
O trágico como anticonceito filosófico
Prelúdios de uma sabedoria
trágica
Explicar,
do latim explicare (‘tornar
inteligível’, ‘interpretar’, ‘justificar’) – esta é a tarefa a que me devoto
com o intento de oferecer-me não só a oportunidade de alguma fruição de prazer
mais gratificante, porque prolongado, como também reanimar o diálogo,
prematuramente interrompido, com um colega que, tanto quanto eu, aprecia o
curso criativo das conversações filosóficas. É imprescindível dizer que este meu texto não
pretende ser expressão de qualquer ensinamento. Cuido-me capaz de ensinar
alguma coisa apenas na área do conhecimento em que me especializei e em que,
portanto, obtive uma competência satisfatória. Não obstante, nesse domínio,
estou continuamente aprendendo, visto que, no exercício do ensino, há sempre
aprendizagem. Segue-se daí que ensinar é aprender não só o conteúdo ensinável,
mas também aprender a ensinar o que é passível de ser ensinado.
Estando
claro que nada posso ensinar, no domínio da filosofia (sobretudo, porque a
filosofia não é ensinável), espero, portanto, que meu principal interlocutor,
ao dar-se o trabalho de ler este texto, tome-o como um espaço necessariamente
dialógico. Com a produção deste texto, ao longo da qual pretendo explicar minha escolha filosófica – meu modo de viver – espero descerrar um
horizonte à luz do qual diálogos ulteriores possam ser possíveis e fecundos.
O
momento em que se deu o estancamento do fio dialógico que dava consistência ao
intercurso de nossas reflexões foi justamente o momento em que meu interlocutor
rejeitou o caráter trágico da existência. A conversa foi entabulada com o meu
interesse de consultar meu interlocutor sobre o proveito do exercício
filosófico. Toda resposta que se elabore na tentativa de demonstrar que há
algum valor neste exercício, ou que dele se pode extrair um proveito que não
encontra par em qualquer outra forma de reflexão/ atividade pressupõe uma
concepção do que é filosofia. A questão “o que é filosofia” é ela mesma problematizada
pela própria filosofia; e são inúmeras as respostas oferecidas a ela. E todo
aquele que se aproxima da filosofia, que a ela dedica seu tempo e sua atenção,
terá, mais cedo ou mais tarde, de prestar esclarecimentos sobre o que entende
por filosofia. Quero dizer que o exercício filosófico começa por uma
compreensão das respostas oferecidas pela tradição à questão “o que é
filosofia” num processo que envolve discussão das respostas e adoção por parte
do iniciado na filosofia de uma concepção de filosofia (que não significa,
necessariamente, mera apropriação) com base na qual uma forma de elaboração de
pensamento filosófico que lhe seja própria possa ser trazida à luz.
Parece-me
que é parte da maturidade filosófica de quem exercita a filosofia e se exercita,
enquanto existente, na filosofia, a escolha de uma orientação filosófica que
melhor testemunhará seu modo de viver. O filósofo não é apenas aquele que pensa
e constrói sistemas; mas é, em essência, aquele que sabe viver e morrer em
consonância com o seu sistema. Por conseguinte, o exercício da reflexão
filosófica, a atividade própria do filósofo, se caracteriza, fundamentalmente,
por uma perfeita harmonia entre o seu sistema de ideias e seu sistema de vida.
Para os antigos, a filosofia é um modo de ser, uma escolha de vida.
Originalmente, portanto, a filosofia é uma prática de vida destinada a cunhar
modos de ser. Aos colegas que junto a mim se dedicam ao estudo acadêmico da
filosofia, faço, pois, um apelo para que não se esqueçam jamais do vínculo
necessário entre filosofia e modo de viver, para que, atendendo à recomendação
de Aristóteles, experienciem a atividade filosófica como um exercício que se
deve estender por toda a vida. Apelo, finalmente, para que não duvidem, por um
instante sequer, de que a prática da filosofia visa à transformação radical do
eu de quem a ela se dedica; no exercício filosófico, não só nossa visão de
mundo se transforma, mas também é nossa personalidade que se metamorfoseia.
Evidentemente,
a escolha a que não se deve esquivar aquele que pretende viver uma vida
filosófica não é possível senão depois do contato com certo conjunto de
orientações filosóficas. O contato com essas diversas orientações filosóficas é
parte do estudo acadêmico da filosofia. Os estudantes de filosofia só poderão
(talvez a maioria) escolher a orientação que melhor expressa uma coerência com
seu modo de viver após ter entrado em contato com as diversas orientações
filosóficas ao longo do curso de filosofia. Não só após o contato com elas;
mas, sobretudo, após o convívio aturado com elas fora da sala de aula.
A
escolha de uma orientação filosófica por quem se dedica ao exercício da
filosofia constitui uma questão cujos desdobramentos interessam à própria
filosofia. Sua pertinência deverá ficar aqui, no entanto, apenas sugerida e
ensombrecida, porquanto não é sobre ela que estendo minha preocupação neste
texto. Malgrado a necessidade de abandonar a questão, neste estágio de minhas
reflexões, não posso silenciar sobre o fato de que meu encontro com a filosofia, que se
deu há dez anos, quando do ingresso no mestrado em Estudos da Linguagem na
Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio), foi e continua sendo profundamente
marcado pelo lugar de tangência entre a filosofia trágica e a filosofia
pessimista.
No esforço por
reinstituir um espaço dialógico com meu interlocutor, devo preveni-lo de que a
exposição que faço do tema do trágico como elemento caracterizador de
uma orientação filosófica, denominada de filosofia trágica se
desenvolverá não sem fraturas no tratamento das questões implicadas na
compreensão da filosofia trágica. Ademais, a cada vez em que dou um
investimento verbal à abordagem do tema, instauram-se, por força da natureza da
linguagem, espaços de silenciamentos. Tal é a condição fundante da própria
possibilidade de haver sentidos. Por maior que seja a extensão de um texto, por
mais exaustivo que seja o tratamento dispensado a um objeto de pensamento,
jamais é possível esgotar as possibilidades de dizer, de significar, de
produzir sentidos. Será forçoso esclarecer a questão da significatividade do
silêncio, por ora, apenas entrevista ao me referir à condição fundante da
possibilidade de sentidos. O tema as formas do silêncio é desenvolvido no interior dos estudos da Análise
do Discurso pela analista do discurso brasileira Eni Pucinelli Orlandi. Não
obstante a limitação ao domínio do discurso, o modo como o tema se desenvolve
mobiliza um exercício de pensamento claramente filosófico. Não reside nisso,
contudo, o meu interesse por considerá-lo; se o faço, é porque pretendo
demonstrar quão ilusória a crença em que, ao dizer, esgotamos as possibilidades
de outros dizeres, de outros sentidos. Terminada esta etapa de minha exposição,
atacarei o problema que consiste em precisar o que se entende por trágico
quando se defende, filosoficamente, a posição segundo a qual a condição de todo
ente, particularmente e de modo especial, do ente humano é uma condição trágica. A discussão desse problema
envolverá a necessidade de definir a extensão semântica da palavra trágico e a de esclarecer o que faz de
um pensamento filosófico um pensamento trágico. Creio em que a suspensão do
diálogo com meu colega e interlocutor se deveu menos ao fato de ele ter
rejeitado ser a existência constitutivamente trágica do que à suposição nossa
de que estávamos de acordo no tocante ao significado da palavra trágico no contexto de nosso diálogo.
Não só ele parecia assumir, de antemão, o conteúdo semântico de trágico, como também eu não dispunha das
condições necessárias para iluminá-lo, para o que seria indispensável fazer
alguma digressão que, possivelmente, nos distanciaria do escopo de nossas
reflexões. Numa conversa informal, tal digressão não teria como consequência
senão estorvar os próprios participantes.
1. As formas do silêncio
Todo
dizer é expressão de uma relação necessária com o não-dizer. Há uma dimensão de
silêncio que remete ao caráter da incompletude
da linguagem. A incompletude da linguagem se prende ao reconhecimento:
a)
da errância dos sentidos (a sua migração);
b)
da vontade de um (da unidade, do sentido fixo); do lugar do non sense, o equívoco.
A
incompletude da linguagem é o lugar
dos muitos sentidos, do fugaz, do não-apreensível. Portanto, a errância dos
sentidos, a vontade de unidade, do sentido fixo, o lugar do non sense, o equívoco e a própria
incompletude da linguagem (para a qual voltarei olhares mais adiante, a fim
defini-la melhor) estão no cerne do funcionamento da linguagem.
Em
seu As formas do silêncio (2007),
Orlandi escreve: “As palavras transpiram silêncio” (p. 12). Há, pois, silêncio
nas palavras. O silêncio é fundante: ele funda a possibilidade de sentido. O
silêncio é um lugar de recuo onde se pode significar, a partir do qual o
sentido faz sentido. Novamente, ouçamos Orlandi:
“O silêncio como horizonte, como imanência do sentido (...)
aponta-nos que o fora da linguagem não é o nada mas ainda sentido” (p. 13).
O
silêncio, pensado em sua historicidade constitutiva, não é ausência de som, mas
é um acontecimento que atravessa as palavras, que existe entre elas, que indica
que o sentido pode ser sempre outro. As palavras produzem silêncio; o silêncio
“fala”; as palavras silenciam (p. 14).
O
silêncio garante o movimento de sentidos. Dizemos sempre a partir do silêncio.
Cada palavra enunciada “apaga” necessariamente outras palavras. Isso se dá
porque o silêncio também é constitutivo do dizer. Assim, observa Orlandi
“O homem está “condenado” a significar. Com ou sem palavras,
diante do mundo, há uma injunção à interpretação: tudo tem de fazer sentido
(qualquer que ele seja). O homem está irremediavelmente constituído pela sua
relação com o simbólico” (p. 29-30).
Portanto,
o silêncio não é falta. A linguagem é excesso. O silêncio não fala
simplesmente; ele significa. No silêncio, o sentido é. (p. 32).
“A linguagem é conjunção significante da existência e é
produzida pelo homem para domesticar a significação” (ib.id.).
O
silêncio é disperso, e a fala o segmenta, o estrutura. O silêncio é o que torna
possível a significação, todo dizer. O silêncio é presença, é “o elemento
místico” (Wittgenstein). O sentido do silêncio não deriva do sentido das
palavras. Nem o sentido, nem a linguagem são transparentes.
Não
se pode não significar. O silêncio se relaciona, necessariamente, com a
significação, e a linguagem é o movimento incessante das palavras para o
silêncio e do silêncio para as palavras. É necessário insistir em que as
palavras estão carregadas de silêncio. Por um lado, não podemos suprimir das
palavras o silêncio; por outro lado, não podemos recuperar o silêncio só pela
verbalização.
Por
fim, retomando-se a noção de incompletude
da linguagem, reitere-se que a incompletude é uma característica
fundamental da linguagem. O fenômeno da incompletude da linguagem recobre a) o fato de serem diversas as formas de
manifestação da linguagem; b) o fato de que o sentido está sempre em aberto; c)
o fato de que o texto é multifuncional enquanto objeto simbólico. A
incompletude repousa no fato de que o dizer é aberto. A crença numa “palavra
final” é efeito de uma ilusão. O dizer não tem um início verificável; e o
sentido toma múltiplas direções; está sempre em curso. A incompletude da
linguagem decorre, portanto, do fato de que a própria linguagem é categorização
dos sentidos do silêncio; é um modo de domesticá-los.
A
linguagem também é opaca. A opacidade da linguagem se explica pelo fato de que
o sentido não existe em si mesmo, não se acha nas palavras, mas é sempre um
efeito da interatividade do discurso no qual intervêm, necessariamente, gestos
de interpretação. Não há sentido sem interpretação. A opacidade ou
não-transparência da linguagem consiste também na propriedade de o sentido
poder ser sempre outro.
Tendo
em vista o exposto, ao procurar aqui dizer o trágico jamais posso ter a
pretensão de dizer tudo. Ademais, estando eu preocupado tão-só em fixar-lhe um horizonte semântico
mais preciso, a consideração que dele farei será marcada por fraturas, por
rupturas, por saltos que se evitariam num tratamento que se pretendesse minucioso
e articulado.
2. O filósofo trágico não é um
pessimista
Filósofos
como Lucrécio, Montaigne, Pascal e Nietzsche são reconhecidos como filósofos trágicos. A primeira questão
que se nos apresenta ao sugerir a possibilidade de uma filosofia trágica consiste em definir o que significa tragédia. Sabe-se que tragédia é um gênero de expressão
artística, particularmente marcante na história do teatro. No domínio da arte,
a tragédia, segundo alguns teóricos, não recobre apenas adversidades,
sofrimentos, iniqüidades, mas, principalmente, uma corajosa resistência ao
destino. A tragédia deve, pois, expressar a reação a um evento, e não apenas o
evento fatídico em si. Para alguns teóricos, a tragédia começa com a arte, que
a vida imita. Com o tempo, o significado da tragédia foi estendido do domínio
da arte para a vida, restando aqui um eco da arte, o qual foi silenciado quando
a tragédia passou a caracterizar o modo de configuração da própria vida.
Atualmente, para a maioria das pessoas, tragédia significa uma ocorrência da
vida, caracterizada por dor, sofrimento, infelicidade injustificáveis. Isso, no
entanto, não impede vários teóricos de argumentar que, na vida real, não existe
tragédia, com base no pressuposto, deveras criticável, segundo o qual, na
tragédia, enquanto manifestação artística, é sempre possível revelar o valor
que a destruição libera. Segunda essa perspectiva, o sofrimento da vida real é
passivo, horrível e indigno; ao contrário, na arte trágica, o sofrimento traz o
selo do esplendor heróico da resistência, razão por que a arte é dotada de uma
gratificação que falta à vida. Essa perspectiva buscará nos convencer, por
exemplo, de que o Holocausto não foi uma tragédia, mas a morte da tragédia. No
entanto, assentada na crença de que a tragédia se define por uma resistência
heróica às condições adversas, essa perspectiva trai a si mesma, no momento em
que não reconhece o fato de que houve uma heróica resistência de alguns judeus
ao nazismo; além disso, certamente, muitas pessoas lutam bravamente contra
enchentes, doenças, invalidez, genocídio, etc.
Não
se pode ignorar o fato de que, a despeito da discrepância entre a tragédia como
arte e a tragédia como modo de configuração da vida, grande parte das obras de
arte trágica se construiu por meio da suposição segundo a qual a tragédia
parece ser uma experiência real e não meramente um fenômeno estético.
Também
não devemos perder de vista o fato de que a tragédia, de Hegel a Nietzsche,
migrou para a especulação teórica. Desde então, a tragédia passou a ser uma
Ideia majestosa, uma forma de contrailuminismo, uma teodiceia, mais do que uma
questão de suplicio e aflição.
Na
visão trágica de Nietzsche, por exemplo, o mundo é, essencialmente, caótico,
ilegível, e o conhecimento trágico necessita da arte para tornar tolerável a
própria existência. Esse conhecimento trágico supõe a percepção de que o mundo
é desprovido de significado. No respeitante a Pascal, sua crítica ao
racionalismo não é uma crítica à razão. Pascal não estava preocupado em
denunciar os limites da razão. Na verdade, a crítica ao racionalismo levada a
efeito por ele se orientou pelo interesse de fazer ver que o racionalismo deve
sua impotência àquilo que se oferece à razão. O que se oferece à razão é, nota
Pascal, irremediavelmente indiferente. Não se trata, portanto, para Pascal, de
denunciar uma suposta fraqueza da razão, mas de demonstrar que o objeto da
razão não é cognoscível. A razão, assim, está apta a conhecer, mas não se lhe
apresenta nada para conhecer. A razão não pode pensar como uma natureza a
existência, porque esta é uma não-natureza. Natureza
aqui designa a constituição do ser cuja existência não resulta nem do acaso,
nem da vontade humana. Natureza supõe uma totalidade ordenada. Pascal nega que
haja tal totalidade ordenada; para ele, a existência não abriga qualquer razão
oculta (lógos), nenhuma estrutura
secreta, nenhum princípio do diverso inacessível ao conhecimento humano, em
virtude de supostos limites da razão. À luz de tal perspectiva, nem as
“verdades” nem os “erros” conduzem a alguma grande consequência filosófica. No
tangente às primeiras, elas só acrescentam fatos a fatos; os erros, por sua
vez, não estorvam nenhuma verdade. No seu livro Lógica do pior (1989), assinala Rosset:
“Se se busca o que resta de trágico nos cem mil mortos de
Hiroxima após a intervenção da interpretação histórica, sociológica, política,
militar, que resta? Cem mil mortos, ou seja, um morto como todos os mortos,
algo de banal, de cotidiano, de silencioso, enfim, de trágico – desse trágico
ao qual o espetáculo das maçãs no jardim convida já, de maneira mais imediata e
simples. A morte em si mesma não é a
priori trágica: não mais, em todo caso, do que a vida nem do que quer que
seja, desde que esse algo resista à interpretação” (p. 65-66).
Esse
trecho deve nos levar à compreensão de que o trágico está, por um lado, em toda
parte, impregna a cotidianidade; e, por outro lado, é o próprio silêncio, ou
seja, resiste a qualquer tentativa de interpretação. Ao se passar do silêncio
para o pensamento do trágico, faz-se falar o trágico pela impossibilidade de
interpretá-lo.
Considere-se
a asserção que constitui o título desta seção: o filósofo trágico não é um pessimista. É necessário reconhecer duas diferenças
básicas entre uma filosofia trágica e uma filosofia pessimista. A primeira
diferença diz respeito à suposição de que há “algo” (uma natureza ou o ser). O
pessimista supõe que existe algo do qual afirma o caráter insatisfatório. O
pessimismo filosófico baseia-se na afirmação do pior, a partir da suposição de
uma certa ordem (natureza), de um certo sentido, cujo caráter incoerente não
cessa de demonstrar. Para o filósofo pessimista, há uma totalidade ordenada que
não pode ser legitimada. Há ordem, mas não há um “ordenador”. Donde se segue
que a filosofia do “dado” (a filosofia pessimista) culmina com uma filosofia do
absurdo.
Sabe-se
que Schopenhauer, sendo um expoente da filosofia pessimista, procurou pensar o
mundo por meio da postulação de um “dado”, que chamou de Vontade – uma Vontade cega, ilusória, repetindo-se mecanicamente.
Embora desprovida de propósito, a Vontade permite superar o caos do mundo, a
fim de lhe revelar sua ordem. Isso significa afastar do horizonte hermenêutico
da filosofia pessimista o princípio do acaso.
O
pensamento trágico, por sua vez,
mantém que o que existe carece de “natureza”, de “ordem”, não é nem ser, nem
objeto adequado de pensamento. Na filosofia trágica, não há a condição de
possibilidade dos acontecimentos. Só há encontros, ocasiões, que não pressupõem
jamais o recurso a qualquer princípio que transcende as perspectivas trágicas
da inércia e do acaso. Por conseguinte, a filosofia do trágico é uma filosofia
do acaso. O pensamento trágico afirma a insignificância radical de tudo que
acontece. Aliás, o pensamento de Pascal, se examinado até as últimas
consequências nos levará a uma verdade que se impõe irrecusável – “não sou um
ser necessário”. Dizer que não sou um ser necessário significa reconhecer que
eu, enquanto existente, poderia nunca ter existido. Em outras palavras, a minha
existência não tem uma necessidade que me impede de sentir que eu poderia não
ter existido. Não sou um ser necessário afirma correlativamente sou um ser
contingente.
Cumpre
ainda dizer – e, fazendo-o, silencio muita coisa -, que o pensamento trágico é
aprobatório, embora não deixe de considerar o seu contrário, que é o suicídio.
Aqui está a segunda diferença entre o pensamento trágico e o pensamento
pessimista: o pensamento trágico assente à existência; o pessimista, por outro
lado, reconhecendo que a ordenação do mundo é má, não pode aprovar a existência.
A
aprovação é o único ato disponível ao sujeito da ação, isto é, ao homem. Ou ele
se solidariza com a sua viagem à semelhança de um passageiro de avião de uma
grande empresa aérea, que não tem acesso aos comandos da direção (Pascal), ou a
recusa pelo suicídio. No pensamento trágico, a aprovação é um privilégio
justamente por seu caráter incompreensível e injustificável. O homem não carece
de nada; e toda a alegria de viver é irracional. Essa alegria é experienciada
no cotidiano sem que seja possível justificá-la. O homem é excesso; por isso o
espanto do filósofo trágico: seu
maravilhamento na alegria e na dor.
Não
se deve estabelecer uma distinção absoluta entre o pensamento trágico e o
pensamento pessimista, se consideramos que tanto o primeiro quanto o segundo são
duas lógicas do pior. Mas a lógica do pior de que é expressão o pensamento
pessimista não tem relação com o pior da lógica trágica. No pensamento trágico,
afirma-se a impossibilidade de um dado enquanto natureza constituída; no pensamento
pessimista, há uma ordem já dada, reconhecida.
A
título de conclusão, sem pressupor, no entanto, que esteja suficientemente
esclarecida a significatividade da visão trágica da existência, insisto em que
a verdade a que nos quer conduzir o pensamento trágico consiste em ver o mundo
como obra do acaso ou do destino. Sendo obra do acaso, o mundo carece de uma
natureza, isto é, de um princípio estruturador, ordenador, e a vida não é mais
que um derivado, entre outros, da realidade fundamental da morte. É oportuno
tornar clara uma relação que, embora aparentemente inusitada, elucida o
horizonte a partir do qual o “drama ontológico” revelado pelo pensamento
trágico é constitutivo da ideia de trágico. Trata-se de evidenciar a relação
entre a festa e o trágico.
Em
certo sentido, a relação entre a festa e o trágico pode ser estabelecida pelo
fato de o pensamento trágico ser uma experiência filosófica de aprovação em
função de uma busca do pior. Ademais,
essa relação se torna possível quando levamos em conta o acaso como regra de
exceção e princípio da festa (Rosset, 1989, p. 129). Já no sentido que toca à
constituição da própria lógica do pior, de que é expressão o pensamento trágico,
a relação entre o trágico e a festa pode ser estabelecida se compreendemos que,
sendo o mundo obra do acaso, se, por isso mesmo, o mundo carece de uma
“natureza” (ou ser, essência), resta-nos senão viver num estado de indiferença
em relação a tudo o que acontece e existe. Essa indiferença, contudo, não é a
indiferença do tédio, estado em que esperamos o acaso com certeza, mas a
indiferença que consiste em nada esperar, já que tudo é acaso. Indiferença da
festa, portanto – se tudo é acaso, o mundo é uma festa. O mundo da festa é o
mundo da exceção (ausência de regras ontologicamente fixadas). Nele, o acaso
sobrevém sempre. Nele, o que acontece, o que existe apresenta as
características da festa: irrupções inesperadas, excepcionais, irreproduzíveis;
ocasiões que se apresentam uma única vez, num lugar e para uma pessoa.
Ensinamento trágico: teoria do kairós
(o tempo oportuno). Tudo que acontece deve ser apreendido no único momento
possível. Cada instante vivido tem as características do jogo, da festa, do
júbilo.
O
pensamento trágico, como vimos, rejeitando a ideia de natureza, afirma ser o
mundo obra do acaso. O acaso que tem em vista o pensamento trágico é o acaso original ou constituinte. O acaso é original porque recusa a ideia de natureza
na origem de sua possibilidade, isto é, nesse caso, recusa a existência de uma
natureza, a saber, uma totalidade ordenada, da qual irromperia, num tempo e
lugar determinados, o acaso; ele é constituinte, porque é origem produtora de
tudo que pode acontecer e que se reconhece sob o nome de natureza. O acaso
original, portanto, é anterior a todas as formas de existência e impregna todo
o modo de configuração vital.
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