Viver como
Nietzsche
“Fala o
desiludido – eu buscava grandes homens, e sempre achei os macacos de seu ideal”.
(Crepúsculo dos
Ídolos)
Comecemos, pois. Em princípio, preciso
esclarecer o significado pretendido com o título deste texto, dado
que esse título autoriza mais de um sentido (possivelmente, muitos). Viver como Nietzsche é viver como uma pessoa conciliada com o real, com a vida. É esse o sentido que
pretendo fique, desde já, realçado com a escolha linguística que fiz. Há outro sentido que ilumina o realce do
primeiro e que me parece também pertinente. Viver como Nietzsche é viver e perceber o mundo sob o olhar da
suspeita. Não suponho que todos sejam capazes de tal experiência contínua e decisiva; pois que, nas sociedades ocidentais, muitos são ainda os decadentes. Cesso de talhar as palavras, pois que não quero torná-las pontiagudas demais. Não quero parecer que me encontro em alguma condição privilegiada, inacessível aos que se interessam por ler-me.
Se o leitor me consentir, inicialmente, que um
tal viver, se não é inacessível, ao menos demanda certo labor de um corpo que não se pensa mais como distinto do espírito, de um corpo, aliás, que nega que exista uma tal substância, então posso eu prosseguir com o curso de minhas reflexões.
A produção deste texto é
motivada pela necessidade de retornar a Nietzsche, a fim de lhe fixar o lugar
de excelência que lhe cabe na incisiva transmutação em meu olhar-sentir o mundo, a existência e a
mim mesmo como Dasein (para usar um
conceito apropriado de Heidegger).
Em algum lugar, escrevi que a filosofia – e,
por consequência, o ateísmo – fez reconciliar-me com o
mundo. A leitura de Nietzsche é que me sugeriu essa forma de compreender-me
como um renascido dos fracos e decadentes. Quem, em algum momento, leu
Nietzsche ou a respeito de sua filosofia sabe alguma coisa concordará na afirmação de que Nietzsche procurou reconciliar
o homem com o real. Sua filosofia é seu esforço de tornar o homem reconciliado
com a vida e suas forças (dela) no aqui e agora do mundo.
Com vistas a ilustrar o que se deu comigo,
depois que passei pela leitura cirúrgica de Nietzsche,
tome-se o seguinte passo de um texto meu, escrito há 4 ou 5 anos. O título que encabeça esse texto é A Aurora do Renascimento em Deus. Escusa dizer
que, àquela altura, ainda estava aferrado à crença em Deus. Uma nota sobre as
condições de produção desse texto é
necessária. Ele se reúne a outros
tantos textos que compõem uma coletânea
de escritos vazados numa linguagem efusivamente místico-religiosa que me acalentou durante um longo período em que vivi entrevado numa liricamente produtiva
depressão.
“Muitas vezes, sinto-me sufocado pelo mundo.
Certo dia, quando imerso num profundo desespero, vociferei a irreprimível
insatisfação de estar encarnado e irremediavelmente contido nesse mundo. Não
aceitava a insensibilidade alheia, a indiferença das pessoas, especialmente das
jovens moças a que entregava os filhos líricos de meu coração. Muitos foram
rejeitados, abandonados, ignorados pela estreiteza e a vacuidade do coração
delas.
Meus poemas
eram sopros de anelo cálido e efervescente que minha alma lançava aos Céus,
para que Deus me desse beber do cálice do Amor Bendito. E meus poemas não
cessavam de nascer, embebidos num pessimismo nefasto.
Algumas
tempestades foram necessárias, para que minha alma gozasse da beleza dos dias
de um céu azul cristalino e ensolarado. Sempre neguei a matéria, o corpo
passível de corrosão, que será consumido pela terra faminta de protoplasmas e
citoplasmas. Sou homem, decerto, mas não sou um corpo com alma, mas uma alma
com corpo. Esse invólucro é temporário; há de extirpar-se como extinguíveis são
as pragas que assolam o milharal.
Como seja eu
pura alma em ebulição lírica, desejo incessantemente transcender; busco,
mediante a palavra, alcançar universos supra-sensíveis, aos quais o acesso só é
possível pela reflexão e introspecção.
Pasme-se,
leitor, como também fiquei atônito, ao ler este passo de Huberto Rodhen, em Em Comunhão com Deus,
à página 43:
“Para que o
homem possa ingressar nesse mundo grandioso do “espírito”, é necessário que
transcenda as fronteiras dos “sentidos” e do “intelecto” “.
Há milhares de
anos, a vida do homem se estabeleceu no céu dos sentidos e do intelecto.
Libertar-se dessa atmosfera de racionalidade e imediatismo é necessário para
que o homem logre alcançar as regiões supra-sensíveis e supra-intelectivas. O
prelúdio para a experiência real do mundo invisível aos olhos do corpo, mas
visível aos olhos da alma, é a fé.”
(BAR)
Como não pretendo me deter na análise deste excerto, porquanto sua leitura é suficiente para tornar possível a apreensão pelo leitor da representação de um ethos que contrasta claramente com o ethos de que é expressão o próximo
excerto que vou referir. Ethos, desde
Aristóteles, ainda que nele encerre também um sentido moral, significa
“imagem de si”. E é o lógos ou o discurso o lugar que
engendra o ethos. Com base no
conceito de ethos, poder-se-ia ver,
pela análise, que a imagem de si construída pelo sujeito do
texto acima é a de um indivíduo em claro conflito com o mundo e
aprisionado nas ilusões de uma tradição judaico-cristã e platônica à luz da qual ele
experiencia a si mesmo e sua relação com o mundo. Mas a
tarefa de interpretação deixo ao encargo do leitor.
Considere-se, agora, este outro texto, escrito mais recentemente, do qual se
depreende um outro ethos- um ethos cirurgicamente modificado pela
leitura de Nietzsche e, de modo geral, pela imersão aturada
na literatura filosófica.
“A filosofia operou uma cirurgia em meu espírito.
Lendo Nietzsche, descubro o poder de sua crítica ao romantismo que impregnava o
seu tempo de negação à vida. Nietzsche me ensinou a afirmá-la, em que pese as
suas intempéries. E como não lembrar aqui Epicuro e sua escola que lhe ostenta
o nome. São quatro os pilares que sustentam sua doutrina: 1) não temer os
deuses; 2) não temer a morte; 3) buscar prazeres moderados; 4) evitar a dor. O
Deus, eu o rejeitei, porquanto absurdo; a morte, já há muito acolhi em meus
pensamentos e contra ela se debate a força de meu espírito, especialmente nas
noites em que a lua não me visita antes do sono; os prazeres estiveram
limitados ao ventre da alma (a poesia, a leitura, a escrita, o amor). Só muito
tardiamente conheci o prazer do enlace dos corpos, ao qual veio presa uma
cadeia de frustrações. Nada mais natural para um idealista. A par deste
espírito niilista que me sabe à existência, trago comigo o pendor estóico para a
indiferença ao sofrimento. A vida é uma luta. Disso soube desde que nasci.
Nascer é resistir à morte prematura, à inclinação de toda vida, que é frágil,
para o abandono à morte (descanso desejado pelos falidos).”
(BAR)
Esse fragmento foi colhido do texto, publicado
neste blog, em 11 de março de 2013, cujo título é reencontrando-me. O referido fragmento
já inicia com a declaração da transformação cirúrgica empreendida pela filosofia no sujeito que se constrói no curso do discurso. Em seguida, evoca o legado de Nietzsche, cuja
filosofia foi determinante do salto de reconciliação com o mundo dado por esse eu então afetado ou
renascido. No texto, esse eu afetado se reencontra com a imagem-de-eu de
outrora, ciente, no entanto, de que sua
condição atual é tão imagética quanto o fora no tempo para
o qual se reporta. Esse “eu” já não se crê como substância; sabe-se como um sintoma de um corpo, ou um
feixe de representações, sensações, sentimentos de um cérebro. Sabe que, outrora, era um ídolo em cuja centralidade concentrava todas as fraquezas da vida. Que o
leitor ausente tire as conclusões que lhe forem mais coerentes, eu
consinto, contanto que não se convença delas apressadamente. Já tarda o momento de me
ocupar com a exposição da contribuição do pensamento de Nietzsche. Retomo suas demolidoras marteladas
filosofantes, com o propósito de elucidar de que modo se nos
aproveita o viver como Nietzsche.
1. Nietzsche
e a filosofia do martelo
Nietzsche inaugurou a época do que viria a ser
chamado de desconstrução da metafísica e da
religião. Se assumirmos que o materialismo
é a filosofia que sustenta serem ilusórias todas as formas
de transcendência, serem ilusórios todos os nossos ideais e serem
nossos valores produtos inconscientes de certas realidades materiais, deveremos
aceitar, forçosamente, que Nietzsche fora o verdadeiro fundador do materialismo
contemporâneo (Ferry, 2008).
Nietzsche desenvolveu uma crítica radical do que ele chamou de ‘ídolos’, a saber, todos os ideais
que puseram em movimento a atividade filosófica, religiosa e política durante séculos. Nietzsche foi o desconstrutor, aquele que, nas
suas próprias palavras, “filosofava a marteladas” (Ferry, 2008).
Embora se tenha reconhecido como um herdeiro
das Luzes, sua crítica ácida
continuou o que as Luzes não levou adiante. O espírito crítico das Luzes insurgiu-se contra a
religião e a metafísica, denunciando suas ilusões. Todavia, não levou adiante sua empresa; e passou a
exigir e a adotar novos ídolos, quais sejam: a Razão, a Verdade, a Democracia, a República, a Liberdade,
etc. Esses ídolos ocuparam o lugar deixado pelo mundo inteligível de Platão e pelo paraíso dos cristãos. Posteriormente, àqueles ídolos se reuniram outros como o Socialismo, o Anarquismo, o Comunismo,
o Cientificismo, o Patriotismo, etc.
Nietzsche tão logo se apercebeu de
que esses ídolos laicos ainda mantinham intacta a estrutura do além em detrimento
do mundo real do aqui em baixo. Em Vencer
os medos (2008), o filósofo Luc Ferry dá-nos a saber no que consistia o trabalho do espírito crítico para Nietzsche.
“O
espírito crítico
tem, portanto, de voltar a trabalhar e continuar criticando o que as próprias Luzes, por uma espécie de inconseqüência, por falta de
radicalidade, deixaram subsistir das antigas formas religiosas” (p. 73).
Quando Nietzsche declarou “Deus está morto”, não reconheceu tão-somente a morte dos ídolos que o homem fabricou, mas também
a do Homem do humanismo. Todos os seus ídolos, ou seja, todos
os seus ideais mantinham a estrutura fundamental da religião e, por isso, deviam ser demolidos.
Nietzsche fez “tabula rasa” da tradição ocidental (mais especificamente, dos valores dessa tradição), levando a termo uma empresa que Descartes e as Luzes, antes dele,
tinham já iniciado. Sucedeu, contudo, que tanto Descartes quanto as Luzes
deixaram inacabado o trabalho.
2.
Nietzsche – o contrário de um niilista
Não pretendo fazer
incursão na discussão sobre se Nietzsche desenvolveu ou não um pensamento que poderia ser filiado à esteira do pensamento
niilista. O que me ocupará é a tarefa de mostrar o que Nietzsche
entendia por niilismo, para, assim, situá-lo como o contrário de um niilista, tal como nós o entendemos hoje.
Comecemos por notar o seguinte: na medida em que Nietzsche insurgiu-se
contra todos os ídolos da cultura
ocidental, Nietzsche dispensou uma crítica severa ao
niilismo que constitui o cerne dessa cultura.
À luz do nosso entendimento atual do termo niilismo, Nietzsche pode parecer-nos um
partidário do niilismo, visto que se dedicou a demolir todo um universo de
valores sobre os quais o homem ocidental ancorou até então sua vida. A pós-modernidade, que, àquela altura,
Nietzsche viria a inaugurar, pode ser caracterizada como o período profundamente marcado pela perda do universo de referência axiológico que orientava a vida do homem. No entanto, o niilismo, para
Nietzsche, significava algo totalmente contrário ao que significa
para o senso comum hoje. Para nós, um niilista é aquele que não defende nenhum valor, que não tem ideal. Para
Nietzsche, ao contrário, niilista é justamente aquele homem
que vive aferrado a “convicções empedernidas” e excessivamente
morais. Niilista, segundo Nietzsche, seria aquele que tem ideais, sejam eles
religiosos, metafísicos ou laicos, humanistas ou
materialistas. Cabe, aqui, frisar que Nietzsche não
rejeitava apenas os ideias metafísico-religiosos, mas
todos os tipos de ideais, inclusive os gestados pela mentalidade laica e
cientificista.
Ora, segundo a perspectiva nietzschiana, os
ideais – os ídolos – são não só irreais, como também mantenedores da estrutura metafísico-religiosa do além. Essa estrutura aniquila o real. Esses ideais
foram inventados pelos seres humanos a fim de revestir de sentido a sua vida, e
também a fim de consolá-los na experiência de sua finitude;
sob muitos aspectos, por isso, esses ideais negam a vida como ela é.
O idealismo é, portanto, para Nietzsche, um
niilismo, se entendermos por idealismo uma atitude de negação do real em nome do ideal. Toda tentativa de melhorar o que existe em
nome de um futuro próspero, em que se dará a realização do homem, ou em nome de um sentido
velado, de um projeto superior, é um niilismo. É contra
esse niilismo que se erige a crítica de Nietzsche. É esse niilismo que tem de ser negado, se intentamos resgatar o real do
peso da moral do ressentimento à qual ele sucumbiu. Trata-se – evocando as
palavras de Sponville – de lamentar um pouco menos, de esperar um pouco menos
para amar um pouco mais. O desespero de Nietzsche, o desespero de Sponville não é o desespero do qual tenta incessantemente fugir o homem decadente;
é um desespero afirmativo do real, porque é a própria ausência
de qualquer esperança. Para amar o real, o presente, é preciso livrar-se das
esperanças que nos põem sob o domínio da tirania do futuro. Amar o real, dirá Nietzsche, é amá-lo como presença tal como nos é dada. É o que ele chama de amor fati,
que é o amor pelo que existe, que é a “inocência do devir”, uma inocência que
se conquista no momento em que nos libertamos do peso das paixões tristes que nos mantêm atados ao passado e das nostalgias e das
culpas (Ferry, p. 80). Nietzsche retoma aqui a sabedoria dos antigos e anuncia
a necessidade de nos libertarmos da tirania do futuro e das ilusões da esperança (ib.id.).
Nietzsche se apresentava como um imoralista, ou
mesmo como o Anticristo. Se isso repugna às sensibilidades forjadas em nossa
tradição moral de base judaico-cristã, é que essa
repugnância é sintoma de uma enviesada compreensão de
Nietzsche. Não era Jesus o alvo da corrosiva crítica nietzschiana, mas
a Igreja, o sacerdote, o cristianismo.
O filósofo de Röcken procurou afastar os perigos do niilismo, situando-se “além do bem
e do mal”. Em sua própria vida, não deixou de distinguir entre formas de vida doentias, nocivas,
atrofiadas, astênicas, em suma, “ruins”, e formas de vida mais vivas, mais
generosas, mais afirmativas e alegres (Ferry, p. 75).
3. O homem
dionisíaco
O conceito de dionisíaco constitui o pilar que sustenta o pensamento de Nietzsche em O nascimento da tragédia (1872). O
dionisíaco reúne o conhecimento da dimensão trágica da vida à fruição alegre e robusta dela (vida). Com
esse conceito, Nietzsche se opôs ao pessimismo shcopenhauriano. Ao contrário de Schopenhauer, Nietzsche buscou uma justificação da vida, uma afirmação da vida sem concessão, em que pese seus aspectos mais terríveis e
pungentes. O amor fati é uma espécie
de convocação de Nietzsche a que amemos a vida mesmo naquilo que ela tem de mais
doloroso. É neste momento em que atingimos o ápice do viver como
Nietzsche. Seria possível continuar amando a vida mesmo
depois das mais incisivas e pungentes cicatrizes? É possível amá-la mesmo quando ela é sentida como uma doença que contraímos sem qualquer responsabilidade no contágio?
Precisemos bem o ‘lugar’ donde essas questões se enunciam, pois
que Nietzsche não está sugerindo
que amemos a vida por um decreto de uma autoridade heteronômica (de Deus, por
exemplo). O homem de Nietzsche, ou melhor, o homem dionisíaco, é um homem desesperado, no sentido de que ele não nutre esperanças, ilusões, não espera viver a eternidade num além-mundo.
O dionisíaco não é apenas o conceito que orienta a filosofia de Nietzsche; é,
provavelmente, o único conceito que atravessa toda a sua
obra. No seu O nascimento da tragédia,
Nietzsche objetivou, fundamentalmente, construir uma filosofia trágica da existência. Essa filosofia se apresenta como uma alternativa ao
cristianismo que culpa o mundo desde o surgimento do primeiro homem.
Na figura do deus grego de origem oriental Dionísio, Nietzsche viu o contraponto ao cristianismo que tanto influenciou
a sua infância. Sem pretender deslindar toda a temática dionisíaca, quero, no entanto, frisar a
seguinte ideia fulcral, e a partir dela precisar quem é o homem dionisíaco: o trágico é apresentado em Nietzsche, sob a perspectiva de uma filosofia
pessimista e estética. Todavia, trata-se do pessimismo dos fortes, como tal, de
um pessimismo que não nega a vida. Esse pessimismo trágico aceita a existência e a sua dolorosa verdade dionisíaca: a morte e o sofrimento.
A alegria, de acordo com essa perspectiva, deve
ser encontrada não na harmonia; mas na dissonância. O
mundo trágico é um mundo sem redenção. Nietzsche teve a
coragem de ligar o pessimismo ao instinto de vida. Longe de significar
fraqueza, seu pessimismo afirma a força da vida, a robustez da vida. Segundo
Nietzsche, o pessimismo é fonte de alegria.
Em suma, o homem dionisíaco é sinônimo de homem trágico. Ele é uma
resposta ao pessimismo de Schopenhauer, que enfraquece a vida. O trágico, em Nietzsche, é o que
nos permite viver. O homem trágico vê a vida cheia
de alegria e de poder, a despeito – o que não nos deixa de
impressionar – da mutabilidade fenomênica de suas formas. É devido ao sofrimento inerente à vida que o homem dionisíaco a afirma. Numa passagem que me parece suficientemente elucidativa,
em O nascimento da tragédia (2007)
Nietzsche anuncia a que se opõe a sua (contra)doutrina dionisíaca:
“A
moral não
seria uma “vontade de negação
da vida”, um instinto secreto de aniquilamento, um princípio de decadência,
apequenamento, difamação,
um começo do fim? E, em consequência, o perigo dos perigos?... Contra a moral, portanto, voltou-se então, com este livro problemático, o meu instinto, como
um instinto em prol da vida, e inventou para si, fundamentalmente, uma
contra-doutrina e uma contra-valoração da vida, puramente artística, anticristã.
Como denominá-la?
Na qualidade de filólogo
e homem das palavras eu a batizei, não sem alguma liberdade – pois quem conheceria o verdadeiro nome do
Anticristo? – com o nome de um deus grego: eu a chamei dionisíaca (ênfase no original, p. 18)”.
Compreende-se, quando se atenta para o excerto
acima, pois, que homem dionisíaco é o oposto do homem cristão; é o próprio anticristo, porque não busca um além que nega a vida.
Esse homem dionisíaco não encara o
sofrimento como a via crúcis para ir ao encontro da eternidade
no colo acolhedor de Deus. O sofrimento não é, para ele, um pedágio que se paga no aqui para permanecer fiéis à travessia para a
eternidade.
Na concepção trágica de Nietzsche, a vida se estrutura pela dissonância prazer/dor. A
vida se apresenta como vida sem redenção, que não oferece escapatória, e da qual também não se espera escapar. É esta a vida eterna, o eterno retorno
da vida, de que fala Nietzsche em seu Crepúsculo dos Ídolos. Nessa obra, encontramos a definição do pensamento dionisíaco, com cuja apresentação ponho termo a este
texto, com a certeza de que o que se silencio fala mais (produz mais sentidos)
do que aquilo a que dei uma materialidade verbal.
“Aquiescência
à vida, até em seus problemas mais afastados e mais árduos; o querer-viver
sacrificando alegremente os seus tipos mais realizados para a sua própria e inesgotável fecundidade – é tudo
isto o que chamei dionisíaco”.
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