Um olhar filosófico sobre o trágico
A cantora Marília Mendonça, aos 26
anos, no auge do sucesso em sua carreira, morre em um acidente aéreo. Há vinte
e cinco anos, o grupo Mamonas Assassinas também teve o mesmo destino “trágico”.
Jovens rapazes morriam prematuramente infringindo a tal “lei natural da vida”,
diziam a mídia e a vox populi.
Naquela ocasião como nesta, a mídia aproveitou para ganhar pontos na audiência
explorando o gosto sádico-masoquista e as inclinações à tanatofilia do grande
público... pululavam também as referências ao “bom” Deus que decidiu “levar
para junto de si” os vitimados ( o roteiro é o mesmo, só mudam os atores) ...
como é de esperar nessas ocasiões, encontra-se aqui e ali um “desalmado” a
lembrar que nos acidentes morreram pessoas que não tiveram a mesma visibilidade
na mídia... e não tardarão a aparecer os médiuns, os sensitivos para nos dar
notícias do além em algum programa de televisão... ao fim de um ou dois meses,
a morte da cantora deixará de ocupar o lugar principal no horário nobre da
grande mídia... em seis meses, a vida voltará a sua “normalidade”, porque,
afinal, todo dia é dia para morrer... morre-se, e isso é tudo. Para a grande
maioria do rebanho humano, o fato da morte não é em si objeto de angústia
consciente... a quantos ocorre pensar que uma morte acidental e abrupta
escancara a inanidade de ser, a absurdidade da existência? Deus? O apelo ao
Altíssimo torna tudo ainda mais inexplicável, mais imponderável e insolúvel.
Deus é o signo da tentativa humana de não sucumbir completamente à angústia e à
loucura de hospício. O grande público, tão desacustamado de pensar, se contenta
com as respostas mais simples, reconfortantes e logicamente insatisfatórias. O
“Deus quis assim” é melhor do que admitir que o jogo de dados do acaso nos foi
desfavorável desta vez. Trágica não é a morte violenta em um acidente. Trágico
é o destino de seres que sabem que vivem para necessariamente morrer. Trágica é
a vida que deve ser vivida a cada instante com a consciência vívida de que ela
irá acabar, ou poderá acabar a qualquer momento. O pensamento trágico é o
pensamento da afirmação por excelência. Mesmo em face da constatação do que há
de problemático, obscuro, sombrio, doloroso, aterrador na existência, o
pensador trágico afirma o desespero jubiloso que quer o real tal como é, sem
apelação. O afeto trágico não diz senão isto: “só vale o que sabemos que vai
acabar”. Segundo Maffesoli, “a sensibilidade trágica (...) aceita com sabedoria
o que é. Acrescenta uma forma de intensidade ao viver o que é”. (p. 40-41).
A intensidade afetiva trágica
encontra seu mais claro e vigoroso registro na afirmação: a medida da vida é
viver sem medida: “viver apesar de tudo esta existência tolhida de
vicissitudes, mas que segue sendo atrativa apesar ou por causa disso” (ibid.).
O páthos trágico é o ter de jogar-se na vida como quem joga um jogo cujo
resultado já está dado e no qual tudo está irremediavelmente perdido e, apesar
disso, querê-lo jogar. Trágica é a condição humana marcada pelo desamparo, em
frente ao qual o homem realiza a sua tarefa, assume a responsabilidade de ser
livre e de dar um sentido à sua vida. Camus, em O homem revoltado, nos lembra
que a consciência de que o sofrimento e a injustiça jamais serão totalmente
eliminados faz parte da experiência trágica. O trágico também se deixa capturar
na fórmula sartreana, com a qual se afirma a contingência radical da
existência:
“todo ente nasce sem razão, se
prolonga por fraqueza e morre por acaso”.
Entre a consternação e os apelos de
consolação a um Deus abscôndito, o grande público, no entanto, vive a
“normalidade” da vida reprimindo o afeto do trágico. O trágico é o modo próprio
de constituição da condição humana. Nesse sentido, o trágico é uma categoria
filosófico-hermenêutica com a qual a existência humana se converte em objeto
para exame de uma filosofia trágica. Todo pensamento trágico quer “fazer o
trágico passar do estado inconsciente para o consciente” (Rosset). Segundo
Deleuze (2001, p. 29), “o que é trágico é a alegria”. O que Nietzsche viu e que
Deleuze soube reconhecer e admirar é que o herói trágico é alegre. O trágico
designa, para esses dois pensadores, a forma estética da alegria, que não sendo
nenhuma solução moral da dor e do sofrimento, converte todo pesar, toda
tristeza, toda infelicidade, mesmo a mais pungente e atroz, em objeto de
afirmação. Para Rosset (1989a), uma filosofia trágica afirma o caráter
originário do acaso, do acaso anterior à constituição de toda série de causas e
de toda ordem, e afirma o caráter artificial de toda existência: artificial no
sentido de que afirma a independência da existência com relação a todo
princípio natural. O pensamento trágico, segundo Rosset, afirma a fundamental
imprevisibilidade de todo ser, o acaso de toda constituição, a facticidade de
todo fato. Conforme assinala Rosset (1989b, p. 300), “aprovar a existência é
aprovar o trágico”, ao que acrescenta “ou a aprovação é trágica ou não há
aprovação”. (ibid.). Tanto em Nietzsche, como em Deleuze e Rosset, o trágico é
uma qualidade da afirmação, um elemento modal da aprovação incondicional da
existência. Mas essa afirmação incondicional não tem nada que ver com o
indiferentismo do homem comum que suporta viver desde que encontre um apoio
emocional na fé ou na esperança da vida eterna. A aprovação trágica é
implacável e dura: querer incondicionalmente esta vida sem sentido metafísico
no jogo irracional do acaso aqui e agora com a certeza de que o jogo está desde
o princípio perdido irremediavelmente para os jogadores. O homem comum jamais
chegará a endossar tal sim jubiloso e
louco, preferindo o conforto e o auxílio de suas bengalas metafísicas, os
consolos de um além-mundo imaginário. Porque viver é demasiado pesado, é
resistir a aproximar-se do abismo para evitar sofrer suas vertigens, é fugir
para bem distante do desespero paralisante e da loucura de hospício. Somos
todos loucos em alguma medida. É preciso alguma dose de loucura para viver e
suportar a vida. A filosofia vem em socorro para tornar nossa loucura
consciente de si.
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