sexta-feira, 22 de março de 2013

Memórias 1



                     

                              A Morte do Romântico
                               E a liquidez do Amor

O eminente crítico literário Alfredo Bosi expressou-se assim, acerca da temática dos escritores do Romantismo (2006: 93):

“A natureza romântica é expressiva (...). Ela significa e revela. Prefere-se a noite ao dia, pois à luz crua do sol o real impõe-se ao indivíduo, mas é na treva que latejam as forças inconscientes da alma: o sonho, a imaginação”
(ênfase no original)

A menos que presenciemos nitidamente a vulgarização do sentido de ser romântico e, consequentemente, um novo modelo imaginário pós-moderno do que é ser romântico – decerto, ralo e trivial -, não me parece errôneo acreditar que as formas de existência românticas já feneceram. Os cadáveres do Romantismo jamais ressuscitarão e seus fantasmas há muito foram exorcizados.
Na sua obra Amor Líquido, um dos mais renomados sociólogos da atualidade Zygmunt Bauman (2004: 19)afirma:


“(...) a definição romântica do amor como “até que a morte nos separe” está decididamente fora de moda, tendo deixado para trás seu tempo de vida útil em função da radical alteração das estruturas de parentesco às quais costumava servir e de onde extraia seu vigor e sua valorização”.


Zygmunt cuida haver uma ambivalência nos relacionamentos pós-modernos, a qual consiste no desejo de estreitar os laços, acompanhado da necessidade de, cada vez mais, mantê-los frouxos.
É preciso, em princípio, conter meu ímpeto verbal, a fim de que apresente algumas palavras que justifiquem a produção deste texto. Uma vez satisfeito o meu intento, darei a conhecer ao leitor os estágios nos quais se desenvolverão as minhas reflexões.
Hegel dizia serem páginas em branco as páginas felizes no amor romântico. E me sobejaram páginas vãs, algumas das quais recuperei da fogueira da depressão. Vivi segundo o governo de meu coração, durante muitos anos, e bebi do cálice da desilusão e sofrimento. Dei ouvidos aos devaneios de minha alma e acabei desditoso, descrente da possibilidade de experienciar um relacionamento inundado de um amor celestial, bem ao gosto dos Azevedos. Quiçá, a esta altura, na face, leitor, se lhe estampe um sorriso zombeteiro e se lhe afigure ao espírito que sou afeito a pieguice. Ou, talvez, endossando a afirmação de Zygmunt, acima referida, conclua ser meu desafogo o testemunho de um modo de ser e existir que se poderia chamar ‘brega’.
Alhures, esforcei-me por definir o que é ser romântico; por isso abstenho-me; apenas direi que não é romântico aquele que não vive exageradamente ou que “não vê numa gotícula de água toda a complexidade do oceano”.
A par de minha clara insatisfação e frustração decorrente de ter de me contentar com a insipidez amorosa pós-moderna, as palavras que faço deitar sobre estas páginas encontram sustento em minha insaciável necessidade de pensar, refletir, conhecer. Anuindo à verdade da afirmação socrática, segundo a qual “a vida não examinada não merece ser vivida”, emprego meu espírito na busca por compreender o declínio do amor, cujos padrões, para Zygmunt, foram baixados:


“Em vez de haver mais pessoas atingindo mais vezes os elevados padrões de amor, esses padrões foram baixados. Como resultado, o conjunto de experiências às quais nos referimos com a palavra amor expandiu-se muito. Noites avulsas de sexo são referidas pelo codinome “fazer amor”.
(p. 19)

Este fato a que fez menção o sociólogo já me foi caro, consoante se pode perceber neste poema de minha autoria, que refiro abaixo:

Apoestasia

Que me vale bradar às rosas
Se no mundo as que vejo...perfumadas
Empinam as nádegas dengosas
Ao cravo que as querem tresloucadas?

Que me vale falar às flores
De delírios ou desamores
Se os corpos à vista dos mercados
Ufanos por cachês são desnudados?

E às que são inda mocinhas
Que vivem a falar das roupinhas
Das bocas que experimentaram nas festinhas?

E mesmo às que contam vinte
Se não lêem e às cegas vivem – andorinhas!
Silabam AMOR removendo as calcinhas!

(BAR)


A concepção do amor como uma forma de ‘negócio’, ‘um contrato com prazo de validade’ e dos relacionamentos como ‘formas descartáveis de existir’ (pois existir é manter relação com) já me sorria ao espírito, muito antes de eu conhecer a obra de Zygmunt, cujo valor para mim foi propiciar-me a oportunidade de levar a efeito o intento de realimentar algumas ideias sobre o amor na pós-modernidade, de modo mais sistemático e teoricamente mais consistente.
O rigor da reflexão filosófica exige que os pensamentos pautem-se por regras que o conduzam à formação de um todo coerente e compreensível; portanto, não-contraditório. A despeito do esforço espiritual empreendido na tentativa de se chegar, com exatidão, a esse todo, não se conclua daí que se esgote a realidade posta sob o exame do espírito. Todo estudioso deve ter em conta que a realidade é sempre mais complexa e abrangente e que o conhecimento humano não pode pretender esgotar-lhe a totalidade. A totalidade do real escapa à pretensão do conhecimento à totalização. Por conseguinte, estou ciente de que não esgotarei as questões que podem ser levantadas no tocante às experiências do amor pós-moderno. Urge traçar o plano de construção, doravante.
Em princípio, é necessário situar a temática na pós-modernidade e procurar compreender como o amor tem sido experienciado numa era caracterizada por avanços tecnológicos e consumismo. Em seguida, revisitarei o discurso filosófico sobre o amor e considerarei o que dele nos disse Platão, Descartes, Kant, Spinoza e outros autores contemporâneos cuja maior contribuição foi tratá-lo de uma perspectiva cognitivo-fisiológica. Na terceira parte, lançarei olhares sobre o capítulo apaixonar-se e desapaixonar-se, que se topa na obra Amor Líquido, de Zygmunt Bauman e avaliarei algumas de suas posições criticamente. A parte final encerra as conclusões a que chegarei e que, espero, venham corroborar a tese segundo a qual o amor da pós-modernidade é um amor de conveniência.


1. O Mal-estar da pós-modernidade

O título que encabeça esta seção é o nome da obra de Zygmunt Bauman, cujas lições nortearão nossa reflexão. Buscarei a brevidade tanto quanto possível; é necessário, contudo, sumariar o conteúdo do primeiro capítulo deste livro, o qual se intitula de O sonho da pureza. O autor advoga ser a pós-modernidade instaurada sob o ideal da pureza, que constitui “uma visão da condição que ainda precisa ser criada, ou da que precisa ser diligentemente protegida contra as disparidades genuínas ou imaginadas” (p. 13).
A pureza a que se refere Bauman identifica-se com a ordem, a saber, situação em que cada coisa está em seu devido lugar. A ordem serve de um meio para regular e estabilizar nossos atos. Se um dado estado-de-coisas não se encontra organizado segundo o ideal de ordem (pureza), considera-se, pois, essa situação impura. O autor adverte-nos de que as coisas não são puras ou impuras por natureza; essas qualidades não intrínsecas a elas; são atributos resultantes de sua localização. Nesse tocante, esclarecedoras são as palavras seguintes:

“Sapatos magnificamente lustrados e brilhantes tornam-se sujos quando colocados na mesa de refeições. Restituídos ao monte dos sapatos, eles recuperam a prístina pureza”.
(p. 14)


Evidentemente, observa Bauman, que cada época e cada cultura têm seu próprio padrão de pureza. Ao interesse pela pureza, associa-se o interesse pela higiene. Higienizar para manter a pureza – nisso consiste o objetivo da ação pós-moderna. No entanto, cada ordem encerra em si suas desordens. Cada modelo de pureza tem a sua sujeira, a qual precisa ser varrida inapelavelmente. Nesse contexto, todo esforço empreendido pelas sociedades pós-modernos é orientado para combater os estranhos.
Segundo Bauman – e este é um aspecto fundamental para a nossa discussão sobre o amor -, o mundo moderno é instável e sua constância está relacionada apenas à hostilidade a qualquer coisa constante. Elenco, abaixo, as características da pós-modernidade, que  pude inferir do trabalho do autor:

·         Inconstância e insaciabilidade;
·         Velocidade, movimento, perpetuidade;
·         Diversidade de estilos e padrões de vida livremente concorrentes;
·         Atuação massificante de um mercado para consumidores, que são seduzidos com infinitas possibilidades e promessas de constante renovação de felicidade;
·         Incessante busca por intensas sensações e inebriantes experiências;
·         Flutuação de identidades: veste-se e despe-se de identidades continuamente;

As utopias modernas, em geral, se afinam com a ideia de um “mundo perfeito”, a saber, um mundo que permaneça inalterado ou idêntico a si mesmo, de modo que o que se aprende hoje possa ser válido amanhã e para todo o sempre. Observa Bauman, que


“O mundo retratado nas utopias era também, pelo que se esperava, um mundo transparente – em que nada de obscuro ou impenetrável se colocava no caminho do olhar; um mundo em que nada estragasse a harmonia; nada “fora do lugar”; um mundo sem “sujeira”; um mundo sem estranhos”.
(p. 21)

Dentre os aspectos que caracterizam a era pós-moderna, destaque-se a influência do consumismo nos relacionamentos humanos. Mais adiante, dispensarei a devida atenção a esse problema. Por ora, atente-se para a descrição que faz o autor dos homens e mulheres pós-modernos:



“Um número sempre crescente de homens e mulheres pós-modernos, ao mesmo tempo que de modo algum imunes ao medo de se perderem, e sempre ou tão frequentemente empolgados pelas repetidas ondas de “nostalgia”, acham a infixidez de sua situação suficientemente atrativa para prevalecer sobre a aflição da incerteza. Deleitam-se na busca de novas e ainda não apreciadas experiências, são de bom grado seduzidos pelas propostas de aventura e, de um modo geral, a qualquer fixação de compromisso, preferem ter opções abertas”
(pp.22-23)

A frouxidão dos vínculos estabelecidos nos relacionamentos decorre, em parte, ou melhor, é favorecida, segundo Bauman, por “um mercado inteiramente organizado em torno da procura do consumidor e vigorosamente interessado em manter essa procura permanentemente insatisfeita” (p. 23). Note-se aqui a insaciabilidade do homem pós-moderno referida em nosso elenco de características da pós-modernidade. O mercado incita o apetite dos consumidores, que passam a conservar um desejo por sensações cada vez mais intensas e por novas experiências.
As pessoas que se tornam incapazes de amoldar-se aos padrões estabelecidos pelo mercado configuram a classe dos consumidores falhos, portanto, excluídos. Como o conceito de liberdade, na pós-modernidade, está associado às esferas de consumo (na medida em que o indivíduo livre é definido em termos de poder de escolha do consumidor), os consumidores falhos, de acordo com a lógica do mercado, são indivíduos incapazes de ser livres.
À questão da sociedade de consumo e sua relação com as formas de experienciar o amor, na pós-modernidade, dada a sua relevância, será dedicada a próxima seção. Antes de levar a cabo as nossas considerações sobre a pós-modernidade, deve-se ter em conta que a busca pela pureza expressa-se numa tendência cada vez maior de tratar problemas socialmente produzidos como crimes. Lembrou-me a canção “problema social”, interpretada por Seu Jorge, da qual um dos versos diz “se eu pudesse, eu não seria um problema social”, numa clara referência à situação dos meninos de rua, rotulados pela sociedade como um “problema” e, não raro, tratados como casos da alçada da polícia.
Por fim, a (pós)-modernidade caracteriza-se por uma rejeição à tradição. Destarte, ensina Bauman:


“A modernidade viveu num estado de permanente guerra à tradição, legitimada pelo anseio de civilizar o destino humano, num plano mais alto e novo, que substituísse a velha ordem remanescente, já esfalfada, por uma nova e melhor. Ela devia, portanto, purificar-se daqueles que ameaçavam voltar sua intrínseca irreverência contra seus próprios princípios”.
(p. 26)

Devemos pensar sobre o amor à luz da concepção segundo a qual a era pós-moderna se funda na busca cada vez mais premente pelos indivíduos de prazer – um prazer, todavia, fugaz, insuficiente, cuja qualidade consiste em conservá-los na insaciabilidade do desejo.


1.2. Relacionamentos consumistas

Pode-se identificar, com Featherstone (1995), três principais grupos de teorias que se ocupam da questão da cultura do consumidor: o primeiro dos quais entende a cultura do consumidor como consequência da expansão do capitalismo, que gerou o aumento da produção por meio dos métodos tayloristas e fordistas. Nesse contexto, a criação de novos mercados serve para “educar” as pessoas, tornando-as consumidoras. Tal “educação” se dá mediante mecanismos de sedução e manipulação ideológica operados pelo marketing e a propaganda. Donde se segue uma consequência considerada negativa por alguns teóricos, qual seja, o abandono de valores e tipos de relações que eram, então, encaradas como verdadeiras e autênticas.
Ainda aqui avulta a importância de se considerar o conceito de indústria cultural, advindo da Escola de Frankfurt. Featherstone procurou estudar a transformação da cultura em mercadoria, por força da atuação da indústria cultural. Esse processo leva à formação de consumidores culturais e à redução do valores da alta cultura aos mais baixos níveis.
Com Jean Baudrillard (1995), a sociedade de consumo passa a ser compreendida do ponto de vista do valor simbólico da mercadoria. O signo é a mercadoria. A sociedade pós-moderna caracteriza-se, assim, pela saturação das imagens. Como ensina Barbosa (2008: 39):

“O presente se torna o tempo permanente e as imagens são unidas cacofonicamente, sem qualquer preocupação com uma lógica histórica que as reúna numa narrativa cronológica e espacialmente coerente”.


O segundo grupo, que encerra os modos de consumo, refere-se ao uso de mercadorias para demarcar relações sociais. As mercadorias tornam-se sinalizadores de posição de prestígio; os seus consumidores, ao se apropriarem delas, ganham status sócio-econômico pela transferência para si mesmos das propriedades simbólicas que as caracterizam. Para Bourdieu, as práticas de consumo situam-se no cerne da criação e manutenção de relações de poder, tais como dominação e submissão.
Finalmente, no terceiro grupo, se nota o consumo de sonhos, imagens, prazeres, estilos de vida. A preocupação dos estudiosos repousa em estudar os aspectos emocionais que estão relacionados ao consumo; trata-se de investigar os desejos e os sonhos que são estimulados no imaginário da cultura do consumidor.
Segundo Barbosa (p. 44), citando Featherstone, existem forças contraditórias na sociedade contemporânea que estimulam a produção e o trabalho árduo na mesma proporção que prometem prazer e satisfação dos desejos.
Campbell (2000), a seu turno, entende ser a sociedade de consumo caracterizada fundamentalmente pela insaciabilidade de seus consumidores. Houve, no hedonismo moderno, um deslocamento da preocupação que, outrora, centrava-se nas sensações, para as emoções. O controle absoluto recai sobre a imaginação do indivíduo. O consumismo preenche o lugar ocupado pela emoção e pelo desejo no domínio da subjetividade. Sua característica basilar é um irrestrito individualismo. Cabe aos indivíduos decidi quais bens e serviços desejam obter.
Campbell e Bauman divergem no que toca às consequências do consumismo na vida dos indivíduos: o primeiro considera o consumismo responsável por resolver a famigerada e tão debatida “crise de identidades”; já o segundo entende ser o consumismo capaz de causar a degradação social.
O objetivo fundamental do consumismo é a satisfação do prazer imaginativo que a imagem do produto estimula. Assim é que o prazer não decorre do acúmulo e consumo de bens, já que o descarte é rápido e incessante, mas da busca pela novidade. Um fato ilustrativo dessa obsessão social pelo novo é a rapidez com que novos modelos de celulares, com designe e funções sofisticadas surgem no mercado: há celulares que filmam, tiram fotos e ainda permitem acesso à internet. A rapidez com que esses produtos são descartados, já que novos modelos são oferecidos aos consumidores, patenteia a dissociação do valor de uso ao valor de troca e sua imediata associação com valor simbólico. Assim, caracteriza-se um estilo de vida, o qual, a seu turno, indica uma individualidade ou estilo pessoal. Como observa Barbosa,


“A roupa, o corpo, o discurso, o lazer, a comida, a bebida, o carro, a casa, entre outros, devem ser vistos como indicadores de uma individualidade, propriedade de um sujeito específico, ao invés de uma determinação de um grupo de status”.
(p. 23)
]

As discussões sobre o consumismo levam alguns estudiosos a se perguntarem sobre as condições que produzem a necessidade de consumo cada vez maior. Assim, a questão é: as pessoas são naturalmente insaciáveis e, portanto, propensas a consumir ou o aumento do poder aquisitivo leva a uma tendência irresistível ao consumo desenfreado?
Creio em que a resposta a essa questão não escusa a observação de que o desejo, a sensação de insaciabilidade são produzidos pelo mercado. Parece-me que os indivíduos são condicionados a consumir mais e mais. Tal condicionamento se dá, especialmente, pelo poder das imagens, por meio da publicidade, do marketing e da televisão.
Há, evidentemente, uma distância intransponível, entre o imaginário e a realidade, de sorte que, não experimentando na vida real os prazeres que povoam seu imaginário, o desencanto nos indivíduos é inevitável; do que se segue que, a fim de superá-lo, eles se põem a consumir mais e mais produtos. O consumo encontra sua força motriz justamente na manutenção do estado de insaciabilidade dos sujeitos, com a promessa de que ela poderá ser satisfeita com a aquisição de um novo produto.
A próxima seção é destinada à reflexão sobre o Amor, a qual será conduzida pelo que nos legaram filósofos como Platão, Spinoza, Descartes e Kant, e outros estudiosos contemporâneos.



2. O Amor na filosofia

É consabido que Eros é, na mitologia grega, uma divindade que representa o Amor. Nas diferentes versões das teogonias, Eros é considerado a força que organiza o universo e a que se atribui a responsabilidade da perenidade das espécies e da harmonia do Cosmos.
No Banquete, Platão distingue um Eros ou Amor espiritual e um Eros ou Amor sensual. Vou-me ocupar com a apresentação de algumas das concepções de Amor que se acham nos discursos dos participantes do diálogo platônico. A exposição será grosseira; não obstante, logrará sucesso se o leitor for capaz de perceber donde se originam as ideias sobre o amor que compõem o tecido ideológico da cultura ocidental.
Fedro foi o primeiro dentre os participantes a tomar a palavra. A certa altura, assim se expressou:

“Porque, de fato, o que deve orientar os homens que desejam viver uma vida honesta, isto não o dão nem as linhagens, nem as honrarias, nem a riqueza. Só o amor consegue dar isso. Que pretendo sugerir com isto? Que coisa deve orientar os homens? Julgo que às ações vis e desonestas se liga a desonra e às boas ações está ligado o amor”.
                     (p.103)

Nesse passo, está clara a associação entre ‘Amor’ e ‘Bem’: o amor é responsável pela boa conduta dos homens, por seus valores mais elevados.
Posteriormente, citando o caso de Alceste – figura lendária que morreu para a restituição da saúde de seu marido Admeto, que estava condenado à morte – Fedro concebe o amor como a maior de todas as virtudes. Trata-se do Amor sacrificial, que motiva o ser que ama a dar sua própria vida pela sobrevivência do ser amado.
A ascensão do Amor ao nível do sentimento mais nobre encontra seu ápice na seguinte passagem, na qual observamos  ser o Amor responsável por elevar o ser que o nutre à condição de ser divino:


“(...) o que ama é, de certa maneira, mais divino que o objeto amado, pois possui em si divindade; é possuído por um deus”.
(p. 106)


Pausânias, por sua vez, advertindo a Fedro, chama a atenção de todos para o fato de que as ações não são boas ou más em si; estas qualidades são atribuídas a elas, tendo em conta o modo como essas ações são vivenciadas. Há, em seu discurso, dois aspectos importantes: um deles é a associação do Belo ao Bem e do Feio ao mal. Assim, a ação bela é ação correta e boa; a ação feia é ação incorreta. O outro aspecto diz respeito a existência de duas espécies de Afrodite e, consequentemente, de duas espécies de Eros. Há uma Afrodite, denominada de Urânia, filha de Urânio – esta é mais velha; há outra, mais nova, chamada Paudemiana, filha de Zeus e Dione (Hera). Assim nem todo Eros é belo e louvável, mas o será se nos conduzir a um amor belo e louvável.
A Afrodite mais moça, considerada popular ou vulgar, define-se como o amor que toma por objeto o corpo. Este Eros é suscetível às inconstâncias do acaso. O Eros da Afrodite celeste, que participa unicamente do masculino, ama a inteligência e a força.1
 De uma perspectiva universalizante, Erixímaco, que era médico, conquanto admitisse a necessidade de desfrutar dos dois Eros, recomendou comedimento no desfrute do Eros vulgar, e acrescentou:



“(...) A própria organização das estações do ano se encontra sob a influência desses dois Eros. Se impera o Eros da ordem, a que me referi, e sob sua égide se concerta uma harmonia e boa combinação do quente e do frio, do seco e do molhado, os elementos compõem um bom ano e proporcionam saúde tanto aos homens como a todos os seres vivos e às próprias plantas. Mas, se, pelo contrário, é o Eros anárquico quem exerce domínio sobre as estações, então há muito estrago e muito prejuízo, pois de sua ação resultam geralmente pestes e muitas outras doenças, tanto para as plantas como para os animais”.
(p.117)


O mito do andrógino, que se topa também no Banquete e que se refere ao amor como busca por uma unidade, então, desfeita, ilustra a concepção do amor como busca por experienciar a unidade – unidade que não se realiza no sexo, mas o transcende; trata-se de uma unidade que, aos verdadeiros românticos como eu, é experienciada no calor dos espíritos, no perfume dos olhos, janelas da alma, e nas feições cuja beleza só pode ser percebida pelos sensores aguçados da sensibilidade transcendente.
Custa-me dissimular prazer ao compor estas linhas, pois o que meu espírito experimenta é um repugnante amargo; afinal, tomar o amor para objeto de interesse da razão é uma prática que tenho por inconveniente; no entanto, creio ser a única coisa que me restou, após inúmeras páginas fracassadas. As ideias de amor, que dantes coabitavam com os delírios da paixão romântica em minha alma, já feneceram em função do imperativo da realidade, implacável para com toda forma de devaneio lírico romântico.
Em Espinosa, “o amor é a alegria acompanhada da ideia imaginativa de uma causa exterior” (p. 41). Não é pela busca da unidade, ou melhor, da união com o ser do outro, que devemos entender o amor. Para o filósofo, pensar na existência do ser amado já é suficiente para que o amante experiencie contentamento.
O amor romântico, ao contrário do que entende o senso comum, é o amor da impossibilidade de preencher sua carência. Trata-se de um amor fugaz e ilusório. A impossibilidade de sua realização leva o amante à tristeza, ao desespero, à obsessão pela morte – fuga última a que recorre para findar as dores de sua alma. Sua característica basilar é, como cantou o poeta, o exagero: o amor romântico é o amor do exagero, da desmedida.
A personagem Werther, do romance de Goethe, declara: “Mais de uma vez me embebedei, minhas paixões nunca estiveram longe da demência, e não me arrependi de nenhuma das coisas que fiz”. Esse fragmento dá-nos uma ideia clara da intensidade do amor romântico e de sua capacidade de contrariar a moral e a sensatez da razão. 



1. Há um claro desprezo votado à mulher na época clássica grega: a filha de um deus e de uma deusa era considerada inferior a outra que tivesse nascido apenas de um deus.

Memórias 3



                       Diante de mim: reexperienciando-me

"Pensei aqui me definir, mas toda definição, de certo modo, é uma tentativa de capturar o sentido; acontece que me defino pela própria indefinição; definir-me seria pretender enquadrar-me em alguma categoria de homens; não creio ser possível categorizar-me, pois o fundo de minha alma é o reverso da superfície rala do mundo". (BAR)

Experimento a inexpressividade concomitantemente com o ato de lançar sobre esta página estas tenras palavras. As inúmeras experiências de leitura de que me ocupo na maior parte do tempo de meu cotidiano, normalmente, fertilizam muitas ideias em minha alma; se não me apresso em imprimi-las por escrito, elas se perdem nas longínquas nebulosas de sentimentos de que aquela é feita.
Em meus textos, especialmente em poemas, está clara a minha inclinação romântica. O que significa, entretanto, ser romântico? Essa é a pergunta que me faço agora. Alfredo Bosi nos ensinará que o Romantismo, como movimento estético-literário que veio à cena nos fins do século XVIII, era a expressão dos sentimentos dos descontentes. Descontentes, no caso, eram aqueles que não estavam satisfeitos com as novas estruturas sociais de então.
Não é de Romantismo que tratarei aqui, evidentemente. A lição de Bosi foi trazida à cena, a fim de mostrar um aspecto do ser romântico que transcende o sentimento idealista que lhe é peculiar. O romântico é caracterizado, tradicionalmente, pelo sentimentalismo exagerado, pela efusão lírica, pela desmesura. Parece-me equivocado, no entanto, limitar o ser romântico a atitudes idealistas, à propensão ao imaginário utópico. Acredito que ser romântico é uma forma de projeção espiritual que abre caminhos imprevistos, que resiste ao status quo. Insatisfação é o ventre dos ideias românticos. O romântico não é piegas; não se identifica com alguém ingênuo que foge para seus universos imaginários em face da consciência da impermeabilidade das estruturas sociais a mudanças ( não nego as mudanças; elas existem em maior ou menor grau, dependendo do regime político de uma sociedade, é claro (sociedades totalitárias são engessadas, refratárias à mudança, por exemplo); na verdade, o que há, em vários momentos da história de sociedades (particularmente, as democráticas), é uma tensão dialética entre forças que tendem à transformação e forças que tendem à conservação). Pode-se ser um romântico engajado; aliás, esta me parece ser a condição do romântico pós-moderno: ser um romântico comprometido com os movimentos sociais de resistência.
Os caminhos que trilhei até aqui devem apontar para a ideia de que minha inclinação romântica impregna a totalidade dos meus atos existenciais. No magistério, ela é fundamental. Inicio cada período na faculdade onde leciono patenteando aos meus alunos o meu amor ao magistério. Se eu não amasse lecionar, não haveria motivação outra que me estimulasse a ser professor. Portanto, eu romantizo minhas experiências docentes. Disso não se segue que não reconheça os obstáculos que inviabilizam uma prática pedagógica orientada para uma finalidade emancipadora.
Vários de meus textos versam sobre temas bem variados; os mais marcantes são os de linguagem e de filosofia. É claro que, como minha formação acadêmica até o presente momento, em que faço doutorado, é na área dos Estudos da Linguagem, tecnicamente falando, na área de Linguística, evito fazer incursões densas nesse campo do conhecimento humano, visto que, se assim procedesse, acabaria por exigir uma classe de leitores especializados; na ausência destes, meus textos tornar-se-iam desinteressantes.
Como eu me considere um leitor híbrido, ou seja, um leitor que aprecia a leitura diversificada, conquanto cerceada pelos limites do engrandecimento intelectual, o que me faz excluir de meu escopo de interesses certos gêneros da literatura, acabo atrevendo-me a discutir sobre temas que não constituem alvo de estudos formais, isto é, acadêmicos. Não sou especializado em sociologia, em filosofia e em tantos outros domínios do saber humano em cujo interior meu espírito atrevido se aventura. Sinto-me, sinceramente, seguro nos estudos da linguagem. Isso, contudo, não me impede de alçar vôos sobre aqueles outros campos do saber, em cuja abundância posso colher flores.
Eu execro a vaidade acadêmica, comum a certos professores e pesquisadores de universidades. A titulação só importa em termos de aproveitamento do processo de ensino-aprendizagem. Na relação com os alunos, não importa se somos mestres ou doutores, ou se gozamos de prestígio na área de pesquisa científica; o que importa é o modo como conduziremos a prática pedagógica de modo a fomentar experiências de afetividade e de autonomia de pensamento tão caras ao sucesso do processo de ensino-aprendizagem.
A par de Paulo Freire, Rubem Alves é, para mim, o educador mais insigne de nosso país. Gostaria de convidar o leitor a ler o livro A alegria de ensinar (2008) deste grande educador, filósofo e intelectual de vanguarda que é Rubem Alves.  Neste livrinho, eu aprecio, especialmente, o capítulo intitulado de O Sapo. Entretanto, quero lançar algumas reflexões sobre um capítulo cujo conteúdo é pertinente ao desenvolvimento deste texto, a saber, Tudo o que é pesado flutua no ar.
Espero que o leitor apreenda a sensibilidade com que Rubem Alves propõe suas ideias. É esta sensibilidade que torna o elenco de textos de que se compõe este livro minas de conhecimento e de reconhecimento do papel do amor/alegria na atividade docente. Atentemos para o texto – Tudo o que é pesado flutua no ar.

“A mesa onde trabalho tem onze gavetas: cinco de cada lado e uma no meio. Nas gavetas laterais eu coloco as ideias que me aparecem, rabiscadas em pedaços de papel, cada uma delas no lugar que lhe pertence. Tem a gaveta da poesia, da psicanálise, das estórias infantis, da educação. Havendo tempo e desejo a gente vai lá, põe tudo em ordem, e a bagunça vira um livro. A gaveta do meio é diferente. Nela eu não arquivo ideias. Guardo objetos, os mais estranhos e inesperados. Por exemplo, um saquinho de bolinhas de gude. Para quê? Não sei. Faz tempo que não jogo bolinhas de gude.
Acho que eu as guardei lá pela mesma razão que os namorados de outros tempos colocavam uma flor entre as páginas de um livro: para preservar um momento de felicidade, perdido”.
(p. 71)

As gavetas de que nos fala o autor representam, em síntese, duas personas: a do intelectual-escritor, do homem habituado às letras e aos pensamentos; portanto, a do adulto que acumulou inúmeras experiências de vida; e a do “menino que só existe como saudade” (p. 72), ou seja, a da criança adormecida em sua alma. É na gaveta localizada na parte central da mesa que estão as bolinhas de gude, um brinquedo que remete aos tempos de infância. Ao se referir a essa gaveta, escreve o autor:

“De todas as gavetas, acho que essa é a que mais se parece com a nossa cabeça, baú entulhado com memórias de felicidade que tivemos. No mais das vezes tudo fica esquecido, na gaveta e no baú, pois as pressões da realidade deixam pouco tempo para o devaneio”.
(p. 72)

Note-se que ele nos convida ao rememorar nossos tempos de infância, tempos em que ele (e possivelmente muitos de nós, meninos) brincava com as bolinhas de gude. Entretido com as bolinhas, o autor-criança conhecia o mundo e este lhe aparecia como “um grande brinquedo”.

“E a culpada foi a Mariana. Acontece que ela começou a descobrir o mundo, e dentre todas as infinitas formas que a natureza esbanja, foi das bolinhas que ela se enamorou. Via bolinhas em tudo: ervilhas, moedas, brincos, botões, cerejas, lua, estrelas. Com o seu dedinho ia apontando enquanto a boca repetia a palavra mágica. Foi então que me lembrei das minhas bolinhas de gude. Escarafunchei a gaveta da saudade e fiz-lhe esta espantosa revelação: também eu brincava com bolinhas. Uma menininha e três bolinhas de gude. Ela brinca. Seus olhos e seus gestos revelam uma enorme alegria”.
(pp. 72-73)
Destacarei algumas ideias fundamentais do texto que o leitor, caso venha a lê-lo, poderá constatar por si mesmo. O autor entenderá o mundo como um grande brinquedo, donde se conclui que aprender deve ser uma atividade prazerosa, como uma brincadeira. A criança descobre o mundo e essa descoberta é feita de modo entretido. Para o autor, os professores devem ser como as bolinhas de gude: deve propiciar a criança o acesso ao mundo, não mediante esquemas pré-fabricados que engessam a sua criatividade, mas por meio de uma prática que estimule sua propensão ao lúdico e ao criativo. As disciplinas escolares não devem levar a uma finalidade prática, porque, segundo o autor,

“Brinquedo não serve para nada. Terminado, guarda-se as bolinhas de gude no saquinho e o mundo continua como era. Nada se produziu, nenhuma mercadoria que pudesse ser vendida, não se ganhou dinheiro, não se ficou mais rico. Pelo contrário: perdeu-se. Perdeu-se tempo, perdeu-se energia. Por isso que os adultos práticos e sérios não gostam de brincar. O brinquedo é uma atividade inútil”.
(p.72)

Apesar de sua inutilidade inerente, o brinquedo sempre nos é atraente; e isso se deve ao fato de ele propiciar alegria. Assim escreve o autor “felicidade é brincar (...) porque no brinquedo o corpo faz amor com objetos do seu desejo” (p. 74). A metáfora do ensino como brinquedo leva-nos a pensar sobre a prática pedagógica não como uma exigência do exercício do magistério, mas como uma experiência de alegria, já que

“Dizem que o trabalho enobrece. Poucos se dão conta de que ele embota, cansa e emburrece”.
(p. 74)

É claro que o autor não está sugerindo que deixemos de trabalhar para brincar; ensina-nos, na verdade, que devemos colher alegria em nosso trabalho e, como se dirige, particularmente, aos professores, reconhece que o trabalho destes é de ordem diferente do trabalho de outro profissional, digamos, de um funcionário público. Não estou depreciando o papel do funcionário público, evidentemente; estou apenas sugerindo que ensinar é um processo de formação de subjetividades que se abrem para o mundo e que nisto consiste a diferença entre o trabalho do professor e o trabalho de qualquer outro profissional. Não é possível ensinar se não cultivarmos alegria em nosso interior. Ensinar é doar-se, sem doação não há ensino. Para além de métodos, estratégias de ensino e conteúdos, deve haver a doação de humanidade a humanidades em qualquer ato de ensino.
Gostaria de destacar um momento do texto que me parece muito importante para a compreensão da proposta do autor, a saber, o momento em que Mariana passa a dominar a “varinha mágica” (palavra), graças à qual ela, enquanto indivíduo da espécie humana, levará extremas vantagens sobre espécies de animais que também brincam.

“O mundinho de Mariana é muito pequeno. Não vai muito além dos seus braços e da suas perninhas que mal aprenderam a andar. Ela brinca com coisas: bolinhas de gude, bonecas, panelinhas. Nisso ela se parece muito com os gatinhos, cães, potros, que também gostam de brincar. Mas ela já tem uma coisa que eles não têm – uma varinha mágica de condão que fará toda a diferença: ela está aprendendo a falar. A alegria não está só quando ela tem as bolinhas em suas mãos. Ela ri ao falar o nome, mesmo que não haja bolinha alguma por perto: ela brinca com as palavras”.
(p. 75)

O autor nos dá a saber, com muita sensibilidade, o que eu entendo como poder fascinante da linguagem, ou seja, a sua função de simbolização, pela qual tornamos o ‘ausente’ presente. A função do signo (palavra) é, justamente, esta: estar no lugar da coisa referida. O universo de Marina é, então, organizado conceitualmente graças ao poder das palavras; não viverá mais numa relação imediata com o meio; este será apreendido sob formas de simbolização. O mundo entrará em sua consciência pela força simbólica das palavras (em formas de “conteúdos”). Por isso, o autor nos ensinará que “pelo poder da palavra ela é capaz de brincar com coisas ausentes” e acrescentará “as palavras são brinquedos”.
Já tive a oportunidade de desenvolver este pensamento: as palavras são brinquedos. Alhures, externei quão entretido fico com as palavras. Escrever é, para mim, uma atividade lúdica, decerto. Brincar com as palavras é exercitar a prática do pensamento. O autor parece sugerir que é graças às palavras que podemos pensar, o que corrobora a ideia de que não há possibilidade de pensamento conceitual  fora dos quadros da linguagem.

“Pois é: ela aprendeu a pensar. E ao falar aprendeu a brincar com as palavras, ela aprendeu a brincar com coisas que não existem. E ao aprender a brincar com coisas que não existem aprendeu a pensar! Lembre-se do que disse Valéry: “O pensamento é, em resumo, o trabalho que faz viver aquilo que não existe”.
(p. 76)

Embora não seja possível fazer divagação neste terreno agora, a concepção segundo a qual pelo estudo da linguagem é possível compreender o modo como a mente humana se estrutura, enfim, como nós pensamos constitui uma tese a que me sinto decididamente inclinado. O psicólogo Steven Pinker, em seu livro Do que é feito o pensamento, mostrará como a língua fundamenta as nossas conceptualizações de mundo; as formas de pensá-lo, de compreendê-los são codificadas nas categorias que a nossa língua nos fornece. A linguagem é, certamente, um fenômeno sui generis, que perpassa todas as esferas de atividade humana.

Ensinar e ler

Ao longo desses quase dez anos de dedicação continuada aos estudos, conheci muitas teorias, li sobre muitos estudiosos da linguagem, muito embora ignore o pensamento de outros tantos. Atualmente, ensino algumas teorias, com vistas a contribuir para a formação teoricamente mais sólida dos futuros professores de português. Todavia, não abandonei a ideia de que o papel de todo professor de língua materna é desenvolver nos aprendizes as competências comunicativa e textual. Para tanto, ele deve promover uma prática pedagógica que contemple o ensino da língua em uso e que não se limite ao ensino da gramática tradicional orientado taxionomicamente. Este ou deve ser redimensionado, ou abandonado. Ainda que eu me sinta tentado a desenvolver essa proposição aqui, não o farei, porque ela implicará problemas que são de interesse de profissionais da educação, particularmente de professores de língua materna.
Sucede que, quando se dá aula a graduandos de Letras, está-se realizando uma atividade que visa à formação de professores que devem ser, antes de tudo, leitores e escritores (no sentido lato) atuantes. As aulas de português devem ser ministradas por leitores a futuros leitores. Ora, como ensinar a ler e a escrever, se quem o faz não está habituado a ler e a escrever? E no caso dos professores universitários, que ministram aulas de língua, como ensinar a ensinar a ler e escrever, se não se lê e escreve continuamente?
Em seu artigo Escrita, experiência e formação – múltiplas possibilidades de criação da escrita, que se acha no livro A experiência de leitura (2003), a professora Sonia Kramer, da PUC-Rio nos dá a saber

“A escrita do texto remete à escrita da história. Porém, muitos de nós, alunos e professores, não somos sequer leitores dos textos que escrevemos; outros, ao contrário, têm podido descobrir que reescrever o texto é reescrever a história das ideias que o geraram, registrando, transcrevendo, marcando o papel com esses traços, pontos, riscos. Ser leitor do próprio texto vincula-se à compreensão do que foi escrito em nós. Vemos, assim, que a escrita desempenha um papel central na constituição do sujeito.”
(p. 64)
(grifo meu)

Indagará, ao cabo desse parágrafo,

“Podemos tornar nossos alunos pessoas que lêem e escrevem, se não lemos e se temos medo de escrever?”

Entender a leitura e a escrita como experiências é permitir que se lance um olhar que as apreenda como formas de conhecimento constitutivo do que somos. Por isso, insisti, em alguns de meus textos, que a prática, ou melhor, a experiência de escrita deve ser uma forma de redescoberta de si mesmo, de autoconhecimento. Pensar a leitura e a escrita como experiências é compreender sua implicação no modo como nos relacionamos com o mundo, é inseri-las nas formas de nossas vivências. Ler e escrever deixa de ser um mero ato, uma atividade com finalidades pedagógico-burocráticas, para tornar-se espaços de reinterpretação de si mesmo e de nossas percepções de mundo. Ler e escrever são experiências constitutivas da sociabilidade.
A leitura silenciosa, feita individualmente, quando o espírito está recluso, permite-nos abstrair-nos do mundo e retornar a nós mesmos. Ler é, assim, permitir um encontro consigo mesmo e esse encontro é tão mais enriquecedor quanto mais perplexos ficamos em face das ideias e das percepções que nos são alargadas pelo texto. A leitura solitária exige-nos que coloquemos o mundo entre parênteses. É inegável que a escolha pelos livros seja um parâmetro de diferenciação (distinção) social. Formar leitores e indivíduos capazes de dominar a modalidade escrita da língua é um compromisso político ao qual não pode se furtar o professor. Isso se torna imperioso na medida em que reconhecemos a experiência de leitura como proclamadora da abertura do sujeito para o mundo. Ler é uma atividade telescópica, já que nos permite ver o que não nos é perceptível quando das vivências da cotidianidade. Vemos melhor quando estamos imersos em nossa solidão: a abstração de nosso espírito é fundamental para a compreensão mais aguçada e penetrante da realidade.
Sou um leitor-mosaico, visito e revisito o pensamento de autores bem variados. Figuram em minha agenda de leituras os pensamentos de Mx Weber, Émile Durkheim, Karl Marx, Sartre, Chomsky, Saussure, Rubem Alves, Leonardo Boff, entre outros muitos. Compreender a leitura e a escrita como experiências de vida que nos singularizam em meio à massa impessoal que compõe as sociedades modernas é o convite que faço ao leitor. Minha singularidade não está tanto no que sei ou no que penso saber, mas nas questões que suscito e no modo como as conduzo de modo a formar leitores cada vez mais experientes, perspicazes e capazes de reconhecer o valor desta faculdade que nos torna criaturas especiais: a faculdade da linguagem.

quarta-feira, 20 de março de 2013

"Ao falar, queremos sempre causar impressão em nosso ouvinte" (BAR)


                

        Autocrítica: as imagens de si no galanteio


Sócrates ensinou o caminho para a sabedoria: “conhece-te a ti mesmo”. Esse aforismo estaria, segundo a tradição, inscrito nos pórticos do Oráculo de Delfos. A frase teria sido proferida pela pitonisa desse oráculo, chamada Femonoe. Seja como for, o “conhece-te a ti mesmo” abre caminho para o autoconhecimento, como a primeira etapa para conhecer modos de existência social mais profundos. Tenho seguido esta recomendação socrática desde há muito, através da escrita. Especialmente, durante os anos em que precisei de tratamento psiquiátrico em função da depressão, a escrita serviu-me de exercício para o autoconhecimento.
A questão de que me ocuparei neste texto tem a seguinte forma: Qual é a origem de nossas decepções no galanteio? Embora a palavra ‘galanteio’ seja definida de modo a colocar o homem como o responsável pelas lisonjas e finezas, as ideias que desenvolverei aqui valem também para as mulheres. Eu preciso, contudo, dizer o que me motiva a escrever este texto. Vou contextualizá-lo, portanto.
Estou participando de um site de relacionamentos, não faz muito tempo. Não cuido sejam necessárias muitas justificativas, mas decidi participar por me possibilitar conhecer mulheres e lidar com as dificuldades comuns da conquista. Evidentemente, minha intenção é namoro, mas, até que o namoro aconteça, é preciso dedicar-se à conquista ou ao galanteio (palavra fora de moda, bem o sei). Neste site, os participantes precisam escrever/falar sobre si mesmos e sobre a pessoa que buscam, ou seja, precisam construir um ethos (grosso modo, uma imagem de si) e uma imagem da pessoa que lhes seria, de algum modo, interessante. Antes de me decidir pelo tema deste texto, me sorriu a ideia de escrever sobre esses ethos. É interessante compreender como as pessoas constroem um ethos com vistas a serem bem-sucedidas na busca pelo parceiro/parceira ideal. Todavia, protelo o tratamento deste tema.
De certo modo, é de ethos que vou falar. Na verdade, do meu ethos. Mas, como o conceito é problemático, tendo sido, tradicionalmente, tratado na retórica em Aristóteles, interessado aos pragmatistas da argumentação, como Oswald Ducrot e retomado por analistas do discurso, como Charaudeau, o termo sofreu variações de sentido e de valor teórico. Como eu não pretenda considerar essas variações e valor, tampouco me aprofundar nas discussões em torno deles, vou optar por adotar a noção de imagem de si; mas não porque ela seja menos problemática, mas por ser de uso corrente. O rigor com que me habituei a desenvolver minhas reflexões impõe-me que eu a defina.
A noção de imagem de si se prende à ideia de representação, cuja base é simbólica, ou melhor, discursiva. Mas é preciso afastar do campo semântico de imagem ideias ligadas à inautenticidade, à falsidade, à insinceridade, que orbitam o campo ético. É claro que na construção da imagem de si questões éticas tais como a necessidade de ser autêntico, de ser sincero (falar a verdade), etc estão implicadas. Mas quero, inicialmente, evitá-las para definir o conceito. O que é uma imagem? Remetendo-nos  à palavra imaginação, “imagem” tem a acepção de representação mental de algum objeto. Sartre, por exemplo, entendia que a imagem é uma certa maneira de a consciência colocar para si um objeto. 
Quando aplicada ao domínio do ‘eu’, ou seja, quando entra a fazer parte da expressão ‘imagem de si’, a palavra significa a representação que esse ‘eu’ faz de si mesmo. A toda representação subjaz uma interpretação. O ‘eu’ que se representa ou que constrói uma representação de si (uma imagem de si) o faz na base de atributos, ideias, valores, crenças que associa a si mesmo. Evidentemente, trata-se de uma imagem que ele quer seja valorizada pelos outros. Os “Outros” desempenham um papel importante nesse processo de construção da representação de si, visto que o ‘eu’ se define, se constrói e só existe como sujeito social na relação com os outros. É mister entender que esses outros também constroem uma imagem do ‘eu’ com quem interagem, além, é claro, de construir uma imagem de si mesmos, já que cada outro é um ‘eu’ também.
Importa ver que a representação de si ou a construção da imagem de si se dá no discurso, ou na interação com os outros. Portanto – repito – o ‘eu’ constrói uma imagem de si no momento em que está na presença dos outros, por meio do uso da língua. Ao falar, ele se representa (encena). Como os outros, além de construir uma imagem de si, constroem imagens do ‘eu’ com quem interagem, é correto falar em imagens recíprocas. Vamos facilitar um pouco as coisas. Imaginemos uma situação de interação face-a-face, em que dois e apenas dois interlocutores dialogam. Ambos se entendem como sujeitos sociais, que se reconhecem como um ‘eu’ (esse ‘eu’ é já uma imagem). Mas esse ‘eu’ toma forma ou se constrói (na relação com) no momento em que diz ‘eu’, no momento, portanto, em que se apossa da palavra. Ao falar, ele encena. Na encenação (na fala), ele (o eu) irá construir uma imagem de si que pretende seja reconhecida (valorizada) favoravelmente pelo parceiro de comunicação. O parceiro, que é, até então, o outro, constrói uma imagem (uma representação) desse ‘eu’, que pode ou não coincidir ou concordar com a imagem que o eu constrói de si mesmo. Nesse processo de construção interacional de imagens, os interlocutores estão, a todo momento, operando com base em hipóteses. Ao construir uma imagem de si, o eu está também formulando hipóteses sobre a imagem que o outro tem de si mesmo e sobre a imagem que o outro está construindo sobre ele (eu), sobre a imagem que ele- o outro- faz da imagem que o eu constrói para ele, e assim por diante. Em outras palavras, quando me represento, também penso sobre o que está pensando sobre mim o meu interlocutor, sobre o que ele pensa sobre o que eu estou pensando sobre ele. E a recíproca é verdadeira.
Os interlocutores – o eu e o outro – não só constroem imagens de si e uns dos outros, mas também do tema de que tratam. Sem pretender descer a pormenores teóricos (as teorias aí são muitas e os teóricos divergem), importa reter o seguinte: há três representações básicas. A primeira é aquela que o eu tem de si mesmo ou constrói para si mesmo; a segunda é aquela que esse ‘eu’ constrói para o outro (interlocutor); e a terceira é aquela construída sobre o tema tratado. Como o “eu” e o “outro” são sujeitos sociais, claro está que carregam em si uma herança sociocultural e histórica, de sorte que essas três representações se combinam com as representações culturais, aquelas forjadas nas experiências culturais de que participam. Trata-se de representações pré-construídas que são trazidas para interação.
Em suma, a construção da imagem de si é uma co-construção de base interacional, ou seja, que se dá pelo uso da língua. As imagens recíprocas são constantemente negociadas durante as práticas discursivas de que participamos.
Quero chamar a atenção para a importância das representações pré-construídas, as de base culturais. Como sejamos seres culturais, nossa representação de si se constituirá de uma herança de valores de nossa sociedade. É claro que os valores que assumimos podem entrar em conflito com os valores mais largamente disseminados e aceitos.  E é claro também que tais valores podem perdurar no tempo e provirem de uma dimensão mais universal, considerando-se a história da humanidade. Num mundo globalizado como o de hoje, é praticamente impossível não assumirmos valores produzidos por outras culturas com que a nossa cultura está em contato. Há mútuas influências culturais constantes.
 Como usamos, com bastante frequência, a palavra “valor” para referir-se a “valores culturais”, convém ter em conta o que significam “valores culturais”. Um valor cultural se define como uma ideia comum sobre como uma coisa deve ser classificada em termos de mérito, desejabilidade ou perfeição. Os valores podem ser empregados para classificar tanto abstrações quanto objetos concretos, bem como experiência, comportamento, características pessoais, estados de ser (por exemplo, estatura alta acima de estatura baixa, sadio acima de doente, etc.). Na noção de valor, o que importa é o fato de ser usado para categorizar as coisas umas em relação às outras em termos de importância. Os valores culturais diferem das preferências pessoais, na medida em que nestas o único árbitro é o indivíduo; para aqueles, a referência é a sociedade. Por isso, se consideramos a honestidade um valor cultural, é porque se trata de uma qualidade do modo de ser culturalmente prestigiada, desejada. Mas é sempre bom lembrar que, embora os valores culturais suponham um consenso, esse consenso nunca será completo ou total. Isso dá margem ao contraste ou ao conflito entre os valores que um indivíduo assume como componentes definidores de sua subjetividade e outros valores culturais geralmente aceitos por outros membros de sua cultura.
Não pretendendo me alongar sobre este tema, volto a considerar o problema da construção da imagem de si nas experiências de galanteio ou de conquista amorosa. Quando, neste momento, penso sobre esta questão, recordo como a imagem que construo de mim mesmo me levou a conclusões equivocadas, com base nas experiências de decepção que vivenciei.
Tenho conservado e negociado uma imagem de mim mesmo cujos atributos, evidentemente, suponho atraentes às mulheres de um modo geral. É importante a suposição aí, como vimos. Tendo experimentado decepções, conclui que elas são insensíveis ou incapazes de reconhecer os valores de que se compõe esta imagem. O erro, que vale para todos nós, homens e mulheres, está aí.
A imagem que construo de mim é a de um homem que é amante da linguagem, amante da leitura e da escrita, poeta e intelectual, idealista, romântico e fiel. Por alguns anos – e esta crença foi reforçada por familiares -, acreditava que estas qualidades eram as qualidades mais unanimemente apreciáveis entre as mulheres. Acreditava que essa imagem pudesse me acarretar a ventura amorosa. O erro está nesta suposição, ou melhor, na suposição de que devemos sempre agradar os outros. O erro está em buscar construir uma imagem de amante infalível e em supor que ela nos levará ao sucesso em todas as nossas tentativas de requestar as atenções de uma pessoa.
Não é porque eu me considere um poeta, um escritor competente, um intelectual que, pelo estudo, alcançou uma formação acadêmica sólida; não é porque eu seja fiel e delicado no trato, e romântico declarado, que devo estar seguro de que sou o candidato ‘ideal’ a conquistar o coração de uma mulher. E isso vale para as mulheres em relação aos homens. Se assim fosse, os poetas não seriam, como foram muitas vezes na história, infelizes no amor; se assim fosse, os filósofos e demais intelectuais não deveriam ter fracassados nos relacionamentos amorosos. Ser delicado pode, inclusive, dar margem a que se suspeite de nossa orientação sexual (não que isso seja um problema, de modo algum). Quero, apenas, dizer que a delicadeza num homem pode ser interpretada como um sinal de homossexualidade. Aliás, certa vez, na faculdade onde estudei, uma menina perguntou a uma amiga minha se eu era gay, com base em sua interpretação do modo gentil e carinhoso com que sempre tratei as minhas amigas de classe. Isso só corrobora essa ideia. Interessante é ver que, por um lado, não é verdade que todos os homossexuais sejam ‘delicados’ (portanto, ser delicado não seria um traço que define a orientação sexual num homem); por outro lado, não menos interessante é ver como se constrói, no imaginário coletivo, a partir da palavra ‘delicadeza’, a distinção do comportamento de gêneros: em nossa sociedade, as mulheres devem ser delicadas, mas os homens não. Não raro, homens rudes são mais apreciados. Estou pensando em delicadeza como ‘fineza’, ‘gentileza’ e ‘amabilidade’, e não no sentido de comportamento estereotipado de afetação ou de pieguice (que fique claro!)
Sabemos que os poetas cantaram suas dores; os filósofos, muitos deles, fracassaram no amor; os delicados podem ser considerados gays; e os fiéis estão fora de moda. Muitas vezes, os cafajestes é que prosperam; e, enquanto os mais eloquentes podem até atrair admiração, os que sequer conseguem formar uma frase, sem recheá-la de gírias ou empobrecê-la semanticamente, conseguem manter seu celular repleto de nomes de mulheres. Muitas vezes, são aqueles para quem Drummond é o sobrenome de seu último advogado que trabalhou para garantir os benefícios do segundo divórcio que prosperaram; muitas vezes, são aqueles para quem Azevedo e Varela eram os sobrenomes dos seus últimos patrões que conquistam todas as meninas da night.
Felizmente, hoje entendo que a suposição de que a imagem que construo de mim deva, necessariamente, garantir-me ventura amorosa é um engano. Muitas vezes, a inteligência afugenta; a poesia mela; o romantismo, além de também melar, deturpa; e ser fiel coloca-nos sob alguma suspeita; e as delicadezas nos estereotipam. Mas não há razão para desespero e desalento. Lembro novamente: não temos de agradar sempre e a todos (aliás, é uma ilusão pretender agradar a todos e, ainda que isso fosse possível, não vejo como seríamos mais felizes). É importante ser autêntico, é claro. Ser autêntico é construir uma imagem de si condizente com as formas como realmente nos comportamos e somos (ou com os modos de estar em cada situação). É sair da zona das aparências. Mas, cientes de que, ainda assim, corremos o risco de não agradarmos. Lembremos que os inautênticos(as) também são amados(as) e estão com seus celulares ( e iphones) repletos de candidatas/candidatos.