
O espírito materialista e niilista
Uma conciliação contra a ilusão
Em Confissões
de um filósofo (2001), Bryan Magee observa que o impulso básico para o
filosofar é a curiosidade a respeito do mundo e não o estudo dos textos
filosóficos.
“O impulso básico por trás da verdadeira filosofia é a
curiosidade a respeito do mundo, não o interesse pelos textos dos filósofos. Cada um de nós emerge da pré-consciência da
tenra infância e simplesmente se encontra aqui, nele, no mundo. O que é o
mundo: E o que somos nós? Desde os primórdios da humanidade, houve quem fosse
dominado pela compulsão de fazer essas perguntas e sentisse um anseio por
encontrar as respostas. É isso o que quer realmente dizer qualquer expressão
semelhante a “necessidade de metafísica do homem”.
(grifo meu, p. 264)
O indivíduo se entrega à
filosofia no instante em que sente a necessidade de refletir sobre a presença
plena do ser, do mundo, do qual ele emerge como uma consciência que se sabe
finita. É no momento em que esse indivíduo se dá conta desse acontecer, desse
haver, dessa Primeira Hora que fez dele um ente lançado no mundo e capaz de se
inquietar com a existência do mundo e se perguntar sobre a possibilidade de
nada ter existido que ele precisa da filosofia.
Neste texto,
esforçar-me-ei por mostrar que a reflexão filosófica não só contribui para
construir um modo pessoal de ver (interpretar) e compreender o mundo e a
condição humana, compreensão que serve para orientar cada um de nós nas
diversas formas pelas quais nós nos relacionamos com o mundo, mas também pode
contribuir muito para realçar certos traços de temperamento ou de caráter.
Cumpre dizer que emprego a palavra caráter
não na acepção ética ou moral, mas na acepção psicológica, para designar,
portanto, os aspectos da personalidade que constituem o ego e que, em suas
manifestações, distinguem uma pessoa de outra.
Meu intento principal
será demonstrar de que modo se pode conciliar o materialismo com o niilismo com
vistas a nos esclarecer sobre o estado de ilusões a que estamos presos em nossas
vivências cotidianas. Em última instância, espero conseguir mostrar que minhas
crenças a respeito do mundo e da condição humana, bem como o modo como eu me
relaciono com o mundo estão calcados sobre essas duas doutrinas. Meu
temperamento se afina bem com elas. Ao dizer isso, quero dizer que, ao mesmo
tempo em que nos entregamos à filosofia, a filosofia parece nos instar a que dela
nos apropriemos, a que assumamos uma posição dentre as muitas possibilidades de
pensar o mundo e o homem que ela nos oferece. Nosso encontro com a filosofia é
um encontro com certo modo de pensar e viver o mundo.
Tome-se o seguinte passo
de Niilismo (2007), em que Rossano
Pecoraro dá-nos a saber, de modo bastante geral, as condições sócio-históricas
em que emerge a atitude niilista:
“A corrosão, a desvalorização, a morte do sentido. A
falta de finalidade de resposta ao “porquê”. Os valores tradicionais
depreciam-se; princípios e critérios absolutos dissolvem-se. A bússola, que
outrora nos orientava, apesar das crises, das rupturas, das ilusões, da
substituição frenética de rotas, explodiu em nossas mãos. A superfície, antes
congelada, das verdades e dos valores tradicionais está despedaçada e torna-se
difícil prosseguir no caminho, avistar um ancoradouro”.
(p. 7)
O niilismo, enquanto
atitude e doutrina, surge em circunstâncias em que o homem percebe abalado o
seu universo de referências. O niilismo é um conceito fundamental e
indispensável à compreensão do desenvolvimento do pensamento filosófico
vicejante nos séculos XIX e XX. É um fenômeno complexo, multifacetado. O
niilismo se faz presente em toda parte.
Do latim nihil (nada), o niilismo recobre uma
forma de pensamento obsedado pelo nada. O niilismo pode ser identificado no
curso de toda a história do pensamento ocidental: faz-se notar nas teses do
sofista Górgias (490-388 a .C.),
na pena do filósofo e poeta italiano Giacomo Leopardi (1798-1837) – o nada é o
princípio de Deus e de todas as coisas; na pergunta de Leibniz “por que o ser e
não, antes, o nada?”, no pessimismo de Arthur Schopenhauer (1788-1860).
No entanto, é com
Nietzsche que o niilismo ganha maior alcance e vigor na reflexão filosófica.
Nietzsche foi, sem dúvida, “o maior profeta e teórico do niilismo” (p. 17).
Devemos a ele a construção de um pensamento radical que identificou as origens
mais remotas do fenômeno, vale dizer, o platonismo e o cristianismo.
“O século XX, século do niilismo abre-se com a morte
de Nietzsche e com a crise de uma Razão que sucumbirá aos horrores de duas
guerras mundiais, do facismo e do nazismo. O niilismo infiltra-se, encontra
projetualidade onipotente na ciência e da técnica, impregna a atmosfera
cultural de toda uma época, transforma-se em uma “categoria” fundamental no
laboratório contemporâneo”.
(p.10)
O niilismo é uma doutrina
filosófica que nega a existência do absoluto, quer como verdade, quer como
valor ético. O absoluto aqui conjuga duas acepções: numa acepção, o absoluto é
aquilo que é em si e por si, independentemente de qualquer outra coisa, aquilo
que encerra em si sua própria razão de ser; noutra acepção, o absoluto recobre
a ideia de que é algo independente de qualquer referência convencional (é o
contrário do relativo).
Nietzsche utilizou esse
termo para designar o que, para ele, era a decadência européia, a ruína dos
valores tradicionais consagrados na civilização ocidental do século XIX. O
niilismo caracteriza-se, portanto, não
só pela descrença em um futuro
glorioso e, nesse sentido, é infenso à ideia de progresso, mas também pela
afirmação da “morte de Deus”, na medida em que nega a crença num absoluto,
fundamento metafísico de todos os valores, quer éticos, quer estéticos, quer
sociais, da tradição.
Entanto, o niilismo
nietzschiano conduz a novos valores afirmativos da vida, da vontade humana,
pela superação da “moral de rebanho” e pela dissolução dos princípios
metafísicos tradicionais. Na mira do niilismo nietzschiano, estavam os Ídolos
tão enaltecidos pela civilização ocidental, quais sejam, a Verdade, a Razão e
Deus.
O niilismo pode
apresentar-se em duas formas: uma positiva e outra negativa. O niilismo positivo se manifesta por meio
de um trabalho crítico que visa a desmascarar a abismal ausência de cada
fundamento, verdade, critério absoluto e universal, ao mesmo tempo em que nos
convoca a assumir nossa própria liberdade e responsabilidade, não mais
garantidas, é verdade, nem sufocadas ou governadas por nada. O niilismo negativo é marcado pela
acentuação de traços destruidores e iconoclastas, tais como os do declínio, do
ressentimento, da incapacidade de avançar, da paralisia, do “tudo-vale” e do
nefasto silogismo: “se Deus (a verdade, o princípio) está morto, então tudo é
permitido”.
1.2.
Niilismo em Nietzsche
Na filosofia
nietzschiana, o niilismo assume um sentido negativo, que denuncia a decadência
do homem ocidental, cujas origens remontam ao racionalismo socrático, à
oposição platônica entre o mundo das Ideias e o mundo sensível, e à consequente
desvalorização deste último em favor do primeiro; ao cristianismo, que
Nietzsche chamou “platonismo para o povo”, o qual impôs uma moral de renúncia e
submissão, de desvalorização da vida em nome de um além-mundo, ao mesmo tempo
em que inculcou nas consciências de rebanho esperança de salvação e redenção.
Por outro lado, há, em
Nietzsche, um niilismo positivo, de que se serviu o filósofo para demolir os
ídolos da tradição, para desmascarar as falsidades e embustes dos valores e
verdades tradicionais. Esse niilismo serviu para anunciar a superação do homem
e o advento do “além-do-homem”.
1.3.
Niilismo em Sartre
Também o pensamento francês
do pós-guerra é perpassado por características niilistas. Jean Paul-Sartre
(1905-1980) debateu-se com as grandes questões que o nihil suscita: o sentido da
existência, a liberdade, engajamento, concepção da história.
Ao sustentar que o homem
“é aquele ente em que a existência precede a essência”, Sartre compromete-se
com a negação e dissolução de ideias como a de Deus, princípio, valores
heteronômicos.
Afirmando que o homem
está condenado a ser livre e que, no seu abandono, tem de inventar a si mesmo,
Sartre endossa uma posição niilista, que se clarifica na ideia de que o homem é
não é uma realidade dada, mas uma possibilidade, um projeto, um ente que tem de
decidir ser nas escolhas que faz.
A dimensão trágica do
“para-si” consiste no fato de ele estar sempre inserido numa situação
determinada, de estar lançado em um mundo entre outros “em-si”. Esse choque do
homem com o mundo das coisas condena-o a uma nadificação do mundo. O homem
perde toda referência externa em que poderia se apoiar para afirmar-se
unicamente a si mesmo e sua absoluta liberdade, que se funda no nada. Segundo
Sartre, na tentativa de se realizar, o homem pretende, em última instância, ser
Deus. Sucede, contudo, que a ideia de Deus aniquila a liberdade humana. Sem
encontrar soluções e critérios para construir o fundamento de sua existência, o
homem se vê dominado pela negatividade: escolher não faz sentido, e “o homem é
uma paixão inútil” (Sartre).
“Em sua conferência, proferida no pós-guerra, O existencialismo é um humanismo (1945),
(...) o filósofo defende-se das acusações de desengajamento e derrotismo, que
sobretudo marxistas e católicos lhe imputavam, e mostra que a filosofia
existencialista, mesmo com o seu fundo relativista e niilista, é capaz de
propor uma regeneração dos valores a partir da “morte de Deus”.
(p. 31)
Cabe salientar que uma
tal regeneração não é possível se o homem se perder numa busca insensata pelos
princípios, critérios e valores decaídos. Essa regeneração só poderia
realizar-se se o homem reinventar os seus valores “unicamente por força de si
mesmo, mediante o seu engajamento e sua liberdade” (p. 31).
1.4.
Niilismo em Albert Camus
Absurdo e revolta são os
dois principais polos do pensamento de Camus (1913-1960). No romance O estrangeiro (1942), o autor explora a
escandalosa gratuidade da existência, a sua insensatez constitutiva que
silencia os valores e a moral. Em Camus, a liberdade defronta-se com a
impotência ou a inevitabilidade da morte.
No ensaio O homem revoltado (1951), o absurdo é
tratado como uma questão universal. O absurdo é a injustiça, o caos, a desrazão
do mundo. É da visão desse espetáculo trágico que se origina a revolta. O homem
revoltado é aquele que se esforça por dar um sentido ao absurdo, ultrapassando,
assim, o niilismo.
1.5.
Niilismo cosmológico
O que chamo de niilismo cosmológico é a concepção do
homem que ressalta sua insignificância na totalidade do cosmo. Esse niilismo
está ligado intimamente à cosmologia moderna. Depois de Descartes, com sua
concepção de natureza como res extensa,
a saber, um espaço vazio e matéria, o homem foi abalado por um estranhamento
metafísico. Pascal já havia notado a terrível transformação trazida pela
cosmologia materialista, que pulverizou a importância que o homem atribuía a si
mesmo na ordem do universo. Escreve Pascal: “imerso na imensidão infinita dos
espaços que ignoro e que me ignoram, eu me apavoro”.
O universo físico
desvelado pela cosmologia moderna não dá ao homem viver mais em casa, nem
sentir-se um ser especial, como no modelo cosmológico antigo e medieval. Desde
então, o universo lhe parece estranho, desolador, sombrio e inóspito. Como numa
cela que lhe priva a liberdade, sua alma percebe-se aprisionada numa infinitude
cósmica atormentadora. O homem se percebe como a única voz no silêncio eterno
das estrelas e dos espaços infinitos e indiferentes. O homem está só consigo e
esse estado lhe é fonte de angústia e desespero. Destarte, nota Volpi, em O Niilismo (1999):
“Logo mais, o próprio Deus se eclipsará. Primeiro,
como hipótese, supondo-se tudo “como se Deus não existisse” (...). Depois, como
realidade. Tudo deve ser repensado, a começar pelo sentido de nossa existência,
já que “Deus está morto”.
(p. 17)
A transcendência perde
sua força, que antes ligava o homem à totalidade cósmica. O homem se vê
abandonado a si mesmo e reclama sua liberdade. Não lhe resta senão apoiar-se
nela, identificar-se com ela. Assim, o homem passa a ser a sua própria
liberdade. Ele é o que projeta ser; tudo lhe é permitido. O existencialismo
enfrentou o fato de essa liberdade ser uma liberdade desesperada, a qual
acarreta mais angústia do que satisfação e força (Volpi, p. 17).
Vale dizer que um niilista não acredita no
próprio homem. O niilista renuncia à crença em que o homem é um ser especial na
natureza, em que ele seja dotado de um valor ou destino metafísico, que
justifica sua existência.
1.6.
Niilismo e política
Desde o fim do século
XVIII, o niilismo se fez sentir na história, tanto como força conceitual e
filosófica, quanto como força pregnante do plano social e político. Os
niilistas objetivavam a dissolução, a destruição da ordem social, do sistema de
valores consagrados e do sistema político vigente – pelo menos era assim que os
viam seus adversários.
No contexto da cultura
francesa, o pensador católico Franz von Baader debruçou-se sobre o conceito de
niilismo em dois ensaios, nos quais afirmava que o protestantismo, dando origem
a um fenômeno dissolutivo das verdades sagradas, deveria ser combatido pelo
catolicismo, que deveria impor novamente o “conceito de autoridade no sentido
eclesiástico, político e científico”. Baader defendia uma luta contra todos os
tipos de “dúvidas ou protestos, antigos ou novos”. Em seguida, definiu o
niilismo como “um abuso da inteligência destrutivo para a religião”. Condenando
o niilismo, ele estava condenando o que julgava ser um efeito do uso
sobremaneira livre da razão, ou um sintoma da degeneração do tecido civil,
religioso e social.
No contexto da Revolução
Francesa, eram considerados niilistas aqueles que não eram nem favoráveis, nem
contrários à insurreição. Na França do período pós-revolução, niilista era
aquele que não acreditava em nada, que não se interessava por nada.
Sumariando, pode-se
entender o niilismo como o diagnóstico da decadência e da crise
dos valores. Na seção seguinte, tecerei algumas considerações sobre o
materialismo filosófico. Valho-me, para tanto, do livro Uma Educação Filosófica (2001), de André Comte-Sponville. Nele, se
topa um excerto em que o autor define o materialismo.
2.1.
Materialismo
“(...) chama-se materialismo a doutrina que afirma que
tudo é matéria ou produto da matéria (salvo o vazio) e que, por conseguinte, os
fenômenos intelectuais, morais e espirituais (ou assim supostos) têm realidade
secundária e determinada (...)” (p.119)
O materialismo é mais bem
elucidado, quando contraposto ao idealismo, doutrina esta que afirma a
existência independente, primeira e exclusiva do pensamento. Ao contrário, o
materialismo afirma o primado da matéria. Dentre os aspectos que se podem inferir
do trecho referido, destaco, tendo em vista a conciliação do materialismo com o
niilismo, seu relativismo ético. Na perspectiva materialista, não há valores
absolutos (não há Bem em si, Justiça em si, Belo em si, ou mesmo Deus). Todo
valor é relativo a um corpo individual ou social, à história.
O materialismo se define,
negativamente, pela recusa do dualismo e do espiritualismo (não existe nem
mundo inteligível nem alma imaterial), do ceticismo e do criticismo (pois a
realidade em si não é incognoscível). É incompatível com toda religião cujo
corpo doutrinário se sustenta pela crença num Deus imaterial, criador e
legislador.
O materialismo é uma
filosofia de recusa, de embate (p. 120). É também um empreendimento de
desmitificação. É importante salientar que o materialismo não nega, de modo
algum, a existência do espírito. Na verdade, o materialismo se funda num
paradoxo: afirma o primado da matéria e a primazia do espírito.
Essas breves notas sobre
o materialismo são – assim me parece – suficientes para familiarizar o leitor
com a doutrina materialista. Ela será mais bem elucidada à medida que me ocupar
com o desenvolvimento de duas questões que se encontraram interligadas: ilusão e política. Delas me ocuparei, à
luz da perspectiva materialista.
2.2.
Materialismo e a ilusão do valor
Em Tratado do Desespero e da Beatitude (1997), Sponville afirma que o
materialismo, em política, é antiplatônico, a saber, é a negação do ideal (p.
129). Disso não se segue que o materialista não tenha um ideal, que ele renuncie
a todo ideal. Como filósofo, o materialista tem suas aspirações elevadas, suas
exigências intelectuais, estéticas, portanto, seus ideais; se não os tivessem,
não seriam filósofos.
O que o distingue, nesse
tocante, do idealista é a forma como pensam o estatuto do ideal. Para um
materialista, o ideal carece de existência absoluta; ao contrário, o idealista
crê nessa existência absoluta do ideal. Para o materialista, o ideal não existe
independentemente dos sujeitos, de certas condições sócio-históricas. Para o
materialista, o ideal é o horizonte do desejo. Consoante insiste Sponville,
“(...) ser materialista é pensar que o ser não tem
mais valor do que o valor tem ser. Dito de outro modo, o ser não vale nada,
falando objetivamente, e o valor não é, isto é, só tem ser ilusório ou
subjetivo. Em resumo, trata-se de disjungir o que Platão cônjuge: o valor e o
ser, a norma e a verdade. Para um materialista, o valor não é verdadeiro, e a
verdade não tem valor. Desespero e lucidez”.
(p. 135)
Quem quer que adote uma
posição materialista compromete-se, necessariamente, com o fato de o ser não
ter valor tanto quanto o valor não ter ser. Em outras palavras, “o ser não vale
nada, falando objetivamente, e o valor não é, isto é, só tem ser ilusório ou
subjetivo” (p. 135). O materialismo, assim, separa aquilo que Platão uniu: o
valor e o ser, a norma e a verdade. Para um materialista, o valor não é
verdadeiro, tampouco a verdade tem valor.
Uma vez adotando uma
visão materialista do mundo, um indivíduo se compromete com o pressuposto
básico segundo o qual os valores são ilusórios, são produtos da imaginação
humana e sempre relativos. Destarte, o bem, o mal, o belo e o feio, o justo e o
injusto são “puros fantasmas da alma nascidos das afeições do corpo” (p. 136).
Para um materialista, os homens não são livres, muito menos guiados pela razão.
Do que se expôs até aqui,
segue-se uma conclusão que o materialismo endossa: a política, a arte e a moral
se encontram sempre ao abrigo da ilusão (p. 136). O materialismo é uma filosofia
da desmitificação.
“(...) somente um discurso verdadeiro sobre a moral,
sobre a arte, sobre a política pode mostrar que a moral, a arte e a política
não tem verdade e não poderiam ter
(...) Verdade e desespero: se não há valor que não seja ilusório, somente a
verdade – a verdade sem valor – é capaz de nos desilusionar”.
(ib.id., ênfase no original)
Com Sponville – e
permitindo-me o uso de um neologismo -, pode-se pensar o materialismo como uma
doutrina do “desilusionamento”. Com Spinoza, vale dizer que “a verdadeira
filosofia” é a que elabora a teoria da ilusão de toda filosofia; é a que
reconhece seu sentido só pode ser determinado do ponto de vista dos homens. É
verdadeira porque reconhece que a natureza (ou o Deus spinozista) é indiferente
a tudo, ou seja, destituída de toda normatividade. Essa filosofia anuncia que
não há nada além da natureza: tudo é e
nada vale. Impõe-se-me um esclarecimento aqui: dizer que “nada vale” é
dizer que nada tem valor em si, independente de um corpo individual, social ou
da história.
2.3.
Ilusão e política numa perspectiva materialista
Doravante, vou
desenvolver e esclarecer o conceito de ilusão, com vistas a fazer entender em
que medida a política (o mesmo vale para a arte e a moral) é ilusória. No que
se seguirá, estarei interessado em elucidar qual é a ilusão própria à política.
Ao apontá-la, dou a saber a situação ilusória de todo militante.
Comecemos por notar que
ser antiplatônico em política é assumir que nenhuma política é verdadeira, que
nenhuma é boa ou justa absoluta ou objetivamente. A esse respeito, sublinha
Sponville: “Só há absoluto na natureza, e esta é indiferente a qualquer
política” (p. 138). Todas as políticas se equivalem, porque nenhuma delas tem
valor – materialismo e desespero.
Se nos socorrermos do
ensinamento do budismo primitivo, a questão de como a ilusão estrutura, é
constitutiva de nossa relação com o mundo ficará mais clara. O sábio, segundo a
doutrina budista, é aquele que despertou da ilusão do samsara: ele é desapegado
de tudo. Sabe que nada tem sentido, nada tem valor, nem mesmo o budismo. O real
é indiferente. No mundo ilusório, que é o mundo em que vivemos, que é o mundo
do samsara, tudo adquire valor e sentido, isto é, tudo passa a ter valor e
sentido – segundo se crê - objetivamente. O sábio está liberto desse mundo, já
que atingiu o nirvana, condição em
que descobre a vacuidade do sentido, em que desperta do sonho normativo.
Deve-se entender,
portanto, que, do ponto de vista budista, o indivíduo que vive para alguma
coisa, isto é, em função de algo que ele pensa ser dotado de sentido,
significado para si mesmo, é prisioneiro do samsara (samsara designa, na tradição budista e hinduísta, o ciclo de morte
e renascimento em mundos materiais), ou seja, da ilusão. Mas essa ilusão não é
o oposto do mundo real; ela pertence ao real, melhor ainda, é o mundo real em
que vivemos. Tomemos nota do que nos ensina Sponville a seguir:
“Essa ilusão, da qual é uma ingenuidade crer que seja
reservada aos ingênuos, e da qual Spinoza soube pensar a necessidade e mostrar,
era para cada um de nós a trama – e o drama – de nossa vida” (p. 139).
Que nossa visita ao
ensinamento budista não nos engane: não
dou à palavra ilusão qualquer
sentido místico. Se pretendo frisar a ideia de que a ilusão é a trama e o drama de nossa vida, é para mostrar que a
ilusão reside nas formas como percebemos/ interpretamos o mundo. O materialista
pensa que tudo o que vale – a arte, a moral e a política, e mesmo a verdade –
na medida em que lhe atribuímos valor, é sempre ilusório. O materialismo não
suprime a ilusão, mas fixa-lhe o seu devido lugar. Onde reside, pois, a ilusão?
No espectador, naquele que vê o sol girar em torno da Terra. A astronomia
ensina que o que vemos é uma ilusão – e desta jamais nos libertamos – e que essa
ilusão obedece a leis necessárias. Portanto, se esse é o verdadeiro modo de
funcionamento do mundo, um funcionamento que inclui a ilusão como dimensão
necessária, nossa percepção não poderia ser de outro modo. Portanto, a ilusão é
necessária. Ela tem a sua verdade.
As ditas ilusões de ótica são bem conhecidas, mas
há outras maneiras pelas quais os indivíduos se iludem; e uma dessas maneiras é
acreditar que desejamos as coisas que são boas. Note-se que o “ser boa” é
tomado como condição para que desejemos uma coisa. Crer-se que qualidade “boa”
está na coisa mesma (é parte dela) e que essa qualidade é responsável por
dirigir nosso desejo. Ilusão comum! Mas, na realidade, é justamente o contrário
que sucede. Uma coisa é boa porque a
desejamos. O desejo comanda, portanto, nossas escolhas e determina o valor
que atribuímos às coisas: “o desejo é a verdade do valor” (p. 141). É por isso
que o valor não pode ter a pretensão de ser verdadeiro. A verdade não está sob
o comando do desejo, apenas os valores. Uma coisa é verdadeira,
independentemente de nosso desejo. Não somos imortais, e isso é verdade,
independentemente de nosso desejo de imortalidade. Envelheceremos, e isso é
verdade, independentemente de nosso desejo de permanecermos sempre jovens
(ilusão). O real e a verdade são indiferentes aos nossos desejos.
“O que vale não é o que é (em verdade) justo, belo ou
bom, mas simplesmente o que desejamos e que, por essa razão, julgamos ser
justo, belo e bom” (p.141).
Que não haja dúvida: os
valores são fixados por um ponto de vista humano, governado pelo desejo. Os
valores não são nem irreais (o desejo é real) nem falso (já que isso suporia
uma verdade em termos de valores), mas é ilusório (p. 141). Mas é ilusório não
porque é falso, mas por crer-se verdadeiro. Não é por ser relativo, mas por
julgar-se absoluto. É ilusório também porque crer-se divino: “o homem é só e
julga como pode (...); a ilusão não está nesse juízo, mas na negação de sua
solidão” (ib.id.). Atente-se nas palavras de Sponville:
“A ilusão não está em ser um homem e estar no centro
do seu mundo, mas em se tomar por Deus (ou sua imagem) e estar no centro do
universo. Porque o universo não tem centro e porque não há Deus que julgue”
(p.141).
Não há saída: eis o
labirinto em que vive o homem. O homem jamais poderá viver sem ilusões, porque
ele próprio é ilusório. É ele que toma por efetivamente desejado, isto é, é ele
que hipostasia o objeto de seu desejo e o transforma em valores objetivamente
desejáveis.
“Não é apenas a religião, mas também toda ideologia,
que é uma “consciência invertida do mundo”, uma câmara escura em que, como nas
primeiras máquinas fotográficas, “os homens e suas relações nos aparecem de
cabeça para baixo”. Mesmo ateus, os homens não podem prescindir de uma
realização fantástica do ser humano, como diz Marx, a propósito de Deus, isto
é, de um além da verdade” (p. 142)
A ideologia, para Marx, é
esta forma de ilusão, ou o modo ilusório (ou seja, abstrato e invertido), pelo
qual os homens representam o aparecer social como se tal aparecer fosse a
realidade social. Pela abstração, os homens conhecem a realidade como algo
dado, feito e acabado, que classificam, ordenam, sem nunca se indagarem sobre
como tal realidade foi concretamente produzida. Pela inversão é que se explica que
os homens tomem como objetivo (ou seja, como exterior ao sujeito, pertencente à
coisa mesma) aquilo que, na realidade, é do domínio do subjetivo, da
imaginação, atribuído à coisa pelos sujeitos.
2.3.1.
A ilusão do militante
A ilusão própria da
política prende-se à situação de qualquer militante. Essa ilusão consiste em
que o militante crê ter razão – uma razão que ele pretende seja universal. Não
é necessário o fanatismo para que ele acalente essa crença. Sponville pondera,
nesse tocante, o seguinte:
“Há, assim, um fenômeno espontâneo de auto-sugestão
pela qual cada um imagina defender não somente seus próprios interesses mas os
do Bem, não apenas seus desejos mas as exigências da história, não as suas
opiniões mas a verdade (p. 143).
Todos são sinceros, ou
dizem o ser, quando se arvoram em combatentes em nome da justiça, da felicidade
comum e da liberdade.
“Vários inclusive talvez estejam prontos, pela causa
que creem justa, a sacrificar sua vida ou arriscá-la... E é sinceramente que o
vencedor, qualquer que seja, pensará na noite da eleição que sua vitória é uma
boa coisa, não para ele somente, ou para os seus amigos, mas para o [Brasil]”.
(p. 144-145)
Ele não está errado, nem
está com a razão, porque “a política não é uma questão de razão, mas de desejo”
(p. 145). Não havendo Deus para decidir, a razão não se interessa por fazê-lo.
Ninguém tem razão, porque todos têm desejo. Pode acontecer que o candidato
esteja errado, conforme nota Sponville:
“No máximo, pode-se dizer (...) que o candidato vencedor
estará errado se acreditar que tem razão e que um Deus, em alguma parte, real
ou fictícia, se rejubila secretamente com a vitória dele”.
(p. 145)
Sua ilusão consiste em
pensar que a verdade triunfa quando, na verdade, é o desejo que se satisfez e que
expressou a sua força. Seus adversários, por seu turno, também se iludem, se
pensarem que foi o erro ou a mentira que venceu.
“Ninguém está errado, e todo mundo acha que tem razão.
A ilusão não é o contrário da verdade, mas sua pretensão indevida” (ib.id.)
A situação do eleitor não
é diferente da situação do político profissional. O eleitor se ilude também no
momento em que se convence de que fez a melhor escolha, objetivamente falando.
Sponville não pretende, de modo algum, sugerir a adoção do apoliticismo –
“ilusão por ilusão, prefiro essa tensão da alma às facilidades insípidas e
flácidas do apoliticismo – também ele ilusório, e político a seu modo” (p.146).
Necessário é entender que não se escapa da ilusão e não se escapa da política,
isto é, de atuar politicamente, mesmo que seja para renunciar a qualquer
posição política; jamais se escapa da ilusão de viver como um “animal
político”.
O que, raramente, ocorre
ao militante é a prática da teorização dessa ilusão. Não lhe ocorre teorizar
sobre a crença, largamente aceita, de que existe um bem político discernível do
ponto de vista que funda a verdade (uma política objetivamente boa). A isso se
chama platonismo: “o platonismo é a
ideologia espontânea dos militantes” (p. 146).
Até aqui, consideramos a
situação ilusória em que se encontra o militante idealista. Sponville não está
certo de que haja um militante materialista; não obstante, supõe sua existência
a fim de destacar o que torna a sua situação distinta da situação do militante
idealista. Acompanhemos Sponville no seguinte excerto:
“[O militante materialista] combate sozinho e faz o
que pode (...) Sabe que nem tem razão, nem está errado, que sua força está a
serviço unicamente de seu desejo, e que seu desejo não tem outro direito que
sua força... É lúcido e desesperado” (p. 147).
A ação política do
militante materialista não é dotada de finalidade, e a história – ele o sabe
bem – não tem sentido. A única finalidade que persegue é a do desejo. Como não
há Deus, não há, para ele, um Verbo que justifique sua militância: “seu único
verbo é sua palavra, singular e frágil” (ib.id.). Ele sabe que nenhum combate é
bom, nem partido algum é melhor.
“Não é triste. Não é resignado. Tem a coragem de seu
desespero, e a alegria de sua força. No silêncio de Deus e no burburinho do
mundo, assume até o fim a solidão de seu desejo” (ib.id.).
Toda política é,
portanto, desejante: “a política é a coletividade dos desejos” (p. 148). Nem
todo desejo é, todavia, político; só o é, quando, por efeito da ilusão,
pretende reinvindicar um bem universal, isto é, quando transforma o que é
subjetivamente desejado em objetivamente desejado. A política toma sua força na
hipóstase ideológica de um desejo coletivo, que é uma vontade geral ou sentido
da história. É aqui que o militante materialista e o militante idealista se
encontram:
“O militante materialista vive então as mesmas ilusões
de seu irmão-inimigo idealista: ilusão de ter razão (“somos o partido da
verdade...”), de estar a serviço de valores supremos (“combatemos pela Justiça”)
ou de representar o universal (o Povo, a Nação...), em suma, de combater o bom
combate, no fundo o único legítimo, o único que um Deus, se houvesse algum,
poderia compartilhar; não dá para imaginar um Deus indo contra “o sentido da
história” ou querendo a desgraça da humanidade. Enfim, parece que o militante
materialista não pode se impedir de pensar sua prática em termos de conceitos
fundamentalmente idealistas” (p. 149)
Então, devemos concluir
que o materialista, enquanto militante, é tão iludido quanto o idealista, na
mesma condição? A resposta é: sim e não. O materialismo se defronta com um
paradoxo inevitável: na medida em que o materialismo é efeito do desejo é,
apesar disso, uma doutrina que supõe necessariamente haver algo além do desejo.
Esse “além” é que justifica o desejo e é necessariamente um ideal (porque não
existe objetivamente). O militante idealista compartilha essa crença na
existência de um além; mas somente o materialista reconhece que essa crença é
ilusória. É necessário crer, pois a ilusão é necessária. Por isso, o
materialista está condenado a esta contradição: ele crê em algo que sabe
ilusório e o afirma como tal. Ele é obrigado a se desilusionar, sem abrir mão
de sua crença que reconhece ilusória. Novamente é Sponville que nos esclarece a
condição do militante materialista:
“É para isso que lhe serve a sua filosofia: não para
ele se desembaraçar dessa ilusão (já que lhe ensina, ao contrário, a
necessidade desta), mas para colocá-la em
seu devido lugar, isto é, pensá-la como ilusão necessária” (p. 150).
A lucidez é experienciada
no momento em que reconhecemos ser a política nada mais do que “jogo de forças
e de desejos, e não a emergência de uma verdade” (p.150). Lucidez materialista
e niilista, a um só tempo, portanto.
Nosso cérebro tem a
capacidade natural de produzir ilusões. É possível explicar a facilidade com
que nos enganamos, com que nos iludimos ao longo da vida estudando o modo como
se desenvolve a cognição humana. Nos primeiros anos de vida, no período que
Piaget chamou de pré-operatório, o
cérebro de uma criança se acha ainda imaturo cognitivamente, muito embora ela
já experimente emoções que determinarão significativamente suas experiências
futuras. Aos dois anos de vida, a criança não consegue perceber outro ponto de
vista além do seu próprio. Essa fase caracteriza-se pelo predomínio do
pensamento egocêntrico. A criança, nessa fase, não consegue assumir o ponto de
vista alheio.
Seu pensamento compreende
o mundo sensível como uma extensão de si. É comum que a criança não consiga se
distinguir de outras pessoas e objetos. Ela costuma atribuir suas vivências
pessoais a essas pessoas e objetos. O animismo começa nesse período. Não
obstante a imaturidade do cérebro, a criança está em pleno desenvolvimento da
aprendizagem sobre a realidade a sua volta. Como sua racionalidade só irá
amadurecer algum tempo depois, ela se relacionará com o mundo de maneira
intuitiva, emocional e egocêntrica.
Seu conhecimento do mundo
funda-se, basicamente, nos sentidos. Trata-se de um conhecimento jamais
submetido à reflexão. Ela aprende, mas não entende seu conhecimento. Este
conhecimento é, para ela, incompreensível.
Nos primeiros anos de
vida, o que fica registrado na mente da criança é uma vivência do mundo baseada
em si e, ao mesmo tempo, esquecida para si. Essas primeiras impressões da
infância jamais se apagam. As experiências subsequentes estarão na base de
nossas crenças emocionais já formadas nesse estágio de desenvolvimento de nossa
cognição.
Se, no decorrer da
infância, aprendemos o que é mais básico para atuar no mundo com pouca ou
nenhuma consciência, o que sucede alguns anos depois? Não deve surpreender-nos
que não construímos uma visão de mundo nova, com base na realidade. Na verdade,
nós racionalizamos aquilo em que já acreditávamos por força das nossas emoções.
Em vez de ajustar nossas explicações às evidências, fazemos o contrário:
ajustamos às evidências às nossas crenças preexistentes. Vale dizer de modo
mais claro: explicamos a realidade, ajustando-a de modo que se acomode às
nossas crenças prévias, e tomamos estas crenças como a realidade. Notemos que
já estávamos comprometidos com essas crenças. Essa operação de ajuste da
realidade às nossas crenças primeiras e forjadas em experiências calcadas sobre
as nossas emoções infantis explica por que muitos de nós chegam a acreditar que
os valores são objetivos, que deuses existem e nos amam.
Estamos programados para
fazer julgamentos morais com base numa teoria do realismo moral, consoante nota
o filósofo e neurocientista Joshua Greene:
“O julgamento moral, em sua maior parte, não é guiado
por raciocínios morais, mas por intuições morais de natureza emocional. Nossa
capacidade de julgamento moral é uma complexa adaptação evolutiva a uma vida
intensamente social. Na verdade, somos tão bem adaptados a fazer julgamentos
morais que, aos nossos olhos, o ato de fazê-los é bastante fácil, parte do “bom
senso”. Como muitas habilidades de fazer julgamentos morais nos parece uma habilidade
perceptível, uma habilidade, neste caso, de discernir imediata e confiavelmente
fatos morais que independem de mentes. O resultado é que somos naturalmente
inclinados à errônea noção de realismo moral. As tendências psicológicas que
encorajam essa crença equivocada têm uma importante função biológica, e isso
explica por que julgamos o realismo moral tão atraente, ainda que seja falso.
Digamo-lo ainda outra vez, o realismo
moral é um erro que nascemos para cometer”.
(Greene, 2002. apud.
Cioran, 2011, p. 89, grifo meu).
Incrível!
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