segunda-feira, 8 de novembro de 2021

"Ou a aprovação é trágica, ou não há aprovação". (Rosset)

 



Um olhar filosófico sobre o trágico

 

 

 

A cantora Marília Mendonça, aos 26 anos, no auge do sucesso em sua carreira, morre em um acidente aéreo. Há vinte e cinco anos, o grupo Mamonas Assassinas também teve o mesmo destino “trágico”. Jovens rapazes morriam prematuramente infringindo a tal “lei natural da vida”, diziam a mídia e a vox populi. Naquela ocasião como nesta, a mídia aproveitou para ganhar pontos na audiência explorando o gosto sádico-masoquista e as inclinações à tanatofilia do grande público... pululavam também as referências ao “bom” Deus que decidiu “levar para junto de si” os vitimados ( o roteiro é o mesmo, só mudam os atores) ... como é de esperar nessas ocasiões, encontra-se aqui e ali um “desalmado” a lembrar que nos acidentes morreram pessoas que não tiveram a mesma visibilidade na mídia... e não tardarão a aparecer os médiuns, os sensitivos para nos dar notícias do além em algum programa de televisão... ao fim de um ou dois meses, a morte da cantora deixará de ocupar o lugar principal no horário nobre da grande mídia... em seis meses, a vida voltará a sua “normalidade”, porque, afinal, todo dia é dia para morrer... morre-se, e isso é tudo. Para a grande maioria do rebanho humano, o fato da morte não é em si objeto de angústia consciente... a quantos ocorre pensar que uma morte acidental e abrupta escancara a inanidade de ser, a absurdidade da existência? Deus? O apelo ao Altíssimo torna tudo ainda mais inexplicável, mais imponderável e insolúvel. Deus é o signo da tentativa humana de não sucumbir completamente à angústia e à loucura de hospício. O grande público, tão desacustamado de pensar, se contenta com as respostas mais simples, reconfortantes e logicamente insatisfatórias. O “Deus quis assim” é melhor do que admitir que o jogo de dados do acaso nos foi desfavorável desta vez. Trágica não é a morte violenta em um acidente. Trágico é o destino de seres que sabem que vivem para necessariamente morrer. Trágica é a vida que deve ser vivida a cada instante com a consciência vívida de que ela irá acabar, ou poderá acabar a qualquer momento. O pensamento trágico é o pensamento da afirmação por excelência. Mesmo em face da constatação do que há de problemático, obscuro, sombrio, doloroso, aterrador na existência, o pensador trágico afirma o desespero jubiloso que quer o real tal como é, sem apelação. O afeto trágico não diz senão isto: “só vale o que sabemos que vai acabar”. Segundo Maffesoli, “a sensibilidade trágica (...) aceita com sabedoria o que é. Acrescenta uma forma de intensidade ao viver o que é”. (p. 40-41).

A intensidade afetiva trágica encontra seu mais claro e vigoroso registro na afirmação: a medida da vida é viver sem medida: “viver apesar de tudo esta existência tolhida de vicissitudes, mas que segue sendo atrativa apesar ou por causa disso” (ibid.). O páthos trágico é o ter de jogar-se na vida como quem joga um jogo cujo resultado já está dado e no qual tudo está irremediavelmente perdido e, apesar disso, querê-lo jogar. Trágica é a condição humana marcada pelo desamparo, em frente ao qual o homem realiza a sua tarefa, assume a responsabilidade de ser livre e de dar um sentido à sua vida. Camus, em O homem revoltado, nos lembra que a consciência de que o sofrimento e a injustiça jamais serão totalmente eliminados faz parte da experiência trágica. O trágico também se deixa capturar na fórmula sartreana, com a qual se afirma a contingência radical da existência:

“todo ente nasce sem razão, se prolonga por fraqueza e morre por acaso”.

Entre a consternação e os apelos de consolação a um Deus abscôndito, o grande público, no entanto, vive a “normalidade” da vida reprimindo o afeto do trágico. O trágico é o modo próprio de constituição da condição humana. Nesse sentido, o trágico é uma categoria filosófico-hermenêutica com a qual a existência humana se converte em objeto para exame de uma filosofia trágica. Todo pensamento trágico quer “fazer o trágico passar do estado inconsciente para o consciente” (Rosset). Segundo Deleuze (2001, p. 29), “o que é trágico é a alegria”. O que Nietzsche viu e que Deleuze soube reconhecer e admirar é que o herói trágico é alegre. O trágico designa, para esses dois pensadores, a forma estética da alegria, que não sendo nenhuma solução moral da dor e do sofrimento, converte todo pesar, toda tristeza, toda infelicidade, mesmo a mais pungente e atroz, em objeto de afirmação. Para Rosset (1989a), uma filosofia trágica afirma o caráter originário do acaso, do acaso anterior à constituição de toda série de causas e de toda ordem, e afirma o caráter artificial de toda existência: artificial no sentido de que afirma a independência da existência com relação a todo princípio natural. O pensamento trágico, segundo Rosset, afirma a fundamental imprevisibilidade de todo ser, o acaso de toda constituição, a facticidade de todo fato. Conforme assinala Rosset (1989b, p. 300), “aprovar a existência é aprovar o trágico”, ao que acrescenta “ou a aprovação é trágica ou não há aprovação”. (ibid.). Tanto em Nietzsche, como em Deleuze e Rosset, o trágico é uma qualidade da afirmação, um elemento modal da aprovação incondicional da existência. Mas essa afirmação incondicional não tem nada que ver com o indiferentismo do homem comum que suporta viver desde que encontre um apoio emocional na fé ou na esperança da vida eterna. A aprovação trágica é implacável e dura: querer incondicionalmente esta vida sem sentido metafísico no jogo irracional do acaso aqui e agora com a certeza de que o jogo está desde o princípio perdido irremediavelmente para os jogadores. O homem comum jamais chegará a endossar  tal sim jubiloso e louco, preferindo o conforto e o auxílio de suas bengalas metafísicas, os consolos de um além-mundo imaginário. Porque viver é demasiado pesado, é resistir a aproximar-se do abismo para evitar sofrer suas vertigens, é fugir para bem distante do desespero paralisante e da loucura de hospício. Somos todos loucos em alguma medida. É preciso alguma dose de loucura para viver e suportar a vida. A filosofia vem em socorro para tornar nossa loucura consciente de si.

 

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