na história de nossa sociedade; é, aliás, uma percepção generalizada entre pessoas em outros lugares do mundo, conforme mostrarei. Vivemos numa época em que é cada vez mais patente aos estudiosos da política o recuo das democracias e a deterioração do sistema político em vários países do Ocidente. Esta é uma questão que não deixarei de considerar, muito embora não venha a desenvolvê-la em profundidade. Comecemos, pois, nosso retorno à filosofia política grega. Espero que o leitor colha daí lições valiosas para que a sua existência como zoon politikon possa tornar-se mais fecunda enraizando-se no solo do verdadeiro pensamento.

 

3.1. O idiota é, antes de tudo, um marginal

 

Os antigos consideravam idiotés aquele que só se ocupava da vida privada, que recusava a política, que vivia uma vida apartada da atividade política, que dizia não à política. Os jornalistas Álvaro Borba e Ana Lesnovski, criadores do canal do Youtube Meteoro Brasil, são também autores do livro Tudo que você precisou desaprender para virar um idiota, publicado pela editora Planeta do Brasil, em 2019. Neste livro, os autores nos ensinam que o idiota é, antes de tudo, um marginal, e prosseguem nos seguintes termos:

 

(...) Originalmente, o termo ídhios era usado de maneira depreciativa para definir aqueles que se apartavam da vida pública na antiga Atenas: o cara abria mão da vida em sociedade, com suas regras e anseios civilizatórios, e automaticamente era chamado de idiota. Esse é o idiota ancestral. (ibid., p. 11).

 

Mas quem é o idiota hoje? Segundo os autores, o idiota do século XXI está obcecado pela política. Portanto, parece que os idiotas migraram do reduto da vida privada, de onde vociferavam contra a política e contra aqueles que se ocupavam da vida política, para povoar as esferas por onde transitam as questões políticas. No entanto, não basta habitar essas esferas para deixarem de ser idiotas. Como nos fazem ver os autores,

 

 (...) É nessa contradição entre o sujeito apartado das questões da vida pública, mas em imensa proporção disposto a atuar diretamente sobre elas, que mora uma explosiva combinação comunicacional. Pois o idiota agora não está sozinho. Em grupo, em rede, conectado, ele não quer saber de política, mas participa dela continuamente. (ibid.).

 

Como é possível que participem continuamente da atividade política e continuem a se desinteressar dela? É que o idiota continua sendo hoje, tal como era na Antiguidade, um sujeito autocentrado, egoísta, preocupado exclusivamente consigo. O que difere o idiota da antiga Antenas do idiota das redes sociais como Facebook do século XXI é que o idiota antigo ficava fora da política. Hoje, o idiota tomou de assalto a política. Ele entende a política a partir de seu ego. Como observam os autores, “tudo é feito por ele, para ele, em nome dele”. (p. 12). Por isso, o idiota combaterá qualquer filosofia ou pensamento que considera a problematicidade das questões políticas a partir de valores coletivos. Como bem espirituosamente escrevem os autores, “se há um coletivo, o idiota se sente ameaçado em seu direito sagrado de ser idiota”. (ibid., p. 12). Repensar, portanto, a política começando pelos antigos gregos se faz ainda mais necessário hoje porque os idiotas infestaram a vida pública com sua artilharia e munições de ódio e desprezo pelo bem comum. E se puderam infestar as esferas da vida pública, sobretudo pelas redes sociais, é que se sentem hoje representados nas esferas de poder. E quando os idiotas representados seguem um líder idiota que governa em nome do poder contra os princípios constitucionais que regem um Estado Democrático de Direito, é a democracia que corre sério risco de extinguir-se. Como nos lembram os autores, “(...) no século XXI, não é com  tanques de guerra nas ruas e tiros de canhão que se mata uma democracia, mas elegendo alguém disposto a subverter as regras do jogo” (ibid., p. 16). É o que nos ensinam Levitsky e Zilblatt, em Como as Democracias Morrem (2018), “democracias podem morrer não nas mãos de generais, mas de líderes eleitos – presidentes ou primeiros ministros que subvertem o próprio processo que os levou ao poder”. (p. 15). O idiota hoje não é bobalhão e importunador; ele é ameaçador e perigoso, ou porque está investido de mais poder político, ou porque seus modos de ser, pensar e viver encontram ressonância naqueles que hoje ocupam o poder de tomar decisões políticas que impactam significativamente nossas vidas. É oportuno lembrar que é no âmbito das significações que se dá a disputa pelo poder na atualidade. A guerra que travamos em torno do acesso ao poder e da limitação do poder daqueles que já o detêm é uma guerra semântica, em nossas sociedades democráticas modernas.

 

 

3.2. A política: uma experiência grega

 

Na Antenas em que viveram Platão e Aristóteles, a política era pensada como uma atividade pedagógica. A política visa à transformação de homens e mulheres em cidadãos. A política é paidéia. Essa é uma concepção de política que nos é estranha a nós, modernos. Na modernidade, a política passou a ser pensada/percebida como aquilo que diz respeito aos cidadãos, à gestão pública, ao governo e aos regimes de governo, à administração dos negócios públicos, e o governante é visto como gestor de uma grande empresa, que é a cidade, o município ou o país. Mas, como tentarei mostrar, é possível pensar a atividade política fora dos quadros do aparelho burocrata-adminsitrativo. É possível e necessário pensá-la como uma missão civilizatória, já que a política confere sentido humano ao mundo, confere significado para a vida dos seres humanos, seja como partes de uma coletividade, seja individualmente. É possível e necessário pensar a política como uma atividade libertária. Mas, por ora, nossa atenção será dispensada à concepção grega de política a partir das lições que nos foram legadas pela pena de Platão e Aristóteles.

O termo política foi cunhado com base na experiência da atividade social desenvolvida pelos homens na Pólis. Embora traduzido por cidado-Estado, o termo pólis designa melhor uma espécie de comunidade (koinonía). Como toda Kononía, a pólis possui seus próprios fins: é a comunidade cívica mais perfeita e adequada para a coexistência humana, lugar necessário do homem como ser racional. Para Aristóteles, o homem é um animal político  por natureza: ele está destinado naturalmente à vida na pólis. O homem é dotado de um instinto natural para a gregariedade. Aristóteles insiste em que a pólis é o lugar onde o homem poderá realizar a sua essência, porque a pólis é uma comunidade ordenada segundo a justiça e o bem comum. A finalidade precisa da pólis é a promoção do bem viver juntos, ou seja, do exercício de um modo de vida pautado pelos princípios da justiça e da virtude, pelo respeito à igualdade (isonomia) e à liberdade (eleutheros) dos cidadãos. Ser cidadão na antiga Atenas é diferente do que entendemos por cidadania hoje. Cidadão, na antiga Atenas, era o homem adulto, livre e nativo que gozava do direito de exercer a atividade política. Não eram cidadãos os metecos (estrangeiros residentes), os estrangeiros não residentes, as mulheres, as crianças e os escravos. Livres eram aqueles que não condicionavam sua vida à vida de alguém (como os escravos), ou que não condicionavam sua vida às necessidades materiais de subsistência. Igualdade é a condição daqueles que não estão sujeitos a relações assentadas em distinções hierárquicas (como marido e mulher), ou a relações baseadas no comando e na obediência (mestre/escravo; pai/filho).

A pólis será, portanto, a comunidade de cidadãos finalisticamente ordenada para o bem viver juntos (o bem comum). A autoridade desta comunidade é a política, o que significa dizer que a ordem política está baseada tanto na liberdade quanto na igualdade dos cidadãos. Para os antigos gregos, política e liberdade são a mesma coisa, conforme nos ensina Arendt, no seguinte excerto:

 

A “política”, no sentido grego da palavra, está, portanto, centrada na liberdade, com o que esta é entendida negativamente como o estado de quem não é dominado nem dominador e positivamente como o espaço que só pode ser criado por homens e no qual cada homem circula entre seus pares. Sem esses que são meus iguais, não existe liberdade, razão pela qual o homem que domina outros – e que precisamente por essa razão é diferente deles em princípio – é, de fato, mais feliz e invejável do que aqueles que ele domina, embora nem um pouco mais livre. Também ele se move em um espaço onde não há liberdade. (Arendt,  2016, p. 172).

 

 

Para os antigos gregos, portanto, quem domina e quem é dominado são ambos destituídos de liberdade. Isso pode parecer estranho para nós modernos, tão habituados que estamos a associar igualdade ao conceito de justiça, e não ao de liberdade. Hoje, definimos isonomia como “igualdade de todos perante a lei”. Mas, originalmente, isonomia não significava que todos os homens são iguais perante a lei ou que a lei é a mesma para todos, mas sim que todos têm o mesmo direito à atividade política. Na pólis, essa atividade era fundamentalmente dialógica, ou seja, assumia a forma de falar com os outros. Assim, isonomia é, essencialmente, o direito de falar e, como tal, é o mesmo que isegoria. Com Políbio, mais tarde, isonomia e isegoria passaram a dizer simplesmente isologia. Para os antigos gregos, quem falava sob o modo do mandar e quem ouvia sob o modo do obedecer não falava nem ouvia realmente; ambos não eram livres, porque estavam submetidos não ao diálogo, mas ao processo do fazer e do elaborar. As palavras funcionam aí como substitutas do fazer algo, de um fazer que pressupunha o uso da força e o ser coagido. Destarte, o déspota não é jamais livre, pois só conhece o mandar, o ordenar. Para falar, ele precisa de outros, seus iguais. Novamente é Arendt quem nos ensina o seguinte:

 

A liberdade não requer uma democracia igualitária no sentido moderno, mas uma oligarquia ou aristocracia muito estritamente limitada, uma arena na qual pelo menos uns poucos, ou os melhores, possam interagir entre si como iguais e entre iguais. Essa igualdade não tem, evidentemente, nada a ver com justiça. (ibid., p. 173).

 

 

Arendt chama de “preconceito moderno” a crença de que a política é uma necessidade imperiosa da natureza humana como a fome ou o amor. A filósofa lembra que “a política começa onde termina a esfera das necessidades materiais e da força física”. (ibid., p. 74). E ajunta que a política como tal existiu raramente e em tão poucos lugares, “que só umas poucas épocas extraordinárias a conheceram e a tornaram realidade”. (ibid.). Tornemos a considerar, contudo, a noção de pólis.

A pólis é uma associação política que reunia certo número de comunidades. A pólis era um estado federal, uma reunião de comunidades vizinhas, que compartilhavam entre si recursos e ambições. Em tempos de guerra, estavam submetidas ao poder dos mesmos chefes; nos tempos de paz, só admitiam um só soberano. Situada na tradição clássica, a política é uma ciência que pertence ao domínio da phrónesis (sabedoria prática). A política é de natureza normativa, pois que estabelece os critérios de justiça e do bom  governo, e examina as condições sob as quais o homem pode atingir a felicidade (o sumo bem) na sociedade, em sua existência coletiva. A pólis é uma comunidade organizada segundo a justiça e o princípio da autarkéia (autossuficiência, autogoverno). Ela é a consequência natural e necessária da atividade da razão prática, isto é, da capacidade humana de agir, em consonância com o verdadeiramente bom para nós e os outros, tendo em vista o bem viver juntos.

Convém, a esta altura, esclarecer por que Aristóteles considera o animal político que é o homem como um ser destinado a viver na pólis. Para entender isso, precisamos remontar à concepção de alma em Aristóteles. Concebendo a alma como enteléquia, isto é, ato primeiro e definitivo de um corpo, Aristóteles distingue nela três funções: a) a função vegetativa, como o nascimento, nutrição e crescimento; b) a função sensitiva, como movimento e sensação; c) a função racional ou intelectiva, como conhecimento, deliberação e escolha. Com base nessas três funções da alma, Aristóteles distingue entre uma alma vegetativa, uma alma sensitiva e uma alma racional ou intelectiva. Essa tripartição da alma feita por ele é resultado de sua investigação sobre os seres vivos em geral, no âmbito da biologia e da psicologia. A alma é o princípio da vida, e todos os seres vivos possuem, ao menos, uma alma. As plantas possuem apenas a alma vegetativa; os animais, por sua vez, possuem a alma vegetativa e a sensitiva; por fim, os seres humanos são constituídos de uma alma vegetativa, uma sensitiva e uma racional. A alma racional constitui a essência do homem. Também chamada de intelecto, ela é irredutível ao corpóreo; não se mistura com ele, consoante ensina Reale:

 

A afirmação de que o intelecto vem de fora significa que ele é irredutível ao corpo por sua intrínseca natureza, e é transcendente ao sensível. Significa que em nós há uma dimensão metaempírica, suprafísica e espiritual: é o divino em nós. (Reale, 2007, p. 89).

 

 

Os seres humanos, porque são compostos de uma alma vegetativa, de uma alma sensitiva e de uma alma racional, não devem viver apenas para satisfazer suas necessidades de natureza animal; devem, sobretudo, viver para o exercício do que há de mais elevado, do que é divino, em sua natureza – a razão, ou seja, a parte de nós que nos capacita para atingir o conhecimento verdadeiro. Ocorre, contudo, que não é suficiente apenas a razão para determinar nossas ações, ou seja, não basta saber o que é o melhor a ser feito. É necessário aprender a querer o que é racionalmente posto como verdadeiramente bom. Em outras palavras, é necessário que os fins que queremos alcançar por meio de nossas ações sejam fins moralmente bons. Aristóteles, por isso, afirma a utilidade da sabedoria prática (phrónesis) na determinação da ação. A phrónesis permite-nos o conhecimento dos princípios que orientam a conduta humana com vistas à felicidade (eudaimonia).

A pólis é, por natureza, anterior à casa e a cada uma de suas partes constitutivas; é governada pela justiça, cuja prática na pólis torna o homem o mais perfeito dos animais. Justiça significa ordem e racionalidade. Ela é um bem para a comunidade. Para Aristóteles, o homem injusto, o homem que vive apartado da justiça e da lei, é a pior de todas as bestas.

Vejamos, doravante, como Platão pensou a atividade política. Platão foi o primeiro dentre os filósofos a elaborar um sistema de pensamento político; e o fez com o propósito de definir a melhor forma de governo para a Pólis[1]. Aristóteles também estava interessado em determinar qual é a melhor politeia, ou seja, Constituição ou forma de Estado. Mas desse tema me ocuparei depois. Concentremo-nos na contribuição platônica para a determinação dos fins da política. Platão queria, portanto, determinar a melhor forma de governo da pólis. Para tanto, era necessário preparar gerações de filósofos em sua Academia para que se tornassem suficientemente aptos para o exercício das funções públicas. Mas também era necessário reunir um conjunto de reflexões teóricas que representariam o remédio a ser aplicado para a constituição de um novo corpo estatal. Ademais, Platão acreditava que esse corpo estatal deveria ser sustentado pela justiça e pela educação, os dois grandes pilares da filosofia política. Destarte, Platão vai propor a aproximação paulatina do filósofo, por meio da teoria (theoría), à realidade política, e sua prática (práxis), de modo que a maioria pudesse se conscientizar da necessidade de a pólis ser governada pelo rei-filósofo. Como político teórico, Platão teve o mérito de ter sido o primeiro filósofo que reuniu, numa síntese vasta e espantosa, a complexidade do funcionamento de todo um sistema político. Como filósofo, como estadista que pretendeu ser, raciona, viaja e elabora, a partir dos dados fornecidos pela experiência, a concepção sublime e original de um Estado Ideal. Expõe-lhe os amplos e sólidos alicerces; põe, a seu serviço, um grupo seleto de homens inteligentes e disciplinados, desapegados de interesses materiais, livres dos cuidados e do egoísmo da família.

Para Platão, a política é uma epísteme (ciência). E o político possui uma epísteme, ou seja, uma ciência que lhe é própria: a ciência das almas. Assim, segundo Chauí,

 

 

Graças às artes e ciências auxiliares, o político educa os cidadãos, urdindo os fios da Cidade (torce a natureza de cada um para que alcance a virtude que lhe é própria). Educados e urdidos os cidadãos, o político tecerá o tecido da Cidade, enlaçando os fios, isto é, criando laços de amor, matrimônio, companheirismo, solidariedade entre os caracteres opostos. Unirá moderados e enérgicos, velozes e intelectuais, impedindo laços entre os de mesmo caráter (pois tais laços não só enfraquecem o caráter pela repetição contínua dos mesmos traços como ainda os leva a formar partidos, facções e seitas e a lutar entre si). Aos cidadãos assim enlaçados, o político lhes atribui a função de fazer e aplicar as leis, distribuindo, segundo seus caracteres, as magistraturas, os cargos e funções públicas. O político é um artesão que fia e tece as almas para que realizem sua areté e a da Cidade. (Chauí, 2002, p. 314).

 

 

A analogia com a atividade do artesão, faz da política, para Platão, uma arte. Arte, em grego, se diz tékne (técnica). Mas, para Platão, o político não se define pela arte de tecer, e sim pela ciência dos laços. Se o político é um artesão, não seria ele um técnico? Deveras, o político pratica uma técnica, apenas na medida em que possui a ciência das almas humanas. Possuindo essa ciência, sua função é tecer os laços humanos. A ciência do político é a ciência dos caracteres humanos, dos seus acordos e desacordos, do que é bom ou excelente para cada um deles e do que os prejudica e os vicia. O político porta uma ciência diretiva, que tem de ser perfeita, não só porque recobre a totalidade dos homens que serão governados por ela, mas também porque é ela mesma a origem das normas, regras e leis. Assim, a ciência do político não se deixa determinar por nada mais além de si mesma. O político não apenas transmite ordens e as faz cumprir; ele as produz: o político é criador das leis fundadoras da pólis. O político, que possui, de fato, a ciência diretiva, ocupa-se da pólis inteira e a governa em sua totalidade. É importante atender no papel que desempenham as leis na constituição da ordem política para os gregos, no seguinte passo que nos dá a saber Chauí:

 

Normas, regras, ordens e leis criadoras não criam qualquer coisa: criam a vida coletiva, criam os viventes que irão viver juntos, produzem a alma da pólis ou a própria pólis como um ser vivo, pois dotada de alma (as leis, normas e regras). (ibid., p. 311).

 

Quão distante é a nossa concepção moderna de lei!. Nesse matéria, somos herdeiros antes dos romanos e do seu Direito que dos gregos. A lei para nós é comando; ela fixa limites, exige obediência e pune, na figura de seu guardião, o Juiz, aquele que a infringe. Claro é que a lei também é indispensável e necessária ao ordenamento político e jurídico de nossas sociedades atuais, mas não a percebemos como um dispositivo educativo. Faz-se mister acrescentar aqui alguns esclarecimentos. Por isso, interromperei, momentaneamente, o fio discursivo para estabelecer um contraste bem esquemático entre a política grega e a política romana.

O termo política designava (e, em alguns casos, ainda designa), em locais como na Pérsia e no Egito, a atividade própria do governante que comada autocraticamente o coletivo em direção a certos objetivos, quais sejam, as guerras, as edificações públicas, a pacificação interna, etc. Na Grécia Antiga, além dessas atribuições do soberano, lhe cabia, através da atividade política, reunir todos os membros da pólis de modo a formar uma totalidade ordenada e sólida. O que a política grega acrescenta aos outros Estados é justamente  o que nós, hoje, na pós-modernidade, e especialmente, no Brasil, estamos perdendo: a referência à comunidade, ao coletivo da pólis, ao discurso, à cidadania, à soberania, à lei. A política dos romanos difere fundamentalmente da política dos gregos por servir a fins manifestamente particulares (isso não nos parece bastante familiar?!). A política, na Roma Antiga, deveria servir aos interesses dos gens[2] originais que precisavam assegurar o seu monopólio sobre as riquezas saqueadas ou sobre a exploração da terra. A palavra pátria, tão fartamente repetida pelo discurso bolsonarista, revela ainda essa origem familiar. Ela se forma a partir de pater, que quer dizer “pai” no sentido de “pai de família”, aquele que exercia poder absoluto sobre os filhos, mulher, escravos. Os nobres romanos seriam os patrícios, ou seja, os proprietários. Além destes, havia os escravos e aqueles que só possuíam a sua prole, chamados proletários (do latim proletarius). O proletário era o cidadão romano pobre cuja única utilidade era gerar filhos. O bom governante era visto como um tutor. Assim pensava Cícero, para quem o bom governante deve resguardar os interesses de seus pupilos mais do que aos seus próprios. O Estado romano seria como uma espécie de administrador que tutela interesses dos patrícios, impondo aos demais os interesses destes, seja pelos tributos – “impostos” -, seja utilizando-se dos não proprietários como instrumentos de saque, como guerreiros. Na Roma Antiga, portanto, a atividade política, além de se caracterizar pela dominação do Estado, concernia à relação entre tutor e pupilos. Essa relação era mediada pelo direito romano. O direito romano garantia a não interferência do Estado na propriedade privada, nos interesses dos patrícios e a não intromissão do público, do coletivo na esfera do privado, do particular. Ora, não é difícil inferir daí que o Estado moderno, mais amplo e mais burocratizado, servindo aos interesses particulares e setoriais e os estendendo ao conjunto da sociedade, sem qualquer compromisso como agente de realização do bem comum – como Tomás de Aquino batizaria o bem supremo de Aristóteles -, tem seu modelo em Roma. A Roma Antiga não era uma pólis. A atividade política romana nada tinha que ver com as relações cidade-Estado, mas era, sobretudo, um jogo entre tutores e pupilos – militares, burocratas e burguesia – e suas práticas de manipulação, corrupção e repressão. A atividade política, em Roma, centrava-se na disputa pelo poder de tutela do Estado, o qual era uma instituição a serviço de interesses privados.

 

 

3.2.1. A pedagogia política

 

A política, no pensamento de Platão, é indispensável à condução dos negócios públicos e representa o conjunto dos cuidados para com os indivíduos e os cidadãos. Cabia à atividade política o papel de determinar o destino da pólis e de determinar a realização do indivíduo. Para Platão, não é o indivíduo que existe para o Estado, mas o Estado que existe em função do indivíduo. Platão mantém que a legislação é responsável pelas grandes transformações na vida cotidiana e na vida individual. A função da política é educar, preparar os cidadãos com vistas a conduzir a pólis ao melhor. A política, tal como concebida por Platão, deve estar em conformidade com a Natureza (phýsis), adequada aos fins e em conformidade com o Bem Comum. O grande propósito da política é a educação dos cidadãos para a vida justa na pólis.

Traduzido como República, Estado ou Constituição, a politeia diz respeito aos regimes de governo. Platão julga bom e justo um governo apenas: a aristocracia. Cuida desfavoráveis à pólis: a timocracia, a oligarquia, a democracia e a tirania. Aristóteles acompanhava Platão na rejeição à democracia. Na verdade, Aristóteles denunciou os riscos de cada um dos regimes então conhecidos. Propôs para os gregos a politia como o regime de governo mais conveniente, a qual permitiria a alternância de homens capazes de governar e ser governados segundo a lei, mesmo que não sobressaíssem na virtude política. A politia é um termo médio entre a oligarquia e a democracia. Na politia, governaria uma multidão suficientemente abastada, não pobre como na democracia, para poder servir ao exército e se destacar nas habilidades guerreiras. Para Aristóteles, a democracia era uma forma de governo que favoreceria demais os pobres, descurando do bem de todos. Nós, modernos, veríamos nessa concepção negativa de democracia não a democracia como a concebemos mas a demagogia.

O Estagirita definia a Politeia ou Constituição como uma ordem de magistraturas, que estabelecem o seu modo de distribuição e determinam qual é o poder supremo. Magistrado, provém do latim magistratus, e significa tanto a função de governar como a pessoa que governa. Na Antiguidade, o magistrado era um funcionário do Estado investido de autoridade. São magistrados também os membros que participam da administração política ou que integram o governo de um Estado, tal como o Prefeito, o Governador e o Presidente da República. É mais comum, no entanto, atualmente, o uso de magistrado para se referir a juízes, desembargadores e ministros. Cada Constituição, segundo Aristóteles, determina como deve ser distribuída a autoridade política na pólis, como deve ser distribuído o poder. Se este pertence a um só, temos a monarquia; se pertence a um grupo apenas, temos a aristocracia; se pertence a todos os cidadãos, temos a república. Todos estes três regimes políticos são convenientes, a menos que façam predominar o interesse geral sobre os interesses particulares. Mas todos podem correr o perigo de desvios, sempre que precisamente os interesses particulares se sobreponham ao interesse geral. Destarte, a monarquia pode degenerar em tirania; a aristocracia, em oligarquia ou despotismo dos ricos; e a república, em democracia ou tirania das massas.

 

 

3.2.2. A política, a leis e a função do Estado

 

A política depende das leis para realizar-se e ser praticada. Mas, para os antigos gregos, as leis não se destinam apenas a proibir e coibir; elas também servem ao propósito de estimular, incentivar, educar. Às leis cumpre a função de incitar o político a dispensar os cuidados devidos à coletividade como um todo, bem como aos cidadãos, considerados partes de uma totalidade ordenada. No tocante à função do Estado, cabe a este não somente prover os cidadãos com o mínimo necessário à sua subsistência, como também – e sobretudo – conduzi-los para o bem viver. A verdadeira missão da política reside na educação, e educar as almas é a função do Estado. As almas são educadas para servir aos fins maiores do Estado (o que, para muitos de nós, modernos, defensores do regime democrático fundado na liberdade e pluralidade dos indivíduos, pode nos soar como uma forma de servidão totalitária). Cada tipo de função fixada para um cidadão exige um tipo de educação. O bem-estar da pólis e do indivíduo é determinado pelas condições em que se estruturam as políticas do Estado. A verdadeira função do Estado é desenvolver as habilidades, as aptidões dos cidadãos, a fim de que se tornem os mais excelentes e virtuosos. No pensamento platônico tanto quanto no de Aristóteles, política, educação e ética são indissociáveis. Na obra de Platão, a educação e a cultura constituem os alicerces da construção dos espaços públicos, de sorte que a política e as leis se põem a serviço da realidade educacional e dos ideias de felicidade humana.

 

 

3.2.3. Política e Justiça

 

Também política e justiça são indissociáveis no pensamento político de Platão. A justiça só pode realizar-se no Estado. Quando Platão afirma que ao Estado compete o papel de prover o indivíduo das coisas necessárias à sua subsistência, fica patente que o Estado existe em função do indivíduo. Indivíduo e Estado não se opõem, mas completam-se e se devem auxílio mútuo. O Estado, contudo, deve incumbir-se de tutelar os direitos dos súditos e fornecer aos cidadãos os meios comuns indispensáveis à sua felicidade neste mundo.

Considerar a justiça como uma realização que compete ao Estado é rechaçar a crença de que a ordem política é instituída com atos de irracionalidade violenta. Para Platão, pelo menos, as coisas não se dão dessa maneira (ou não deveriam se dar). Para ele, o arbítrio, a ignorância, a guerra, a força, a violência não são modos de realização do poder nem os meios de ter acesso a ele, nem de conservá-lo. Platão advoga em favor da política justa, cuja conquista e manutenção se devem ao conhecimento. Essa é a base de suas meditações sobre o Estado ideal. O Estado é, para Platão, o meio suficiente para poder realizar a felicidade geral (essa concepção de Estado não corresponde ao modo como realmente o Estado se instituiu e funciona, conforme mostrarei na terceira parte deste trabalho). Para Platão, o Estado deve proporcionar o exercício da virtude maior, deve possibilitar o alcance do Bem Comum. Por conseguinte, o Estado é exclusivamente Estado ético. O mau governo não cumpre sua função; ele não representa aquilo que deve à coletividade.

A justiça, que se faz no Estado, só se realiza quando as partes exercem suas funções conforme lhes foram previamente determinadas. A pólis, para ser justa, tem de funcionar à semelhança de um organismo cujas partes realizam suas respectivas funções. A tarefa de cada um é definida pela política e pelo corpo de dirigentes políticos. Platão pensa a ordem da pólis por analogia com a estrutura da alma. A alma precisa ser governada pela parte racional. As partes da alma estão organicamente a serviço da razão. Nenhuma das partes se sobrepõe às outras. Também a estrutura da pólis deve ser governada pela razão, e não pela paixão. A pólis se organiza em partes que não suplantam umas as outras. Portanto, a ideia de igualdade entre todos os cidadãos repousa na atribuição de funções a cada qual e na realização por cada um dessas funções com vistas ao bom funcionamento do todo. As distinções estabelecidas entre as partes se fazem com base nas aptidões de cada uma e não em critérios aristocráticos. A justiça e a ordem de uma sociedade consistem na distribuição harmoniosa e equânime das atividades ou das funções, no funcionamento harmonioso dessas atividades sob o governo do rei-filósofo, a quem tem a capacidade de determinar o melhor destino para a pólis, porque só ele conhece a ideia do Bem e é guiado por ela. Somente o filósofo é o representante apto para transformar a política no espaço das preocupações mais importantes para o crescimento da alma humana. Somente ele é capaz de aproximar os mortais (os humanos) do imortal (o divino), ligando-os.

 

 

Palavras finais

Antecipando uma característica contrastante, que se esclarecerá melhor na última parte deste artigo, entre a concepção política da Antiguidade e a da Modernidade, convém atender nas seguintes palavras de Arendt:

 

(...) desde a Antiguidade, ninguém acredita que o sentido da política seja a liberdade (...), no mundo moderno, quer teórica, quer praticamente, a política tem sido vista como meio de proteção dos recursos vitais da sociedade e da produtividade de seu desenvolvimento livre e aberto. (ibid., p. 163).

 

Para Arendt, política e liberdade significam a mesma coisa, pois “a liberdade de partir e começar algo novo e inaudito” e a “liberdade de interagir oralmente com muitos outros e experimentar a diversidade que é a totalidade do mundo” são “a substância e o significado de tudo que é político”. (ibid., p. 185). Para Arendt, “a política se baseia no fato da pluralidade humana” (ibid., p. 144) e acrescenta “política diz respeito à coexistência e associação de homens diferentes”. (ibid., p. 145). Só há, portanto, possibilidade de liberdade, para Arendt, no interior do espaço político; fora da política, não há liberdade possível para o homem. Ser verdadeiramente livre é não ser determinado ou movido pelas condições da existência concreta.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ARENDT, Hannah. A promessa da política. Trad. Pedro Jorgensen Jr. Rio de Janeiro: Difel, 2016.

METEORO BRASIL. Tudo o que você precisou desaprender para virar um idiota. São Paulo: Planeta Brasil, 2019.

CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia: Dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

REALE, Giovanni. Aristóteles. Trad. Henrique Cláudio de Lima Vaz e Marcelo Perine. São Paulo: Edições Loyola, 2007.

 

 



[1] Os textos fundamentais em que Platão desenvolve uma discussão sobre a política são República, Político e Leis.

[2] Gens era um termo usado, na Roma Antiga, para referir-se à identidade familiar de um conjunto de famílias ligadas à aristocracia romana.




sábado, 22 de maio de 2021

"O homem trágico afirma ainda o mais acerbo sofrer: ele é forte, pleno, divinizante o bastante para isso". (Nietzsche)

                                                                


                                             Viver de verdade

 

 

A certa altura, depois que tematizou a questão da tirania, Schöpke assevera: “o que se deve temer, mais do que tudo, é não viver de verdade”. É neste instante que ao leitor se lhe apresenta a questão, que lhe perturba o silêncio: o que significa “viver de verdade”? Como sujeito de leitura, sou instado, pois, a significar. Viver de verdade significa, em primeiro lugar e antes de tudo, viver de modo verdadeiramente livre. Viver de verdade, ou seja, viver verdadeiramente livre, é viver sem temer vida, é viver liberto da angústia provocada pelos medos imaginários, que nos tiranizam e nos despotencializam. Viver de verdade é também afirmar continuamente nossa potência de viver, nossa alegria de viver, nosso querer viver incondicional e inapelavelmente. O viver de verdade é um viver potencializado, é o modo mesmo como nossa vontade se efetiva como potência, isto é, como alegria inquebrantável, alegria que renuncia às seduções da concessão, às tentações da apelação em face das intempéries, dos sofrimentos que sobre nós recaem. Viver de verdade é aprovar a vida incondicional e integralmente, é dizer sim a ela com a firmeza da vontade que quer seu eterno retorno, que, em face de uma dor atroz, da impermanência de todas as coisas, não recua em seu amor fati, em seu querer o real tal como é, em toda sua crueldade - nos dois sentidos em que por crueldade entende Rosset. Viver de verdade é renunciar a valer-se dos disfarces metafísicos, que nos prometendo o consolo da felicidade num além-mundo, tornam a vida suportável, sem torná-la amável e desejável. Nesse sentido, viver de verdade é recusar-se a viver no autoengano, tiranizado pelos embustes metafísicos e/ou religiosos. Em suma, viver de verdade é suportar “um “sim” sem mais senões ou meias vontades, sem mais trapaças e covardias”.  (Schöpke)

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

"Um político divide os seres humanos em duas classes: instrumentos e inimigos." (Nietzsche)

                                                           



      

Bios theoretikós e bios politikos

 

Ocorreram-me agora as minhas insistentes indisposições para com os colegas que, em vez de se ocuparem com temas filosóficos, em razão dos quais nossas trocas verbais encontravam plena justificação, preferiam tagarelar sobre temas de nossa política nacional. O que me enfadava não era tanto a política como assunto, mas a lengalenga que subtraía ao tema "política" toda a sua problematicidade filosófica. Agora, pensando bem, minhas indisposições encontram apoio na tradição filosófica.

No início de nossa tradição de filosofia política, encontramos o desprezo de Platão pela política. Platão considerava que os assuntos práticos e as ações do homem não deveriam ser levados a sério. A única razão por que o filósofo interessava-se por esses assuntos repousava no reconhecimento de que o exercício da filosofia, infelizmente, dependia da boa condução deles, já que eles dizem respeito à convivência entre os homens. No começo da tradição, a política existe porque os homens vivem como mortais; mas a filosofia ocupa-se das questões eternas. Como o filósofo é também mortal, ele acaba por se interessar pela política também. Mas seu interesse não vai além da necessidade de garantir a boa condução dos negócios humanos, a fim de que o exercício da filosofia não seja perturbado ou impedido. 

O termo grego "scholè" não designa o ócio em geral, mas o ócio relativo à obrigação política. Por conseguinte, a liberdade do espírito para ocupar-se do eterno (aei on) só era possível se as necessidades básicas da vida mortal estivessem atendidas. Já com Platão, a política começou a abranger as atividades destinadas ao atendimento das necessidades básicas da vida. Assim, ao desprezo dos filósofos pelos assuntos fugazes da vida prática dos mortais, pôde-se acrescentar o desprezo especificamente grego por tudo que é necessário à mera subsistência. Em suma, quando os filósofos começaram a se preocupar com a política de maneira sistemática, ela passou a ser encarada como um mal necessário (e suspeito de que a maioria dos brasileiros hoje consentiria nesse juízo, sobretudo quando a relação entre o sistema político brasileiro e o homem comum, privando-o dos direitos de cidadania, o posiciona num lugar de mero pagador de impostos).

Decerto, não estou sugerindo que os filósofos de hoje devessem seguir a atitude grega e, especificamente, platônica, em face da política. Mas recordar essa herança filosófica de desprezo com a política contribui para advertir aos que, tendo pendor para a filosofia, preferem, no entanto, ocupar-se com a tagarelice diária sobre os assuntos políticos que o filósofo não é o político e nem o militante político e, quando o é, não ocupa mais, mesmo que por um breve momento, o lugar do filósofo. Em suma, recordar o desprezo dos antigos gregos para com a política é lembrar que a filosofia, como observa Arendt, está mais próxima da poiesis que da praxis.

 

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

“O importante não é viver, mas viver bem” (Sócrates)


                              Resultado de imagem para o pensador
                                
                   Sobre o modo de vida superior


Começo por colocar aquilo que me proponho dizer em perspectiva. Não acompanho Deleuze, ao sustentar que “o filósofo é o amigo do conceito”. Não pretendendo fazer aqui um  arrazoado crítico da concepção deleuzeana de filosofia, contento-me em afirmar meu completo desacordo com Deleuze no que tange à redução que faz da filosofia a uma atividade de produção de conceitos. O filósofo não é mero criador de conceitos, embora criar conceitos faça parte de seu trabalho. Mas Deleuze não capta o que me parece ser o essencial da vida filosófica, do modo de ser ‘filosófico’.
Concordo, por outro lado, terminantemente, com Pierre Hadot, ao advogar que a filosofia é exercício espiritual destinado a cunhar modos de ser. A filosofia era experienciada na Antiguidade como "maneira de viver". Disso se segue que o filósofo é, ao mesmo tempo, aquele em cujo ser se exterioriza a maneira de viver filosófica e o guardião do modo de viver filosófico. Tendo a acreditar também que a filosofia, conquanto, originalmente, pretendesse conquistar as esferas da vida cotidiana, apresentando-se como uma série de questões formuladas por Sócrates ao homem comum, habitante e transeunte do "mundo da rua", ela, a filosofia, é uma experiência espiritual aristocrática. Não creio na possibilidade de "democratização da filosofia". Nem todos são capazes de filosofar. Pode-se discutir as razões por que a filosofia não é uma experiência acessível a todos; mas dificilmente se poderá negar a estranheza entre o exercício da filosofia e o homem comum. Tendo a aceitar a ideia de que o filósofo é um ser que vive à parte, não divorciado do real, como, aliás, pensa equivocadamente os não filósofos (a maioria esmagadora dos homens). Ele é um ser que vive à parte, porque, como pretendia Nietzsche, é quem deve afirmar-se como "espírito livre", a saber, aquele cujo modo de viver liberou-se da tradição, aquele que pensa de maneira diferente do que se poderia esperar; é ele quem questiona os valores do seu tempo e desvela o fundamento das crenças vulgarmente aceitas como "verdadeiras" e "inquestionáveis".
“O importante não é viver, mas viver bem”, disse Sócrates. Quase sempre, quando sou instado a prestar algum esclarecimento sobre para que me serve a filosofia, defronto-me com a persistente incompreensão de meu interlocutor – incompreensão esta cuja rígida espessura se conserva na persistência com que vigora um estado de profunda ignorância largamente compartilhada pelo homem comum acerca do valor existencial da filosofia. Em face dessa incompreensão inveterada do que faz um filósofo, do que é a sua atividade, sinto que os que se dedicam à experiência filosófica, ao estudo da filosofia, sinto que aqueles que tomam a vida filosófica como um modo de vida superior, habitam um mundo diverso do mundo habitado pelo homem comum. É claro que, na maioria das vezes, também o filósofo compartilha esse mesmo mundo comum da cotidianidade mediana com os demais homens, para os quais esse mundo esgota toda a extensão e complexidade do real. Mas sempre que ouso dizer “bem, o real é muito mais extenso e complexo que esse mundo cotidiano”, o choque, a colisão entre os dois mundos é inevitável. E a incomensurabilidade entre eles se torna evidente e insuperável. Donde advém a certeza que me é assegurada pelo sentimento que se me irrompe no espírito e o qual expresso do seguinte modo: pareço viver como um esquizofrênico, ou seja, cindido entre dois mundos – o mundo da filosofia e o mundo do senso comum. Como na maior parte do tempo convivo com aqueles que vivem e pensam segundo os padrões do senso comum, tenho necessidade premente de, na ausência daqueles que integram o círculo fechado dos “eleitos da filosofia”, refugiar-me na ocupação diária com os livros, ocupação, aliás, que se me afigura como um ato de resistência à impregnação da idiotice e vulgaridade das formas de existência do homem espiritualmente embotado pelas formas de vida em nossas sociedades da hipercomunicação, reproduzidas em redes de relacionamentos digitais - viveiros dos lugares-comuns, máquina da reprodução em massa dos clichês - esses cemitérios de significado. Todo clichê é sinal de empobrecimento de significado, de esvaziamento de sentido; é a própria morte da profundidade. Entendo bem Nietzsche, quando buscava apartar-se das multidões para viver recluso na sua fecunda solidão, própria, aliás, dos espíritos livres.
Termino, pois, este atestado de fidelidade ao modo de vida filosófico com estes meus dois aforismos, que me brotaram como duas flores na vastidão de um terreno árido e desértico. Eles me reconduzirão ao silêncio próprio daqueles que vivem imersos na ocupação com a leitura, mas não o farão sem a promessa de que esse silêncio será, em breve, interrompido para que se faça auscultar o Lógos da necessidade da filosofia.

Da necessidade da filosofia

Depois de Nietzsche, pretender que a filosofia é a busca da verdade é sinal de um inveterado mal-entendido; no entanto, me parece ainda justo falar da filosofia como uma experiência de profunda intimidade com o saber. O filósofo continua sendo o verdadeiro amigo do saber, aquele para quem a vida deve pôr-se a serviço da sabedoria, e a filosofia deve conduzi-lo na determinação da melhor maneira de viver. Na origem da filosofia, não só persiste a evidência de que há diferentes maneiras de viver, como também era evidente que algumas maneiras de viver eram inferiores e outras superiores. A filosofia era então procurada por aqueles que desejavam se tornar os melhores seres humanos e viver tão bem quanto um ser humano pudesse viver. Justificar uma forma de vida superior equivale, portanto, a justificar a própria necessidade da filosofia.

Da maturidade de espírito

A maturidade de espírito não é uma conquista da idade avançada; ela pode se dar em tenra idade, antes mesmo de aprendermos a fazer contas. O ápice da maturação espiritual se atinge quando cada um descobre, por intuição, sua irrelevância. É sinal de maturidade de espírito ousar dizer a si mesmo, todas as manhãs, "cosmologicamente, sou um ser irrelevante". A filosofia vem, em seguida, em socorro daqueles que, alcançado a beatitude de tal conhecimento, pretendem dignificar a irrelevância cósmica de sua existência, precária e sem sentido último.



terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

"Um saber múltiplo não ensina a sabedoria". (Heráclito)


                                 Resultado de imagem para sábio

                  A filosofia como exercício espiritual
                                A busca da sabedoria


A filosofia, enquanto exercício espiritual, congrega práticas, quer de ordem física, como regime alimentar, quer discursiva, como diálogo e meditação, quer ainda intuitiva, como a contemplação, todas elas destinadas a cunhar modos de ser. A filosofia como exercício espiritual se destina a operar uma transformação radical na personalidade, na estrutura psicofisiológica, na sensibilidade e na visão de mundo daquele que se dedica a nela exercitar-se numa entrega que mobiliza não só a cognição, mas também sua disposição afetiva. A filosofia é um tipo de exercício que demanda o envolvimento não de um sujeito de razão, mas de um corpo vital individual, certamente dotado de uma capacidade intelectiva, mas não redutível a ela. Esse corpo vital individual é um complexo psicofisiológico, uma totalidade orgânica estruturada não só com habilidades e/ou faculdades cognitivas (percepção, atenção, associação, memória, raciocínio, imaginação, pensamento, linguagem), mas também com pulsões, afetos, necessidades várias. É, portanto, todo o corpo vital individual que é solicitado na prática do exercício da filosofia, de modo que a prática de leitura de textos filosóficos (aliás, como toda prática de leitura, em geral) não consiste numa atividade puramente intelectiva, pois o sujeito-leitor é um corpo emocionalmente afetado, e suas emoções influenciam o exercício dessa prática. Cingindo, no entanto, nossas considerações sobre a influência das emoções ou afetos no exercício da leitura à relação entre estrutura afetiva e prática da leitura filosófica, queremos frisar que a leitura filosófica não só demanda certo modo de envolvimento que se dá na ordem dos afetos, mas também produz outros modos de afecções. Em outras palavras, se, por um lado, somos movidos para a filosofia por uma disposição afetiva determinada por nossas experiências de mundo; por outro lado, o próprio exercício da filosofia, na medida em que é parte de nossas experiências de mundo (é ele um tipo de experiência feita por um corpo vital individual engajado no mundo), o próprio exercício da filosofia – repitamos – produzirá em nós disposições afetivas que passarão a integrar nosso modo de ser no mundo e de nos relacionar com o mundo.
À luz da concepção de filosofia como exercício espiritual, a sabedoria, para cuja busca se orienta a atividade filosófica, é um modo de vida. O que está em jogo nessa busca a que se entrega obstinadamente o filósofo é a transmutação de seu modo de ser; conforme sublinha Davidson em prefácio de Hadot (2014, p. 13),

a norma da sabedoria pode e deve realizar uma transformação da relação entre o eu e o mundo, “graças a uma mutação interior, graças a uma mudança total da maneira de ver e viver” (O Sábio e o Mundo, p. 326). A percepção estética, conforme destaca Hadot, é (...) um modelo da conversão da atenção e da transformação da percepção habitual que o exercício da sabedoria exige.



A filosofia, por conseguinte, não deve ser reduzida a uma prática discursiva teórica; por outro lado, Hadot não propõe qualquer divórcio entre sabedoria e discurso filosófico. O discurso filosófico integra o modo de vida. Não se deve mais contrapor discurso a modo de vida, muito embora seja verdade que a escolha de vida que o filósofo faz determinará a produção do seu discurso. Assim, segundo Hadot (1999, p. 18-19),


(...) a filosofia é, antes de tudo, uma maneira de viver, mas está estritamente vinculada ao discurso filosófico (...). A filosofia não é senão o exercício preparatório para a sabedoria. Não se trata de opor, de um lado, a filosofia como discurso filosófico teórico e, de outro, a sabedoria como um modo de vida silencioso que será praticado a partir do momento em que o discurso tiver atingido seu acabamento e sua perfeição (...).


Por isso, para Hadot, os discursos filosóficos não podem ser considerados independentemente do filósofo que os produziu. Os discursos filosóficos devem ser vistos como a materialização linguístico-histórica de um exercício espiritual, isto é, de uma filosofia que é, ela mesma, um exercício preparatório para a sabedoria.
A concepção de filosofia como exercício espiritual não está circunscrita à Filosofia Antiga, muito embora essa concepção tenha sido a forma característica como a filosofia se desenvolveu e foi praticada pelos antigos. Hadot admite, no entanto, que é possível encontrá-la no pensamento de muitos filósofos modernos e contemporâneos, “influenciados pelo modelo da filosofia antiga, [os quais] conceberam a filosofia como uma atividade concreta e prática e como uma transformação da maneira de viver ou de pensar o mundo” (ibid., p. 380). Entre os filósofos citados por Hadot, que praticaram a filosofia segundo o modelo da filosofia antiga, se topam Descartes, Kant, Montaigne, Rousseau, Schopenhauer, Nietzsche, Kierkegaard, entre outros.


1. A filosofia como exercício espiritual: a escolha de vida e a  figura do sábio


Rechacemos, desde já, a concepção de sabedoria, típica do senso-comum, como acúmulo de conhecimento enciclopédico, como erudição. A sabedoria para a qual se volta a atividade filosófica não tem nada a ver com encontrar-se na posse de um saber profundo sobre alguma coisa em uma esfera do conhecimento humano. Portanto, o sábio não é o erudito. Mas o sábio também não é o filósofo. Este, não dispondo da sabedoria, devota toda a sua vida a persegui-la, sem nunca definitivamente alcançá-la. O filósofo se faz justamente nessa busca da sabedoria em que ele se empenha. Nessa busca, reside seu gozo, sua felicidade. A vida do filósofo é, fundamentalmente, desejo de sabedoria. A filosofia que ele produz não é tão somente um discurso teórico, mas, sobretudo, uma escolha de vida – uma escolha existencial e um exercício que ele vive ao exercitar seu pensamento.
 A sabedoria deve ser compreendida como um modo de ser, um modo de viver. Cabe agora explicitar as características gerais desse modo de viver que constitui a própria sabedoria. Ao explicitá-las, podemos ir compondo a figura do sábio.
Na Antiguidade, a sabedoria, dado que é um modo de viver (ou um modo de ser), caracterizará a condição que torna o homem que nela se encontra radicalmente diferente dos demais. Se a filosofia é uma atividade de preparação para a sabedoria, o exercício filosófico consistirá não apenas em discorrer de certa maneira, em falar segundo princípios lógicos, “mas em ser, agir e ver o mundo de certa maneira” (ibid.,  p. 313). Leia-se sobre qual é o estatuto do sábio em cada escola filosófica da Antiguidade, nas palavras seguintes de Hadot:

Em cada escola, a figura do sábio é a norma transcendente que determina o modo de vida do filósofo. E deve-se constatar que, na descrição dessa norma, há, para além das diferenças que aparecem nas diversas escolas, acordos profundos, tendências comuns que se pode descobrir (...). (ibid., p. 314).


Vejamos, então, quais são as tendências comuns que definem a figura do sábio na Antiguidade. De início e de maneira geral, o sábio é um tipo humano ideal cuja alma permanece idêntica a si mesma. O sábio, nesse sentido, não conhece conflitos em sua alma; sua alma encontra-se em perfeita harmonia com o corpo, de sorte que somente ele é verdadeiramente feliz em quaisquer circunstâncias. Tendo a alma imperturbável, o sábio vive permanentemente no estado de ataraxia. O sábio conserva as mesmas disposições, quer se encontre tendo de suportar a fome, a doença, quer se encontre fruindo a abundância. Segundo Hadot (ibid.), “ele sabe, com o mesmo desembaraço, abster-se e usufruir as coisas”.
Quando tomamos o exemplo do sábio estoico, encontramo-lo num estado de coerência consigo e de permanência de identidade. Essa coerência consigo e permanente identidade só são possíveis, porquanto o sábio encontra sua felicidade em si mesmo. A felicidade do sábio – vale frisar – independe das circunstâncias e das coisas exteriores. Nesse sentido, a vida do sábio se caracteriza principalmente pela autarquia, ou seja, pela autossuficiência, já que o sábio se basta a si mesmo; sua vida e sua felicidade não dependem de coisas supérfluas. Assim, consoante ensina Hadot (ibid., p. 315):

(...) segundo Aristóteles, o sábio leva a vida contemplativa porque não tem necessidade de coisas exteriores para se exercitar e porque encontra, com isso, em si a felicidade e a perfeita independência. Só depende de si, basta a si mesmo, e reduzir ao máximo as suas necessidades é especialmente o ideal dos filósofos cínicos.


O sábio está preocupado em reduzir ao máximo suas necessidades. Encontramos esse ideal nos filósofos cínicos. Os epicuristas, por seu turno, reduziam suas necessidades pela limitação e domínio dos desejos. Os estoicos, por seu turno, viviam para o exercício da virtude como condição necessária e suficiente da vida feliz. O estoicismo nos fornece, juntamente com o cinismo, o modelo de vida do sábio antigo. O sábio estoico - acompanhado, como exemplos paradigmáticos, dos modos de viver dos cínicos e de um cético como Pirro - é o tipo humano que não é perturbado pelas coisas exteriores, visto que não considera que as coisas sejam boas nem que sejam más em si mesmas. Por diversas razões, os sábios estoico e cínico se recusam a emitir um juízo de valor sobre as coisas, tratando-as com indiferença. O cético Pirro, por exemplo, sustentava que tudo é indiferente, porque não podemos saber se as coisas são boas ou más; não nos é possível, segundo ele, estabelecer diferença entre elas.
A indiferença do sábio não deve ser interpretada como desinteresse por tudo, mas uma conversão da atenção, um deslocamento do interesse para algo diverso daquele que atrai e domina a atenção e o interesse (o cuidado) dos demais homens. Destarte, segundo Hadot, “essa indiferença do sábio corresponde a uma transformação total da relação [dele] com o mundo”. (ibid.).
“Viver na terra como um deus entre os homens”, disse Epicuro. Eis o ideal do sábio antigo. Podemos, então, discriminar três qualidades fundamentais do sábio: igualdade de alma, ausência de necessidade, indiferença às coisas indiferentes. Nessas três qualidades, baseia-se a sua tranquilidade de alma e sua ausência de perturbação, quer na alma, quer no corpo (ataraxia).
A sabedoria antiga nos ensina que as perturbações da alma têm origem diversa. Platão, por exemplo, dizia que é o corpo, em virtude de seus desejos e paixões, que provoca a desordem e a inquietude da alma. Xenócrates, discípulo daquele, por sua vez, sustentava que a filosofia tem como meta fazer cessar a perturbação decorrente dos cuidados com os negócios humanos. Aristóteles endossa a mesma visão de Xenócrates. A vida contemplativa, à qual fez elogio Aristóteles por meio de sua obra Ética a Nicômaco, está apartada dos negócios da política, das incertezas da ação. É por isso que ela pode conduzir o homem à serenidade.
Epicuro pensava que tanto os terrores da morte e o temor dos deuses quanto os desejos desmedidos e o compromisso com os negócios da pólis carreiam inquietação aos homens. Na opinião de Epicuro, o sábio, porque conhece os limites de seus desejos e de sua ação e porque sabe eliminar suas dores, obterá a serenidade da alma e poderá, em decorrência disso, viver na Terra “como um deus entre os homens”.
Como não pretendamos discorrer exaustivamente sobre a figura do sábio na Antiguidade, vamo-nos cingir a enunciar, separadamente, as características essenciais da figura do sábio.

1)         A figura do sábio cumpre um papel fundamental na escolha de vida filosófica;

2)         A figura do sábio é, para o filósofo, mais um ideal descrito pelo discurso filosófico, do que um modo de vida encarnado num tipo humano concreto;

3)         Uma vez que o sábio representa um modo de vida radicalmente diverso do modo como vivem os mortais, a figura do sábio tende a aproximar-se da figura de Deus ou dos deuses, de modo que os desuses são sábios imortais; e os sábios, deuses mortais.


1.2. A conversão filosófica

Faz-se mister discutir brevemente e delimitar semanticamente o conceito de conversão.


1.2.1. A conversão na Antiguidade

Do latim conversio, conversão significa ‘giro’, ‘mudança de direção’ (Hadot, 2014, p. 203). Em sua acepção religiosa e filosófica, a conversão recobre a ideia de modificação da estrutura mental, que se estende desde uma simples mudança de opinião até a transformação radical da personalidade.
O termo latino conversio, segundo Hadot, corresponde a dois termos gregos cujo sentido diverge. De um lado, conversio equivale ao grego epistrophé, que quer dizer ‘mudança de orientação’ e que abriga a ideia de retorno a si; de outro lado, se acha o correspondente grego metanoia, que significa ‘mudança de pensamento’, ‘arrependimento’ e envolve a ideia de ‘mutação’ ou ‘renascimento’. Consoante ensina Hadot (ibid.), “(...) na noção de conversão, há uma oposição interna entre a ideia de ‘retorno a si’ e a ideia de ‘renascimento’. Essa polaridade de fidelidade-ruptura marcou profundamente a consciência ocidental desde o surgimento do cristianismo.”
Hadot vê na ideia de conversão um poder constitutivo da consciência ocidental. Em outras palavras, a ideia de conversão se acha entre as ideias que constituíram a consciência do homem ocidental, de tal sorte que “pode-se conceber toda a história do Ocidente como um esforço incessantemente renovado para aperfeiçoar as técnicas de conversão”. (ibid., p. 204, ênfase nossa). Tais técnicas seriam destinadas a transformar a realidade humana, “seja reconduzindo-a a sua essência original (conversão-retorno), seja modificando-a radicalmente (conversão-mutação)”. (ibid.).
Quando volvemos nossa atenção para a determinação das formas históricas de conversão, somos levados a reconhecer um fato importante: na Antiguidade, o fenômeno de conversão aparece mais frequentemente nas ordens política e filosófica, e é menos frequente na ordem religiosa. Segundo Hadot, isso se explica pela própria natureza das religiões da Antiguidade: elas eram religiões assentadas no equilíbrio relacional entre Deus e o homem, ou seja, elas dispunham de ritos que asseguravam um tipo de troca de serviços entre Deus e o homem. Ainda segundo Hadot (ibid., p. 205),

É sobretudo no domínio da política que os homens da Grécia antiga fizeram a experiência de conversão. A prática da discussão judiciária e política, na democracia, revelou-lhes a possibilidade de “mudar a alma” do adversário pelo manejo hábil da linguagem, pelo emprego de métodos de persuasão. As técnicas de retórica, arte da persuasão, constituem-se e se codificam pouco a pouco. Descobre-se a força política das ideias, o valor da “ideologia”, para retomar uma expressão moderna. A guerra do Peloponeso é um exemplo desse proselitismo político.


Escapa à alçada desta exposição uma descrição detida e aprofundada das formas históricas das práticas de conversão. Por isso, vamo-nos limitar a enfatizar o que se segue. Em primeiro lugar, segundo Hadot, embora menos difundida, a conversão filosófica, na Antiguidade, é a mais radical. Em suas origens, a conversão realizada pela filosofia é inseparável da conversão política. Em segundo lugar, a conversão, entendida como um tipo de experiência interior, atinge sua mais elevada intensidade nas religiões de “consciência infeliz”, para retomar aqui uma expressão usada por Hegel com a qual caracterizou as religiões que assentam na crença de que há uma ruptura radical entre o homem e a natureza. Constituem dois exemplos dessas formas de religião o judaísmo e o cristianismo.


A conversão religiosa reveste-se nessas religiões de um aspecto radical e totalitário que as assemelha à conversão filosófica. Ela assume, porém, a forma de uma fé absoluta e excessiva na palavra e na vontade salvadora de Deus.  No Antigo Testamento, Deus frequentemente convida seu povo a se “converter”, isto é, a se voltar na direção dele, a regressar à aliança outrora feita no Sinai. (ibid., p. 206).



            1.3. Aspectos psicofisiológicos e filosóficos da conversão

No que toca aos aspectos psicofisiológicos da conversão, limitar-nos-emos a sublinhar seu poder de transformação da personalidade. Essa transformação pode estar a serviço de certos regimes políticos que aspiram à adesão absoluta ao seu projeto, à sua ideologia, casos em que tal transformação redunda no que chamamos vulgarmente de “lavagem cerebral”.
No entanto, a transformação da personalidade pode atender a propósitos mais humanamente elevados. Na Antiguidade, por exemplo, a filosofia era essencialmente uma prática, um exercício de retorno a si, mediante “um violento desenraizamento da alienação da inconsciência”. (Hadot, ibid., p. 211). A filosofia antiga, enquanto atividade espiritual, tem todos os aspectos de uma verdadeira conversão. Mas a conversão filosófica pretende promover “o acesso à liberdade interior, a uma nova percepção do mundo, à existência autêntica” (Hadot, ibid., p. 212). Portanto, na filosofia, a conversão é depurada de suas forças totalitárias, as quais visam à adesão irrestrita às verdades da doutrina, aos dogmas, como no caso das religiões monoteístas, por parte do convertido. O filósofo, em contraste com a autoridade de uma seita religiosa ou de um regime totalitarista, tenderá a pensar que a verdadeira conversão é a conversão filosófica, visto que ela não se faz à custa da liberdade, da prática da reflexão. Por isso, segundo Hadot,

Sob todas essas fórmulas [as que desfilam na história da conversão filosófica], a conversão filosófica é desenraizamento e ruptura com relação ao cotidiano, ao familiar, à atitude falsamente “natural” do senso comum; ela é retorno ao originário, ao autêntico, à interioridade, ao essencial; ela é recomeço absoluto, novo ponto de partida que transmuta o passado e o futuro. (ibid.).