
A questão da
moral
Por que Deus não pode servir de fundamento
para a moral?
O subtítulo deste texto introduz a questão central que será discutida: por que Deus não pode servir de fundamento
para a moral? A forma em que ela se apresenta marca o pressuposto com base
no qual se orientará toda a minha argumentação: Deus não pode servir para fundamentar a moral.
Antes de atacar essa questão, será
necessário definir alguns conceitos que estão, necessariamente, implicados no
tratamento do tema deste texto. Considerem-se, portanto, os conceitos de fundamento, moral, cultura e domínio objetivo. Passo, então, a
defini-los a seguir:
a) Fundamento
Segundo Japiassú & Marcondes
(2008), fundamento é “aquilo que fornece a alguma coisa sua razão de ser
ou que confere a uma ordem de conhecimento uma garantia de valor e uma
justificativa racional” (p. 118).
O problema da fundamentação dos
valores morais diz respeito, portanto, à busca por determinar uma base de
justificação racional para a existência de tais valores. O problema consiste,
então, em determinar, em última instância, a sua origem, a qual é entendida
como critério seguro para distinguir entre o certo e o errado. Há diversas
teorias morais, muito embora, neste texto, me proponha delinear duas apenas: a teoria moral cristã e a teoria moral kantiana.
No mundo moderno, da discussão sobre a
fundamentação da moral, que é uma questão especialmente filosófica, tomam parte
também ciências como a biologia e a psicologia evolucionistas, que, em linhas
gerais, assumirão que há fundamentos naturais e neurobiológicos que justificam
a conduta humana e que, portanto, explicam o surgimento do comportamento moral
nos seres humanos. Dados os limites desta exposição, não contemplarei a
contribuição dos estudos de vertente evolucionista para a compreensão das bases
do comportamento moral humano. Não obstante, os refiro, de passagem, a fim de
lembrar que a discussão sobre a possibilidade mesma de fundamentar os valores
morais não se circunscreve à oposição entre os que apelam a uma heteronomia
transcendente (Deus) e os que advogam a relatividade dos valores morais à
sociedade ou à cultura.
Eu assumirei que os valores morais ou
a moral é uma construção cultural, que o que se entende por normalidade é culturalmente
definido e que, portanto, a moral difere de uma sociedade para outra. Assim, a
moral é resultado de hábitos sociais instituídos e aprovados historicamente,
conquanto, ao endossar essa posição, eu não pretenda rejeitar a hipótese da
existência de uma base intercultural comum que refletiria a universalidade de
aspectos neurobiológicos e/ou naturais à luz dos quais se pode explicar o
comportamento moral.
b) Moral
A moral compreende um conjunto de
normas que definem ideias fundamentais sobre o que é considerado certo e
errado, louvável ou repugnante, numa dada sociedade. As normais morais ou mores regulam o comportamento humano e
servem de fonte de coesão social.
Fazem parte do escopo da moral normas
que proíbem o incesto (proibição esta universal), o assassinato, a traição, o
abandono das obrigações familiares, a profanação de símbolos religiosos e
civis, etc. Os mores assumem, dada a sua importância, a forma de leis que
implicam sanções, tais como prisão, exílio, ostracismo e execução.
Dentre as características básicas da
moral, destaca-se o fato de suas normas serem vivenciadas como sagradas, ou
seja, como provindas de uma heteronomia transcendente. Do ponto de vista
sociológico, as normas morais são consideradas mutáveis e inerentes à vida
social.
c) Cultura
Entendo por cultura o domínio fundamentalmente simbólico que marca a
descontinuidade do homem em relação à natureza. Ela se constitui de sistemas
mais ou menos coerentes de pensar, agir, fazer, relacionar-se, posicionar-se em
face do Absoluto e reproduzir-se. A cultura constitui o modo próprio de ser do
homem. Ela é responsável não só por ordenar o pensar, o agir, as formas de os
seres humanos se relacionarem entre si e com o entorno biofísico, como também
por fornecer os valores que servem para dar coerência a essa totalidade de
vivências e para justificá-la.
d) Domínio objetivo
O que queremos dizer quando nos
referimos a valores morais objetivos?
O que o adjetivo objetivo significa
nesse sintagma? Objetivo é tudo
aquilo que existe independentemente do pensamento e que possui uma realidade
autônoma no mundo externo. Tudo que dizemos pertencer à esfera da realidade
objetiva (em oposição à realidade subjetiva) se nos apresenta como coisas
independentes de nós, coisas que existem e se põem no exterior de nossa
consciência como dados do mundo cuja existência nos limitamos, em geral, a
constatar. Se dizemos, habitualmente, portanto, que há valores morais
objetivos, queremos com isso dizer que tais valores existem independentemente
das práticas humanas e que eles se impõem à consciência humana como dados por
uma heteronomia (que um dos dois braços que formam a cultura ocidental – a
tradição judaico-cristã - identificou com Deus).
Como eu esteja entendendo os valores
como instituição social, faz-se mister destinar uma seção para o esclarecimento
da noção de instituição.
1. A instituição
1.2. A sociedade como realidade objetiva
Em A construção social da realidade (2007), Berger &
Luckmann introduzem o tema das origens da institucionalização, dando-nos a
conhecer a diferença existente entre os modos de o homem e de os animais
não-humanos se relacionarem com o ambiente em que vivem. Os animais não-humanos
mantêm relações biologicamente fixas com o ambiente. Eles vivem, quer como
indivíduos, quer como espécies, em mundos fechados, de tal modo que a
organização de seus mundos é predeterminada pelo equipamento biológico inato
presente nas diferentes espécies. O organismo deles é uma extensão do ambiente
natural.
Não se negando a dimensão natural ou biológica do ser humano, a
relação do homem com o ambiente deve ser entendida tendo em conta a tensão
entre dois fatos relacionados à existência consciente do homem: o homem é um corpo (como o é qualquer
animal), mas também tem um corpo, o que sugere que, no
homem, não se identificam totalmente o ser e o corpo. O homem experimenta a si
mesmo como um ente que não se identifica inteiramente ou não se confunde com o
seu corpo; para o homem, o corpo serve à guisa de um instrumento para atuar no
mundo. Nas palavras de Berger & Luckmann,
“(...) a experiência que o
homem tem de si mesmo oscila sempre num equilíbrio entre ser um corpo e ter um
corpo, equilíbrio que tem de ser corrigido de vez em quando (...)”.
(p. 74)
Não se pode ignorar, evidentemente, as consequências para a
compreensão do comportamento humano no ambiente material e para a compreensão
de atividades de produção de significados subjetivos, quando se considera essa
especificidade da experiência que o ser humano tem de seu próprio corpo. Entre
essas consequências, destaquem-se as seguintes: 1) a autoprodução do homem
é sempre uma atividade que se faz com outros, é sempre, portanto, uma atividade
social; 2) os seres humanos produzem um ambiente humano em conjunto, em
interação com outros seres humanos; 3) essa produção do ambiente humano não se
dá sem uma totalidade de formações socioculturais e psicológicas de que os
homens tomam parte; 4) quando se lançam olhares sobre os fenômenos humanos,
claro fica que se está diante de um reino social; 5) humanidade e sociabilidade
estão intrinsecamente relacionados.
O ambiente social fabricado pelo homem supõe uma ordem, uma
direção e uma estabilidade. Donde a questão, com Berger & Luckmann (p. 75): como se explica essa
estabilidade da ordem humana?
Berger & Luckmann se propõem a responder a essa questão
chamando a atenção para a precedência da ordem social ao desenvolvimento
individual do organismo. Embora a capacidade para abrir-se para o mundo, para
exteriorizar-se nesse mundo, seja inerente à constituição biológica do homem, a
ordem social é que se apropria previamente dessa capacidade e a direciona ou a
transforma. A ordem social converte essa capacidade de abertura ao mundo,
biologicamente determinada no homem, em um relativo fechamento ao mundo. É
assim que a ordem social consegue assegurar a estabilidade e a direção para a
conduta humana (Berger & Luckmann, p. 76).
Escusa dizer que a ordem social não é determinada
biologicamente, nem redunda de quaisquer elementos naturais. A ordem social não
faz parte da natureza das coisas, não se apresenta como se fosse produto do
ambiente natural do homem, muito embora haja fatores naturais que influenciam a
forma da ordem social. Mas essa influência não mascara o fato de que a ordem
social é produto unicamente da atividade humana. Nesse tocante, precisam os
autores:
“Tanto em
sua gênese (ordem social resultante da atividade humana passada) quanto em sua
existência em qualquer instante do tempo (a ordem social só existe na medida em
que a atividade humana continua a produzi-la) ela é um produto humano”.
(p. 76)
Embora não se possa derivar a ordem social existente dos dados
biológicos, não se pode negar que a necessidade dessa
ordem social provém do equipamento biológico humano (p. 77).
Como se dá a institucionalização? À página 77, escrevem
os autores: “toda atividade humana está sujeita ao hábito”. O hábito é um aspecto
fundamental do processo de fabricação da realidade institucional. Toda ação que
se reitera muitas vezes molda-se num padrão, que passa, então, a ser reproduzido
com economia de esforço e que é compreendido como padrão por quem a executa. O
hábito torna possível que a ação seja reproduzida também no futuro da mesma
maneira e com a mesma economia de esforço que o foi no passado. Isso é verdade
tanto para a atividade social quanto para a atividade não-social. Mesmo um
indivíduo solitário realiza ações habituais em seu cotidiano.
É preciso notar que as ações habituais revestem-se de
significado para o indivíduo. Esse significado é assumido como rotina no
conjunto de conhecimentos armazenados em sua memória. Esses conhecimentos são
avaliados como “certos” e estão sempre disponíveis para orientar ações futuras.
Acerca do valor do hábito, esclarecem-nos os autores:
“O hábito
fornece a direção e a especialização da atividade que faltam no equipamento
biológico do homem, aliviando, assim, o acúmulo de tensões resultantes dos
impulsos não dirigidos”.
(p. 78)
Assim, liberam-se energias que podem ser direcionadas para
decisões que se impõem na maior parte do tempo. O hábito escusa a necessidade
de que cada nova situação seja definida, etapa por etapa. Ele permite que uma
grande quantidade de situações componha um conjunto no qual elas se apresentam
predefinidas. Logo, a atividade que se realiza nessas situações pode ser antecipada.
Os processos de formação de hábitos estão na origem de toda
institucionalização. Isso vale também para o caso hipotético de um indivíduo
isolado. Não se pode ignorar que esse indivíduo solitário, supondo-se a
formação de um “eu”, também terá de converter em hábito sua atividade, em
consonância com a experiência biográfica construída num mundo de instituições
sociais que precede seu estado de solidão.
Podemos avançar um pouco mais na compreensão do processo de
institucionalização, retendo a ideia de que esse processo ocorre quando as
ações habituais são tipificadas reciprocamente por tipos de atores sociais. Qualquer uma dessas
tipificações constitui uma instituição. Para efeitos de
compreensão da institucionalização, não só a reciprocidade das tipificações
importa, mas também a tipicidade das ações e dos atores das instituições.
As tipificações das ações habituais que vão redundar nas
instituições – ou melhor, que são as instituições – são partilhadas entre
os atores sociais. Elas são acessíveis ao grupo social, e a própria instituição
tipifica os atores e as ações individuais. Essa ideia é ilustrada de modo bem
simples por Berger & Luckmann no seguinte passo:
“A
instituição pressupõe que as ações do tipo x serão executadas por atores do
tipo x. Por exemplo, a instituição da lei postula que as cabeças serão
decapitadas de maneiras específicas em circunstâncias específicas, e que tipos
determinados de indivíduos terão de fazer a decapitação (carrascos, ou membros
de uma casta impura, ou virgens de menos de certa idade ou aqueles que foram
designados por um oráculo)”.
(p. 79)
Como se vê, é a própria instituição que regula as ações
desempenhadas pelos agentes sociais e que lhes fixa papeis determinados na
estrutura institucional. As instituições, notam Berger & Luckmann,
“implicam (...) a historicidade e o controle” (ib.id.). Historicidade porque as
tipificações das ações se constituem no curso de uma história de que tomam
parte os agentes sociais. As instituições têm sempre uma historia e são produto
dessa história. Disso se segue não ser possível compreender adequadamente uma
instituição sem lançar olhares sobre a história de sua constituição.
Creio fundamental reter a ideia de que as instituições, por
força mesmo de sua existência, controlam a conduta humana, fixando-lhe
previamente padrões na base dos quais ela se desenvolverá. A direção da conduta
humana coloca-se sob o governo desses padrões. Isso evita que a conduta dos
indivíduos tome outras direções potenciais mas não desejáveis para uma instituição.
O caráter controlador é inerente, portanto, à instituição e é anterior a
quaisquer dispositivos de sanções mobilizados para produzir apoio à
instituição. O controle está entranhado na realidade de qualquer instituição,
conforme notam Berger & Luckmann abaixo:
“Dizer que
um segmento da atividade humana foi institucionalizado já é dizer que este
segmento da atividade humana foi submetido ao controle social”.
(p. 80)
Constitutiva do processo de institucionalização é a objetivação, conceito que remonta
a Hegel e Marx, e que diz respeito ao processo através do qual os produtos
exteriorizados na atividade humana assumem um caráter de objetividade.
Portanto, todo universo institucional é atividade humana objetivada. Mas essa
objetividade não existe independentemente da atividade humana que a produziu,
embora assim apareça à consciência individual.
Compreendamos bem o paradoxo que daí decorre. Em primeiro lugar,
claro é que a objetividade do mundo institucional é produzida e construída pelo
homem. Com efeito, é o homem quem produz o mundo institucional, a ordem social.
No entanto, é ele também que experimenta esse mundo como uma coisa diferente de
si ou estranha a si mesmo. O homem percebe esse mundo como algo que se produziu
independentemente de sua atividade. A relação entre o homem, que é o verdadeiro
agente produtor, e o mundo social, que é produto da atividade do homem, é uma
relação dialética, visto que há uma atuação recíproca do homem e do mundo: um
age sobre o outro. Assim, o produto (mundo) age sobre o produtor (homem), bem
como o produtor age sobre o produto.
A esta altura, três verdades se nos impõem à consciência
reflexiva: a) a sociedade é um produto humano; 2) a sociedade é uma
realidade objetiva; c) o homem é produto social (Berger & Luckmann,
p. 87). Há quatro aspectos do mundo institucional que nenhuma análise pode
negligenciar, segundo Berger & Luckmann. São eles:
1) sua realidade objetiva. O mundo institucional
é experimentado como uma realidade objetiva, a saber, como uma realidade
marcada por uma historicidade que antecede ao nascimento do indivíduo e cujas
origens ele ignora;
2) sua perpetualidade. Toda instituição se
perpetua, porque não só já existia antes do nascimento do indivíduo, mas também
porque continuará existindo depois de sua morte;
3) a sua historicidade. A própria história
desse mundo institucional é dotada de objetividade. A biografia de um indivíduo
se reduz a um episódio situado na história objetiva de sua sociedade.
4) sua facticidade inegável. As instituições com que
se defrontam os indivíduos são fatos inegáveis e eles as percebem como tais.
Consoante ensinam Berger & Luckmann, “as instituições estão
aí, exteriores a ele [o indivíduo], persistentes em sua realidade, queira ou
não” (p. 86). As instituições resistem às tentativas de alterá-las ou de
evadir-se delas. Elas exercem um poder coercitivo sobre os indivíduos, quer
devido ao seu caráter de facticidade (elas estão aí como “já dadas”), quer por
força dos mecanismos de controle que lhes dão sustentabilidade.
Cumpre frisar que a realidade objetiva das instituições se
impõe, mesmo que o indivíduo não compreenda a finalidade ou os seus modos de
funcionamento. Ele pode até considerá-los herméticos, pode não compreender
muitos aspectos da ordem social e pode considerar opressivas as formas como
eles se lhe apresentam; no entanto, não pode evitar reconhecê-los como reais.
“Existindo
as instituições como realidade exterior, o indivíduo não as pode entender por
introspecção. Tem de “sair de si” e apreender o que elas são, assim como tem de
apreender o que diz respeito à natureza”.
(p. 86)
A linguagem desempenha um papel
fundamental na objetivação das instituições. Antes, contudo, de eu me deter a
avaliar a importância da linguagem nesse processo, é preciso compreender a função
da legitimação, como um fenômeno, necessariamente dotado de
materialidade linguística, que atenderá às necessidades de permanência da
instituição e seu reconhecimento pela geração futura.
Legitimação. O mundo social existe somente na medida
em que é transmitido a uma nova geração. Esse processo de transmissão se
realiza na forma de interiorização pelos indivíduos, na socialização, das
estruturas institucionais (suas normas, ideias, valores, ideologias...).
Portanto, o mundo social existe apenas quando do surgimento de uma nova
geração.
Esse mundo social cuja própria existência depende do
aparecimento de uma nova geração precisa ser também legitimado. Por legitimação deve-se entender, pois,
os modos pelos quais o mundo social pode ser explicado ou justificado.
A fim de compreendermos mais claramente a função da legitimação
na conservação do mundo social, considere-se o fato de que a nova geração
recebe a realidade histórica do mundo social na forma de uma tradição. Essa
realidade, que silencia sua gênese, não é acessível à memória biográfica dos
indivíduos. Vou ilustrar essa inacessabilidade da realidade da instituição à
consciência dos indivíduos, pedindo ao leitor que me acompanhe num experimento
de pensamento. Imaginemos que João e Maria tenham filhos. Os filhos de João e
Maria, não sendo criadores originais do mundo social (como também não o são os
seus pais, é claro) não podem ter acesso direto ao significado das
instituições. O conhecimento que se lhes tornam acessível o é por um “ouvi
dizer”. O significado original das instituições deve ser interpretado para eles
por meio de várias fórmulas legitimadoras. Portanto, as formas de legitimação
do mundo social, servindo para explicá-lo ou justificá-lo para as novas
gerações, visam também a provocar nelas um consenso acerca da validade dos
modos de funcionamento da própria instituição.
Evidentemente, essas fórmulas de legitimação precisam ser
suficientemente amplas para causar a adesão da nova geração. Ou seja, a
história deve ser contada do mesmo modo a todas as crianças. Como observam
Berger & Luckmann,
“Segue-se
que a ordem institucional em expansão cria um correspondente manto de
legitimações, que estende sobre si uma cobertura protetora de interpretações
cognoscitivas e normativas”.
(pp.
88-89)
A título de brevidade, cinjo-me a notar que as legitimações são
interiorizadas pela nova geração, ao longo do processo de socialização dos
indivíduos. As legitimações envolvem interpretações que tanto servem à
compreensão do significado da ordem social quanto servem ao estabelecimento de
normas de cuja observância depende a participação dos indivíduos nas
instituições. Essas interpretações normativas servem, pois, para controlar e regular
a conduta dos indivíduos na ordem social.
“A nova
geração engendra o problema da transigência e sua socialização na ordem
institucional exige o estabelecimento de sanções. As instituições devem
pretender, e de fato pretendem ter autoridade sobre o indivíduo,
independentemente das significações subjetivas que este passa a atribuir a
qualquer situação particular”.
(p. 89)
As definições institucionais previamente existentes devem ser
protegidas contra todos os esforços individuais mobilizados na tentativa de
produzir redefinições: “as crianças devem “aprender a comportar-se” e, uma vez
que tenham aprendido, precisam ser mantidas na linha” (ib.id.).
Èmile Durkheim, em As Regras do Método
Sociológico (2008), dá-nos a conhecer uma definição de
instituição que capta dois aspectos básicos dela: sua padronização de
hábitos e sua objetividade
irredutível à consciência individual.
“[instituições]
são as maneiras de agir, de pensar e de sentir que apresentam a notável
propriedade de existir fora das consciências individuais”.
(p. 32)
Sabe-se que uma preocupação especial de Durkheim foi definir um
“fato social”. Dentre as características de um fato social, por ele apontadas,
cabe destacar a sua ação coercitiva sobre as consciências. Assim, os fatos
sociais congregam maneiras de agir, de pensar e de sentir que são exteriores ao
indivíduo e que são dotados de poder coercitivo, graças ao qual eles se impõem
à consciência individual. A coerção, lembra Durkheim, também é parte do
processo de educação. Segundo ele,
“Quando
reparamos nos fatos tais como são, e como sempre foram, salta aos olhos que
toda educação consiste num esforço contínuo para impor à criança maneiras de
ver, de sentir e de agir às quais ela não teria chegado espontaneamente. Desde
os primeiros tempos de sua vida que a obrigamos a comer, a dormir, a beber nas
horas certas. Obrigamo-la à limpeza, à calma, à obediência. Mais tarde,
obrigamo-la a ter em conta os outros, a respeitar os usos, as conveniências, a
trabalhar, etc., etc.”
(p. 35)
Se, com o tempo, a coerção já não é mais percebida, ensina
Durkheim, é que ela engendrou hábitos e tendências internas que a substituem.
Mas é a própria coerção que, produzindo hábitos e desencadeando tendências
individuais, acarreta a não-percepção de seus próprios mecanismos coercitivos.
A objetivação pela linguagem. Tenho repisado a ideia
de que a linguagem verbal é responsável por estruturar nossas experiências de
mundo. Vale aqui reanimá-la na consciência do leitor, mas orientando-a no
sentido de facilitar a compreensão do papel desempenhado pela linguagem no
processo de objetivação. A linguagem transforma as parcelas de nossas
experiências de mundo em dados de nossa consciência (formas de conhecimento)
que passam a ser partilhados na forma de conteúdos comunicados em nossos
discursos, nas diversas situações de interação. Em outras palavras, a linguagem
objetiva as experiências de mundo partilhadas, torna-as acessíveis a todos os
indivíduos numa dada comunidade linguística, fornecendo, assim, um estoque de
conhecimentos partilhados coletivamente.
Também a linguagem é responsável por fornecer as categorias
pelas quais se pode produzir a objetivação de novas experiências, as quais são
incorporadas ao acervo de conhecimentos previamente existentes. Berger &
Luckmann lançam uma luz sobre a importância da linguagem no processo de
objetivação de nossas experiências: “[a linguagem] é o meio mais importante
pelo qual as sedimentações objetivadas são transmitidas na tradição da
coletividade em questão” (p. 96). E prosseguem:
“Por
exemplo, só alguns membros de uma sociedade de caçadores têm a experiência de
perder suas armas, sendo obrigados a combater um animal selvagem unicamente com
as mãos. Esta assustadora experiência, quaisquer que sejam as lições de
bravura, astúcia e habilidade que produza, fica firmemente sedimentada na
consciência dos indivíduos que a sofreram. Se vários indivíduos participam da
experiência, ficará sedimentada intersubjetivamente podendo até talvez formar
um profundo laço entre esses indivíduos. Sendo, porém, esta experiência
designada e transmitida linguisticamente, torna-se acessível e talvez
fortemente significativa para indivíduos que nunca passaram por ela”.
(p. 96-97)
Em outras palavras, a experiência reconstruída e transmitida
na/pela linguagem perde seu caráter subjetivo, pessoal, individual para assumir
um caráter objetivo, dotada de uma facticidade que, assumindo a forma de
conhecimento, passa a integrar um saber comum a uma coletividade. A objetivação
da experiência por meio da linguagem consiste, pois, numa atividade de
transformação da própria experiência em objeto na forma de conhecimento
acessível e aproveitável a todos. Assim, a objetivação operada na linguagem
permite que a experiência seja incorporada a um vasto conjunto de tradições que
são transmitidas mediante processos formativos que envolvem instrução moral,
mitologias, narrativas alegóricas religiosas, adágios, etc.
Por fim, cumpre atentar para o modo como as sedimentações
coletivas assumem a forma de ideologias.
“(...)
Tendo a origem real das sedimentações perdido importância, a tradição pode
inventar uma origem completamente diferente, sem com isso ameaçar o que foi
objetivado. Em outras palavras, as legitimações podem seguir-se umas às outras,
de vez em quando outorgados novos significados às experiências sedimentais da
coletividade em questão”.
(pp.
97-99)
1.3. O
que é, então, uma instituição?
Toda instituição é um sistema de normas que se relacionam entre
si e que se baseiam em valores compartilhados pelos membros de uma sociedade.
As instituições determinam formas comuns de agir, pensar e sentir. Elas estão
entranhadas na vida social e respondem pelas práticas sociais que elas geram.
As instituições são a base da estrutura social, ou seja, são responsáveis por
organizar em estruturas dotadas de significados as atividades humanas.
Pode-se ainda entender as instituições como hábitos de grupos,
que se desenvolvem de modo independente da vontade e consciência dos indivíduos
e sem planejamento. Esses hábitos vão sendo generalizados, à proporção que
certas formas de agir, pensar e sentir são largamente adotadas e reiteradas ao
longo do tempo, até que se tornam comportamentos rotineiros e axiomáticos.
Constituem exemplos de instituições a propriedade privada,
a família, o contrato, a lei, a democracia, a cidadania, a religião, a escola,
a polícia, a Constituição, etc.
As instituições também podem ser concebidas como aglomerados de
normas ou expectativas sociais que se generalizam como obrigatórias e que se
sustentam por rigorosas sanções, as quais asseguram a conformidade dos
indivíduos a essas normas. As normas de que se constituem as instituições
definem os papeis sociais e as relações entre eles.
Creio ser válido ter em conta o que nos escreve Bourdieu, em A Economia das Trocas
Simbólicas (2011), a respeito da influência que as
estruturas sociais exercem na formação da consciência dos indivíduos:
“Se
levarmos a sério (...) a hipótese de Durkheim da gênese social dos esquemas de
pensamento, de percepção, de apreciação e de ação, e o fato da divisão de em
classes, somos, necessariamente conduzidos à hipótese de que existe uma
correspondência entre as estruturas sociais (em termos mais precisos, as
estruturas de poder) e as estruturas mentais, correspondência que se estabelece
por intermédio da estrutura dos sistemas simbólicos, língua, religião, arte, etc.”.
(p. 33)
Segundo Bourdieu, a religião contribui para impor
dissimuladamente princípios que regulam a estruturação da percepção e do
pensamento do mundo, particularmente, do mundo social, por meio da imposição de
um sistema de práticas e de representações cuja estrutura se calca
objetivamente sobre uma base de divisão política que espelharia a estruturação
dos domínios natural e sobrenatural do cosmos.
O argumento moral em favor da existência de Deus encontra abrigo
no pensamento de muitos filósofos, dentre os quais destacarei, para efeitos
desta exposição, Immanuel Kant. O argumento moral apela às intuições das
pessoas comuns e repousa sobre a crença de que a existência de valores morais
objetivos e de toda a ordem moral objetiva se justifica melhor se Deus existir.
O argumento prende-se à experiência moral de muitos de nós e
suscita a questão, de cujo desdobramento vou me ocupar neste texto: há valores morais objetivos? Convém não
confundir essa questão com outra que ela suscita, a saber, a questão que
consiste em determinar qual a melhor forma de justificar valores morais
objetivos. Há, portanto, duas questões que se impõem ao exame reflexivo de quem
quer que se debruce sobre o problema da objetividade dos valores morais: a
questão que consiste em saber se podemos falar realmente em valores morais
objetivos e a questão que consiste em determinar qual é a melhor forma de
justificar valores morais objetivos. São essas as duas questões de cujo desenvolvimento me ocuparei.
Os partidários do argumento moral em favor da existência de Deus
rezam que valores morais objetivos só podem ser justificados se supusermos a
existência de Deus, isto é, de uma heteronomia transcendente que serve de
fundamento para a ordem objetiva dos valores morais. Eu não só rejeito a
necessidade de pressupor a existência de Deus, como também estendo minha
rejeição à suposição de que há uma ordem objetiva de valores morais. Na medida
em que encaro os valores morais como fatos
sociais, sustento a tese de que a objetividade
social é ela mesma produzida no domínio intersubjetivo,
de modo que a objetividade resulta da intersubjetividade e nela se baseia. O
que chamamos de objetividade em
termos sociológicos (não nego, em princípio, a objetividade do mundo natural) é
este espaço do entre-sujeitos, do
inter-subjetivo, das práticas humanas socialmente determinadas, que, por força
da repetição, por ocasião de processos educativos, vão-se objetificando e passam
a ser percebidas pelos sujeitos sociais como integrantes de uma esfera cuja estrutura
é independente deles.
Tal como exposta a problemática, duas questões se impõem à
discussão:
a) A objetividade que costumamos atribuir aos valores morais não
decorreria senão do modo como os experienciamos?
b) Quem é esse Deus que se pretende seja o fundamento da moral?
A primeira questão procura suscitar uma reflexão sobre a
distinção entre uma objetividade a priori
(por exemplo, a objetividade desta montanha que existe independentemente de mim
e continuará existindo sem mim) e uma objetividade que julgamos existir nos
valores morais, por força do modo como os experienciamos. A suposta objetividade
dos valores morais se funda no esquecimento
ou, para usar um termo marxista, num processo de fetichização, segundo o qual, uma vez instituídos tais valores,
eles passam a ser percebidos pela consciência dos indivíduos como se existissem
independentemente das práticas sócio-históricas em cuja origem estão os
próprios homens, os verdadeiros criadores dos valores. Os indivíduos se
esquecem de que o trabalho de criação dos valores morais é responsabilidade de
muitas gerações de seres humanos. A primeira questão orienta, portanto, o
argumento segundo o qual a objetividade dos valores morais é uma construção
fundada no domínio da intersubjetividade, nesse lugar-entre que abriga as práticas intersubjetivas
historicamente determinadas. Esse ‘lugar-entre’ é o lugar da objetivação das
experiências humanas; é nesse lugar-entre que os valores adquirem o caráter
de objetividade, muito em função das práticas discursivas.
A segunda questão alicerça o desenvolvimento do argumento
segundo o qual postular Deus como fundamento dos valores morais é firmar uma
perspectiva que, afirmando a absolutidade dos valores morais – absolutidade
esta pressuposta no apelo à autoridade de um Deus supremo -, está,
paradoxalmente, agasalhando a tese do relativismo moral. Esclarecendo este
ponto, se o Deus a que Kant – e com ele os herdeiros da tradição das Luzes –
faz apelo, na tentativa de estabelecer a justificação última da ordem moral, é
o Deus bíblico, segue-se daí que se esquece de que esse Deus foi social e
historicamente produzido e que sua suposta existência está intimamente
associada à fé religiosa que marcou profundamente a cultura ocidental. Nesse
sentido, o fundamento que se pretende encarne e garanta a natureza objetiva dos
valores morais é ele mesmo relativo a uma tradição sócio-histórica cujas raízes
remontam a aproximadamente 14 mil anos, tempo em que, no Antigo Oriente
Próximo, foi-se desenvolvendo, pouco a pouco, a ideia de Deus.
Decerto, o esquecimento que está na base da postulação de Deus
para fundamento da moral não é o único problema que deverá ser atacado. Veremos
que uma breve incursão na história do desenvolvimento da ideia de Deus é
suficiente para mostrar que Deus não é o melhor candidato para ocupar o
estatuto de fundamento da moral.
Preciso frisar que o argumento de Kant em favor da existência de
Deus é consequência de sua teoria ética, que será apresentada, em linhas
gerais, mais adiante. Por ora, quero esboçar a estrutura de seu argumento.
Segundo Kant, uma vez que estamos comprometidos com valores
morais objetivos e que os consideramos a forma mais racional de viver, temos de
acreditar em um Deus pessoal, um sujeito transcendente que fez as leis e
forneceu os valores. Esse sujeito é a fonte dos valores morais que tomamos por
objetivos. O que, talvez, passe despercebido, no cerne deste raciocínio, é que
a origem de valores morais objetivos se identifica com um sujeito, com uma
pessoa, que se toma como autoridade transcendente. Isto é, a objetividade dos
valores é garantida, em todo caso, pela subjetividade, pela arbitrariedade de
uma heteronomia. Deus é o sujeito absoluto donde provém a objetividade dos
valores.
Uma crítica desmitificadora, que se alinhasse com o pensamento
de um Feuerbach, por exemplo, não veria nessa fonte absoluta da objetividade
dos valores, ou seja, em Deus, senão uma forma de projeção da essência humana
(ou da consciência) que, fora do homem, passa a ser adorada como Deus. Não
encontrando nem na natureza nem em si mesmo as condições que justifiquem seu
comportamento moral, o homem concebe na imaginação um Outro de si, que situa na
transcendência para além de si mesmo e do mundo, e lhe confere a autoridade
sobre a objetividade dos valores morais, que ele, homem, experiencia como tal,
em virtude de não lhe ser acessível à memória a gênese histórica de tais
valores .
Consideremos, doravante, as duas teorias da moral, a que já
aludi, no limiar deste estudo: a teoria
moral cristã e a teoria moral de Kant. Essas duas teorias da moral
baseiam-se na ideia de dever.
As teorias morais assentadas sobre a noção de dever mantêm que
cada indivíduo tem certos deveres, ou seja, ações que devem ou não executar – e
que agir moralmente significa cumprir nosso dever. Não importam as
consequências que decorrem disso. Consoante essas teorias, algumas ações são
absolutamente certas ou erradas independentemente das consequências que
resultam delas. As teorias baseadas no dever se dizem também ontológicas. É
justamente porque elas não se preocupam com as consequências que resultam da
realização das ações que se distinguem das teorias morais consequencialistas.
3. Teorias morais
baseadas no dever
3.1. A moral cristã
O ensino moral cristão formou a base de nossa compreensão
ocidental de moralidade. A influência da doutrina cristã na constituição de
nossa concepção de moralidade é tal, que mesmo as teorias morais de base ateia
lhe são fortemente devedoras.
Os Dez Mandamentos, por exemplo, abrigam variados deveres e atividades
proibidas. Esses deveres se impõem independentemente das consequências que
decorrem de seu cumprimento. Quem quer que acredite ser a Bíblia a palavra de
Deus não tem dúvida sobre o que é certo e errado. Certo é aquilo que está de
acordo com a vontade de Deus; e errado, o que está em desacordo com a sua
vontade. Para essa pessoa, a moral se resolve na obediência a ordens absolutas,
em cuja origem está uma autoridade transcendente, chamada de Deus.
Estou consciente de que a moralidade cristã é mais complexa do
que deixa entrever essa descrição que dela fiz. Não obstante, o essencial não
se perdeu: ela é um sistema do que é permitido e do que é proibido. Isso é
extensivo a outras morais de base religiosa, que não a cristã.
Pontuarei, a seguir, algumas dificuldades suscitadas pela moral
cristã, sem pretender, contudo, me estender sobre elas. A primeira dificuldade
diz respeito à questão de como saber qual é, na verdade, a vontade de Deus. Os
cristãos podem tentar dar conta dessa questão recomendando a leitura da Bíblia,
mas a Bíblia dá margem a interpretações conflitantes e está eivada de
incoerências. A segunda dificuldade toca ao que ficou conhecido em Eutífro, de
Platão, como Dilema de Eutífro.
Consiste esse dilema na questão de decidir se o que Deus ordena ou ama é
moralmente bom ou se o fato de Deus ordenar ou amar é que torna as coisas
moralmente boas. Se aceitamos a primeira via da questão, a saber, aquilo que
Deus ordena é moralmente bom, então a moralidade se torna independente de Deus.
Nesse caso, os valores morais preexistiriam no mundo e Deus amaria ou ordenaria
aqueles que já são bons previamente. Deus não os criaria, mas os descobriria.
Se admitirmos a segunda via da questão, então a moralidade fica ao abrigo da
arbitrariedade de Deus, o qual poderia, em virtude de seu poder absoluto,
decidir que o assassinato é moralmente bom. É claro que um cristão poderia
objetar que Deus nunca aprovaria o assassinato porque Deus é bom. Mas, nesse
caso, se com “bom” quer-se dizer “moralmente bom”, segue-se daí que Deus
estaria aprovando a si mesmo. De qualquer modo, se Deus nunca pudesse aprovar o
assassinato porque Deus é bom, segue-se que, de algum modo, o valor moralmente
negativo do assassinato está prefixado em contraste com a bondade inerente de
Deus.
Há, decerto, problemas mais graves quando se pretende tomar o
Deus judaico-cristão, o Deus pessoal bíblico, para fundamento da moral. A ideia
de direitos humanos naturais não se encontra na Bíblia, muito embora, em seu
germe, ela se encontrasse na profissão cristã. Mas sua versão laica, que
suprime a referência à supremacia da lei divina, só se formalizaria na
modernidade, com os racionalistas dos séculos XVII e XVIII.
Basta lermos a Bíblia para nos apercebermos de que Deus,
mormente a representação que dele se acha na Bíblia hebraica, é uma entidade
que aprova a escravidão e a inferioridade das mulheres. Deus também ordenava a
matança indiscriminada de crianças, homens e mulheres inocentes, como na
destruição de Jericó e Ai (Josué 6-8).
“Depois incendiaram a
cidade inteira e tudo o que nela havia, mas entregaram a prata, o ouro e os
utensílios de bronze e de ferro ao tesouro do santuário do Senhor” (Josué
6:24).
No relato do Êxodo (3:19-22), Deus instrui os hebreus a roubarem
os egípcios. No Novo Testamento, o apóstolo Paulo envia um escravo fugidio de
volta para o seu senhor e declara que os escravos devem obedecer a seus
senhores e as esposas a seus maridos. Encontramos em Efésios (6:5-6) – uma
carta que muito provavelmente não foi de autoria de Paulo – a recomendação de
que os escravos obedeçam aos seus senhores.
Essa rejeição de Deus como fundamento da moral deve ser
entendida à luz da crítica materialista que faz ver Deus como dispositivo
ideológico a serviço da construção da história de um povo, de sua identidade
nacional. No mundo antigo, era comum a escravidão, e Deus surge no registro
bíblico como um dispositivo ideológico, discursivamente acionado, para
legitimá-la.
4. O argumento moral de
Kant
Com a teoria moral de Kant – que aqui será apresentada de modo
bastante esquemático -, em cujo desenvolvimento se acha a influência decisiva
do pensamento de Rousseau, a ideia de virtude reside na ação ao mesmo tempo
desinteressada e orientada não para o interesse particular e egoísta, mas para
o bem comum e “universal”. O desinteresse e a universalidade passariam a
constituir os dois pilares principais do que podemos chamar de a moral moderna.
Daí que a ação verdadeiramente moral, a ação verdadeiramente
humana será, antes de tudo, ação desinteressada, a saber, aquela que expressa o
que é próprio do homem – liberdade. A
liberdade é, portanto, entendida como a faculdade de se libertar do programa
codificado pela natureza. O reino da liberdade é o do próprio arrancamento do
homem em relação à sua herança de instintos naturalmente codificada.
Não se nega que o homem é também um animal, e, portanto, que é
um organismo natural, mas se afirma, fundamentalmente, pelo menos enquanto
hipótese, a possibilidade de ele escapar às pressões do programa nele instalado
pela natureza. Pela liberdade e graças a ela, nós nos distanciamos do
particular para nos ocupar e nos preocupar com os outros. A liberdade nos faz
reconhecê-los como seres racionais dotados de direitos, porque igualmente
livres.
O homem é, por conseguinte, um ser moral, porque é livre, porque
não é prisioneiro de nenhum código natural ou histórico determinante. A liberdade é independência de determinações
empíricas ou estranhas; é autodeterminação. Para Kant, a liberdade não só é o
fundamento da prática, mas também de todo o seu sistema crítico. Não há ação
sem liberdade.
O que me interessa, no entanto, não é discorrer, com pormenores,
sobre a teoria moral kantiana. Pretendo insistir em que ela culmina com o
argumento segundo o qual, para crer em valores morais objetivos, é necessário
supor a existência de Deus, o que equivale a dizer tomá-lo como fundamento
último da ordem moral objetiva. Kant crê ser razoável acreditar que a melhor
explicação para a ordem moral objetiva é que ela foi planejada por Deus e posta
em prática durante a criação.
Urge pontuar, contudo, que a Ideia de Deus, após o trabalho de
desconstrução levado a efeito pela primeira Crítica (a da Razão Pura), foi
destituída de conteúdo objetivo. A Ideia de Deus passou a ser entendida como
uma Ideia da Razão, como um princípio regulador da pesquisa científica. Na
teoria do conhecimento de Kant, a ideia de Deus sofreu uma secularização. Para
Kant, a Ideia de Deus é uma ideia necessária da razão. A existência que
atribuímos, necessariamente, a Deus não deixa de permanecer como uma existência
ideal, uma existência apenas em pensamento, e não como uma existência real. Na Crítica da Razão Pura, o divino se reduz
a uma Ideia da razão humana.
É preciso, contudo, lembrar que Kant fora cristão e permaneceu
cristão, sem embargo de ter colocado entre parênteses a religião quando se
debruçou sobre o problema, eminentemente filosófico, da fundação da ética
humanista.
5. Um punhado de
História: a materialidade histórica da ideia de Deus
Ao revisitar o que chamo de materialidade
histórica da ideia de Deus, proponho que se pense que, ao se pretender
estabelecer Deus como fundamento da moral, está-se sustentando, ainda que
implicitamente, uma visão etnocêntrica que torna a moral das sociedades
ocidentais superior à de outras comunidades, inclusive à de uma comunidade
indígena como a dos Piarrãs que habitam regiões do estado do Amazonas e que não
acreditam em nada que não possam tocar, ver, enfim, sentir. Outrossim, ao retornar às raízes históricas
da ideia de Deus, pretendo, no quadro da discussão aqui empreendida, argumentar
que só se pode conferir a Deus o estatuto de fundamento da moral pelo
esquecimento das condições sócio-históricas em que a ideia de Deus se
desenvolveu e entrou a fazer parte da estrutura da consciência religiosa,
historicamente determinada, como ente superior e universal, transcendente ao
homem e ao mundo.
Aqui, orquestro a perspectiva com a qual me alinho, ao retomar o
conceito de materialidade histórica
da ideia de Deus. É com base na perspectiva materialista
que sustento ser o homem quem cria os valores. O materialismo, de que é um
exemplo a biossociologia contemporânea, reza que os valores são radicalmente
imanentes à realidade material do ser humano. O homem não descobre os valores;
ele os inventa, é seu criador, seu fundamento último, conquanto não se dê conta
disso e creia, de modo fetichista, que os valores tenham uma existência
independentes dele. Portanto, no cerne da atitude moderna da suspeita ou da
desconstrução, repousa a crítica ao fetichismo que desembocará no postulado
segundo a qual os valores são relativos ao humano, visto que é o ser humano, no
trabalho histórico, que os produz.
5.1. A Bíblia é uma
obra humana, demasiado humana
Toda vez que se afirma Deus
existe, pelo menos nas sociedades de tradição monoteísta,
particularmente cristã, essa elocução faz falar um esquecimento que resulta da
combinação de três operações mistificadoras: 1) conversão; 2) descolamento;
e 3) inversão. Por conversão, entendo a
transformação, operada pela consciência, da ideia de Deus em um ente
objetivamente existente, ainda que sua existência não seja acessível à
experiência sensorial humana. Pela conversão, portanto, a ideia, produto do
pensamento, se converte em ente, que existe independentemente do pensamento.
Por descolamento, entendo o
ato de descolar a ideia de Deus, já concebida como ente objetivamente
existente, das condições sócio-históricas reais em que ela foi gestada e
convertida em ente. Finalmente, por inversão,
entendo o ato de pensar tal ente como causa, origem, princípio primeiro da
existência do homem, delegando a este o lugar de criatura. Essas três operações
da consciência mistificada são historicamente determinadas, porque a própria
consciência é produto sócio-ideológico. A própria consciência humana se
constrói e se desenvolve nas práticas sociais e históricas concretas.
Um fato que pode ter sido decisivo para a realização na
consciência dessas três operações, mormente da operação que chamei de descolamento, foi o surgimento da
escrita e o domínio dela pelas autoridades hebraicas. Consoante assinala o
filósofo Régis Debray, em seu Deus: um
itinerário (2004),
“Só um texto,
paradoxalmente, pode descontextualizar
e, dessa maneira, engendrar uma crença desembaraçada
de sua inscrição espaço-temporal
[histórica]. Enquanto houver somente troca verbal “em situação”, entre
coexistentes, uma entidade não tem como isolar-se do seu meio de nascimento,
nem como transmitir-se sem sofrer alteração. Em contrapartida, a transcrição
corta a palavra de quem fala e a põe do
lado de fora. Desprendida de seu
emissor, ela pode voar com as
próprias asas. Autonomiza-se.
Absolutiza-se ( grifos meus, p. 121-122).
Quando consideramos a Bíblia, aprendemos que o povo que ficou conhecido como os antigos israelitas era uma confederação de vários grupos
étnicos, ligados, sobretudo, por sua lealdade a Javé, o Deus de Moisés. Ocorre,
contudo, que a história bíblica foi escrita por volta do século VIII a.C.,
embora, sem dúvida, inclua fontes narrativas de períodos precedentes. No século
XIX d.C, estudiosos bíblicos alemães cunharam um método crítico que discerne
quatro fontes diferentes nos cinco primeiros livros da Bíblia – que, reunidos
no século V a.C., formam o Pentateuco. Esse método foi alvo de ataques, mas
permanece, ainda hoje, como o dispositivo de investigação mais satisfatório
para explicar por que há duas versões bastante diferentes de acontecimentos
bíblicos extremamente importantes como a Criação e o Dilúvio, e por que a
Bíblia, às vezes, se contradiz.
Os dois primeiros autores bíblicos, responsáveis pelo Gênesis e
pelo Êxodo, escreveram, provavelmente, no século VIII a.C., embora alguns
estudiosos pensem que o período em que escreveram é anterior ao século VIII.
Um desses autores ficou conhecido como J, porquanto chama seu Deus de Javé; e o outro, como E, porquanto preferiu chamar seu
Deus de Elohim. No século VIII a.C, os israelitas haviam dividido Canaã em dois
reinos separados. J escrevia
no reino de Judá, localizado ao sul; e E
era do reino de Israel, ao norte.
É interessante observar que, em Israel, foi somente no século VI
a.C., que houve um verdadeiro interesse pela Criação, no momento em que o autor
P (Pentateuco) escreveu sua grandiosa narrativa
conhecida como Gênesis. J, por
seu turno, não estava absolutamente certo de que Javé era o único criador do
céu e da terra. J percebia
como distintos o homem e o divino. O homem (adam)
não se constitui do material divino de seu deus, mas pertence à terra (adamab).
É suficiente dizer que J,
contrariamente ao que criam seus vizinhos pagãos, não tomou a história secular
como profana, frágil em comparação com o tempo sagrado, primordial dos deuses.
É no momento em que relata o chamado de Abraão que J estabeleceu a cadência da futura história do Deus, chamado
Javé. Esse Deus, na época em que vivera J,
era o Deus de Israel.
A religião israelita era pragmática e não tinha maior interesse
no tipo de detalhe que nos preocupa hoje. Não devemos supor que Abraão ou
Moisés acreditassem em seu Deus como muitos de nós acreditam. Muitos de nós
acreditamos que os três patriarcas de Israel – Abraão, Isaac e Jacó – eram
monoteístas, acreditavam num único Deus. Não parece ter sido este o caso. Na
verdade, é mais provável que esses hebreus fossem pagãos que partilhavam muitas
das crenças religiosas de seus vizinhos. Decerto, eles acreditavam na
existência de deuses como Marduc, Baal e Anat. É possível que não adorassem o
mesmo Deus. O Deus de Abraão, chamado Temor, ou o Deus de Isaac, conhecido como
Parente, ou ainda o Deus de Jacó, chamado o Poderoso, talvez fossem três deuses
distintos.
5.2. O Antigo Israel
Israel nasceu num mundo já antigo. Quando os primeiros
israelitas se organizaram em clãs familiares, na região de Canaã, entre o
Mediterrâneo e o rio Jordão (cerca de 2000-1500 a .C.), duas grandes
civilizações já floresciam no chamado Oriente Médio: o Egito, ao ocidente, e as
civilizações da Mesopotâmia, ao oriente.
A Bíblia, que não pode servir de fonte histórica fidedigna,
relata que a formação de Israel se iniciou com a migração dos patriarcas
hebreus da Mesopotâmia para Canaã. Essa migração, que se deu aproximadamente na
primeira metade de 2.000 a .C.,foi
determinante do início da história de Israel.
O Gênesis, do capítulo 12 ao 50, narra a odisseia da saída de
Abraão da Mesopotâmia em direção a Canaã, a formação das tribos de Israel e o
crescimento de seu povo no Egito. Tais narrativas não constituem documentos
históricos contemporâneos aos acontecimentos narrados. Essa é a visão já bem
estabelecida pela crítica bíblica desde a última metade do século XIX, quando a
Bíblia deixou de ser vista pelos estudiosos como verdade pronta e revelada e
foi submetida aos métodos crítico-históricos modernos.
Com base no método crítico-histórico, os estudiosos bíblicos
passaram a encarar os patriarcas Abraão, Isaac e Jacó não mais como figuras
históricas, mas como antepassados epônimos de clãs, ou ainda figuras
mitológicas. Há historiadores que chegam a afirmar a inexistência desses
patriarcas.
Saliente-se, de passagem, visto se tratar de um aspecto
importante recoberto pelo que tenho chamado de materialidade histórica da ideia de Deus, conceito que recobre todos os acontecimentos políticos, econômicos,
sociais, ideológicos, em suma, históricos que tornaram possível o surgimento e
o desenvolvimento da ideia de Deus no Antigo Oriente Próximo, que o relato
do texto bíblico abriga grandes migrações de clãs em toda a região canaanita,
invasões de povos e guerras sangrentas.
É certo que nem tudo que há na Bíblia é história, mas uma porção
significativa de seu texto refere-se a eventos e pessoas reais, que precederam
o desenvolvimento da literatura bíblica.
A base da sociedade israelita é nômade e consanguínea. Jacó,
neto de Abraão, tem seu nome mudado para Israel (“guerreiro de Deus”) e seus
filhos formaram as doze tribos israelitas, cada um dos quais ficou encarregado
de administrar um território após a conquista de Canaã. Apenas a tribo de Levi
foi designada para os serviços religiosos na nação.
5.3. O Deus supremo
A última subseção deste texto deriva sua importância do fato de
trazer à cena da argumentação um recorte do desenvolvimento da ideia de Deus,
patenteando seus contornos semânticos e articulando-os com dois acontecimentos
que foram fundamentais na sua consolidação.
Começo, pois, por notar que a religião israelita assenta na
ideia de que Deus é supremo. Sendo Deus supremo, não há nenhum reino acima ou além dele que
ponha limite a sua soberania. Esse Deus é um Deus absoluto e transcendente. É
completamente distinto e diverso do mundo. Essa ideia, segundo o teólogo
Yehezkel Kaufmann, surge de uma intuição original, e não foi produzida por uma
especulação intelectual, à moda grega, ou por uma meditação mística, à maneira
indiana.
Se é verdade que a Bíblia enfatiza a unicidade e supremacia de
Deus, é igualmente verdadeiro que ela sublinha o contraste entre o seu novo
conceito de divino e a essência mitológica do paganismo. O monoteísmo jamais
recebeu uma formulação sistemática e abstrata entre os israelitas. A religião,
entre eles, formou-se por símbolos, dentre os quais o mais importante era a
imagem de um Deus supremo e onipotente, sagrado, aterrador e ciumento, cuja
vontade era a lei maior.
Não se pode esquecer que essa nova ideia de Deus firmou-se, sob
seus vários aspectos, com a contribuição da criatividade da população. O Deus
de Israel – que nada tinha do caráter universalizante que assumiria com o
advento e o desenvolvimento do cristianismo, muito tempo depois – não tinha
nenhuma linhagem, pais ou gerações. Isso explica o fato de o repertório de
lendas bíblicas carecer do mito da teogonia pagã. Por outro lado, ajunte-se que
o relato bíblico é abundante de lendas a respeito de Deus, ainda que diferente,
em gênero, dos mitos pagãos.
É bastante, para os meus propósitos, destacar os dois
acontecimentos que contribuíram decisivamente para a consolidação da ideia de
Deus. Esses acontecimentos estão, naturalmente, recobertos pelo conceito de materialidade histórica da ideia de Deus.
O primeiro acontecimento diz respeito à experiência israelita de seu Deus.
Viver em conformidade com a vontade de Deus era a aspiração mais profunda dos
hebreus. Javé ou Elohim habita seu povo, onde tem uma casa (o tabernáculo, na
época nômade) e depois o templo de Jerusalém.
O segundo acontecimento toca ao advento da monarquia de Israel (1.000 a .C), acontecimento
este que constituiu um marco na vida dos israelitas. Suas consequências não
foram só políticas, nacionais, culturais, militares e econômicas, mas também
foram significativas na história do Javismo. O reinado de Saul, primeiro rei,
constituiu um estágio de transição entre a forma de governo tribal do período
dos Juízes e o estabelecimento de um Estado verdadeiro, com os reinados de Davi
e Salomão.
Em suma, quando insisto em que é necessário reconhecer as raízes
históricas de Deus, estou interessado em contribuir para o trabalho de
desmitificação da consciência religiosa. Entendo que é parte desse trabalho
recordar os acontecimentos históricos que estão na base do desenvolvimento da
ideia de Deus.
Por fim, oportuno é aqui referir um excerto da crítica
antropológica da ideia de Deus, levada a
efeito por Feuerbach, em seu Preleções
sobre a essência da religião (2009):
“Já observei que a meta de
meu tratado sobre a essência da religião, e consequentemente, também destas
preleções, não é outra senão mostrar que o Deus da natureza ou o Deus que o
homem distingue de sua essência e que pressupõe esta como a causa ou origem
nada mais é do que a própria natureza, e que o Deus humano ou o Deus espiritual
ao qual atribui predicados como consciência e vontade que ele imagina como um
ser semelhante a si, distinto da natureza enquanto entidade destituída de
vontade e consciência, nada mais é do
que o próprio homem ( grifo meu, p. 180)
Feuerbach, fiel à crítica desmitificadora do materialismo
moderno, denuncia o antropomofismo que está na base da ideia do Deus
judaico-cristão, bem como desmonta aquilo que a consciência religiosa
dicotomizou, no momento em que ele, Feuerbach, viu em Deus a hipóstase da
própria essência do homem. Deus é o próprio homem, e não um ente radicalmente
distinto como aparece para a consciência mistificada dos crentes. Trata-se – eu
acrescentaria – de reposicionar na origem o homem, de ver a história como
trabalho e realidade humana, e Deus como um produto imaginário da consciência
humana historicamente constituída nas práticas reais e concretas das quais os
seres humanos são os únicos e verdadeiros agentes (embora também se insiram, no
processo histórico, como produtos). A ideia de Deus é, portanto, produto de
determinadas condições históricas da existência humana. Feuerbach não cansou de
insistir em que suas ideias tomam corpo na consideração de “fenômenos
históricos e empíricos” (ib.id.), razão por que conseguiu repor no lugar
próprio aquilo que a consciência religiosa tratou de mudar de lugar, na medida
em que estabeleceu para Deus o lugar de causa, de criador; e ao homem, o de
resultado, produto ou criatura, na invenção recontada ad nauseam da Criação.
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