
A filosofia como
exercício espiritual
A busca da sabedoria
A filosofia, enquanto exercício espiritual, congrega
práticas, quer de ordem física, como regime alimentar, quer discursiva, como
diálogo e meditação, quer ainda intuitiva, como a contemplação, todas elas
destinadas a cunhar modos de ser. A filosofia como exercício espiritual se
destina a operar uma transformação radical na personalidade, na estrutura
psicofisiológica, na sensibilidade e na visão de mundo daquele que se dedica a
nela exercitar-se numa entrega que mobiliza não só a cognição, mas também sua
disposição afetiva. A filosofia é um tipo de exercício que demanda o
envolvimento não de um sujeito de razão, mas de um corpo vital individual, certamente dotado de uma capacidade
intelectiva, mas não redutível a ela. Esse corpo vital individual é um complexo
psicofisiológico, uma totalidade orgânica estruturada não só com habilidades
e/ou faculdades cognitivas (percepção, atenção, associação, memória,
raciocínio, imaginação, pensamento, linguagem), mas também com pulsões, afetos,
necessidades várias. É, portanto, todo o corpo vital individual que é
solicitado na prática do exercício da filosofia, de modo que a prática de
leitura de textos filosóficos (aliás, como toda prática de leitura, em geral)
não consiste numa atividade puramente intelectiva, pois o sujeito-leitor é um
corpo emocionalmente afetado, e suas emoções influenciam o exercício dessa
prática. Cingindo, no entanto, nossas considerações sobre a influência das
emoções ou afetos no exercício da leitura à relação entre estrutura afetiva e
prática da leitura filosófica, queremos frisar que a leitura filosófica não só
demanda certo modo de envolvimento que se dá na ordem dos afetos, mas também
produz outros modos de afecções. Em outras palavras, se, por um lado, somos
movidos para a filosofia por uma disposição afetiva determinada por nossas
experiências de mundo; por outro lado, o próprio exercício da filosofia, na
medida em que é parte de nossas experiências de mundo (é ele um tipo de
experiência feita por um corpo vital individual engajado no mundo), o próprio
exercício da filosofia – repitamos – produzirá em nós disposições afetivas que
passarão a integrar nosso modo de ser no
mundo e de nos relacionar com o
mundo.
À luz da concepção de
filosofia como exercício espiritual, a sabedoria, para cuja busca se orienta a
atividade filosófica, é um modo de vida. O que está em jogo nessa busca a que
se entrega obstinadamente o filósofo é a transmutação de seu modo de ser;
conforme sublinha Davidson em prefácio de Hadot (2014, p. 13),
a norma da sabedoria
pode e deve realizar uma transformação da relação entre o eu e o mundo, “graças
a uma mutação interior, graças a uma mudança total da maneira de ver e viver”
(O Sábio e o Mundo, p. 326). A percepção estética, conforme destaca Hadot, é (...)
um modelo da conversão da atenção e da transformação da percepção habitual que
o exercício da sabedoria exige.
A
filosofia, por conseguinte, não deve ser reduzida a uma prática discursiva
teórica; por outro lado, Hadot não propõe qualquer divórcio entre sabedoria e
discurso filosófico. O discurso filosófico integra o modo de vida. Não se deve
mais contrapor discurso a modo de vida, muito embora seja verdade que a escolha
de vida que o filósofo faz determinará a produção do seu discurso. Assim, segundo
Hadot (1999, p. 18-19),
(...)
a filosofia é, antes de tudo, uma maneira de viver, mas está estritamente
vinculada ao discurso filosófico (...). A filosofia não é senão o exercício preparatório para a sabedoria.
Não se trata de opor, de um lado, a filosofia como discurso filosófico teórico
e, de outro, a sabedoria como um modo de vida silencioso que será praticado a
partir do momento em que o discurso tiver atingido seu acabamento e sua
perfeição (...).
Por
isso, para Hadot, os discursos filosóficos não podem ser considerados
independentemente do filósofo que os produziu. Os discursos filosóficos devem
ser vistos como a materialização linguístico-histórica de um exercício
espiritual, isto é, de uma filosofia que é, ela mesma, um exercício
preparatório para a sabedoria.
A
concepção de filosofia como exercício espiritual não está circunscrita à
Filosofia Antiga, muito embora essa concepção tenha sido a forma característica
como a filosofia se desenvolveu e foi praticada pelos antigos. Hadot admite, no
entanto, que é possível encontrá-la no pensamento de muitos filósofos modernos
e contemporâneos, “influenciados pelo modelo da filosofia antiga, [os quais]
conceberam a filosofia como uma atividade concreta e prática e como uma transformação
da maneira de viver ou de pensar o mundo” (ibid., p. 380). Entre os filósofos
citados por Hadot, que praticaram a filosofia segundo o modelo da filosofia
antiga, se topam Descartes, Kant, Montaigne, Rousseau, Schopenhauer, Nietzsche,
Kierkegaard, entre outros.
1.
A filosofia como exercício espiritual: a escolha de vida e a figura do sábio
Rechacemos, desde já, a concepção de sabedoria, típica do
senso-comum, como acúmulo de conhecimento enciclopédico, como erudição. A
sabedoria para a qual se volta a atividade filosófica não tem nada a ver com
encontrar-se na posse de um saber profundo sobre alguma coisa em uma esfera do
conhecimento humano. Portanto, o sábio não é o erudito. Mas o sábio também não
é o filósofo. Este, não dispondo da sabedoria, devota toda a sua vida a
persegui-la, sem nunca definitivamente alcançá-la. O filósofo se faz justamente
nessa busca da sabedoria em que ele se empenha. Nessa busca, reside seu gozo,
sua felicidade. A vida do filósofo é, fundamentalmente, desejo de sabedoria. A
filosofia que ele produz não é tão somente um discurso teórico, mas, sobretudo,
uma escolha de vida – uma escolha
existencial e um exercício que ele vive ao exercitar seu pensamento.
A sabedoria deve
ser compreendida como um modo de ser, um
modo de viver. Cabe agora
explicitar as características gerais desse modo de viver que constitui a
própria sabedoria. Ao explicitá-las, podemos ir compondo a figura do sábio.
Na Antiguidade, a sabedoria, dado que é um modo de viver
(ou um modo de ser), caracterizará a condição que torna o homem que nela se
encontra radicalmente diferente dos demais. Se a filosofia é uma atividade de
preparação para a sabedoria, o exercício filosófico consistirá não apenas em
discorrer de certa maneira, em falar segundo princípios lógicos, “mas em ser,
agir e ver o mundo de certa maneira” (ibid.,
p. 313). Leia-se sobre qual é o estatuto do sábio em cada escola
filosófica da Antiguidade, nas palavras seguintes de Hadot:
Em cada escola, a
figura do sábio é a norma transcendente que determina o modo de vida do
filósofo. E deve-se constatar que, na descrição dessa norma, há, para além das
diferenças que aparecem nas diversas escolas, acordos profundos, tendências
comuns que se pode descobrir (...). (ibid., p. 314).
Vejamos, então, quais são as tendências comuns que
definem a figura do sábio na Antiguidade. De início e de maneira geral, o sábio
é um tipo humano ideal cuja alma
permanece idêntica a si mesma. O sábio, nesse sentido, não conhece conflitos em
sua alma; sua alma encontra-se em perfeita harmonia com o corpo, de sorte que
somente ele é verdadeiramente feliz em quaisquer circunstâncias. Tendo a alma
imperturbável, o sábio vive permanentemente no estado de ataraxia. O sábio conserva as mesmas disposições, quer se encontre
tendo de suportar a fome, a doença, quer se encontre fruindo a abundância.
Segundo Hadot (ibid.), “ele sabe, com o mesmo desembaraço, abster-se e usufruir
as coisas”.
Quando tomamos o exemplo do sábio estoico, encontramo-lo
num estado de coerência consigo e de permanência de identidade. Essa coerência
consigo e permanente identidade só são possíveis, porquanto o sábio encontra
sua felicidade em si mesmo. A felicidade do sábio – vale frisar – independe das circunstâncias e das coisas
exteriores. Nesse sentido, a vida do sábio se caracteriza principalmente
pela autarquia, ou seja, pela
autossuficiência, já que o sábio se basta a si mesmo; sua vida e sua felicidade
não dependem de coisas supérfluas. Assim, consoante ensina Hadot (ibid., p.
315):
(...) segundo
Aristóteles, o sábio leva a vida contemplativa porque não tem necessidade de
coisas exteriores para se exercitar e porque encontra, com isso, em si a
felicidade e a perfeita independência. Só depende de si, basta a si mesmo, e
reduzir ao máximo as suas necessidades é especialmente o ideal dos filósofos
cínicos.
O sábio está preocupado em reduzir ao máximo suas
necessidades. Encontramos esse ideal nos filósofos cínicos. Os epicuristas, por
seu turno, reduziam suas necessidades pela limitação e domínio dos desejos. Os
estoicos, por seu turno, viviam para o exercício da virtude como condição
necessária e suficiente da vida feliz. O estoicismo nos fornece, juntamente com o cinismo, o modelo de vida do sábio antigo. O sábio estoico - acompanhado, como
exemplos paradigmáticos, dos modos de viver dos cínicos e de um cético como
Pirro - é o tipo humano que não é perturbado pelas coisas exteriores, visto que
não considera que as coisas sejam boas nem que sejam más em si mesmas. Por
diversas razões, os sábios estoico e cínico se recusam a emitir um juízo de
valor sobre as coisas, tratando-as com indiferença. O cético Pirro, por
exemplo, sustentava que tudo é indiferente, porque não podemos saber se as
coisas são boas ou más; não nos é possível, segundo ele, estabelecer diferença
entre elas.
A indiferença do sábio não deve ser interpretada como
desinteresse por tudo, mas uma conversão
da atenção, um deslocamento do interesse para algo diverso daquele que
atrai e domina a atenção e o interesse (o cuidado) dos demais homens. Destarte,
segundo Hadot, “essa indiferença do sábio corresponde a uma transformação total
da relação [dele] com o mundo”. (ibid.).
“Viver na terra como um deus entre os homens”, disse
Epicuro. Eis o ideal do sábio antigo. Podemos, então, discriminar três
qualidades fundamentais do sábio: igualdade
de alma, ausência de necessidade,
indiferença às coisas indiferentes.
Nessas três qualidades, baseia-se a sua tranquilidade de alma e sua ausência de
perturbação, quer na alma, quer no corpo (ataraxia).
A sabedoria antiga nos ensina que as perturbações da alma
têm origem diversa. Platão, por exemplo, dizia que é o corpo, em virtude de
seus desejos e paixões, que provoca a desordem e a inquietude da alma.
Xenócrates, discípulo daquele, por sua vez, sustentava que a filosofia tem como
meta fazer cessar a perturbação decorrente dos cuidados com os negócios
humanos. Aristóteles endossa a mesma visão de Xenócrates. A vida contemplativa,
à qual fez elogio Aristóteles por meio de sua obra Ética a Nicômaco, está apartada dos negócios da política, das
incertezas da ação. É por isso que ela pode conduzir o homem à serenidade.
Epicuro pensava que tanto os terrores da morte e o temor
dos deuses quanto os desejos desmedidos e o compromisso com os negócios da pólis carreiam inquietação aos homens.
Na opinião de Epicuro, o sábio, porque conhece os limites de seus desejos e de
sua ação e porque sabe eliminar suas dores, obterá a serenidade da alma e
poderá, em decorrência disso, viver na Terra “como um deus entre os homens”.
Como não pretendamos discorrer exaustivamente sobre a
figura do sábio na Antiguidade, vamo-nos cingir a enunciar, separadamente, as
características essenciais da figura do sábio.
1)
A figura do sábio
cumpre um papel fundamental na escolha de vida filosófica;
2)
A figura do sábio é,
para o filósofo, mais um ideal descrito pelo discurso filosófico, do que um
modo de vida encarnado num tipo humano concreto;
3)
Uma vez que o sábio
representa um modo de vida radicalmente diverso do modo como vivem os mortais,
a figura do sábio tende a aproximar-se da figura de Deus ou dos deuses, de modo
que os desuses são sábios imortais; e os sábios, deuses mortais.
1.2. A conversão filosófica
Faz-se mister discutir brevemente e delimitar
semanticamente o conceito de conversão.
1.2.1.
A conversão na Antiguidade
Do
latim conversio, conversão significa ‘giro’, ‘mudança de direção’ (Hadot, 2014, p.
203). Em sua acepção religiosa e filosófica, a conversão recobre a ideia de
modificação da estrutura mental, que se estende desde uma simples mudança de
opinião até a transformação radical da personalidade.
O
termo latino conversio, segundo
Hadot, corresponde a dois termos gregos cujo sentido diverge. De um lado, conversio equivale ao grego epistrophé, que quer dizer ‘mudança de
orientação’ e que abriga a ideia de retorno
a si; de outro lado, se acha o correspondente grego metanoia, que significa ‘mudança de pensamento’, ‘arrependimento’ e
envolve a ideia de ‘mutação’ ou ‘renascimento’. Consoante ensina Hadot (ibid.),
“(...) na noção de conversão, há uma oposição interna entre a ideia de ‘retorno
a si’ e a ideia de ‘renascimento’. Essa polaridade de fidelidade-ruptura marcou
profundamente a consciência ocidental desde o surgimento do cristianismo.”
Hadot vê na ideia de conversão um poder constitutivo da
consciência ocidental. Em outras palavras, a ideia de conversão se acha entre
as ideias que constituíram a consciência do homem ocidental, de tal sorte que “pode-se conceber toda a história do Ocidente
como um esforço incessantemente renovado para aperfeiçoar as técnicas de conversão”.
(ibid., p. 204, ênfase nossa). Tais técnicas seriam destinadas a transformar a
realidade humana, “seja reconduzindo-a a sua essência original
(conversão-retorno), seja modificando-a radicalmente (conversão-mutação)”. (ibid.).
Quando volvemos nossa atenção para a determinação das
formas históricas de conversão, somos levados a reconhecer um fato importante: na Antiguidade, o fenômeno de conversão aparece mais frequentemente
nas ordens política e filosófica, e é menos frequente na ordem religiosa. Segundo
Hadot, isso se explica pela própria natureza das religiões da Antiguidade: elas
eram religiões assentadas no equilíbrio relacional entre Deus e o homem, ou
seja, elas dispunham de ritos que asseguravam um tipo de troca de serviços
entre Deus e o homem. Ainda segundo Hadot (ibid., p. 205),
É sobretudo no domínio da política que os
homens da Grécia antiga fizeram a experiência de conversão. A prática da
discussão judiciária e política, na democracia, revelou-lhes a possibilidade de
“mudar a alma” do adversário pelo manejo hábil da linguagem, pelo emprego de
métodos de persuasão. As técnicas de retórica, arte da persuasão, constituem-se
e se codificam pouco a pouco. Descobre-se a força política das ideias, o valor
da “ideologia”, para retomar uma expressão moderna. A guerra do Peloponeso é um
exemplo desse proselitismo político.
Escapa à alçada desta exposição uma descrição detida e
aprofundada das formas históricas das práticas de conversão. Por isso, vamo-nos
limitar a enfatizar o que se segue. Em primeiro lugar, segundo Hadot, embora
menos difundida, a conversão filosófica, na Antiguidade, é a mais radical. Em
suas origens, a conversão realizada pela filosofia é inseparável da conversão
política. Em segundo lugar, a conversão, entendida como um tipo de experiência interior, atinge sua mais elevada
intensidade nas religiões de “consciência infeliz”, para retomar aqui uma
expressão usada por Hegel com a qual caracterizou as religiões que assentam na
crença de que há uma ruptura radical entre o homem e a natureza. Constituem
dois exemplos dessas formas de religião o judaísmo e o cristianismo.
A conversão religiosa reveste-se nessas
religiões de um aspecto radical e totalitário que as assemelha à conversão
filosófica. Ela assume, porém, a forma de uma fé absoluta e excessiva na
palavra e na vontade salvadora de Deus. No Antigo Testamento, Deus frequentemente
convida seu povo a se “converter”, isto é, a se voltar na direção dele, a
regressar à aliança outrora feita no Sinai. (ibid., p. 206).
1.3. Aspectos psicofisiológicos e
filosóficos da conversão
No que toca aos aspectos psicofisiológicos da conversão,
limitar-nos-emos a sublinhar seu poder de transformação da personalidade. Essa
transformação pode estar a serviço de certos regimes políticos que aspiram à
adesão absoluta ao seu projeto, à sua ideologia, casos em que tal transformação
redunda no que chamamos vulgarmente de “lavagem cerebral”.
No entanto, a transformação da personalidade pode atender
a propósitos mais humanamente elevados. Na Antiguidade, por exemplo, a
filosofia era essencialmente uma prática, um exercício de retorno a si,
mediante “um violento desenraizamento da alienação da inconsciência”. (Hadot,
ibid., p. 211). A filosofia antiga, enquanto atividade espiritual, tem todos os
aspectos de uma verdadeira conversão. Mas a conversão filosófica pretende
promover “o acesso à liberdade interior, a uma nova percepção do mundo, à existência
autêntica” (Hadot, ibid., p. 212). Portanto, na filosofia, a conversão é
depurada de suas forças totalitárias, as quais visam à adesão irrestrita às
verdades da doutrina, aos dogmas, como no caso das religiões monoteístas, por
parte do convertido. O filósofo, em contraste com a autoridade de uma seita
religiosa ou de um regime totalitarista, tenderá a pensar que a
verdadeira conversão é a conversão filosófica, visto que ela não se faz à custa
da liberdade, da prática da reflexão. Por isso, segundo Hadot,
Sob todas essas fórmulas [as que desfilam na
história da conversão filosófica], a conversão filosófica é desenraizamento e
ruptura com relação ao cotidiano, ao familiar, à atitude falsamente “natural”
do senso comum; ela é retorno ao originário, ao autêntico, à interioridade, ao
essencial; ela é recomeço absoluto, novo ponto de partida que transmuta o
passado e o futuro. (ibid.).
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