quinta-feira, 24 de junho de 2021

" Construir a democracia, inclusive no Sistema de Justiça, é superar o imaginário autoritário". (Rubens Casara)

 

                      



                      Preleções sobre política

Uma contribuição para o enfrentamento

do analfabetismo político brasileiro

 

 

                                 PARTE 1

 

1. Bolsonaro: o sintoma de um passado perverso

 

Em seu livro O Brasil dobrou à direita (2020), Jairo Nicolau apresenta-nos um recorte da conjuntura sociopolítica que poderia explicar a escolha de Jair Bolsonaro, um parlamentar medíocre, para ocupar o cargo de Chefe de Estado, nas Eleições de 2018. Deve-se ressaltar que esta é a conjuntura sociopolítica construída pelo discurso hegemônico, de ampla projeção na mídia. Na verdade, a perplexidade e as várias explicações para a eleição de Bolsonaro ocupam ainda hoje as análises dos estudiosos da política, que, quiçá, estejam de acordo quanto a um fato: “uma das mudanças mais profundas de 2018 é a vitória de um candidato de direita sobre o PT entre os eleitores de baixa e média escolaridade. Isso não acontecia desde a vitória de Fernando Henrique Cardoso em 1998.” (Nicolau, 2020, p. 52).

 

A conexão entre os resultados da Lava Jato e a vitória de Bolsonaro é apresentada no discurso corrente de maneira relativamente simples: 1) a Lava Jato investigou, denunciou e prendeu parte expressiva da elite política brasileira; 2) a corrupção passou a ser vista como algo endêmico, aumentando a rejeição aos partidos tradicionais; 3) os eleitores buscaram uma alternativa de um político que não estivesse envolvido em nenhuma das denúncias dos últimos anos e ao mesmo tempo expressasse uma quebra com o padrão de ação da elite política tradicional; 4) entre os nomes apresentados em 2018, o único que preenchia esses critérios era Bolsonaro. Nesse caso, pouco importava o fato de ele ter sido deputado federal por 28 anos, ter trocado muitas vezes de legenda e ter sido um parlamentar medíocre.

 

Sem considerar as motivações que levaram grande parte do eleitorado brasileiro a eleger Bolsonaro, Nobre (2020) não se esquiva de dar a sua explicação para o acontecimento. Segundo o filósofo, a eleição de Bolsonaro foi um efeito de uma coalizão por conveniência, que não deixou de ter impacto sobre o resultado das urnas. Para ele, essa coalizão se formou pelo acordo entre grupos muito diferentes entre si: evangélicos, lavajatistas e militares.

 

Mas mostram bem como a coalização que elegeu Bolsonaro foi uma coalizão de conveniência sem ter sido de maneira alguma casual. O sentimento de exclusão da arena política – em graus certamente muito distintos e por razões muito distintas também – que os uniu veio justamente com a possibilidade que viram de se estabelecerem (ou se restabelecerem, no caso dos militares) como atores políticos incontornáveis. (Nobre, 2020, p. 37).

 

 

Entre as razões correntes dos eleitores e a coalização orquestrada na cena política, não se pode olvidar o papel sobremaneira importante desempenhado pela grande mídia e pelas redes sociais no recrudescimento do antipetismo e no fortalecimento no senso comum[1] da necessidade de eleger um ator político que endurecesse as medidas de combate à corrupção e que – é claro – não estivesse ele mesmo envolvido em algum esquema de corrupção. E assim Bolsonaro foi eleito Chefe do Executivo, sem que grande parte do eleitorado conhecesse minimamente seu projeto político.

Não pretendendo, de modo algum, dar por encerrado o tema dos fatores que foram decisivos para a eleição de Bolsonaro, gostaria de me deter um pouco no perfil do eleitorado brasileiro que o elegeu, a fim de lançar por terra, de antemão, a crença de que a baixa escolaridade de grande parte desse eleitorado foi determinante para a escolha de um parlamentar que passou 28 anos de sua vida como deputado federal, tendo apenas dois projetos aprovados, o que, para um parlamentar que ficou tanto tempo ganhando dinheiro à custa dos pagadores de impostos que sobrevivem nestas terras com muito suor e lágrimas pelos seus que nelas vêm morrendo aos milhares cotidianamente, o faria ser rejeitado nos processos de seleção de meritocratas. Ora, o fato de ter ficado tanto tempo gozando das benesses de um cargo político sem fazer quase nada o credencia para ocupar um lugar na lista extensa do parasitismo político que contribui para inchar ainda mais a nossa já dispendiosa máquina pública.

O eleitorado brasileiro é formado por uma grande faixa de pessoas de baixa escolaridade. Nessa faixa, se topam indivíduos analfabetos, indivíduos que sabem ler e escrever ou que passaram poucos anos na escola, sem conseguir completar o ensino fundamental. Entre os que não conseguiram completar o ensino fundamental, se encontram, em grande proporção, indivíduos com mais de sessenta anos, que cresceram em um período da história do Brasil em que o acesso à escola era mais limitado. Por outro lado, é inegável que o eleitorado brasileiro vem-se tornando cada vez mais escolarizado. Em parte, isso se deve ao aumento do acesso à escola promovido pelas políticas de FHC e, especialmente, do PT, mormente nos dois mandatos do presidente Luís Inácio Lula da Silva; mas também se deve ao alistamento eleitoral de jovens com um nível de escolaridade mais alto (em geral, com o fundamental completo ou cursando o ensino médio). Estes jovens se beneficiaram do maior acesso das crianças à escola a partir da década de 1990. Houve também um declínio do número de eleitores analfabetos ou que cursavam apenas as primeiras séries do ensino fundamental. Uma vez que os eleitores menos escolarizados estão concentrados entre os cidadãos mais velhos, há uma tendência de redução gradativa desse grupo no cadastro eleitoral, quer por morte, quer por simplesmente não comparecimento às urnas (já que o voto é facultativo a partir dos sessenta anos).[2]

Embora ainda seja predominante o número de brasileiros com baixa escolaridade, o fator escolaridade não foi decisivo para a eleição de Bolsonaro, porque ele venceu a corrida eleitoral entre os eleitores de todos os três níveis: os de ensino fundamental, os de ensino médio e os de ensino superior. A confusão e a perturbação que pesam sobre os analistas políticos, envoltas numa atmosfera de perplexidade em face das razões por que contribuímos, enquanto sociedade, para eleger um candidato, então Presidente da República, tão politicamente medíocre e abertamente autoritário, talvez demorem muito tempo para esvair-se, mas isso não desencorajou os estudiosos de produzir inúmeros livros e artigos que pudessem lançar luzes sobre o imponderável do devir político. Talvez, hoje, esteja se formando um consenso na intelligentsia de que o autoritarismo de Bolsonaro encontrou eco numa parcela considerável da população que não conseguiu romper abertamente com o passado de violência, de arbítrio, de racismo e hierarquização que nos constituiu como sociedade histórica. Uma grande parcela da população brasileira permanece ainda servil a uma tradição autoritária que consagrou a crença no uso da força, que a acostumou ao medo da liberdade, que a deseducou com o ódio ao conhecimento, à vida intelectual, que a adestrou para o convencionalismo (para a adesão rígida aos valores da classe média, mesmo que contrários às conquistas civilizatórias), que a habituou à simplificação da realidade (a contentar-se com explicações simplistas e com ausência de reflexão), que a docilizou para a submissão autoritária, tornando-a acrítica em face de autoridades idealizadas, que lhe incutiu preconceitos contra personalidades intraceptivas (com pendor para a criação imaginativa, para as artes, para os produtos abstratos da afetividade), que a fez preocupar-se obsessivamente com a sexualidade alheia, que a tornou propensa à projetividade (disposição para crer em ameaças cuja origem se encontra em impulsos inconscientes). Num país que não conseguiu romper com o imaginário[3] perverso que se formou por experiências repulsivas como a escravidão e a ditadura militar, não surpreende ou não deveria surpreender que se escolhesse e ainda se apoie um presidente manifestamente autoritário e antidemocrático.

 

Doravante, concentrar-me-ei no que entendo ser o aspecto mais flagrante do bolsonarismo, enquanto movimento populista e ideológico, a saber, seu autoritarismo de viés fascista. Ao me ocupar desse aspecto, darei ênfase a um de seus modos de expressão: a promoção da demissão do pensamento. Além desta primeira parte, em que me devoto a discorrer sobre o fenômeno do bolsonarismo, cingindo minha análise a seu aspecto mais refratário ao conhecimento, ao pensamento crítico, este artigo inclui ainda outras duas partes. Na segunda parte, volvo olhares sobre o fenômeno político, buscando contribuir para a ampliação e aprofundamento do conhecimento raso que o senso comum de nossa sociedade tem dele. Tendo me apercebido, há algum tempo, de que o problema da política fica reduzido, no discurso do senso comum, à rejeição da corrupção e à defesa de políticos que alimentam a propaganda do antipetismo, meu propósito é descerrar a problematicidade do fenômeno político, fornecendo ferramentais conceituais que nos permitam pensá-la para além destes enquadramentos reducionistas. Nesta segunda parte, faço um retorno às origens da filosofia política, recuperando as contribuições de Platão e Aristóteles para a compreensão do que é a política. A terceira e última parte não é senão outro momento deste mesmo propósito. Nessa parte, esclareço conceitos fundamentais para uma sólida e fecunda discussão política e ilumino o contraste entre a compreensão dos antigos e a dos modernos sobre as instituições políticas. Ao cabo desse percurso, espero atingir o objetivo fulcral a que se destina este texto, qual seja: contribuir para esclarecer o debate político comumente toldado pelo analfabetismo político do senso comum.

 

 

2. O autoritarismo bolsonarista e a demissão do pensamento

 

Disposta a compreender a ascensão do neoconservadorismo no Brasil a partir de 2015, Lacerda (2019) advoga que é possível estabelecer uma relação de influência entre o neoconservadorismo nos Estados Unidos no fim da década de 1970 e o novo conservadorismo no Brasil que culminou com a eleição de Bolsonaro. Primeiramente, é preciso ter em conta o fato de que, segundo a autora, o governo de Jair Bolsonaro, iniciado em janeiro de 2019, é o resultado eleitoral do crescimento, no Brasil, de um neoconservadorismo ou de uma nova direita que se formou em torno da coalizão contrária às políticas de bem-estar social e ao avanço dos movimentos feministas e LGBTQIA+, e que arrebanhou uma parcela majoritária do evangelismo, integrantes da direita secular do Partido Republicano e intelectuais que apoiaram a eleição de Ronald Reagan em 1980. O neoconservadorismo esteia-se na tríade militarismo, absolutismo do livre mercado e família tradicional (leia-se família patriarcal). Além dessas características de base, o neoconservadorismo, de que o bolsonarismo é a versão brasileira atual e majoritária, se caracteriza também pelo idealismo punitivo e sionismo, o qual expressa a tendência do grupo da direita cristã a enfatizar os textos do Antigo Testamento e a apoiar o Estado de Israel em suas investidas contra a Palestina. Ademais, o bolsonarismo está econômica e ideologicamente alinhado com a racionalidade neoliberal. Aqui convém precisar o que devemos entender por neoliberalismo, no domínio da presente discussão. Consoante Dardot & Laval (2016, p. 34), o neoliberalismo “não é o herdeiro natural do primeiro liberalismo, assim como não é seu extravio nem sua traição”. Para os autores, o neoliberalismo não é uma ideologia ou um sistema de crenças, “é um sistema de normas que hoje está profundamente inscritas nas práticas governamentais, nas políticas institucionais, nos estilos gerenciais”. (ibid., p. 30). O neoliberalismo excede, portanto, a esfera mercantil e financeira, para estender a lógica do mercado além das fronteiras do próprio mercado. O neoliberalismo produz subjetividades que se convertem em dados contábeis, na medida em que submete os indivíduos à concorrência sistemática. Como assinalam os autores, “o neoliberalismo emprega técnicas de poder[4] inéditas sobre as condutas e as subjetividades”. (ibid., p. 21). Portanto, sem que possamos reduzi-lo à expansão espontânea da esfera do mercado e do campo de acumulação do capital, devemos compreendê-lo como uma forma de governamentalidade. Assim entendida, “a governamentalidade neoliberal escora-se num quadro normativo global que, em nome da liberdade e apoiando-se nas margens de manobra concedidas aos indivíduos, orienta de maneira nova as condutas, as escolhas e as práticas desses indivíduos”. (ibid., ênfase no original). Em suma, o neoliberalismo não é uma doutrina, mas uma racionalidade governamental que se expressa como o desenvolvimento da lógica do mercado normatizadora e generalizada, que se estende da esfera do Estado até o âmago da subjetividade.

Como se pode depreender do que até aqui se expôs, uma discussão sobre política que se pretende consistente, esclarecida e profunda não pode prescindir de reconhecer a sua complexidade fenomênica, que não é senão reflexo da complexidade do real. Demais, quem quer que queira compreender como opera o projeto antipolítico de Bolsonaro, deve tanto renunciar ao hábito de repisar os lugares-comuns, os slogans, os preconceitos, os despautérios da burrice generalizada, quanto abster-se de considerá-lo burro ou louco. A advertência que nos faz Nobre vem aqui a propósito:

 

 

É fácil chamar Bolsonaro de burro ou louco, ou das duas coisas. Só que isso não ajuda em nada a entender o que estamos vivendo. Pior, é uma maneira de dizer que não há nada para entender, é uma maneira de se desobrigar de pensar. E desobrigar de pensar é um dos grandes objetivos do projeto autoritário de Bolsonaro. Não bastasse isso, o xingamento despolitiza: como todo político autoritário, Bolsonaro se apresenta como não político. O xingamento diz que o atual presidente de fato funciona segundo outra lógica que não a da racionalidade política. (Nobre, ibid., p. 9).

 

 

 

 

Enumerem-se, pois, as três ideias importantes expressas nesse passo de Nobre: 1) o projeto autoritário de Bolsonaro tem como um de seus objetivos desobrigar de pensar; 2) o xingamento despolitiza, impede-nos de entender Bolsonaro como um autoritário, como um não político; 3) o xingamento, ademais, libera Bolsonaro da responsabilidade por seus atos e palavras, visto que burros e loucos não podem ser responsabilizados pelas burrices e pelas loucuras que proferem ou fazem. Segundo Nobre, também não devemos ignorar o fato de que Bolsonaro usa-se de uma tática política que lhe é bastante conveniente: a culpa que recai sobre si ele transfere para o outro. Se queremos compreender, portanto, adequadamente, o modo como Bolsonaro faz política, devemos procurar entendê-lo nos termos da política da guerra e da morte que a orienta. O que se espera de um cidadão crítico ou de qualquer pessoa a quem não falte o bom senso é que se esforce por compreender como a própria política virou guerra com a ascensão de Bolsonaro ao cargo de Chefe de Estado.

Se podemos dizer, com Nobre, que há nas falas e atitudes de Bolsonaro signos que desencorajam o exercício do pensamento, é que há nos silenciamentos que atravessam a sua fala a crença de que o real[5] é simples e não problemático. Acontece que não conhecemos a realidade diretamente e de modo transparente; nossa experiência do real já vem tramada pelos signos, pelas significações, pelas imagens que a constituem, ou seja, é tramada pela junção do imaginário com o simbólico. O mundo conhecido é um mundo significado, já ordenado pela função de simbolização da linguagem; e essa ordem simbólico-imaginária da realidade é complexa, se articula em muitos níveis de significação. Morin (2015) nos adverte sobre a necessidade do exercício do pensamento complexo, caso queiramos compreender a complexidade do real. Lembra o autor que complexus se diz do que é tecido junto. A complexidade é um tecido de constituintes heterogêneos intrinsecamente ligados. Destarte, nas palavras do autor:

 

(...) a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações, acasos, que constituem nosso mundo do fenomênico. Mas então a complexidade se apresenta com traços inquietantes do emaranhado, do inextricável, da desordem, da ambiguidade, da incerteza. (ibid., p. 13).

 

 

Esse tecido de acontecimentos de que fala Morin, esse emaranhado é da ordem do imaginário e do simbólico. Esse tecido é intertecido com significações, é feito da urdidura do imaginário-simbólico. Ora, se o real é complexo, se é problemático (porque jamais transparente, autoevidente, unívoco, seguro, posto como objeto de certeza), então necessitamos do pensamento complexo, caso queiramos, deveras, compreendê-lo nos níveis mais profundos e intricados de sua complexidade. Fazendo face ao modo de ser simplificador da política, Morin propõe um conhecimento complexo, não sem fazer a seguinte advertência:

 

A incapacidade de conceber a complexidade da realidade antropossocial, em sua microdimensão (o ser individual) e em sua macrodimensão (o conjunto da humanidade planetária), conduz a infinitas tragédias e nos conduz à tragédia suprema. Dizem-nos que a política “deve” ser simplificadora e maniqueísta. Sim, claro, em sua concepção manipuladora que utiliza as pulsões cegas. Mas a estratégia política requer o conhecimento complexo, porque ela se constrói na ação com e contra o incerto, o acaso, o jogo mútiplo das interações e retroações. (ibid., p. 13).

 

Decerto, ser capaz de pensamento complexo é um atributo que Bolsonaro não tem e que se recusa a tê-lo, preferindo confrontar-se com a complexidade da realidade antropossocial recorrendo à munição dos destemperos de seu autoritarismo, o mesmo autoritarismo com que insiste em simplificar justamente aquilo que não se presta a simplificações: o real, a vida, o mundo.

Antes de descer a pormenores sobre a questão do autoritarismo e, mormente, do autoritarismo do bolsonarismo, se faz mister fazer um recuo a fim de refletir com mais acuro sobre o contexto sociopolítico-econômico em que se inscreve o autoritarismo de nosso século. Consoante ensina Casara (2020a), “a racionalidade neoliberal, que transforma tudo e todos em objetos negociáveis, e só se preocupa com o lucro e a acumulação do capital, além de elevar o egoísmo à condição de virtude, produz um fenômeno: a dessimbolização, o desaparecimento dos valores e dos limites que condicionavam a civilização”. (grifo meu, p. 57). A dessimbolização a que se refere Casara designa, de um ponto de vista da psicanálise lacaniana, a perda do Nome-do-pai, que simboliza a Lei, o interdito. Assim, o mundo, na medida em que vai-se cada vez mais se dessimbolizando, torna-se um lugar onde valores democráticos como “verdade” e liberdade” se tornam moedas de troca e limites éticos e jurídicos lapidares do modo civilizado de vida são violados. Num mundo dessimbolizado, naturalizam-se tendências anarcocapitalistas que estimulam a absoluta livre concorrência, e a liberdade se reduz à liberdade de possuir, e todos os direitos se reduzem ao direito de propriedade. A dessimbolização liquidifica ou mesmo dissolve os laços de solidariedade social. Num mundo dessimbolizado, cresce o fanatismo religioso oportuno aos seus simpatizantes e propagandistas. Consoante Casara, “ a dessimbolização gera “assujeitos”, zumbis demitidos da faculdade de julgar e propícias posturas perversas, quando não psicóticas”. (ibid., p. 65). E ajunta: “a dessimbolização, em resumo: gera o bolsonarismo”. (ibid.). A violação dos limites civilizatórios torna-se objeto de gozo. Não raro, eles são ignorados em nome da satisfação pessoal. O absurdo é naturalizado. A lei simbólica (o limite externo) é substituída pela imagem construída individualmente da lei (lei imaginária). A dessimbolização leva à identificação com a figura de um líder carismático que passa a ocupar o lugar do Pai (sempre poderoso), a quem a obediência vem acompanhada da promessa de liberar o gozo irrestrito. Assim, as pessoas que o seguem anseiam por estar livres para expor seus preconceitos ou para recusar os direitos fundamentais do outro, o qual aparece imaginariamente como um concorrente ou inimigo a ser destruído. Segundo Casara, é a dessimbolização que leva pessoas a quem interessam as políticas sociais destinadas à redução da pobreza a votarem num candidato cuja agenda política se alinha com o fim dessas mesmas políticas. É também a dessimbolização que explica como mulheres que se afirmam feministas podem escolher votar em homens em vez de noutras mulheres feministas. Como pontua Casara, “na eleição de Jair Bolsonaro, a verdade perdeu importância diante de certezas, ainda que delirantes, de seus eleitores”. (ibid., p. 59). Outra consequência da dessimbolização, segundo Casara, é psicose social:

 

A dessimbolização leva, portanto, a uma espécie de psicose social. No caso brasileiro (como, antes, já tinha ocorrido nos Estados Unidos de Donald Trump), uma psicose gerada por uma propaganda sem compromisso com a verdade, com argumentos racionais ou com questões políticas concretas ou tangíveis, mas baseada em cálculos emocionais, na manipulação de ressentimentos, ódios e pulsões. Essa manifestação psicopolítica, capaz de produzir dominação sem que os dominados/zumbis percebam, utiliza-se da reiteração e escassez de ideias, frases feitas sem maiores complexidades, slogans e etiquetações que criam e demonizam inimigos imaginários (construções que se distanciam da realidade dos rivais políticos), ao mesmo tempo em que transforma o absurdo e o ridículo em capital político. (ibid., p. 66).

 

 

A hipnose social ou o que Casara também chama “zumbificação” é consequência da liquidificação das relações entre pessoas, resultante do modus operandi da racionalidade neoliberal. É o laço social que se dissolve à proporção que avança e domina todas as esferas da vida em comum o imperativo do gozo ilimitado e o processo de reificação de todo o entorno social que se reduz a mercadorias a serem consumidas. A esfera dialógica entre sujeitos é suprimida, e eles se tornam meros objetos de uma lógica que opera segundo interesses mercantis.

Para Casara, o bolsonarismo é um sistema de pensamento paranoico, porquanto limitado a produzir certezas delirantes, tais como o terraplanismo, o marxismo cultural e a conspiração comunista que, no senso comum, se amalgamam com preconceitos e xingamentos que reforçam a ignorância coletiva e a burrice desavergonhada. Estas e outras criações do imaginário psicótico e paranoico do bolsonarismo influenciam de modo significativo as decisões individuais e manipulam os arranjos do campo político e das forças eleitorais. Resta evidente, ao menos para mim, que os apoiadores de Bolsonaro são, em sua grande maioria, analfabetos políticos. Muitos deles podem ser considerados “burros”, porque defendem o indefensável e são incapazes de compreender as consequências danosas dessa defesa, seja para a sociedade a que pertencem, seja para si mesmos.

 

 

2.1. A personalidade autoritária e fascista

 

Ao contrário da personalidade democrática, que aceita bem os limites impostos aos seus desejos e ao exercício do poder, a personalidade autoritária recusa qualquer limite aos seus desejos e ao seu projeto de dominação.[6] O autoritarismo culmina com o culto à violência, carreia o ódio aos direitos humanos e ao conhecimento, dissemina e nutre o medo da liberdade, produz inimigos imaginários e reproduz um pensamento estereotipado e empobrecido, que se estrutura num discurso simplificador e repleto de clichês, slogans e frases feitas. O autoritarismo ou a personalidade autoritária naturaliza os preconceitos racial, social, de gênero, aceita de modo acrítico as fake news, mormente aquelas que confirmam seus piores preconceitos e suas crenças mais absurdas. Sobretudo, a personalidade autoritária não tolera qualquer limite legal, constitucional imposto ao poder e aos seus desejos de poder. O autoritarismo odeia o pensamento crítico. Odeia a razão, os direitos, os valores, as regras e práticas civilizatórias que balizam a esfera de atuação do poder. O autoritarismo também odeia os limites que lhes são fixados em seus desejos de dominação. Conforme escreve Casara, “(...) não raro, o autoritário passa a “defender o indefensável”, desde a  “prática de crimes para combater a criminalidade” à solução final administrada pelos nazistas no século passado” (ibid., p. 85).

Em seu estudo sobre o fascismo, Stanley observa o seguinte acerca do anti-intelectualismo da política fascista:

 

A política fascista procura minar o discurso público atacando e desvalorizando a educação, a especialização e a linguagem. É impossível haver um debate inteligente sem uma educação que dê acesso a diferentes perspectivas, sem respeito pela especialização quando se esgota o próprio conhecimento e sem uma linguagem rica o suficiente para descrever com precisão a realidade. Quando a educação, a especialização e as distinções linguísticas são solapadas, restam somente poder e identidade tribal. (Stanley, 2020, p. 48).

 

 

 

A propaganda fascista ataca as universidades e os sistemas educacionais que poderiam contestar sua ideologia. As técnicas empregadas pelo fascismo recriam a compreensão geral que a população tem da realidade, assim, construindo uma irrealidade com base na qual as teorias da conspiração e as notícias falsas ocupam o lugar do debate esclarecido e bem fundamentado. Em Como conversar com um fascista (2018), Tiburi, escrevendo antes do pleito que levaria Bolsonaro a ocupar a cadeira de Presidente da República, já denunciava o processo de destruição do outro e da política, notável em 2015, época em que fora publicada a primeira edição  do livro. Também aí Tiburi demonstra preocupação com o risco de o ódio tornar-se um fenômeno estrutural, a saber, um padrão normativo do que, nas práticas e relações sociais, se considera aceitável:

 

 

Podemos nos colocar a questão quanto ao risco de que o ódio se torne estrutural, que venha a dar base a todas as nossas relações. Nesse contexto, a política é destruída sistematicamente em duas linhas: pelos políticos que a transformam em burocracia; pelo povo que a negligencia e se desinteressa dela. Talvez a destruição da política seja a verdade oculta na razão de Estado atual. Todos sabem, mesmo que não tenham palavras para expressar, que a política foi transformada em burocracia e que os governantes garantem seu emprego eterno estimulando o ódio nacional ao poder público. Não há maneira melhor de destruir a política do que fazendo uso eficiente do ódio. (Tiburi, 2018, p. 29).

 

 

 

Urge que o leitor que me acompanha até aqui atente para a transformação da política em burocracia e para a perpetuação no poder dos governantes que incitam o ódio, um modus operandis típico da política brasileira. Essa representação da política como atividade burocrática e oportunista corresponde bem à experiência vivida cotidianamente pela população brasileira, em cujo imaginário, convive bem a repulsa às práticas de seus governantes, ao “jogo sujo da política”, e a certeza de que a política um emprego tão extremamente rentável quanto desejável.

Tiburi acrescenta que “para destruir o outro é preciso destruir a política. Para destruir a política é preciso destruir o outro”. (ibid.). A destruição do outro (da alteridade) é o meio eficaz de eliminar o sujeito de direitos e o direito dos sujeitos. A tática de humilhação e de aviltamento de pessoas ou populações inteiras inviabiliza a realização de uma sociabilidade e sociedade democráticas, alicerçadas no princípio constitucional de inclusão de todos os cidadãos. Tiburi lembra também que a personalidade fascista – e por extensão, a personalidade autoritária – tem compulsão à submissão e, ao mesmo tempo, à dominação. O fascista é submisso aos poderes e instituições, mas quer dominar os outros e eliminar os que pensam e agem de modo diferente. O fascista não está aberto ao diálogo e ao saber. Ele desconfia do conhecimento e nutre ódio por quem quer que demonstre saber algo que o afronte ou que invalide suas crenças. Sua conduta social se orienta pela ignorância e confusão. O fascista não hesita em recorrer a crenças irracionais ou antirracionais, e em criar inimigos imaginários, a fim de reforçar suas práticas de dominação.

Correlata à simplificação da realidade é a simplificação da linguagem característica do discurso autoritário. Em um de seus artigos reunidos no livro Minha especialidade é matar: como o Bolsonarismo tomou conta do Brasil (2020), o filósofo e escritor Henry Bugalho observa que Bolsonaro e o então Ministro da Educação Weintraub à época consideram que os cursos de Filosofia não servem senão para formar “comunistas malévolos”. A ignorância e opinião refratária à filosofia de Bolsonaro e Weintraub podem ser explicadas no passo abaixo de Bugalho:

 

Deveria ser impossível, mas é fácil na verdade entender o desprezo que o governo Bolsonaro nutre pela Filosofia. Temos um presidente que devolve respostas simples para os mais complexos problemas do Brasil e do mundo, repostas que satisfazem as inquietações de seus eleitores, hoje educados por meio de fake News no Whatsapp, sectários youtubers e pela tal mídia alternativa, um eufemismo para um jornalismo tosco que prescinde de um dos princípios mais elementares da ética jornalística: fundamentar-se no que seja factual, ou seja, restringir-se aos fatos. (ibid., p. 37).

 

 

Ainda segundo Bugalho, “neste universo de linguagem simplificada e rasa, qualquer resposta sofisticada e problematizadora é descartada como uma excentricidade de acadêmicos ideologicamente enviesados”. (ibid.). O autor lembra também o que eu deixei claro em outro texto meu, publicado neste blog: Bolsonaro sustenta uma retórica de governo “sem viés ideológico”, mas ignora que seus atos e falas são ideologicamente orientados. Como enfatiza Casara, numa época em que o empobrecimento da linguagem é uma das facetas do capitalismo digital, “tudo deve se apresentar como simples e direto para evitar os conflitos, as dúvidas e a percepção de que é possível ou necessário mudar” (ibid., p. 12).

O discurso de Bolsonaro e de seus apoiadores se produz com um arranjo de explicações demasiado simplistas dos acontecimentos humanos e do mundo. Essas explicações superficiais e simplistas interditam as investigações, os questionamentos, as reflexões detidas e profundas indispensáveis a uma compreensão refinada e abrangente da complexidade dos fenômenos humanos e do mundo. No processo de simplificação neoliberal da realidade, o bolsonarismo encontra um terreno sólido e fecundo para reproduzir a “lógica do gado”, em consonância com a qual a comunicação deve-se realizar por iguais e entre iguais num circuito cacofônico no qual o igual responde ao igual. Assim, quem ousa falar ou pensar diferente dos modos de produção do pensamento e da linguagem simplificadores, tem de ser calado, amordaçado simbolicamente, porque, no imaginário empobrecido do autoritarismo bolsonarista, o divergente, aquele que contradiz, que ousa verdadeiramente pensar, é representado como um inimigo, um resíduo inoportuno que precisa ser eliminado. Depreende-se daí ser forçosa a conclusão de que, como afirma Casara, “o fenômeno Bolsonaro não seria possível sem o empobrecimento subjetivo da população brasileira”. (ibid., p. 15).

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BUGALHO, Henry. Minha especialidade é matar: como Bolsonaro tomou conta do Brasil. Curitiba: Kotter Editorial, 2020.

 

CASARA, Rubens R.R. Bolsonaro: o Mito e o sintoma. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020(a).

 

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016.

 

LACERDA, Mariana Basso. O novo conservadorismo brasileiro: de Reagan a Bolsonaro. Porto Alegre, RS: Zouk, 2019.

 

MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Trad. Eliane Lisboa. Porto Alegre: Sulina, 2015.

 

NICOLAU, Jairo. O Brasil dobrou à direita: uma radiografia da eleição de Bolsonaro em 2018. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

 

NOBRE, Marcos. Ponto final: a guerra de Bolsonaro contra a democracia. São Paulo: Todavia, 2020.

 

STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo. Trad. Bruno Alexander. Porto Alegre: L&PM, 2020.

 

TIBURI, Marcia. Como conversar com um fascista: reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2018.

 

 

 

 

 



[1] Por senso comum entendo um complexo de crenças, supostas certezas, concepções, preconceitos, ideologias, valores, símbolos; em suma, representações coletivas formadoras dos modos de pensar, agir e sentir que são gerais e permanentes numa sociedade ou num grupo social particular. O senso comum abriga saberes subjetivos que exprimem sentimentos e opiniões individuais ou de grupos, que variam de uma pessoa para outra, ou de um grupo para outro, dependendo das condições socioculturais em que vivem os indivíduos.

[2] Nicolau, op.cit.

[3] O imaginário é a matriz produtora de significações sociais, de representações, de símbolos, sem os quais seria impossível a instituição da ordem social. O imaginário abriga representações inconscientes que se formam a partir de imagens e outros fenômenos percebidos no meio social, cultural em que um indivíduo está inserido. O imaginário é o que torna possível o sentido. Ele prende-se à capacidade humana de representar coisas através do pensamento, permitindo a construção da ordem imagética do mundo. O imaginário constitui aquilo que uma pessoa percebe como objeto da realidade. O imaginário articula representações que se formam com base nos materiais simbólicos que estão disponíveis como parte do acervo de conhecimento partilhado numa sociedade ou comunidade. O imaginário é uma construção social e, como tal, fala-se em imaginário social, sempre que as significações, as imagens e os símbolos produzidos permitem a um grupo a construção de uma identidade e uma imagem de si, levando-o a respeitar os códigos de comportamento coletivamente sancionados, a identificar motivações e a estabelecer crenças comuns, como a crença no uso da força como meio de solução dos problemas – crença esta vigente na estrutura das sociedades autoritárias.

[4] O conceito de poder será discutido na PARTE 3 deste trabalho.

[5] Na psicanálise lacaniana, o real se distingue da realidade. O real é o que não pode ser simbolizado, é “o impossível de ser simbolizado”. A realidade, por seu turno, é a trama simbólico-imaginária.

[6] Nas relações de dominação, grupos particulares de atores sociais possuem poder de uma maneira permanente, em grau amplo, e o exercem de modo a excluir das esferas de poder outros grupos de agentes.

sábado, 22 de maio de 2021

"O homem trágico afirma ainda o mais acerbo sofrer: ele é forte, pleno, divinizante o bastante para isso". (Nietzsche)

                                                                


                                             Viver de verdade

 

 

A certa altura, depois que tematizou a questão da tirania, Schöpke assevera: “o que se deve temer, mais do que tudo, é não viver de verdade”. É neste instante que ao leitor se lhe apresenta a questão, que lhe perturba o silêncio: o que significa “viver de verdade”? Como sujeito de leitura, sou instado, pois, a significar. Viver de verdade significa, em primeiro lugar e antes de tudo, viver de modo verdadeiramente livre. Viver de verdade, ou seja, viver verdadeiramente livre, é viver sem temer vida, é viver liberto da angústia provocada pelos medos imaginários, que nos tiranizam e nos despotencializam. Viver de verdade é também afirmar continuamente nossa potência de viver, nossa alegria de viver, nosso querer viver incondicional e inapelavelmente. O viver de verdade é um viver potencializado, é o modo mesmo como nossa vontade se efetiva como potência, isto é, como alegria inquebrantável, alegria que renuncia às seduções da concessão, às tentações da apelação em face das intempéries, dos sofrimentos que sobre nós recaem. Viver de verdade é aprovar a vida incondicional e integralmente, é dizer sim a ela com a firmeza da vontade que quer seu eterno retorno, que, em face de uma dor atroz, da impermanência de todas as coisas, não recua em seu amor fati, em seu querer o real tal como é, em toda sua crueldade - nos dois sentidos em que por crueldade entende Rosset. Viver de verdade é renunciar a valer-se dos disfarces metafísicos, que nos prometendo o consolo da felicidade num além-mundo, tornam a vida suportável, sem torná-la amável e desejável. Nesse sentido, viver de verdade é recusar-se a viver no autoengano, tiranizado pelos embustes metafísicos e/ou religiosos. Em suma, viver de verdade é suportar “um “sim” sem mais senões ou meias vontades, sem mais trapaças e covardias”.  (Schöpke)

sexta-feira, 21 de maio de 2021

“(...) para que moral?, quando vida, natureza e história são “imorais”? Não há dúvida, o homem veraz, no ousado e derradeiro sentido que a fé na ciência pressupõe, afirma um outro mundo que não o da vida, da natureza e da história; e, na medida em que afirma esse “outro mundo” - não precisa então negar a sua contrapartida, este mundo, nosso mundo? ... " (Nietzsche)






 

A NOSSA RESISTÊNCIA

 por uma desmitificação niilizante do homem

 

No curso de minhas reflexões sobre o fenômeno multívoco, heterogêneo, polimórfico do niilismo, para a produção de minha segunda tese de doutorado, a questão da crença na linguagem, tal como abordada por Nietzsche no contexto de sua análise destrutiva da metafísica e da moral platônico-cristã, impõe-se a mim como uma tarefa pedagógica de uma vida inteira, pois que, enquanto professor e estudioso da linguagem, tenho de lidar com a insistência com que o macaco pelado, que é o homem, crê na relação especular entre a linguagem e o mundo, crê na correspondência entre as palavras e as coisas. É com base nessa crença que o animal humano criou o mundo simbólico - o mundo da cultura -, esse outro mundo entretecido pelos signos. A crença na linguagem é o fundamento da crença na verdade. É por manter uma relação metafísica com a linguagem que o animal humano cria, sem que o saiba, um mundo de ficções metafísicas a serviço da negação da vida (Deus, Ser, Identidade, Verdade, Razão). Ora, a própria ideia de Deus é produto da metafísica da linguagem. Como diz Nietzsche, em O Anticristo:

“Todo esse mundo de ficções tem a sua origem no ódio contra o natural - contra a realidade! - é a expressão de um profundo descontentamento com o real”.

Sim, de fato, o perigo não reside propriamente no caráter ficcional, na invenção, que Nietzsche, com razão, diz serem condições necessárias à sobrevivência desse animal fabulador que é o homem. Há ficções úteis à vida. O perigo repousa no fato de que as ficções criadas por ele são tomadas como critérios de verdade, de uma verdade que lhe dá supostamente acesso a um “mundo verdadeiro”. E essa crença no “mundo verdadeiro” fundamenta e orienta ainda hoje a existência do homem comum, que dorme e acorda nutrido pela crença de que goza de um privilégio ontológico relativamente a tudo mais que existe no Universo.... E nem mesmo o coronavírus conseguiu curar o animal humano de sua loucura.

O homo sapiens é homo demens!

quinta-feira, 13 de maio de 2021

“O que sabemos é uma gota; o que ignoramos é um oceano.” (Isaac Newton)

                                                              



 

                                 O Véu de MĀYĀ

                                                                                    A realidade não é o que parece

 

 

1. Introdução

 

A cada nascimento, um indivíduo é lançado ao desconhecido. Nascer é o começo de uma experiência bastante perturbadora: aperceber-se como um “eu” lançado num mundo estranho e incompreensível, sem razão e casualmente. Assim, o indivíduo, tendo atingido certo grau de consciência reflexiva, não poderá ignorar que a experiência da vida é semelhante àquela de alguém que, abruptamente, começa a sonhar. Tanto a relação entre a vida e o sonho quanto a relação entre a morte e o despertar são consistentes com os ensinamentos das tradições orientais, nomeadamente a do hinduísmo e do budismo. Schopenhauer, fazendo eco a essas tradições, postulou que a vida é um sonho do qual a morte é o despertar. Ora, nós não conferimos realidade aos nossos sonhos, e só, ao despertar, descobrimos que esta realidade era enganosa? E se a realidade percebida não passar de uma espécie de sonho? Esta é uma questão na qual convido o leitor a meditar, com seriedade e cuidado, ao longo da leitura deste texto. Ao contrário do que podemos pensar, não há diferença intrínseca entre percepção e alucinação, e toda percepção carreia uma porção alucinatória.

Sem chegar a um veredito sobre a referida questão, este texto brota do solo de minha estupefação, de meu espanto costumeiro, de minhas inquietações espirituais e tem como fito dar ao leitor comungar dessas mesmas inquietações. Este texto se estrutura em torno da seguinte hipótese: a física moderna, nomeadamente a física quântica, parece confirmar a intuição fundamental das sabedorias indianas, qual seja, a de que a realidade aparente ou percebida não exaure a realidade mesma. Há uma realidade fundamental que funciona de modo radicalmente diferente da realidade comum da vida cotidiana. A física quântica ensina-nos que a realidade não é tal como a conhecemos, tal como aparece a nós em nossa experiência ordinária. Não me será possível fazer uma aproximação minuciosa entre a sabedoria védica e as lições da física quântica, e não pretendo sugerir que a física quântica confirme tudo que essa sabedoria bimilenar ensina. Por exemplo, a física quântica não compartilha a crença de que o Universo é dotado de consciência, ou de que a realidade última e fundamental seja o Eu ou a Consciência Infinita, identificada com Deus. Não obstante, a física quântica, tal como as sabedorias da Índia, parece dizer a nós, em tom de advertência, o que Hamlet consagrou na memória discursiva do senso comum: “há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”.

Quiçá seja escusável dizer que o autor deste texto é declaradamente ateu e que, portanto, acredita que a morte é simplesmente o retorno ao inorgânico. Acredito, portanto, que, quando morrermos, nosso corpo voltará à temperatura das coisas inanimadas ao nosso redor, que, uma vez mortos, entramos em equilíbrio com o ambiente, que nos tornamos, em suma, pó, poeira novamente. Não creio, portanto, que temos uma alma imortal que sobreviverá à morte de nosso corpo. Também não pretendo dar a entender que estarei sustentando o vitalismo, ou seja, uma doutrina segundo a qual a vida surge a partir de um princípio ou força vital que permeia o Cosmo e que transcende o domínio da química e da física. No entanto, enquanto ateu, rejeitando uma solução simples e problemática como a da fé na existência do Deus metafísico das três religiões do Livro, pretendo aceitar o Mistério, sem deixar de me confrontar com ele, interrogando-me sobre ele. Como bem diz Morin (2020, p. 19), “não apenas o mistério escapa ao conhecimento como está no coração do conhecimento. O desconhecido é o enigma; o incognoscível é o mistério”.

 

2. A ilusão de Maya

 

Ilusão provém do latim illusio-onis, que, em retórica, equivalia a ironia. A ilusão ou ironia consistia numa estratégia do discurso por meio da qual o orador zombava de um adversário, fingindo dizer algo diferente daquilo que, na realidade, estava dizendo. A forma latina illusion-onis deriva do verbo iludo, que, por sua vez, provém de ludo, que significa ‘jogo’. Illudo é ‘divertir-se’, ‘recrear-se’, mas também ‘burlar’, ‘enganar’. De iludo originou-se o nosso “iludir”, mas também “lúdico”, “eludir”, “prelúdio”, “alusão”. Iludir é enganar, causar uma impressão enganosa, suscitar uma interpretação enganosa. Ilusão significa, então, engano, coisa efêmera, interpretação enganosa ou errônea.

A doutrina vedanta, tal como sistematizada e ensinada por Sankara, reza que Maya recobre o caráter insubstancial e fenomênico do mundo por nós percebido. Todas as coisas existentes que percebemos e com as quais temos contato através de nossos cinco sentidos carecem de densidade ontológica, estão submetidas à ilusão de Maya. Também as faculdades conscientes e subconscientes de nossa personalidade são efeitos da ilusão de Maya. Mas devemos rechaçar a conclusão de que o mundo externo e o nosso eu são inexistentes, porque tal conclusão seria um sinal de incompreensão da doutrina. Deveras, Maya é um enigma inquietante. Maya é uma espécie de “feitiço cósmico”, que nos faz acreditar que a realidade percebida é a única e verdadeira realidade. Permita-me o leitor fazer aqui uma digressão para esclarecer o que significa dizer que, sob o Véu de Maya, o mundo fenomênico é desprovido de substancialidade. Em filosofia, substância (ousía) é aquilo que existe em si mesmo, é a realidade de algo como suporte dos atributos, qualidades, acidentes. A substância, é, assim, a quididade, isto é, aquilo que a coisa é por si e em si mesma, por sua realidade própria. A substância tem uma existência independente. A substância é independente de suas qualidades, permanecendo sempre o que é; ela é imutável. A substância é tanto o ser enquanto existente, quanto a essência, ou seja, a natureza desse ser.

Coube a Aristóteles tratar sistematicamente da noção de substância (ousía) a partir de três planos: o lógico, o físico e o metafísico. Do ponto de vista lógico, a substância é recobre aquilo que não é afirmado de um sujeito. A substância, portanto, não é um predicado. Em “A neve é branca”, o adjetivo “neve” não é substância, porque não designa uma realidade que existe independentemente. Ao contrário, é um predicado, porque designa aquilo que se diz do sujeito (neve). Assim, a ousía é o sujeito lógico, aquilo do qual alguma coisa é predicada. Situada no domínio físico, a substância, porque é sujeito, suporte da predicação, é concreta. Na experiência, só nos é dado sujeito concreto, sensível, que pertence à natureza e que é objeto da ciência. Aqui Aristóteles chama a substância de matéria, que é considerada a substância universal. É na substância material ou física que ocorre a mudança. A substância física permite a explicação da geração e corrupção. A partir daí, se desenvolve a teoria hilemórfica de Aristóteles, segundo a qual toda substância física é composta de matéria (hýle) e forma (morphé). Do ponto de vista metafísico, a substância pode ser estudada a partir de quatro pontos de vista. Do ponto de vista da quididade, caso em que a substância é aquilo que a coisa é por si e em si mesma, independente de qualquer qualidade atribuída a ela. A substância é uma existência independente. Do ponto de vista do universal (kathólou) e do gênero (génos), caso em que a substância, enquanto essência, é comum a todos os seres que admitem a mesma definição. Por exemplo, a animalidade é a substância ou essência comum a vacas, bois e homens. Por fim, a substância é o substrato, ou sujeito (hypokeímenon), o que subjaz. Essa noção atrela-se à de quididade, porquanto a substância é independente de suas qualidades. Porque permanece sempre o que é, não muda. A substância, como substrato, é a sede, o sujeito das qualidades (os acidentes: symbebekóta) e da mudança. A despeito de toda essa classificação e subclassificação, Aristóteles conclui que a verdadeira substância é aquela que possui a quididade, ou seja, que existe em si e por si mesma, que tem uma realidade própria e independente. A substância, portanto, é tanto o ser enquanto ser, quanto essência, isto é, a natureza de um ente.

Dizer, portanto, que Maya recobre o caráter não substancial da realidade aparente é dizer que essa realidade percebida, que cremos existir independentemente de nós, como uma coisa objetiva e sólida, não tem quididade, não existe em si e por si mesma. Como pondera Zimmer (2020, p. 33), ““Tudo isto à minha volta... meu próprio ser...”: eis a rede de liames chamada maya, a potência criadora do mundo. Maya manifesta sua força através do universo mutante e das formas evolutivas do mundo”. Maya, cuja raiz ma- significa ‘formar’, ‘produzir’, ‘medir’, designa o poder de um deus ou demônio de produzir ilusões. Esse deus muda de forma e aparece sob máscaras enganosas. Daí deriva o sentido de “magia”. Na filosofia vedanta, Maya recobre a ilusão que, como um véu, é sobreposta à realidade como efeito da ignorância humana. Todo o universo visível e perceptível é, portanto, Maya.

A sabedoria indiana busca ensinar o indivíduo humano a compreender como opera Maya, a fim de que ele possa transcendê-lo, libertando-se do seu feitiço cósmico. A maior parte dos ensinamentos, dos escritos indianos consagra-se à meta do supremo libertar-se da ignorância e das paixões provenientes da ilusão do mundo fenomênico (o mundo ilusório de Maya). Destarte, a meta última que deve ser alcançada é a redenção ou libertação espiritual, que os hindus chamam Moksa. Moksa é a emancipação final da alma (atma). Consoante ensina Zimmer (ibid., p. 40), “Moksa deriva da raiz muc: “desatar, livrar, soltar, libertar, liberar, deixar em liberdade, sair de, abandonar, largar””.

 

 

Moksa é a metafísica posta em prática. Moska aponta para além das estrelas. (...) Moska é a técnica para transcender os sentidos, a fim de descobrir, conhecer e permanecer identificado com a realidade atemporal que subjaz no sonho da vida no mundo. (ibid., p. 43-33).

 

 

Maya parece expressar, numa linguagem metafísico-esotérica, o que a filosofia e as ciências ocidentais, nomeadamente a física moderna, as neurociências, a sociologia, antropologia e linguística nos ensinam: nossa percepção da realidade não é direta. Como assinala Morin (ibid., p. 22), “nossa percepção do mundo exterior é coproduzida pelas forças organizadoras do cérebro”. Nosso cérebro recria em hologramas (imagens com relevo) uma realidade feita de ondas de frequência. Se pensamos na realidade sócio-histórica, fica patente seu caráter de constructo, de construção resultante do concurso do simbólico no imaginário, socialmente constituídos. Nesse tocante, Morin observa:

 

(...) a realidade do mundo exterior é uma realidade humanizada: não a conhecemos diretamente, mas por meio do nosso espírito humano, traduzida/reconstruída não só pelas e nas nossas percepções, como também pela e na nossa linguagem, pelas e nas nossas teorias ou filosofias, pelas e nossas culturas e sociedades. (ibid., p. 23).

 

 

Se a doutrina de Maya subtrai ao mundo fenomênico a sua substancialidade, será que a física quântica confirma, mesmo que noutro registro, o que reza esta doutrina? É este o problema que nos ocupará na próxima seção.

 

 

3. A física quântica ou a loucura quântica

 

Guitton, em seu livro Deus e a Ciência (1992), escrito na forma de um diálogo com os cientistas Grichka Bogdanov e Igor Bogdanov, nos dá testemunho da verdadeira revolução levada a efeito pela física quântica:

 

A teoria quântica nos diz que, para compreender o real, é preciso renunciar à noção tradicional de matéria: matéria tangível, concreta, sólida. Que o espaço e o tempo são ilusões. Que uma partícula pode ser detectada em dois lugares ao mesmo tempo. Que a realidade fundamental não é cognoscível. (ibid., p. 16).

 

 

A física quântica pede-nos que, para compreender o real, em sua natureza íntima, em sua essência, por assim dizer, renunciemos ao modo familiar pelo qual nos relacionamos com o mundo. Nesse sentido, também para a doutrina vedanta de Maya, o conhecimento verdadeiro do  mundo supõe a libertação da teia de Ilusão tecida por Maya sobre toda a realidade fenomênica. Guitton, no entanto, vai mais longe e ajunta que “(...) a física quântica toca de modo surpreendente a Transcendência” (ibid., p. 10). É nesse momento que Guitton faz sobressair o cristão que era sobre o filósofo que foi. É bastante problemático afirmar que a física quântica admita, de algum modo, uma realidade transcendente. Antes de tentar demonstrar por que penso que a física quântica não toca a Transcendência, preciso dizer algumas palavras sobre o que significa transcendência na história do pensamento ocidental. De modo geral, transcendência designa a condição de algo que pertence a outra natureza radicalmente diferente, que é radicalmente exterior, que é de ordem superior. No teísmo, por exemplo, diz-se que Deus é transcendente em relação ao mundo e aos homens. Isso significa dizer que Deus é radicalmente superior e exterior ao mundo e aos homens. Chamo a atenção para o fato de Guitton grifar a palavra transcendência com “T” (maiúsculo), talvez para sugerir que a Transcendência se identifica com o próprio Deus teísta. Ao menos me parece que Guitton concebe a transcendência como “princípio divino, condição do Ser além de toda experiência humana”. Não creio que a física quântica acene a uma Transcendência no sentido pretendido pelo autor. Os físicos e astrofísicos, muito provavelmente, relutariam em admitir que a física quântica seja o reconhecimento de que há algo muito além do Universo conhecido que se identificaria com algum princípio divino ou espiritual. Talvez possamos dizer que a única transcendência postulada pela física quântica seja a da existência de uma realidade fundamental que, mesmo sendo inacessível à experiência humana ordinária e até mesmo ininteligível pelos padrões dessa experiência, e, portanto, superior a ela, não implica a suposição de que essa realidade tem algo de divino ou sobrenatural. Todavia, se a física quântica não parece implicar uma Transcendência divina como causa explicativa do mundo, ela seria permeável a investigações metafísicas? Em outras palavras, será que no afã de investigar como o mundo funciona no nível subatômico, determinando quantas e quais seriam as partículas elementares do universo, os físicos não estariam adentrando o domínio das investigações metafísicas? Parece-me que sim, e direi o porquê. Consideremos, em primeiro lugar, que Metafísica é a ontologia geral, o tratado do ser enquanto ser. Aristóteles definia-a como a filosofia primeira, pois que ela se ocupa dos princípios e causas primeiras da phýsis. Na tradição escolástica, a metafísica divide-se em metafísica geral, que examina o conceito geral do ser e a realidade em seu sentido fundamental e transcendente; em metafísica especial, que compreende domínios específicos do real. A metafísica especial se subdivide em cosmologia ou filosofia natural, a qual, por seu turno, se ocupa do mundo e da essência da realidade material; em psicologia racional, ou tratado da alma, de sua natureza e propriedades; e em teologia racional ou natural, que recobre o conhecimento de Deus e das provas racionais de sua existência (sem o recurso à fé). Foi no pensamento moderno, sobretudo com Kant, que a metafísica deixa de ocupar um lugar central no pensamento filosófico, já que a filosófica crítica de Kant vai fixar limites às pretensões da metafísica de conhecer o mundo. Devemos a Kant a acepção da metafísica com a qual estamos mais familiarizados hoje em dia. Kant entendia por metafísica toda pretensão a um conhecimento que busque ultrapassar os limites da experiência possível, ou seja, é metafísica toda investigação que pretende ultrapassar o mundo fenomênico, o mundo da representação, das coisas tais como nos são dadas sob as formas da intuição (formas puras que, para Kant, são o tempo e o espaço). A metafísica ousa ir além das formas puras da intuição para dizer algo sobre o incondicionado, o em-si das coisas. Em outras palavras, fazemos metafísica quando nos interrogamos sobre o que se oculta, o que está por trás da natureza, da realidade sensível.

Do ponto de vista metodológico, os físicos podem alegar que muitas de suas especulações e hipóteses ensejadas pela imaginação criadora não chegam a perturbar a zona da cientificidade das teorias já comprovadas pela observação empírica. Físicos podem (e o fazem com certa frequência) formular muitas hipóteses que poderiam ser encaradas como metafísicas, sem que isso tenha alguma validade científica, pois que teorias científicas precisam ser, segundo Popper, refutáveis, ou testadas pela verificação. Em todo caso, se entendemos por metafísica o estudo das causas e princípios primeiros do mundo, então a física quântica adentra o terreno da metafísica. Quando os físicos assumem a existência de uma realidade fundamental diversa da realidade macroscópica de três dimensões de espaço e uma dimensão de tempo em que vivemos, eles fazem metafísica. Nesse sentido, a Teoria das Cordas ou Supercordas, que não foi ainda comprovada empiricamente, embora seja uma solução consistente e elegante para articular a Relatividade Geral à mecânica quântica, ilustra um caso de especulação metafísica no interior da cosmologia.

O mundo desvelado e explicado pela física quântica é um mundo como campo de interações mediadas por bósons. Acredita-se que no mundo subatômico existam centenas de partículas elementares. Existem quatro partículas estáveis no mundo subatômico: o próton, o elétron, o fóton e o nêutron. Mas, segundo Igor Bogdonov (Guitton, ibid., p. 77), “quando mergulharam no cerne do núcleo [do átomo], os físicos descobriram o imenso oceano dessas partículas nucleares, deste então, chamadas hádrons”. Os hádrons decompõem-se em partículas menores, chamadas de quarks. Assim, consoante nota Guitton, “o que chamamos de realidade não é outra coisa senão uma sucessão de descontinuidades, flutuações, contrastes e acidentes de terreno que, em seu conjunto, constituem uma rede de informações”. (ibid., p. 84). As partículas subatômicas como quarks, elétrons, bósons, neutrinos, entre outras, foram primeiramente formuladas como hipóteses matemáticas, para, posteriormente, se revelarem como elementos da realidade fundamental.

A Teoria das Cordas, desenvolvida no interior da física quântica, se propõe ligar a Relatividade Geral à física quântica. Assim, ela funciona como um elo entre uma teoria que explica o funcionamento do mundo numa escala grande e o funcionamento do mundo numa escala pequena. De acordo com essa teoria, se fosse possível observar microscopicamente o interior das partículas fundamentais da matéria (elétrons, quarks, etc.), o que encontraríamos não seria um ponto, mas uma corda em forma de laço (um laço de corda). As partículas interagiriam entre si mediante diversos padrões de vibração desses laços. Embora os físicos não ousem afirmar que as cordas são as partículas fundamentais e indivisíveis do universo, o que é preciso fazer ver é que, cada vez mais, a física moderna assume uma realidade fundamental radicalmente diferente do mundo macroscópico do espaço-tempo.

 

3.1. A granularidade da matéria

 

A mecânica quântica não nos permite mais pensar a matéria como algo sólido, tangível. A matéria é granular e a realidade não é feita de coisas, mas de relações, de eventos. A física quântica não descreve como as coisas são, mas como elas acontecem. Como ensina Rovelli (2017, p. 132),

 

Não descreve onde está uma partícula, mas onde a partícula “se faz ver pelas outras”. O mundo das coisas existentes é reduzido ao mundo das interações possíveis. A realidade é reduzida à interação. A realidade é reduzida à relação.

 

 

São as relações que dão origem às coisas. Nós, como todas as coisas existentes, somos processos, fluxos de eventos “que, por um breve tempo são monótonos” (ibid., p. 133). A física quântica permitiu a descoberta de três aspectos do mundo: 1) Granularidade: o mundo é uma sucessão de eventos quânticos granulares; 2) Indeterminismo: o futuro não é determinado univocamente pelo passado; 3) Relação: os eventos naturais são sempre relações, interações. A física quântica, segundo Rovelli, nos ensina a não pensar o mundo como um conjunto de “coisas” que estão neste ou naquele estado, e sim como um campo de processos, de interações. Um processo é a passagem de uma interação a outra. E as propriedades das “coisas” se manifestam como granulares apenas no momento da interação, isto é, nas bordas do processo, “e são tais apenas em relação a outras coisas, e não podem ser previstas de modo unívoco, mas apenas de modo probalístico. (ibid., p. 134). Um elétron não se acha em lugar algum quando está em interação. Assim, a física quântica esteia-se no postulado do aspecto relacional de todas as coisas. Os elétrons não existem sempre, mas “existem apenas quando interagem” (ibid.).

 

Materializam-se em um lugar quando se chocam contra outra coisa. Os “saltos quânticos” de uma órbita a outra são a única maneira para tornar-se reais: um elétron é um conjunto de saltos de uma interação a outra. Quando ninguém o perturba, um elétron não está em lugar algum. (ibid.).

 

Bizarro este mundo? Mas este é o Universo de cuja trama ígnea surgimos como uma faísca do acaso. A loucura quântica ensina-nos que a realidade observada é dependente do ponto de vista do observador. Grchka Bogdanov alerta-nos sobre o seguinte:

 

(...) o sucesso da teoria quântica é o de se ter edificado à margem da razão ordinária e quase sempre contra ela. É por isso que há algo de “louco” nessa teoria, algo que doravante ultrapassa a ciência. Sem que o saibamos ainda claramente, é nossa representação de mundo que está em jogo e começa a balançar irresistivelmente. (ibid., p. 99).

 

Decerto, o mundo como representação, para falar como Schopenhauer, desmorona, a nossa maneira habitual de perceber e compreender a realidade é radicalmente abalada na mecânica quântica. Assim, se uma flor é colocada num lugar fora do alcance da nossa observação, aceitamos que ela não deixa de existir. Isso sabemos por experiência. Mas a física quântica mantém que, se nós nos detivermos a observar essa flor a partir do nível atômico, sua realidade profunda e existência estarão intimamente ligadas ao modo pelo qual a observamos. Portanto, não podemos assumir a existência objetiva de uma partícula elementar num ponto definido do espaço. Uma partícula só existe sob a forma de um ponto definido no espaço e no tempo, quando a observamos diretamente. Como enfatiza Grichka, “não deixa de ser perturbador constatar que a realidade observada está ligada ao ponto de vista adotado pelo observador”. (ibid., p. 104). Mas o que há de perturbador não é o simples fato de que o mundo percebido exista na dependência de quem o percebe, mas no fato de que o observador afeta o comportamento de suas partículas elementares no momento em que as observa.

 

3.2. A granularidade do espaço

 

O espaço também é granular em pequena escala. Os fótons se encontram no espaço, mas os quanta são eles mesmos o espaço. Os quanta de espaço são o lugar. Em uma escala muito pequena, o espaço não é contínuo, mas tecido por elementos finitos interconectados. Segundo Rovelli, “o espaço físico é o tecido resultante do pulular contínuo dessa trama de relações” (ibid., p. 170). A estrutura do espaço é um efeito do encontro entre dois grãos de espaço. O espaço não é, como costumamos imaginar, um recipiente amorfo onde as coisas se situam, aparecem. Com a gravidade quântica, as coisas não se situam no espaço, mas sim habitam a vizinhança umas das outras, e o espaço “é o tecido de suas relações de vizinhanças”. (ibid., p. 171). Novamente, devemos enfatizar que o mundo não é um conjunto de coisas, mas uma trama de eventos. As coisas não são; elas acontecem. O mundo não é constituído de entes, de coisas que existem, mas é um pulular flutuante de eventos, acontecimentos, processos. A mudança no mundo é onipresente. O mundo é puro devir. Consoante lembra Rovelli, “as próprias “coisas” são apenas acontecimentos que são monótonos por um tempo, antes de retornar ao pó. Porque, cedo ou tarde, tudo sempre retorna ao pó”. (ibid., p. 85, grifo meu). Se este mundo nos causa um sentimento de profundo assombro quando o contemplamos à luz da física quântica, como não experienciar espanto em face da raridade da vida num Universo tão enigmático?

 

É uma surpreendente coincidência que o universo seja do jeito que ele é. Os cientistas tendem a não se sentirem confortáveis com as coincidências, e a interpretação de muitos mundos oferece uma saída. Se o cenário de muitos mundos é verdade, talvez haja muitos universos diferentes lá fora, com constantes diferentes. Alguns entram em colapso num milissegundo. Alguns quase não têm matéria. Nós simplesmente habitamos um que é adequado à vida. (Seife, 2007, p. 227).

 

 

3.3. O presente não existe

 

Quando a física quântica mantém que o presente não existe, deve-se entender que ela nega a existência de um presente objetivo universal. A forma como nossas línguas ocidentais segmentam a experiência do tempo em passado, presente e futuro é enganosa. As relações temporais entre os eventos são, deveras, mais complexas do que supomos. Há mudança no mundo, mas ela não ocorre de acordo com uma ordem universal. A física quântica descobriu a indeterminação, de sorte que não é possível prever com exatidão onde um elétron vai estar amanhã. O espaço-tempo também flutua. A distinção entre presente, passado e futuro é flutuante e indeterminada, de modo que um acontecimento pode estar, ao mesmo tempo, antes e depois de um outro. Assim, segundo Rovelli (2018, p. 149),

 

 (...) o presente comum a todo o universo não existe. Os acontecimentos não são todos ordenados em passados, presentes e futuros: são apenas “parcialmente” ordenados. Existe um presente próximo de nós, mas não algo de “presente” numa galáxia distante. O presente é uma noção local, não global.

 

Ainda segundo o autor, subtraindo-se os efeitos quânticos, “tempo e espaço são aspectos de uma grande gelatina móvel na qual estamos imersos”. (ibid., p. 149). O autor ajunta, no entanto, que “na gramática elementar do mundo não existem espaço nem tempo: apenas processos que transformam quantidade físicas umas nas outras, cujas probabilidades e relações podemos calcular”. (ibid.). Como se vê, no nível mais fundamental de realidade que se pode conhecer atualmente, resta muito pouco do tempo que ordena nossa experiência habitual de mundo. Porque o tempo não é uniforme em todo o Universo? Por que temos a experiência da passagem do tempo no mundo de nossa experiência sensível, mas o tempo tanto quanto o espaço deixam de existir no mundo subatômico? Aqui como em outros casos, estamos imersos no Mistério. Considere-se, doravante, a realidade do vácuo ou o vazio.

 

3.4. O vazio na origem de tudo

 

No budismo, o vazio ou a vacuidade recobre a ideia da interdependência da existência de todas as coisas. O vazio não é o nada. Tudo que existe é permeado pelo vazio. O mundo fenomênico depende do vazio para existir. A vacuidade é, portanto, a realidade suprema, imperecível, imutável. Está além da vida e da morte. Para o budismo, a vacuidade é ausência de existência inerente. O budismo reza que os fenômenos carecem de densidade ontológica, ou seja, não existem em si, mas sua existência depende do observador. Em última instância, o mundo fenomênico é uma construção de meu cérebro.

 Também a física quântica nega que o vazio seja o nada, seja ausência total de existência. Ao contrário, o vazio ou o vácuo é cheio, ele fervilha de atividade. Grichka Bagadanov diz que não há lugar do espaço-tempo onde não se encontre “nada”: “em toda parte encontramos campos quânticos mais ou menos fundamentais” (ibid., p. 93). Portanto, pode-se depreender daí que o “nada” como possibilidade ôntica é uma ilusão. O vácuo é um palco de acontecimentos permanentes, de flutuações incessantes, de violentas tempestades quânticas, nas quais se criam novas partículas subatômicas que são, quase sempre, imediatamente, aniquiladas. Seife nos dá testemunho de sua perplexidade em face do caráter paradoxal do vácuo no seguinte passo:

 

Parece uma contradição dizer que o vácuo é o fenômeno mais complexo do universo. A própria definição do vácuo é a ausência de tudo, um espaço cheio de coisa alguma. Na década de 1930, entretanto, os físicos quânticos descobriram, para a sua grande surpresa, que o vácuo não está sempre realmente vazio. Ele fervilha de atividade, cheio até a borda de partículas e energia. (ibid., p. 189).

 

Num aspecto, a física quântica e o budismo concordam: o vazio é cheio, o vácuo não é o nada. É claro que isso não significa dizer que a vacuidade búdica signifique a mesma coisa que o vácuo da física. A vacuidade búdica se inscreve num registro ético que é estranho ao vácuo de que tratam os físicos. Mas tanto o vazio búdico quanto o vazio do Universo físico está impregnado de Mistério, esconde um segredo. Segundo Seife, atualmente, os físicos acreditam que o vácuo – “o vazio no espaço profundo” - abriga o segredo da mais recente dúvida da cosmologia: o que é a misteriosa força antigravitacional que achata o Universo e acarreta o afastamento das galáxias? Como o vazio é constituído de partículas e energias virtuais que, depois de se atualizarem, teriam produzido a deflagração térmica chamada de Big Bang, não é sem espanto que os físicos acreditam que “o que parece menos real, o vazio, teria sido a origem da nossa realidade” (Morin, ibid., p. 29). Se for possível dizer que o vazio é um vazio originário, então a sabedoria oriental e a física quântica encontram-se novamente em acordo, pois o budismo também crê no vazio originário, no vazio como realidade última.

Chegando ao fim do percurso destas minhas reflexões embebidas no espanto, reencontramos a imagem do mundo como um sonho mantido pela ilusão de Maya, na pena de Igor Bogdanov, que diz explicitamente que “nós sonhamos o mundo”.

 

Segundo a nova física, sonhamos o mundo. Nós o sonhamos como algo durável, misterioso, visível, onipresente no espaço e no tempo. Além dessa ilusão, todas as categorias do real e do irreal se esvaem. Assim como não podemos considerar que o gato de Schrödinger está vivo ou morto, também não podemos perceber o mundo objetivo como existente ou não existente. O espírito e o mundo formam uma única e mesma unidade. (ibid., p. 143, grifos meus).

 

 

Estaria a física quântica validando a tese do idealismo transcendental? Estaria admitindo um metarrealismo como a melhor abordagem do Universo? Guitton não hesitaria em dizer que esta é a melhor abordagem para tentar tornar menos misterioso o Mistério em que estamos mergulhados: “não podemos dizer que o espírito e a matéria simplesmente coexistem: eles existem um através do outro”. (ibid., p. 144).

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

1. GUITTON, Jean; BOGDANOV, Grichkva; BOGDANOV, Igor. DEUS E A CIÊNCIA. Trad. Maria Helena Franco Martins. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

 

2. MORIN, Edgar. Conhecimento, ignorância, mistério. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020.

 

3. ROVELI, Carlo. A realidade não é o que parece: a estrutura elementar das coisas. Trad. Silvana Cobucci. Rio de Janeiro: Objetiva, 2017.

______________. A ordem do tempo. Trad. Silvana Cobucci. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018.

 

4. SEFIE, Charles. Alfa e Ômega: a busca pelo início e o fim do universo. Trad. Talita M. Rodrigues. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.

 

5. ZIMMER, Heinrich. Filosofias da Índia. Trad. Nilton Almeida Silva, Cláudio Giovani Bozza, Adriana Franchini De Césare. São Paulo: Palas Atenas, 2020 (1986).

 

 

 

terça-feira, 11 de maio de 2021

"A cada bela impressão que causamos, conquistamos um inimigo. Para ser popular é indispensável ser medíocre." (Oscar Wilde)

 

                                                                        


 

 

A vida como destino para a morte

 

 “A Vida se transmite como uma lepra: criaturas demais para um só assassino.”

 Cioran

Eis o essencial:

           

 

A vida é um trabalho permanente (batimentos cardíacos, circulação sanguínea, respiração pulmonar) de consumo de energias durante o qual a vida é conduzida à morte. Morte e vida são inseparáveis. Como ensina Bichat, a vida é o conjunto das forças que resistem à morte. A vida é, portanto, também um trabalho permanente de luta contra a morte. A vida, ao consumir suas energias, carece de se alimentar. Assim, todos os seres vivos se esforçam para adquirir o alimento que reponha suas energias. A evolução dotou animais de nadadeiras, ou de patas para que alcançassem esse objetivo. Animais predadores consomem outros animais. A atividade da vida produz a morte a que tanto resiste aniquilando outras vidas. Nos seres pluricelulares, a morte inscreve-se em seu organismo na forma de aniquilação das células, as quais são substituídas por outras novas. Quanto mais complexa se tornou a vida, mais se fragilizou, mais se viu ameaçada pela morte, mais se organizou para lhe fazer resistência. A morte é o preço pago para viver. Na luta contra a morte, a vida devora a si mesma.

A vida é um fenômeno marginal e extraordinário no seio do mundo físico. A vida é inteligente, engenhosa, criadora, mas também incompreensível, absurda, insana e horrível. Se a organização dos seres vivos exibe espantosas engenhosidade e complexidade, a vida é loucura. Quando examinada nos detalhes e acuradamente, a vida não segreda nenhum sentido último. O sentido da vida é a morte e viver por viver é a finalidade que se esconde na absurdidade da vida.

 


 






  

A política do senso comum

 

 

Diz o ditado que “futebol, política e religião não se discute”, e não se discute porque tais temas, supostamente, mobilizam, nos interactantes, paixões exacerbadas, incendiárias, que poderiam levá-los facilmente a inimizades e, no limite, a agressões mútuas que encerrariam a discussão. Mas, no caso específico da política, o que a torna tão pouco discutível no domínio do senso comum é que os interactantes, geralmente, estão muito pouco capacitados para um debate equilibrado e fundamentado teoricamente. A política, enquanto área do saber humano, também tem seus especialistas (cientistas políticos, sociólogos, filósofos...), os quais dispõem das ferramentas conceituais para realizar uma análise crítica do fenômeno político. O fenômeno político, como todo fenômeno humano-histórico, é complexo e, por isso, demanda daqueles que ousam convertê-lo em tema ou em assunto de debate nos encontros casuais da cotidianidade mediana, certo repertório de saberes e conceitos que devem ser sistematizados e definidos na discussão. Mas é justamente deste repertório e desta competência para a sistematização e para a definição dos termos empregados que carece o senso comum. E essa carência é uma das razões por que me sinto desencorajado a me embrenhar em “discutir política” no domínio do senso comum. No domínio do senso comum, ao se levantar um tema político, os interactantes não especialistas fazem desfilar, em suas falas, uma série de dislates disfarçados de bazófias, que transformam o que deveria ser um debate num falatório de velhas rabugentas que, em certa altura, já não sabem mais sobre o que realmente estão discutindo. A sobriedade dos espíritos que reconhecem ser o real mais complexo do que o conhecimento que podemos ter dele é, quase sempre, asfixiada pelos dizeres balofos e enervados de certezas absolutas. Um professor de filosofia que tive, a quem admiro, certa feita, ensinou que filósofos devem fugir de debates, de discussões cujo propósito é decidir ao fim e ao cabo quem tem razão. Desde então, tomei esta lição como um princípio ético-metodológico. É que aos filósofos - ele ensinou - importa o pensamento, o exercício do pensamento. E a única coisa que não se exercita nas cenas cotidianas de “debate político” é o pensamento. Não, exercitar o pensamento não é vomitar lugares-comuns, preconceitos, crenças infundadas e ideologicamente orientadas típicas do imaginário coletivo, a fim de medir forças com o interlocutor para impor sua visão pessoal sobre um estado-de-coisas. O senso comum aspira ao monopólio da opinião correta, verdadeira, que deve ser tomada como dogma inquestionável. A tendência do senso comum é sempre simplificar uma problematicidade que, por definição, é complexa. O senso comum não admite a pluralidade de perspectivas (como nos ensina Nietzsche), os múltiplos olhares, a dúvida como princípio metodológico. O senso comum tem a presunção de saber tudo, de esgotar tudo o que se pode saber em algumas concatenações verbais semanticamente insuspeitas na aparência, mas grávidas de pressupostos equívocos. Em matéria política, o senso comum de nossa sociedade, confunde, com frequência, conceitos que não descrevem o mesmo fenômeno. Por exemplo, confunde Estado com Governo. E é comum que, se a questão formalmente socrática “o que é?” é levantada neste domínio do discurso, o silêncio predomine até o momento em que é entrecortado por dizeres evasivos de ataque pessoal ao interlocutor... E, se um dos interlocutores ousar definir os termos relevantes na discussão, atrairá sobre si as suposições de pedantismo. Chamar o outro de pedante, de pernóstico, de enfatuado é a estratégia comum da burrice que se institucionalizou neste país para desqualificar o contraditório. É difícil, eu sei, manter um silêncio monástico quando nossos ouvidos são atravessados e perturbados, e nosso espírito é afrontado por dizeres que carreiam tolices, clichês, preconceitos, despautérios, mas pretender lançar luzes sobre as avenidas escuras e os atalhos sinuosos do senso comum é arriscar-se na paralisia do pensamento, porque o senso comum é como um lodaçal onde o pensamento fica estagnado, atravancado, onde ele não consegue avançar, alçar voos, onde ele não encanta, não semeia o espanto, a admiração. O homem comum é o coveiro do pensamento, e o senso comum é seu cemitério.

 

 

 

 


quinta-feira, 6 de maio de 2021

"A oposição produz a concórdia. Da discórdia surge a mais bela harmonia." (Heráclito)

 

                        



                                  Um Universo sem Criador

 

 O universo é feito da cepa do trágico, quer isso dizer que sua dinâmica é heraclitiana: discórdia e concórdia, harmonia e desarmonia, em relações agonísticas, formam o tecido do mundo. As galáxias colidem; as estrelas explodem, e os cataclismos perturbam e destroem a ordem do mundo vivo. O universo é extraordinária potência de criação e de destruição. A história humana é não só a história do nascimento das civilizações, mas também de sua ruína e morte. A relação tensionada, conflitual entre ordem, desordem e organização carreia vida e morte ao mesmo tempo. Nascimento, inovação e criação são necessários à constituição do Universo, mas também são inevitáveis a desintegração, a degenerescência e a morte. O universo está sempre nascendo e morrendo. Um mundo perfeito é impossível, seria pura ordem imutável, monótona. O mundo precisa da imperfeição, isto é, da desordem; e isso bem entendido quer dizer: o mundo precisa ser impregnado de morte (Tânatos) que, num combate sem trégua com Eros, torna possíveis os arranjos dinâmicos e provisórios.  Eros se encarrega de unir, de compor, de formar arranjos, estruturas, enquanto Tânatos desune, decompõe, destrói descerrando o caminho para novas criações, e o jogo de criação-destruição-ordem-desordem é reiterado incessantemente. O universo não tem Criador; ele se autocria a partir da deflagração inicial. Por ser capaz de autocriação, o Universo gerou, nesse processo de autocriação, simultaneamente, as partículas, as ondas, o tempo e o espaço. O Universo se auto-organizou criando uma dinâmica agonística que se expressa na forma de relações ao mesmo tempo contraditórias e cooperativas entre ordem, desordem, interação e organização. A lei do Universo é a da complementaridade dos antagonismos.

Nós não fomos feitos à imagem e à semelhança do Criador, mas à imagem do Universo, pois cada um de nós carrega em si partículas nascidas nos primórdios do Universo. Cada um de nós traz em si, ou seja, na materialidade orgânica de nosso corpo, a história do Cosmo e a história da vida. Somos constituídos de átomos forjados no coração ardente de estrelas anteriores ao Sol, de moléculas formadas na terra ou trazidas por meteoritos. O Universo está em nós, e nós somos partes dele.

É certo que nosso universo chegará ao fim. Porque “tudo que nasceu merece morrer”, como disse Nietzsche. A desordem solapará a ordem, Tânatos triunfará sobre Eros. Será que o fim descerrará um novo Caos, isto é, potencialidades de ordem, desordem, de emergência de vida novamente? Quem sabe? Mas, se assim se der, será para garantir o retorno ao vazio nirvânico inicial. O Tao retorna ao seu contrário. O caminho que leva à vida é o mesmo que conduz à morte.