
Pensamentos dispersos
Sobre a
crueldade do real e o morrer
“Os homens
esperam tudo do tempo, que seus ideais se cumpram no futuro, que suas
esperanças se tornem realidade e que a morte chegue “a seu tempo”.
“Que a
consciência de nossa missão derive de uma infinita comunhão com o instante, da
fúria exaltada de uma vida que se reclama plena, a despeito do nada temporal”.
“Irmãos!
Nunca perguntaram por acaso por que nossas alegrias são tão raras e tão
grandes? Nunca perguntaram por que respiramos em meio a tantos suspiros e por
que tão raramente nos sentimos estremecer de alegria? Nunca pensaram alguma vez
que o preço da alegria é a dor? Que as grandes alegrias são dores
transfiguradas?
Cioran.
A quem recorrer? Decidi não mais frequentar
consultórios de terapia psicanalítica para me curar, ou para acreditar-me
curado, mas, na verdade, sinto que não tenho feito outra coisa senão
desocupar-me de meus abismos, de minhas tendências neuróticas, de minhas
perturbações, de minhas necessidades afetivas.
Sinto que o maior dos infortúnios recaiu sobre mim, mas não posso
responsabilizar ninguém por isso, nem mesmo a Deus, que, se existisse, deveria
carregar toda a culpa pelo sofrimento injustificável que grassa no mundo. Se
Deus existisse, ao menos eu teria um adversário para combater, a quem eu poderia
culpar por toda a eternidade. Não é
tanto a crueldade do real que deve nos provocar indignação, mas sim a
impossibilidade de imputá-la a um agente responsável. Se Deus existisse, ao
menos eu poderia acusá-lo do sofrimento dos justos, do sofrimento das crianças,
mormente das que já nascem vitimadas. O que há de tormentoso na crueldade do
real é sua gratuidade. O real é cruel e não podemos fazer nada a respeito disso.
Se a existência de um número incalculável
de desgraçados pudesse ser atribuída à influência de forças demoníacas, se todo
mal que recai sobre os bons e justos pudesse ser identificado como efeito
produzido por entidades sobrenaturais maléficas, a quem pudéssemos atribuir
responsabilidade, estaríamos, ao menos, certos de que o mal e o sofrimento
podem ser racionalmente explicados. No entanto, grande parte do sofrimento que
recai sobre nós é consequência da ação de organismos patológicos destituídos de
consciência e responsabilidade, organismos que visam apenas a reproduzir cópias
de si mesmos. Eles não estão conscientes do mal que causam; na verdade, eles
sequer causam mal. Eles atuam segundo um determinismo estritamente biológico.
Uma bactéria que se hospeda em nosso corpo, causando-nos uma grave doença, só
quer reproduzir-se, manter sua sobrevivência. O mal que nos causa é um efeito
colateral. Ela não se importa conosco,
tampouco pode ser responsabilizada pelo mal que nos provoca.
Não é tanto a crueldade do real que me
dói; é o modo como as massas a ignoram tão naturalmente. Ou ainda, para ser
mais exato, o que me dói é a tendência geral destes milhares de milhões de
transeuntes que marcham em direção à morte inevitável de confortar-se em face
do caráter cruel do real agarrando-se a esperanças injustificáveis. Acho
extremamente indecoroso, ofensivo, repulsivo consolar a quem sofra pela morte
de um filho vitimado por leucemia com dizeres promitentes de um descanso num
além-mundo. Quem acredita que todo sofrimento deste mundo pode ser justificado
por uma vida eterna em outro mundo deprecia a vida atribuindo valor maior a uma
ilusão. E mais: subestima a dor de quem se encontra em tormentoso sofrimento.
Se uma mãe chora a morte de um filho, que não resistiu às longas e extenuantes
sessões de quimioterapia, devemos chorar em solidariedade a ela, se pudermos,
ou nos calar. O silêncio dá testemunho de nosso respeito e sinaliza nossa
impotência em face da dinâmica cruel da vida. Não há apelação! Não há que
tentar confortá-la com palavras vazias de qualquer significação. Não devemos
buscar atribuir significado a uma morte que, por si mesma, repele toda
tentativa de ser significada. A insignificância de um ser humano em face da
imensidão do universo pode ser medida se nos pormos a pensar que um ínfimo
mosquito hospedeiro de um vírus é suficiente para levar à morte uma pessoa. Eis o que a maioria das pessoas se nega a
admitir: que todo sofrimento é despropositado, é sem sentido. Que sofrer é
parte inerente da dinâmica da existência, ela mesma também desprovida de
qualquer sentido. “Embora para mim a vida seja um suplício, não acredito no
caráter absoluto dos valores transvitais pelos quais me sacrificaria.” – escreveu
Cioran. Todos os valores transvitais a que nos agarramos são ficções produzidas
por nós mesmos a fim de tornar a crueldade do real suportável. Tenho pena das
pessoas que se negam a acolher esses pensamentos que articulo nesta página.
Cuido-as escravas de suas próprias crenças que não podem ser justificadas, sem
apelar para o desejo. Assim, a maioria dos homens e mulheres crê que haja um
Deus pelo simples fato de que deseja que haja um Deus. Ninguém pode apresentar
uma justificativa razoável para tal crença. É claro que muitas pessoas buscam
justificar essa crença apelando para experiências pessoais, para suposições
igualmente injustificáveis. Não estou justificado para concluir do fato de que
uma criança se curou de um câncer (o filho de minha amiga, por exemplo) que
Deus existe, já que a constatação de que outras crianças não conseguem se curar
parece sinalizar que fatores biológicos envolvidos são os melhores candidatos
para a explicação do porquê de uma criança alcançar a cura e outra não. Se
mantivermos a crença de que Deus existe porque uma criança se curou do câncer, então
deveremos buscar uma explicação sobre a razão por que Deus não concedeu a cura
a outra criança. A ausência de uma explicação satisfatória para a negligência
de Deus, ou mesmo a impossibilidade de fornecer uma explicação para o caso, torna
a crença em Deus absurda. Se ela, no entanto, persiste no modo como as pessoas
buscam interpretar os acontecimentos do mundo, é porque elas temem o desespero
total que lhes provocaria a admissão da irracionalidade da vida, o
reconhecimento de que tudo é tão inexplicável que nosso apego à vida é
simplesmente irracional. Não podemos saber por que vivemos e por que não
cessamos de viver? Por que continuar vivendo em vez de suicidar-se? Se tudo é
insignificante, se o caráter deveniente da vida é impiedoso, é cruel, se os
justos e os bons não são poupados da positividade da dor, se a infelicidade é a
condição mais bem distribuída no mundo, por que razão prolongar uma existência
que se demonstra de ponta a ponta contingente e absurda?
§§
“Após
a morte, serás o que foste antes de nascer”.
“Certamente,
a morte deve ser vista como o verdadeiro objetivo da vida: no momento em que se
dá, é decidido tudo aquilo que fora apenas preparado e introduzido ao longo de
todo o curso da vida”.
Schopenhauer
“O nada é primordial (por
isso, no fundo, tudo é nada); o Eros se faz, a consciência é derivada”.
Cioran
Em breve, a morte irá me
solicitar; ela é o guia desconhecido que me trouxe para a vida” – escreveu Schopenhauer.
De acordo com essa perspectiva, a morte não é mais do que o retorno a um estado
originário, qual seja, o estado inorgânico. Freud, ao teorizar sobre a pulsão,
fez notar que ela, como impulso inerente ao organismo, tende a restituir um
estado anterior que o organismo se viu obrigado a abandonar por influência de
forças externas. Toda vida tende primordialmente para a morte ou para o estado
inorgânico, estado este originário, pois que “os seres inanimados existiam
antes que existissem os viventes”. Assim, afinado com uma longa linhagem de
pensadores, da qual se destacam Schopenhauer e Nietzsche, Freud argumenta que o
acontecimento da vida é atravessado radicalmente pelo combate indefinido,
contínuo, perpétuo entre a pulsão de vida
e a pulsão de morte., de modo que a
morte não é um acontecimento que, por assim dizer, nos atinge “de fora”, nos
toma de assalto como um estrangeiro que vem nos roubar nossos bens, mas é uma
tendência inerente à dinâmica agonística do viver. O tecido vital é marcado
pelo conflito entre vida e morte, entre as forças de preservação da vida e as
forças de destruição da vida, de tal sorte que estar vivo é já estar na morte,
ou no jogo perpétuo e conflitivo de vida e morte. Eros e Tânatos não podem ser
pensados separadamente: um luta contra o outro, destroem-se, mas também
co-operam um com o outro na repetição e na diferença. O curso do mundo, já
notara Empédocles, é marcado pela luta sem trégua entre concórdia e discórdia,
ódio e amor, numa dinâmica em que vida e morte se incluem e se separam
incessantemente.
Ainda não conheci uma
mulher (com quem pudesse conviver movido por uma conformidade entre modos de
ser) que, assumindo as consequências dessa compreensão da vida, vivesse sua
própria vida em conformidade com ela. Que alegria seria encontrá-la! Em geral,
as pessoas são covardes. Vivem inconscientemente como se não fossem morrer. Não
assumem as consequências do que significa ser verdadeiramente um
ser-para-a-morte. Acreditam que as coisas se arranjarão favoravelmente no tempo
que lhes será conveniente. Creem na Providência, creem que não morrerão
enquanto não realizarem seus projetos. Creem que a felicidade é um bem a que
terão acesso por direito; creem na implicação mútua entre bondade e felicidade
(porque são boas serão felizes, são felizes porque são boas; nada mais
platônico, nada mais cristão, nada mais contrário à dinâmica cruel do real). Raramente
meditam sobre a inevitabilidade da própria morte que as acompanham desde que
nascem. Que a vida não passe de um breve sonho é no que não querem pensar. Que
tudo que tenham vivido não passe de uma irrealidade é o que lhes sugere ao
íntimo o pensamento sobre sua finitude . Pois, se a morte é retornar ao nada,
estar morto é como não ter nunca vivido. O morto não tem memória, não tem
sentimentos, não tem consciência. É nulidade total. Se a nulidade total é nosso
destino, sem apelação, viver é uma experiência de desespero radical que o amor
– e somente ele e a despeito de seu caráter frágil e perturbador - deve tornar
suportável. Ser-para-a-morte é constitutivo de nosso modo de ser enquanto
humanos. Porque somos seres-para-a-morte, flertamos, todos os dias, com a
possibilidade do “nunca mais”. A questão mais perturbadora não é então por que
devemos morrer (porque, afinal, o resultado da vida é a morte); a questão mais
perturbadora é: se a vida é uma experiência destinada a dar errado, a ser
interrompida a qualquer momento, o que nos motiva a amarrar os sapatos todos os
dias, pegar ônibus, ir para o trabalho, estudar para aquela prova, frequentar salas
de aula de filosofia, etc.?
O pensamento sobre a
morte é, na verdade, um pensamento que se orienta para a questão do bem viver.
Pensar cotidianamente sobre a própria morte é pensar sobre como bem viver a
própria vida. Desde que nascemos, já estamos morrendo, porque a morte, escreve
Schopenhauer, “é a inutilização gradual de todas as partes do organismo, com
sofrimento crescente, até a sua destruição completa.”
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