terça-feira, 1 de março de 2011

O ensino de língua portuguesa numa orientação funcionalista


O ensino de língua materna tem como objetivo precípuo (senão único) desenvolver a competência comunicativa dos falantes; no entanto, esse objetivo não pode ser atingido sem o reconhecimento de que todos os falantes nativos, independentemente de seu grau de escolaridade, de sua classe social, da origem cultural, de suas experiência de mundo, de sua idade, sexo, etnia, etc., sabem a sua língua materna, ou seja, possuem uma competência nessa língua. Por competência lingüística, portanto, entende-se o conhecimento intuitivo e implícito das regras gramaticais pelas quais os falantes nativos são capazes de produzir e interpretar sentenças em sua língua materna. Evidentemente, é uma definição simplista ademais, já que o conhecimento lingüístico é, decerto, muito mais complexo; todavia, mantenho-a com estar de acordo com a proposição chomskyana (1965). Fique claro que o conhecimento lingüístico do falante nativo consiste não só num conhecimento operacional (“capacidade de produção de sentenças gramaticais”), mas também num conhecimento avaliativo, por que julga certas construções como aceitáveis (isto é, produzidas de acordo com as regras da gramática1 de sua língua nativa) e rejeitam outras.

1. Veja-se no texto seguinte uma discussão sobre os conceitos de gramática.


A competência comunicativa consiste não só na capacidade de o falante codificar e decodificar as expressões lingüísticas, como também na capacidade de utilizar essas expressões de modo adequado aos fins comunicativos, nas mais diversas situações de interação. Destarte, não basta ao falante o conhecimento (implícito) das regras de sua língua para que ele seja bem-sucedido nas várias situações comunicativas, ele precisa utilizar suas produções lingüísticas de sorte, que possa participar do evento comunicativo. Em suma, dispensando-se pormenores, a competência comunicativa é a capacidade de o falante utilizar sua língua adequadamente para fins comunicativos. Com ser a língua um instrumento de comunicação fundamental na vida dos homens, cujo uso reflete, inclusive, a estratificação social, justo é que o ensino de língua portuguesa leve em conta o domínio da norma padrão como um dos meios possíveis para que o falante seja bem-sucedido interacionalmente e não o único meio  possível.
Intentando cumprir o objetivo do ensino de língua materna, proposto no limiar deste texto, será necessário ter em conta que não se poderá privar os aprendizes da apropriação de formas e usos lingüísticos prestigiosos sócio-culturalmente e, tampouco, não se poderá ensinar a língua dita padrão, especialmente em sua modalidade escrita, em detrimento de variedades não-padrão da língua falada ( e também escrita – muito embora, tradicionalmente, associe-se a idéia de língua padrão à de língua escrita, ignorando o fato de que há textos escritos vazados em variedades não-padrão, bem como há textos falados vazados em variedades padrão). O professor, concordante com a proposição aqui apresentada, esforçar-se-á por permitir aos alunos o acesso ao maior número de variedades lingüísticas possível, bem como a utilização adequada delas nas diversas situações de interação, atendendo às diversas demandas sócio-comunicativas.
Reitere-se que a escola tem por objetivo permitir o acesso dos aprendizes à norma padrão, mas, consoante propõem estudiosos como Sírio Possenti, Marcos Bagno, entre outros, não mais ensinará um padrão de língua ideal, fazendo abstração de outras variedades. Em primeiro lugar, o professor terá de reconhecer que muitas formas e usos prescritos pelas gramáticas normativas são arcaicos, portanto, não encontram repercussão no uso atual da língua. Em segundo lugar, não poderá valorizar a variedade padrão em detrimento das variedades não-padrão. Também não poderá ignorar o fato de os pontos de vista dos gramáticos serem, muita vez, conflitantes, isto é, as interpretações sobre as construções que devem ser recobertas pela norma padrão, muita vez, são divergentes.
A competência textual diz respeito à capacidade de o usuário da língua distinguir um texto coerente de um aglomerado de frase, bem como à capacidade de ele operar sobre o material lingüístico, na produção dos seus textos, realizando operações de paráfrase, resumo, ou reconhecendo a completude ou incompletude deles, ou ainda atribuindo-lhes um título adequado, a partir do qual os produz.
Há que reconhecer outrossim outras capacidades que intervêm no uso que os falantes nativos fazem de sua língua. Citem-se as seguintes:

a) a capacidade epistêmica: capacidade pela qual o usuário constrói, conserva e explora uma base de conhecimento estruturado, podendo derivar conhecimento das expressões lingüísticas, arquivar adequadamente esse conhecimento e lançar mão dele quando da interpretação de expressões lingüísticas ulteriores;
b) a capacidade lógica: valendo-se de princípios lógicos, ou seja, do raciocínio, o falante é capaz de extrair parcelas de conhecimentos de outras parcelas de conhecimento que mantém em sua memória;
c) a capacidade perceptual: o usuário se vale de suas percepções para derivar conhecimento; o conhecimento adquirido pela aplicação de sua capacidade perceptual é empregado para interpretar as expressões lingüísticas;
d) a capacidade social: diz respeito ao saber sócio-culturalmente transmitido graças ao qual o falante usa sua língua de acordo com as normas sócio-comunicativas vigentes. Ou seja, o falante sabe o que dizer e como dizer, numa determinada situação de interação.




  Tais capacidades se inter-relacionam, do que decorre a produção de um output, que pode ser importante para que as demais capacidades possam atuar.
Reconheça-se, contudo, que, a fim de levar a efeito o objetivo fundamental do ensino de língua portuguesa a falantes nativos – a saber, desenvolver a competência comunicativa desses falantes -, o professor deverá ter em conta uma outra concepção de língua, ou seja, não poderá entender apenas a língua como um sistema de signos desvinculado da realidade sócio-cultural e histórica dos seus falantes e também como “algo” estranho a eles (a saber, como uma realidade que desconhecem, que lhes é tão “misteriosa” e que deve ser “aprendida” mediante prática de exercitação contínua e exaustiva no ensino formal). O professor deve, portanto, ter em conta que a língua é um produto sócio-cultural, que varia ao longo da história de uma sociedade, que acompanha e se adapta às condições materiais e espirituais de vida dessa sociedade, que serve, entre outras funções, à função comunicativa, ou seja, permite aos membros de uma sociedade a comunicação entre si, etc. A rigor, numa perspectiva funcionalista, o professor deve entender a língua como lugar de interação, atividade social de negociação de significados, mediante a produção de textos, na qual se envolvem interactantes situados social e culturalmente. Ademais, o professor deve considerar a língua como uma propriedade cognitiva, como um conhecimento “inscrito” na mente humana e, mais propriamente, deve encarar a linguagem como uma faculdade da mente que permite aos seres humanos interpretar e estruturar a realidade do mundo, tornando-a ‘dado’ de consciência. Assim é que cada língua refletiria, a priori, uma dada visão de mundo, ou seja, deixaria entrever uma codificação (ou “recorte”) peculiar do mundo relativamente a um determinado grupo sócio-cultural. Assim também é correto dizer que o estudo das línguas pode contribuir para se entender melhor como se estrutura e funciona a mente humana. Disso se segue uma fascinante discussão sobre a inter-relação entre pensamento e linguagem, da qual não me ocuparei aqui, muito embora, como desperte bastante interesse nos estudiosos da linguagem (filósofos, gramáticos e lingüistas) há séculos, deve-se tê-la sempre em conta. Dessa questão tem-se ocupado especialmente a lingüística cognitiva.
Do exposto desse último parágrafo, depreende-se que deve estar consciente o professor de português da variação lingüística, a saber, deve ter em conta a pluralidade e diversidade inerente às línguas. Sabe-se, há muito, que o português constitui um “balaio de variedades lingüísticas”; não existe, pois, uma só língua portuguesa no Brasil. No Brasil, falam-se muitas variedades de língua portuguesa, e não há razões empíricas para a hierarquização dessas variedades, segundo parâmetros avaliativos de espécie alguma: certas formas e usos lingüísticos são considerados “ruins” ou “errados”, em virtude de uma avaliação de ordem social (e ideológica); a sociedade é que, servindo-se de parâmetros de ordem diversa (e não-lingüística!), classificam certas expressões lingüísticas como “certas” ou “cultas” e outras como “erradas”, “ruins” ou “incultas”. É consabido que, especialmente na realidade sócio-cultural brasileira, há uma relação intrínseca entre usos lingüísticos e inserção social: os usos lingüísticos desprestigiados e condenados relacionam-se às classes menos favorecidas economicamente; e os usos prestigiosos constituem marcas das classes mais prestigiosas, isto é, dominantes. Nesse tocante, diz-se, comumente, que a língua é um fator de estratificação social.
No tocante ao conceito de variação lingüística, convém ao professor familiarizar-se com as noções de registro e de dialeto.  Luiz Carlos Travaglia, em seu livro Gramática e Interação: uma proposta para o ensino de gramática (2003), reserva um capítulo em que nos apresenta uma lição sobre variação lingüística. À página 42, refere os dois tipos de variedades lingüísticas, a saber, os dialetos e os registros. Os dialetos são variedades da língua que se definem nas dimensões territorial, geográfico (ou regional) e social (nesse caso, chamam-se socioletos) e se dão em função dos usuários da língua. Os registros, a seu turno, são variedades que ocorrem em função do uso que se faz da língua, de tal sorte que a variação depende do receptor, da mensagem e da situação. Assim é que, ao se referir ao falar nordestino em face ao falar sulista, por exemplo, consideram-se, pois, dois dialetos diferentes. Da mesma sorte, quando se observa o comportamento verbal de uma determinada classe social, em contraste com o comportamento verbal de outra classe social, leva-se em conta a existência de dois dialetos sociais ou socioletos. A variação aqui ocorre em função da esfera sócio-cultural ocupada pelos usuários da língua. A gíria, por exemplo, que se define como um uso da língua próprio de um grupo social – uso por que esse grupo social se identifica e por que se “protege” da influência de outros grupos – constitui um tipo de dialeto social. No âmbito social, a variação pode dar-se em função de parâmetros como idade, sexo e função dos usuários da língua.
No tocante aos registros, importa considerar três tipos de registros: grau de formalismo, modo e sintonia. O grau de formalismo diz respeito à adequação do emprego das expressões lingüísticas às diferentes situações de interação, para atender às necessidades sócio-comunicativas esperadas. Há, pois, no grau de formalismo, uma escala de formalidade que se estende do registro familiar ao registro oratório, na modalidade oral, e do registro pessoal ao hiperformal, na modalidade escrita. A variação de modo diz respeito à oposição entre língua falada e língua escrita, de tal sorte que esta é entendida como um sistema específico, diferente do sistema da língua falada. A sitonia é um tipo de registro que orienta o uso para o ajustamento ou reformulação dos textos produzidos pelo falante, em virtude de ter em conta conhecimentos prévios sobre o seu interlocutor. Esses conhecimentos relacionam-se ao status social do interlocutor, o qual determina a seleção e o emprego dos recursos lingüísticos (não se fala com um garçom da mesma forma como se fala com um médico, por exemplo); à tecnicidade dos conhecimentos do interlocutor acerca de um determinado assunto (o professor de língua falará sobre um determinado assunto de modo diferente, caso esteja em uma conferência perante especialistas ou esteja em presença dos pais de seus alunos, etc.); à cortesia, que diz respeito à dignidade do interlocutor ou ao formalismo exigido pela situação. Por exemplo, num enterro, espera-se que alguém diga algo como (1), mas não como (2) e (3):

(1) Meus sentimentos pelo falecimento de seu marido.
(2) Meus sentimentos por seu marido ter batido as botas.
(3) Então, quer dizer que o velho abotoou o paletó de madeira?

Finalmente, cumpre mencionar a variação na dimensão da norma, que se refere ao uso lingüístico em consonância com um padrão de linguagem de prestígio. Nesse tocante, ao nos comunicarmos, tendemos a apreciar de modo positivo ou negativo as produções lingüísticas de nosso interlocutor. Consoante ensina Travaglia (2003:57), “usamos uma determinada variedade lingüística porque a julgamos apropriada para falar com aquele(s) ouvinte(s) em particular”. Essa variedade pode ser social, geográfica ou um registro técnico, cortês, etc.
Claro está que a exposição apresentada aqui do conceito de variação lingüística e de suas variedades é bastante sucinta; conveniente, contudo, para efeito de nossa proposição. Cumpre dizer, por fim, que o conceito de dialeto difere do conceito de registro, na medida em que este se refere à suposta influência do interlocutor na seleção e no uso dos recursos lingüísticos adequados a satisfazer às necessidades sócio-comunicativas em uma determinada situação, e aquele se refere ao uso da língua pelo falante, numa esfera geográfica, regional ou social. Os termos registro e variedade são empregados, normalmente, para denotar o mesmo conceito; variedade, muita vez, vale por dialeto. Comumente lê-se “dialeto regional”, “dialeto social” em face de “variedade regional” ou “variedade social”, etc.
Em que pese à confluência terminológica, convém ter em conta o seguinte conceito de variedade, colhido da obra Sociolingüística: uma introdução crítica (2002: 177):
“ sistema de expressão lingüística que pode ser identificado pelo cruzamento de variáveis lingüísticas (fonéticas, morfológicas, sintáticas, etc.) e de variáveis sociais (idade, sexo, região de origem, grau de escolarização, etc.)”.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

O não-dito

                               
        Entre guerra e paz: o não-dito


Em meio à euforia e contentamento, os acontecimentos violentos que envolveram  incursão policial e militar no chamado Complexo do Alemão (Rio de Janeiro), no ano passado, fizeram eclodir uma série de informações e discursos. Estes últimos trouxeram à tona palavras como terror, terrorismo, guerra, entre outras. Aquelas, propaladas pelos meios de comunicação, especialmente televisivos, se nos apresentavam desconectadas e fragmentadas. Eu fiquei à deriva em meio à sua enxurrada, sem ter certeza, afinal, do que era fato ou irrealidade. É provável que pessoas mais distraídas ou não experimentadas nas estratégias discursivas sequer tenham percebido o largo uso de construções linguísticas formadas com o verbo no futuro do pretérito composto (lembra? Teria dito, teria falado....). A função discursiva deste uso reside em que, através dele, o locutor não se compromete com a veracidade ou validade do que comunica; é como se ele colocasse o dito na boca de outros (“ouvi dizer...”). É uma estratégia que serve para isentar o locutor da responsabilidade pelo que diz.
Os discursos tiveram uma importância inegável, muito embora reconhecível apenas por profissionais que trabalham com a linguagem. Sabe-se que todo discurso (re)constrói o real; não o espelha. Assim é que os discursos propalados pela mídia, mormente nos dias em que se deu o conflito, exerceram, a par das forças policiais e militares, o seu poder na construção ideológica da realidade. Vale notar, de passagem, que o discurso das autoridades, sobretudo das que comandavam a tropa das polícias civil e militar, instaurou duas esferas ideológicas, necessariamente, antagônicas no imaginário social: a do Bem, representada pelas forças policiais e militares; e a do Mal, cujos representantes eram os traficantes. O modelo de mundo aí criado se espelha no modelo de mundo das histórias de super-heróis, nas quais o herói (o Bem) duela com o vilão (o mal). O herói é dotada das maiores virtudes; é todo-poderoso e incorruptível; o vilão, ao contrário, é repleto de vícios, corruptível e, embora também muito poderoso, está fadado ao fracasso. No final, o Bem sempre vence.
O discurso também exerceu uma função especial na construção de uma imagem positiva da polícia, na medida em que reforçou o apoio popular às incursões feitas no morro. O que se pretendia mostrar é que, dessa vez, o povo estava de mãos dadas com a polícia. Até cartas de agradecimento e incentivo foram encaminhadas a repórteres para que seu conteúdo fosse lido ao vivo, embora também incluíssem uma boa dose de receio do abandono. Instaurou-se, por força do discurso, uma atmosfera amistosa, em que se reiteravam valores como união, parceria, apoio e co-participação popular.
Não obstante, não tardaram em surgir algumas denúncias de abuso de poder policial. Isso já foi suficiente para se instaurar outra atmosfera, certamente sombria, densa, pois que repleta de dúvidas e desconfiança. Será possível? – nos perguntamos. As denúncias estão sendo apuradas, é claro. Vamos aguardar... Há quem desconfie de que os moradores estariam sendo forçados por traficantes que ainda estariam no morro, imperceptíveis, a detratar a polícia.
É claro que não nos seria surpresa alguma, caso tais denúncias reflitam a verdade; afinal, não rareiam os casos em que a polícia abusa do exercício do seu poder, extorquindo, e agredindo cidadãos pertencentes às classes sociais menos favorecidas.


O não-dito

Alguns especialistas eram convocados a apresentar sua perspectiva sobre o acontecimento, que foi considerado um “marco histórico” na política de segurança pública da cidade do Rio de Janeiro. Nada melhor do que ouvir o que tem a dizer, por exemplo, um sociólogo, num momento em que a população, “satisfeita”, mas acuada, e a mídia, alardeando a vitória do Estado, comemoravam a reconquista de território. “Finalmente, o Estado se impôs, depois de trinta anos de descaso!”. O sociólogo, não contaminado pelo sentimento de euforia, apresentou uma visão mais ampla: insistiu na necessidade de reforma da polícia, de investimento em educação, moradia, saúde, que beneficie aquela comunidade.  Decerto, há muito que ser feito e o sentimento de euforia pelo “dever cumprido” não pode ofuscar uma visão mais abrangente que sinalize os caminhos futuros que deverão ser percorridos.
Falou-se muito em paz. Todos querem paz, mas não há paz sem guerra. A guerra está em potência: inscrita nas armas, na força militar, na necessidade de poder; está pulsante no desejo de liberdade e é alimentada pela ignorância crassa, que é funda, visceral e, ao que me parece, irremediável. Basta que tenhamos um mínimo de consciência histórica para nos apercebermos de que a trajetória humana, mormente do homem civilizado, neste planeta, se deu através de inúmeras guerras e conflitos. Fazer guerra é intrínseco à condição humana. Todo o processo civilizatório por que passaram os homens através dos séculos – processo esse que é infindável – foi marcado por guerras, conflitos, massacres, genocídios, morte. A motivação é vária: econômica, religiosa, étnica, social, etc. Em geral, existem duas causas recorrentes em toda guerra: a necessidade de poder e de conquista de território. Elas estão intimamente ligadas: conquistar território significa estabelecer domínio e poder. A História Humana é a história das construções de grandes impérios, símbolos do poder absoluto. Lembre-se, talvez o mais famoso, o Império Romano (31a.C – 475 d.C.). Quanto às guerras, escusa elencá-las, pois que são muitas, algumas das quais ainda persistem, como a do Afeganistão e a da Palestina. No tocante a esta última, algumas palavras são necessárias.
Durante muitos séculos, a Palestina foi ocupada por uma maioria muçulmana; a minoria era constituída por cristãos e judeus. No final do século XIX, entretanto, ocorreu um grande fluxo migratório de judeus para aquela região, devido à perseguição russa. A par dessa causa, havia também entre eles o desejo de constituir um Estado nacional judeu. Em 1917, período em que sucedia a Primeira Guerra Mundial, o governo britânico declarou seu apóio à instituição de um Estado nacional judeu, desde que a população árabe não fosse prejudicada. Para garantir que o intento judaico lograsse êxito, a Grã-Bretanha passou a administrar a região, sob a supervisão da Liga das Nações. A situação se agravou quando Hitler assumiu o poder: a perseguição aos judeus, então intensificada, e o holocausto acarretaram o aumento da imigração dessa população da Europa.  
Em 1947, a Assembléia Geral das Nações Unidas consentiu que a Palestina fosse dividida em dois Estados: um árabe; e o outro, judeu.  Essa separação daria a Jerusalém um grande poder internacional. Evidentemente, os árabes ficaram insatisfeitos e não hesitaram em recusar tal plano. Com a retirada das forças britânicas da região, em 1948, David Ben Guiron (então chefe de governo de Israel) proclamou o Estado de Israel, fato a que se seguiu uma guerra entre judeus e árabes palestinos.
Inúmeros acordos de paz foram feitos e desfeitos; a situação de conflito ainda persiste em nossos tempos. Como se vê, a paz é um ideal desejado, mas ela só pode ser alcançada, se satisfeitas certas condições. E estas, se satisfeitas, devem beneficiar uma e outra parte. Não sucedendo isso, o conflito deverá continuar. A paz é como uma senhora idosa, muito esbelta e desejada, que sempre nos escapa, em virtude de nossa cegueira. Paz é uma ideia e pertence ao domínio do espírito, não da experiência. Quando muito, o que notamos, neste último domínio, é apenas a sua sombra, porque a guerra está corporificada, encarnada na agressividade humana que, segundo Freud, tem raízes em nosso aparelho psíquico.  Só nos preocupamos com a paz nos estados de conflito, de revoltas, de guerrilhas e de guerras.
Já que mencionei a perspectiva freudiana, vale referir aqui três personagens históricas que ficaram famosas por seus excessos de agressividade. A primeira delas foi Nero, que, tomado de um sentimento megalomaníaco, incendiou Roma, enquanto entoava em versos o seu feito aterrador. Posteriormente, chegou a perseguir os cristãos e os judeus, acusando-os de incendiários. Não nos esqueçamos, contudo, de que, antes de incendiar a cidade, ele matara a sua mãe. E para poder casar-se com Popéia, também assassinou a própria mulher. O caso de Cláudio I, imperador de Roma entre 41 a 54 d.C., vale ser notado por nos causar pasmo, em virtude de sua estupidez. Cláudio mandou matar a sua esposa, porque estava insatisfeito com o comportamento dela, que era muito impetuoso e escandaloso, para casar-se com Agripina, mãe de Nero, que, muito grata, o envenenou.
A terceira personagem é o rei da Inglaterra Henrique VIII, que ficara famoso por sua vida conjugal, muito embora tenha contribuído para o desenvolvimento político e econômico da Inglaterra no século XV. O rei era casado com Catarina de Aragão, com quem desejava ter um herdeiro do sexo masculino. Como isso não fosse possível, ele pediu ao papa a anulação do casamento. O papa não a consentiu, porque estava subordinado ao imperador Carlos V; este, por sua vez, era sobrinho de Catarina. Insatisfeito, Henrique VIII rompeu relações com Roma, tornando a Igreja inglesa uma Igreja Nacional Anglicana. Posteriormente, divorciou-se e se casou com Ana Bolena. Desconfiado de que esta o estava traindo, Henrique VIII mandou matá-la. Casou-se com uma terceira, a qual lhe deu um herdeiro do sexo masculino, mas tão-logo ela morreu. Casou-se com uma quarta, mas dela divorciou-se logo, pois que se apaixonara por uma quinta, com quem se casou. Infelizmente, esta foi decapitada, porque o rei também suspeitava de sua infidelidade. Por fim, casou-se com a sexta mulher que, felizmente, sobreviveu a ele.
O caso do rei da Inglaterra é, certamente, tragicômico; não obstante, é bastante revelador da agressividade humana que quase  sempre é contaminada por grande dose de paixão. Crimes passionais datam de muito tempo, como se vê; e certamente são agravados pelo sentimento de poder.
Finalmente, considere-se o caso de As Cruzadas. Elas foram movimentos militares de inspiração cristã, que visaram a permitir a peregrinação à Terra Santa, que fora proibida pelos muçulmanos. As Cruzadas culminaram com a conquista de territórios e contribuíram muito para o desenvolvimento do comércio com o Oriente. Não tardou a instituição de um Estado a partir dos territórios da Prússia Oriental e do Báltico.

A recorrência de palavras como guerra, terror e terrorismo, nos noticiários e jornais, como representações da realidade são dotadas de sentido ideológico, já porque não captam o mundo tal como ele é (nesse caso, elas não refletem a realidade mesma), senão expressam o modo como as pessoas se relacionam com as suas reais condições de existência, já porque o efeito ideológico apela para a manutenção da ordem, sem a qual não há possibilidade de vida social.  Oportunas aqui são as palavras de Bauman (2008):

“(...) as coisas estão em ordem se você não precisa se preocupar com a ordem das coisas; as coisas estão em ordem se você não pensar, ou não sentir a necessidade de pensar, na ordem como um problema muito menos como uma tarefa. E uma vez que você começa a pensar na ordem, isso é sinal de que algo em algum lugar está fora de ordem, de que as coisas estão escapando de suas mãos, e por isso você deve tomar alguma atitude para colocá-las na linha de novo”.

(p. 44)


Os incêndios provocados em carros e ônibus pelos criminosos desestabilizaram a ordem. A mobilização das autoridades estaduais, federais e militares se deu com a finalidade de restaurar a ordem, que é indispensável ao controle. Sem controle, não há vida social. A ideologia, encarnada na subjetividade, se nutre do ânimo e do sentimento de medo provocado pelos ataques para estimular a atuação do Estado, ao mesmo tempo em que reafirma o poder dele, que se cuidava arrefecido.
A paz, em face da monstruosidade realística da guerra, são apenas fumaças que saem de suas explosões; breves momentos entre uma explosão e outra. Não é possível, se nos dispusermos a ler um pouco sobre a História da humanidade, esperar que chegará o dia em que os homens não mais guerrearão; talvez, a paz possa estar ao alcance de outra espécie de seres que venham a habitar este planeta, caso a espécie humana venha a extinguir-se. Enquanto houver homem, a guerra será sempre uma realidade em potência.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Indústria Cultural

            Aspectos (de)formativos da indústria cultural 
                                   revisitando a questão




Para compor este texto, foi necessário, obviamente, um estudo prévio, que demandou leitura bem variada e aturada de livros e artigos. À medida que lia, tomava notas de passagens dos textos, dava-lhes meus próprios contornos, estabelecendo, tanto quanto possível, as devidas relações entre elas. O esforço empreendido em organizá-las de acordo com um princípio de coerência semântico-discursiva não me livrou de experimentar um caos intelectual, quando me dei conta de que não mais reconhecia as conexões entre elas.
A essa dificuldade acrescente-se a própria complexidade nas quais estavam implicadas as questões. Impõe-se, então, reconhecer uma tarefa em cuja realização deverei empregar todo o vigor de meu espírito: tornar este texto inteligível ao leitor não iniciado.
Começarei, pois, parafraseando Kant: “despertei de meu sono encantado”, quando comecei a estudar sobre o conceito de indústria cultural e a compreender os processos de subsunção e dominação dos indivíduos mediante a transformação de bens culturais em mercadorias destinadas ao consumo de massas. Contudo, cuido ser importante que não me apresse, pois que não só poderei tropeçar nas palavras, como também confundi-lo, leitor.
Antes de fazer incursão no terreno do que se tem entendido por Indústria Cultural, conceito que remonta aos filósofos da Escola de Frankfurt Adorno e Horkheimer, convém situá-lo no interior da sociedade pós-moderna do capitalismo avançado.


1. Contexto sócio-histórico

A decadência das imagens e representações de inspiração religiosa e divina representa a dissolução do que restava de uma era pré-capitalista. As transformações históricas subsequentes – sociais, políticas e econômicas – que ocorreram desde o fim do século XIX e que se tornaram mais intensas a partir do século XX, mormente na Europa Ocidental, expressaram-se em termos de industrialização, urbanização e uma profunda reorganização da sociedade. Essas transformações carrearam novas formas de dominação social, dando ao conceito de ideologia novos contornos.
Urge, ter em conta, portanto, para a adequada compreensão dos mecanismos opressores e reificadores da indústria cultural, o contexto da pós-modernidade caracterizado pela saturação de imagens, pela influência massificadora dos simulacros nas condições de vida e de trabalho dos indivíduos (valores, práticas sócio-culturais). Essa sociedade, imersa em simulacros, em imagens que acabam por corresponder à totalidade do real é chamada por Guy Debord, filósofo e diretor de cinema, sociedade do espetáculo. Espetáculo, aqui, deve ser entendido como aparência. A sociedade do espetáculo é a afirmação de toda a vida humana como simples aparência. É, em síntese, a transformação da experiência humana em aparência.
A carência espiritual, decorrente do declínio das imagens divinas, veio a ser suprida com as imagens fornecidas pela industrialização e pela comercialização e pelo consumo de produtos numa escala mundial. A força de produção das imagens exerce influência nos processos formativos das pessoas. O que aparece e está em destaque esgota a totalidade do real.
Na sociedade do espetáculo, contrariamente ao que propunha Descartes, o juízo é mantido em suspenso quase permanentemente e este estado é reforçado pelo esquematismo da indústria cultural, o qual é responsável por impingir aos indivíduos um verdadeiro adestramento espiritual, fazendo-os acreditar que as ideias que possuem são inerentes à sua verdadeira consciência. Os indivíduos, então consumidores, permanecem entorpecidos, estado do qual só saem, caso se sintam impressionados.
Os indivíduos são induzidos ao consumo dos produtos culturais disponibilizados pela indústria cultural com a promessa de felicidade de que eles se revestem. O consumo de tais produtos sinaliza para o tipo de inserção social do indivíduo, cujo sucesso depende de sua identificação com os valores e produtos que se transformam em mercadorias.




1.2. Indústria cultural: sua atuação e dominância

Ignorando a problemática conceitual resultante da aproximação dos vocábulos indústria e cultura, para a composição do termo “indústria cultural”, é lícito considerá-lo como expressão do caráter industrial e padronizado da produção cultural, que se intensificou com o desenvolvimento da indústria e com a racionalização das técnicas de divulgação e distribuição de seus produtos, os quais foram destituídos de seu valor humano, resultado de trabalho espiritual e criativo, para destinarem-se ao consumo de massas carreando em si uma finalidade de dominação ideológica.
Os produtos culturais fabricados e seriados em processos industriais, disponibilizados pela indústria cultural, sucumbem aos interesses ideológicos, os quais se expressam por meio de um discurso que exalta e reitera o desejo pelo novo e pelo progresso, desejo que é criado nos indivíduos. A dinâmica que engendra a produção e comercialização dos bens culturais mascara, por força da ideologia, a verdadeira e mais antiga motivação do mercado: a obtenção de lucro.
Como bem observam Adorno & Hokheimer (1985: 95), a cultura, ao servir à comercialização, perde sua aura. As produções artísticas são destituídas de seu caráter transcendente e de sua função crítica e contra-hegemônica para tornarem-se meras mercadorias de consumo. As pessoas, por sua vez, consomem passivamente, ou seja, embotada sua consciência crítica, não precisam despender energia psíquica em tão prazerosa atividade. A indústria cultura promove a banalização e vulgarização da cultura e torna a consciência dos homens-consumidores infantilizada e regredida. A violência ideológica aí consiste em subestimar a capacidade espiritual e de compreensão dos indivíduos e de subjugar sua consciência. A semiformação fomentada pela indústria cultural é responsável pelo conformismo, o qual se expressa, consoante ensina Marcondes (2008: 53):

“[em] comportamento de dependência social e moral consistindo para um indivíduo em adotar de modo mais ou menos mecânico ou inconsciente sem exame ou espírito crítico, as opiniões, as normas, os modelos, os costumes e usos de seu meio social ou do grupo com o qual se identifica; aceitação do status quo”.

A indústria cultural atua no sentido de produzir uma regressão de consciências, de sorte que os indivíduos, impedidos de se auto-diferenciar, compõe juntos uma massa homogênea.  Os procedimentos empregados pela indústria cultural servem para iludir, manipular, fazendo da aparência a verdade. Dá-se um empobrecimento da produção cultural.


1.2. O poder ideológico

O conceito de ideologia é um desses conceitos para os quais há inúmeras definições, de acordo com o autor e sua perspectiva teórica. Limito-me, aqui, a considerá-lo como forma de representação do aparecer social de tal modo, que esse parecer se torna a realidade social. A ideologia, portanto, mascara ou oculta a realidade, invertendo a relação entre ela e as ideias: nos processos ideológicos, o real não justifica as ideias; ao contrário, são as ideias que justificam o real. Esta concepção de ideologia como forma de ocultamento da realidade social remonta à Marilena Chauí (2006).  Creio ser esta concepção adequada à discussão que ora desenvolverei.
A ideologia está a serviço da hegemonia. Sua função é deformar e manter o status quo, legitimando as condições de injustiça e opressão sociais. Conquanto a ideologia são se confunda com indústria cultural, é inegável a relação intrínseca entre elas. Parte inerente dos mecanismos de dominação e manipulação da indústria cultural, a ideologia estabelece padrões de comportamento que visam ao conformismo.  Os homens passam a acreditar que as ideias, então adquiridas, sejam suas próprias ideias.
A ação ideológica torna-se ainda mais perniciosa quando da observação do fato de que ela se traveste de um pseudo-liberalismo alicerçado na liberdade e na autonomia individuais, de sorte a impedir aos homens a livre expressão de sua individualidade e de sua singularidade.  Não há, portanto, espaço para subjetividades, as quais são convertidas numa organização totalitária de modos de pensar, agir e sentir.
A ideologia produz uma falsa consciência e padroniza a expressão do pensamento. A falsa consciência impede a autonomia intelectual.


2. A função da estandardização e da racionalização

A estandardização consiste no processo pelo qual os bens culturais são padronizados quando de sua fabricação e colocados em larga escala para a satisfação de massas de consumidores. Trata-se da produção em série do modelo fordista aplicado à cultura. O que se verifica, nesse processo, é a incansável repetição de padrões.
A estandardização da cultura, então transformada em cultura de massa, leva os indivíduos a se comportarem segundo certos padrões e esquemas, os quais são responsáveis por: a) imobilizar suas capacidades de autonomia de expressão; b) levá-los a identificar-se com as formas heterônomas que os homogeneízam.
A racionalização, a seu turno, encarada na perspectiva da teoria crítica da Escola de Frankfurt, pode ser entendida como

“a justificação de certas práticas de dominação como necessárias ao progresso e ao desenvolvimento social, ocultando, entretanto, os verdadeiros interesses da classe dominante”.
(Marcondes, 2006: 234)

A racionalização também pode ser entendida como uma técnica aplicada a um processo de produção a fim de torná-lo menos dispendioso e mais eficaz.
A aplicação da técnica e da ciência ao campo da comunicação fez com que elas deixassem de ser forças produtivas para tornarem-se instrumentos de poder e de dominação. Seu poder consiste em alienar e massificar os indivíduos das sociedades industriais e altamente administradas.
A razão instrumental, na medida em que fomenta processos de produção destinados a um fim (pois é isso que pressupõe), torna as relações entre homem e natureza e dos homens entre si, basicamente, instrumental, pragmática e utilitária.
Contra esse esvaziamento espiritual e emocional das relações humanas, Habermas propõe a substituição da razão instrumental pela razão comunicativa, através da qual se poderia alcançar a revolução das relações humanas na dimensão cultural, a qual compreende arte, emoções, mitos, tradições, etc.


3. Considerações finais

A complexidade da questão levar-me-ia muito mais longe, o que não seria conveniente, dados os modestos propósitos desta exposição.  Muitos problemas ficaram em aberto, tais como o papel da mídia (televisão, rádio e cinema, especialmente) no processo de embotamento e de regressão das consciências, visto ter ela um poder, claramente, intensivo e manipulador; a realização efetiva da democracia, a qual não parece possível se não inclui as condições culturais; a liberdade relativamente ao impedimento de autonomia individual perpetrado pela ação da indústria cultural, etc.
A sociedade de que sou membro está lá fora, operante e gigante. E eu estou aqui dentro, no microcosmo de meu quarto, em frente ao computador, após ter estado durante grande parte do tempo envolto aos livros – estas janelas que me abrem o mundo, que me traz à consciência as formas perniciosas de opressão, alienação e massificação sociais, cujo agravamento se atribui, em grande medida, à indústria cultural. Estou eu aqui inquieto, mas consciente desta existência frenética, acelerada e fugaz, que se escorre na liquidez do tempo moderno.


quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Agora, sim, vamos morrer, reunidos! (Augusto dos Anjos)


Morte: um fato recalcado
Breve intróito


Tendo assistido a dois acontecimentos da vida, pela televisão, antes de me pôr a escrever este texto, a saber, ao resgate de mineradores chilenos que estavam submersos numa mina há noventa e quatro dias, e a uma reportagem sobre a assistência a crianças portadoras de algum déficit de inteligência, oferecida por uma instituição filantrópica, assomou-me à consciência a ideia de que os malefícios que acometem os seres humanos, sem que deles sejam culpados, é fonte abundante de experiências de solidariedade. É com o sofrimento, quer nosso, quer do outro, que nos tornamos mais sensíveis às experiências de amor e de solidariedade.
Doravante, proporei uma reflexão sobre a morte – este fantasma que nos espreita a cada instante e que teimamos em querer (em vão) exorcizar. Para muitos, decerto, trata-se de um tema de mau gosto, nada apreciável; no entanto, cuidarei de conferir-lhe contornos filosóficos. Procurarei abordá-lo sem recorrer à linguagem de carnificina, da putrefação e dos fétidos cadáveres. Não poderia deixar de citar três poemas: um de Augusto dos Anjos, o famigerado poeta do mau gosto; os outros dois, de minha autoria. Atentemos para eles:


Vozes da morte
Agora, sim! Vamos morrer, reunidos,
Tamarindo de minha desventura
Tu, com o envelhecimento da nervura
Eu, com o envelhecimento dos tecidos!

Ah! Esta noite é a noite dos Vencidos!
E a podridão, meu velho, E essa futura
Ultrafatalidade de ossatura.
A que nos acharemos reduzidos!

Não morrerão, porém, tuas sementes!
E assim, para o futuro, em diferentes
Florestas, vales, selvas, glebas, trilhos

Na multiplicidade de teus ramos,
Pelo muito que em vida nos amamos,
Depois da morte ainda teremos filhos!
(Augusto dos Anjos)



Catarse
No inverno, vou aposentar-me do mundo
Saldar-me-á Deus as dívidas à Morte
Rogar-Lhe-ei apenas os benefícios do túmulo
E a certeza de ventura à minha prole

E neste dia, quando mais um leito ocupado
A gênese de minha carne então vencida
As raízes de plátanos terão evolado
A Dor visceral de minha alma enternecida

E a terra merencória de soluços repleta
Semeadora de cadáveres, necrófago ventre
Devora plácida toda carne fria que recende

A podridão protoplásmica que dantes era
O solar adorado dos progênitos do carbono
Necrópole da ventura. Da alma o abandono.
(BAR)



Tempo ingrato
Olha! Já sorris à desventura
De alma temente. E a alvura
De nossos lençóis. A cama arde
Gemidos de amor tu não calaste!

Olha! Vê quanto inda me tentas!
Fingidos sorrisos. Fuga doída
Ó Morte, traiçoeira, já acenas?
Já cortejas a mim, fiel amiga!

Vês que tempo ingrato? Amarga a vida!
Fúlgidos verões já me têm passado...
Compondo versos doidos à revelia

Enterro no horizonte o sonho fátuo
E gozar da ventura de amor bendito!
Que junto a mim jaz na cova ao lado.
(BAR)


O leitor perceberá, sem dificuldade, que o meu poema que se segue imediatamente ao de Augusto dos Anjos tem clara inspiração neste poeta. Tanto um quanto o outro lembra-nos de nossa natureza perecível, ao mesmo tempo em que nos anima a esperança de perpetuidade através de nossa prole. Os nossos descendentes representam, assim, a tentativa de continuidade metafísica de nossa existência.
Devemos, de imediato, reconhecer o óbvio: a morte é um fato natural, tal como o nascimento, a sexualidade, a sensação de fome e de sede. Destarte, a consciência da morte nos torna viva a ideia de nosso pertencimento à ordem natural, na qual se acham os seres vivos. Com a factualidade da morte, nos animalizamos. Assumimos a nossa natureza biológica, cuja existência está necessariamente enlaçada à morte. Claro é que, na medida em que somos seres de consciência superior e, portanto, na medida em que estamos conscientes de nossa finitude, experimentamos angústia diante da certeza da morte – certeza esta que deve ser afastada para que possamos viver com relativa serenidade.
Diremos mais do óbvio: todo ser vivo nasce grávido da morte; no caso dos seres humanos, essa gravidez é uma gravidez da qual estamos conscientes, muito embora a ideia da morte seja, por força de nossas experiências sociais, por força da ordem social que, na contemporaneidade, tem muita dificuldade para lidar com ela, seja recalcada. Diremos mais: nascer é iniciar uma trajetória cujo fim inevitável é a morte. O sociólogo Èmile Durkheim disse, certa vez, ser a sociedade um bando de homens que caminham em direção à morte inevitável. É um fato irrecusável, portanto, que todo ser humano, particularmente, traz em si o germe de seu próprio aniquilamento. A morte está em nós em estado de potência (para usar um termo aristotélico). Está adormecida, havendo de, um dia, despertar. Lembro aqui também Fernando Pessoa que se referiu a nós como “defuntos adiados”, donde se conclui que o nascimento inaugura a virtualidade da morte, que só é adiada por algum tempo.
Se considerarmos, segundo atestam dados do IBGE, que a expectativa de vida dos brasileiros, atualmente, em média, é de 72 anos, sendo que, entre as mulheres, no ano passado, chegava a 76 anos, ao passo que, entre os homens, a expectativa reduzia-se a 69 anos, devemos aceitar o fato de que temos pouco mais de 70 anos para construir sentidos às nossas vidas (e não me refiro ao sentido transcendente, quando dizemos do sentido em relação à existência humana) e para experienciarmos intensamente os momentos, não menos efêmeros (de certo modo, raros) de felicidade. E estou assumindo aqui o pressuposto de que o objetivo último da vida humana seja a felicidade. Com Freud, assumo que os homens buscam o prazer e se esforçam por evitar o desprazer.
A morte, enquanto experiência única e, ao que parece, indolor – e, muitas vezes, inesperada, - traz-nos à consciência a fragilidade de nosso corpo, uma das fontes de sofrimento humano, segundo Freud. A morte é a cessação da libido – instinto de vida. Como estado inanimado do corpo, põe-nos diante do nada, supressão da lembrança e da história individual, soberania do vazio completo, da ausência plena do sentido. A consciência do nada, evocada pela experiência da morte alheia, gera angústia.
Como observa Norbet Elias, em A solidão dos moribundos (2001: 21), a morte, na Idade Média, era tratada de modo mais aberto do que o é atualmente. Assim, nos ensinará o autor:
“Em comparação com o presente, a morte naquela época era, para jovens e velhos, menos oculta, mais presente, mais familiar. Isso não quer dizer que fosse mais pacífica”.
(ib.id.)
Em tempos remotos, segundo o autor, a morte era um acontecimento mais público, visto que, com exceção de freiras e monges, dificilmente as pessoas viviam sozinhas. Atualmente, a morte é afastada da consciência das crianças. Afirma o autor:
“Uma vaga sensação de que as crianças podem ser prejudicadas leva a ocultar delas os simples fatos da vida que terão quer vir a conhecer e compreender”.
(p. 26)
O encobrimento ou recalcamento da morte se dá, por exemplo, na esperança cultivada numa vida além-túmulo. Segundo o autor, “o medo de nossa própria transitoriedade é amenizado com ajuda de uma fantasia coletiva de vida eterna em outro lugar” (p. 44). Há uma evidente resistência à desmitologização da morte em nossa modernidade.
A ideia de Deus serve aos homens como um subterfúgio ao sentimento aterrador experienciado quando da consciência da morte como possibilidade do nada. Entre o homem vivo e a esperança em Deus, medeia a morte como fato inegável e irredutível. Eis aí o abismo que nasce em nossa existência. O autor observa, ainda, que a sexualidade é menos reprimida atualmente do que a morte. Acrescenta ainda não ter havido significativa diminuição da tendência a afastar das experiências de vida a morte, desde o século XIX.
Evidentemente, a morte, como experiência cultural, será encarada de modo diferente, de acordo com as culturas. Culturas há em que o acontecimento da morte é festejado, caso em que o sofrimento, a tristeza e o choro dão lugar a alegria, festejo e cantoria. Em certos lugares do nordeste do Brasil, é comum servir comida no velório.
O temor e o terror que experimentamos diante da factualidade da morte são produzidos pelo imaginário que cerca a morte. Eles decorrem da imagem que antecipamos da morte. A resistência à aceitação dela, de um ponto de vista sociológico, é reforçada pela tendência atual ao socorro de medicamentos e técnicas que possibilitem a “juventude eterna”. O retardamento do envelhecimento se acompanha da alegria decorrente da ideia de que retardamos, assim, a morte. Tal retardamento alcança o status de uma neurose coletiva pela juventude cada vez mais prolongada.
Ao se referir aos avanços da medicina no sentido de nos familiarizar com a ideia de que morrer é um fato natural e biológico, Elias observa:
“As pessoas bem sabem que a morte chegará, mas saber que ela é o fim de um processo natural ajuda a aliviar a angústia”.
(p. 56)
Terei de discordar do autor, nesse tocante. Não creio em que saber que a morte é um fim de um processo natural amenize a angústia, porquanto a morte, para a maioria das pessoas, representa a ruptura de laços afetivos, quase sempre, muito entranhados, os quais serão substituídos pela saudade, que, ao invés de consolar, nos abandona ao sentimento de vazio. A morte de uma pessoa que amamos lega-nos uma saudade pesada, que se hospeda durante muito tempo em nossa alma, reaviando-nos o vazio da dor, da ausência de um complexo de experiências de vida – portanto, de um complexo histórico compartilhado, encarnado.


A morte como desligamento


O nascimento de um ser humano representa uma abertura consciente para o mundo, cujo valor reside, fundamentalmente, em possibilitar a experiência da consciência. Lembro que consciência é consciência de alguma coisa. O homem é um ser mundano que se distingue das outras formas de vida pela especificidade de suas experiências conscientes.
Para Sartre, a mente só existe na medida em que alcança o seu objetivo. As pessoas estão conscientes do mundo em si. A existência da mente só é possível pela existência de um mundo material circundante. Sartre concebe a consciência como um nada em si e, como tal, precisa ser consciência de um mundo, pois só assim alcança a dimensão do ser. Vejamos como Sartre concebe o movimento e a relação deste com a consciência:
“É simultaneidade estar em um lugar e não estar lá. Em momento algum podemos dizer que o ser da passagem está aqui, sem correr o risco de pararmos bruscamente lá, e nem podermos dizer que não está, ou que lá não é lá, ou que está em outro lugar. Sua relação com o lugar não é uma relação de ocupação”.
Segundo a perspectiva sartreniana, o movimento é realidade para a consciência. O não-estar onde estava e o não-estar onde estará levam-nos a conclusão de que o objeto em movimento é exterior ao si. Essa perpétua transitoriedade de não-ser constituem negações atribuídas pela consciência. Assim, para Sartre, só existe movimento para a consciência. Deixemos as implicações e os problemas que podem suscitar essa compreensão sartreniana e consideremos a contribuição de Hurssel, de modo sucinto, ao tratar da consciência.
Como fenomenólogo, Hurssel entende que a consciência só existe pela intencionalidade, ou seja, só existe na medida em que se abre para o mundo, cessando a interioridade vedada. Somente a consciência do mundo é que torna possível a consciência de si (a autoconsciência). Assim é que precisamos estar no mundo para termos consciência de nós mesmos. Por consciência, Hurssel entende o conjunto de atos perceptivos que visam (tem por objetivo) e tocam objetos do mundo. Estou consciente quando vejo, ouço, toco, sinto, etc. O alargamento que confere ao conceito de consciência representa a negação do conceito de cogito (eu penso) de Descartes. Em Hurssel, a consciência se estabelece sobre o noema (unidade de sentido para a consciência). É consequência de nossa própria condição de seres de consciência a necessidade de fundar nossa existência sobre o sentido. Buscamos o sentido como único meio de nos ligarmos ao mundo. No que toca ao conceito de noema, esclarece-nos Hurssel: “ao contrário da árvore, o noema da árvore não queima”. O noema é, portanto, o conhecimento da árvore. Dirá Depraz, em seu livro Compreender Hurssel (2008):
“[o noema] participa da dinâmica consciencial a título de núcleo objetivo de sentido”.
(p. 35)
Sabe-se também que nós somos seres de consciência reflexiva. No ato de reflexão, em lugar de nos projetarmos adiante em direção ao mundo, nos voltamos para nós mesmos. Esse retorno sobre nós mesmos permite-nos interrogar a vivência/ experiência imanente do objeto.
Do exposto até aqui, não é difícil concluir que o morto, enquanto tal, não tem mais consciência de mundo; de certo modo, o estado de inanimação do defunto representa o aniquilamento de sua humanidade na dimensão consciente. O corpo inconsciente é tão-só matéria destinada à putrefação, que resultará nos restos mortais. Aqui, o poema O deus-verme, de Augusto dos Anjos, parece pertinente. Refiro apenas a primeira e última estrofes:
Fator universal do transformismo,
Filho da teleológica matéria,
Na superabundância ou na miséria,
Verme – é o seu nome obscuro de batismo.
(...)
Ah! Para ele é que a carne podre fica,
E no inventário da matéria rica,
Cabe aos seus filhos a maior porção!
O desligamento do mundo deve ser entendido como ruptura em termos de possibilidades de continuar tendo experiências psicossociais, mormente na dimensão libidinoso-afetiva. No tocante ao emprego da expressão “os mortos”, Elias nos dá a saber a relação entre a morte e a memória dos vivos:
“(...) as pessoas mortas em certo sentido ainda existem não só na memória dos vivos, mas independentemente deles. Os mortos, porém, não existem. Ou só existem na memória dos vivos, presentes ou futuros”.
(pp. 40-41)
Para os moribundos, a iminência da morte representa a perda de coisas que, para eles, podem ser significativas. A questão que a inevitabilidade da morte nos propõe é: a que devemos atribuir valor significativo na vida?


Caixão não tem gaveta, mas morrer custa caro


Em O que é morte (1999), Maranhão nos mostra que ainda existe uma estratificação nas práticas funerárias, a qual não é senão reflexo de uma sociedade dividida em classes. Cito, na íntegra, o trecho em que o autor nos fala dessa desigualdade que, existindo entre os vivos, refletem entre os mortos:
“Para evidenciar a verdade dessa afirmação basta que façamos uma visita a um cemitério tradicional. Lá encontraremos, como que reproduzido detalhes, a sociedade dos vivos: avenidas, ruas, praças e jardins por onde os transeuntes podem circular orientados por placas indicativas; o habitat individual e o coletivo, a administração local e a capela. E assim como nas grandes metrópoles iremos nos deparar, nas grande necrópoles, com arranha-céus e, ultimamente, com fornos crematórios tão sofisticados como as modernas usinas – pois tanto quanto o solo urbano, o solo cemiterial é bastante dispendioso e igualmente sujeito a especulações, o que não permitem desperdícios de espaço”.
(p. 36)
Os cemitério aos quais se destinam os corpos dos mortos dos pobres são mais rústicos, com sepulturas pobres e mal-acabadas. Conclui o autor:
“Em um mundo em que o econômico é o Rei, quem não tem haver não tem ser, quem continua tendo continua sendo: esta é a lei fundamental do nosso cemitério, que inventa concessões ‘perpétuas’ de sessenta ou de cem anos, para nutrir a esperança e a ilusão de que o ter continuará a ser”.
(p. 38)
Numa sociedade dividida em classes, como a sociedade brasileira, os indivíduos se relacionam em condições de desigualdades, marcadas por hierarquias sustentadas pelo poder e pelos privilégios econômicos, culturais e políticos. A divisão social do trabalho, característica das sociedades capitalistas, se reflete também nas circunstâncias de enterro dos mortos. O cemitério reflete um ambiente de estratificação social que constitui a realidade da vida social. É verdade que o fim – a morte – é comum aos ricos e aos pobres, ou seja, a morte não distingue os homens em termos de classe sócioeconômica, cultura, etnia, gênero, poder, mas, assim como os indivíduos se distinguem no tocante à sua residência, mais ou menos luxuosa, mais ou menos rústica, assim também são discriminados em termos de sua moradia definitiva. Direi mais: assim como os indivíduos se distinguem em termos do lugar social que ocupam, assim também se diferencial em termos de “lugar mortal” que virão a ocupar. Concluímos, com pesar, que, nas sociedades capitalistas dos países subdesenvolvidos, todos morremos, mas não todos vamos para o mesmo buraco. O buraco de uns é bem mais ornamentado!


O que concluir


Não pretendi nutrir no seu espírito, leitor, maior angústia ou desalento. Num primeiro momento, ficamos meio resistentes a refletir sobre a morte. No entanto, longe de nos afligir, a reflexão sobre a morte, sobre como experienciamos esse acontecimento singular e a compreendemos, pode nos levar a uma compreensão menos unilateral da vida e mais integrante e profunda. Saber que a cada novo dia nos aproximamos da morte, que o céu de cada manhã, ensolarado ou nublado, chuvoso ou não, nos torna mais próxima a morte, permite-nos a possibilidade de repensar nossas prioridades, de nos aperceber de quão inútil é a nossa azáfama, as nossas ambições materiais, a nossa necessidade de poder, de riqueza, nosso egoísmo, nossa altivez, indiferença e sentimento de auto-suficiência; leva-nos a avaliar até que ponto valorizamos as relações afetivas, com os nossos familiares e com a pessoa que escolhemos para com ela dividir nossas experiências de vida. É nesse instante, em que somos inundado de uma percepção penetrante do valor da vida, que nos ilumina a consciência a importância do Amor. Essa palavrinha com quatro letras e quatro fonemas, pronunciada, muita vez, a esmo por muitos de nós, sem que tenhamos, claramente, a dimensão significativa de sua essência: que me parece ser o cuidar.
É este Amor que desejaremos em nosso leito de morte. Assim como nossos bens materiais, nossa formação acadêmica e toda sorte de conhecimentos acumulados ao longo de nossas experiências de mundo não terão valor algum, à iminência de nosso suspiro derradeiro, assim também de nada valerão as nossas conquistas, os nossos amores de bolso; porque, a essa altura, nossos bolsos já estarão rasgados, e os amores que eles acumularam, terão se esvaído. Apenas o Amor singular eleito de nosso coração, estará à cabeceira de nossa cama, segurando a nossa mão e nos confortando, ou junto ao nosso caixão, chorando por nós.
É esse Amor que desejo: um Amor que, em face da inexorabilidade da morte, nos faça conscientes de que valeu a pena viver.