quarta-feira, 7 de março de 2012

"Se estivermos sempre de acordo, é sinal de que nos acomodamos" (BAR)

                                    

                                                Conche
                                   E a felicidade da filosofia
                                             Reflexões incipientes sobre ser filósofo e ateu

Coloquei uma pilha de livros junto a mim. Terminei de ler um capítulo de um deles e, tão-logo iniciara a leitura de um capítulo de outro livro, inquietaram-me “vastas tempestades elétricas cerebrais” (Nicolelis, 2011: 55), a que chamamos de “pensamentos”. Eis aí a definição neurocientífica de pensamento. Longe de representar a experiência fenomenológica que temos de pensamento – experiência esta de base simbólica (pela força do signo) -, essa definição encerra a base neurofisiológica do pensamento. Não é este tema que me ocupará nesta nova oportunidade que tenho de escrever. Vou-me ocupar com reflexões sobre o testemunho de Marcel Conche, em seu livro Análise do Amor (livro cuja leitura recomendo a todos que me leem).
A grande maioria de meus textos que divulgo neste espaço dá testemunho da aturada convivência que tenho com os livros. A leitura me fertiliza os pensamentos. E os trechos de Conche, sobre os quais recairão minhas reflexões, vêm a propósito justamente num dia em que, há pouco, ocupava-me a alma a robusta ideia do direito que tem a voz ateísta de também fazer-se massivamente presente nas redes sociais de relacionamentos virtuais. Apercebi-me de que abundam, naqueles espaços on-line, mensagens de inspiração religiosa. Também, nós, ateus, temos o direito de manifestar nossas posições, através de pensamentos nossos ou alheios, de postagens com imagens (embora não depreciativas) que representem a(s) verdade(s) ocultada(s) pela religião.
O texto de Conche é, como dizia, um testemunho de seu amor à filosofia, um testemunho de como se tornou filósofo, de como a filosofia contribuiu significativamente para que ele se desafogasse do emaranhado de ideias, crenças e convicções lapidadas no obscurantismo, na ignorância, na falsidade da tradição cristã de que ele foi herdeiro. Assim é que, em suas palavras confessionais, plasmei uma imagem de mim. Sentia-me representado nas experiências em que ele estivera envolvido e que tratava de representar com aquelas palavras. É disso, pois, que tratarei, ao procurar reler este texto, ou melhor, parte dele. Os trechos que citarei constam do capítulo Tornar-se grego, no qual Conche conta-nos sobre sua descoberta dos sábios gregos, a cujos conhecimentos deve não só o reconhecimento do valor humano da filosofia, mas a assunção de sua condição de ateu. Sim, Conche se reconhece ateu no momento mesmo que descobre a filosofia, mormente o espírito filosófico dos gregos antigos.
Cuido poder, agora, enunciar minha tese, que tem a forma que se segue:

A superação do pensamento religioso-místico só é possível pela descoberta do espírito filosófico.

Entendo por espírito “consciência”, ou, se preferirem, “pendor”. E por que falo em “descoberta” desse pendor filosófico? Nesse tocante, minha tese é consonante com a posição de Conche, que será por mim aqui explicitada e (re)pensada. Estou de acordo com Conche quanto ao fato de o normal no homem é viver indagando, questionando, entregando-se ao exame crítico do mundo em que vive. Por isso, todos nós somos filósofos em potencial. Todos os indivíduos, sempre que lhes são dadas as condições necessárias, são capazes de descobrir esse “espírito filosófico” adormecido em sua mente. É o que sucedeu comigo, com Conche e, provavelmente, com todos que se decidiram pelo valor da razão.
Leiamos o trecho com que Conche inicia o capítulo, já referido acima:

“Filosofar parece-me a única atividade normal do homem: do homem qualquer, entendo, sem gênio particular, mas também do homem de gênio (do artista, do poeta) na medida em que é, vivo ou moribundo, um homem como outro; porque  o que é normal para o homem não é – não é simplesmente – comer, beber, dormir, amar, coisas que os bichos também fazem, não é viver – limitar-se a viver – nem trabalhar para comer e comer para viver, mas é não viver sem refletir, isto é, sem se perguntar o que faz no mundo, o que é o mundo, o que significa a vida – em suma, o que é normal para o homem é não viver sem filosofar (...). Vou contar agora como se tornar filósofo: para mim significou tornar-me grego”.

(p. 103)
(grifo meu)

Lendo este trecho de Conche, rememorei momentos remotos da minha vida (talvez, não tão remotos assim, embora por tê-los abandonados, mo pareçam) em que escrevia com desgosto pela superficialidade das vivências sociais. Em meus escritos mais antigos, eu demonstrava minha insatisfação com a convivência com pessoas psicologicamente superficiais, que vivem à superfície da vida, que, existindo, limitavam-se a boiar em seu cotidiano intelectualmente infértil. Sentia-me profundamente deslocado, dessituado. Faltava-me  conseguir afinidade intelectual, o que não encontrava nas pessoas com quem conversava. A solidão daqueles tempos fecundou-me exuberantemente o espírito, mas, ao mesmo tempo, apartou-me das convivências diárias com certas pessoas, visto que nelas não encontrava eco de intelecto que me atraísse, tão-só os assuntos de sempre, triviais e cansativos. Esse sentimento de desconforto, esse desagrado de que me imbuía inspiraram-me o pensamento “Há sempre um livro entre mim e o outro”. O leitor poderá compreendê-lo melhor agora quando resgato vivências passadas. É possível que construa outros sentidos para ele; mas eu, com ele, pretendia anunciar: convivo com pessoas para as quais o livro é um estranho, sendo eu também um estranho para elas. O leitor poderia também interpretar o livro como um silêncio que intermediava a minha relação com o “outro” (que não tem face, que poderia ser qualquer um). Sinto que, se eu me aventurar a pensar sobre o que escrevi, sobre os pensamentos que registrei no papel, iniciarei um vasto e doloroso processo de escavação de meu ser, ou desse “eu” que é um conjunto de imagens de si, que mudam e que são contraditórias. Ensinou-me isso o psicanalista J. D. Nasio, em seu livro Meu corpo e suas imagens (2009). Isso parece confirmar a verdade sobre nossas intuições de nós mesmos: o “eu” que não é senão uma “entidade imaginária”, uma ficção de nosso cérebro; este “eu” nos escapa, e isso explica o sentimento que temos dele como algo inexplicável. Nós não nos entendemos, desconhecemos, em profundidade, esse “eu” imagético. Convém voltar às reflexões de Conche.
Conche mostrará a importância da filosofia na formação do indivíduo como um todo complexo. Lembrar-nos-á que o indivíduo “é antes de mais nada produto de uma coletividade em que, por uma educação de caráter tradicional, não racional, ele é formado para a particularidade, tão longe da singularidade” (ibid.id.). A singularidade é alcançada tornando-se filósofo. A essa altura, num claro movimento polifônico, evoca as vozes que nos ensinam sobre a atitude filosófica, melhor seria, sobre o que é ser filósofo. Não me canso de insistir sobre essa atitude, visto que ela determina a forma como escolhemos viver: conformados ou inconformados? Resignados ou revoltados? Tolos ou argutos ? Desinteressados ou comprometidos? Alienados ou atentos? Escreverá o autor, na mesma página:

“O filósofo terá de se tornar singular e, para tanto, terá de romper com os juízos prontos, com os valores estabelecidos, com os imperativos de uma sociedade fechada, por ter feito a escolha da razão, isto é, do universal.A razão espera, em cada um de nós, que a escolhamos; ela é o poder de rejeição, de questionamento, de liberdade, inerente a cada um de nós. Porque todo indivíduo humano tem vocação para se tornar filósofo; e, no entanto, tornar-se um homem filósofo, a pressão da coletividade é tamanha que isso não acontece”.
(ibid.id.)

O século XX, após testemunhar as duas Grandes Guerras, foi também uma época marcada por acentuados questionamentos sobre o valor e o poder da razão. Parece-me que, nos dias atuais, as tempestades efusivas de ataques à razão tenham encontrado um ponto de descompressão. Estamos mais sóbrios, mas conscientes dos limites, das pretensões da razão; há esforços contínuos no sentido de discutir, por exemplo, a problemática gerada pela aplicação da tecnologia nas ciências, pela influência do que ficou conhecido por razão instrumental (objeto de crítica do filósofo Jürgen Habermas) – aquela que, servindo ao estabelecimento de meios para alcançar fins determinados, acarreta a dominação técnica do mundo, destituindo o bem de sua autonomia, que passa a ser submetido às regras que entram em jogo na dominação técnica do mundo natural -,etc.
Conche não deixa de nos lembrar a importância da razão como condição para a compreensão de nós mesmos e do mundo em que vivemos. A despeito das suspeitas lançadas sobre a razão – suspeitas que as religiões organizadas adoram alardear, para depreciar o compromisso racional que os homens tem com o mundo – ainda continuaremos a falar da razão (ou razões), que é produto histórico, porque o mundo social, natural e nossas ações fazem sentido. Onde houver a busca pelo sentido, haverá a voz da razão. A razão é, então, esta condição que nos permite compreender como se constrói os sentidos do mundo. A razão nos habilita a produzir sentidos, explicações, a compreender o mundo. Disso se segue que não falta razão aos religiosos, tampouco aos sistemas de crenças que defendem; afinal, tais sistemas procuram produzir um sentido para o universo, para a vida humana, para as relações humanas (ainda que falso). Vale dizer que o sentido na religião se trama na fantasia; só pela razão crítica é possível desconstruí-lo. Não obstante, tanto ateus quanto religiosos exibem uma atitude racional em face do mundo (embora estes últimos não o façam quando se comprometem em defender a doutrina a que aderem). Chauí, à página 84, de seu Convite à Filosofia, dá-nos a saber o seguinte:

“(...) A atitude racional de conhecer a realidade não é senão o trabalho do pensamento para apreender, compreender e interpretar o sentido das coisas, dos fatos, das ideias, ações e valores humanos. É esse ideal do conhecimento que é conservado quando continuamos a falar em razão”.

A razão permite-nos interpretar e conhecer a realidade pelo exercício do pensamento elaborador e reflexivo. A razão permite-nos construir o sentido das coisas. Nos sistemas religiosos, contudo, a razão perde autonomia, está submetida a representações da fantasia, da imaginação. Ela serve à produção da ficção. Ela é sufocada em face de construções (discursivas) de modelos de mundo imaginário. Nesse domínio, a razão se deturpa, se contamina por ideias ou crenças (já que só crenças nos movem, fazem nos comportar de uma dada maneira, por elas lutamos, e muitos de nós por elas morremos) que vão determinar a estruturação de nossos raciocínios. Estudos científicos mostram como nosso cérebro pode aceitar como verdadeiras ideias ou crenças que, libertos das pressões de determinadas formas de “lapidação social”, consideraríamos indubitavelmente falsas.
Doravante, importa ver qual não foi meu sentimento de cumplicidade com autor nas experiências que, nos trechos a seguir, nos relata. Veja-se como a voz da razão bramiu do interior de seu ser. O autor nos confessa ter nascido num ambiente católico, mas a herança cultural que recebera deixou de satisfazer o seu espírito questionador.

“Tendo nascido num país cristão, numa família católica, enquanto, de um lado, meu poder de reflexão despertava e minha vocação filosófica se revelava desde o início da minha adolescência, de outro, eu me via confrontado com as noções de “Deus”, “alma”, “imortalidade da alma”, “pecado”, “arrependimento”, “amor ao próximo”, etc., que, por efeito da pressão e da impregnação educativas haviam adquirido uma espécie de evidência”.
(p. 104)

“A pressão e impregnação educativas” ainda mantinham firmes minhas crenças religiosas, na adolescência. A descoberta do espírito filosófico deu-se em mim mais tardiamente. No entanto, o sentimento de verdadeira libertação do obscurantismo religioso, experimentado por Coche, me foi o mesmo. Preciso dizer que, a despeito de conservar minha crença em Deus, ainda na adolescência, manifestava, sempre que podia, severas críticas à doutrina e às posições da Igreja. Parecia-me ser possível (como o é para muitos ainda que acreditam em Deus) a cisão entre Deus e Igreja, de sorte que eu podia crer em Deus sem defender a Igreja e sua doutrinação (sempre que esta era tomada para parâmetro de avaliação de questões sociais sérias, como o aborto e o uso da camisinha). Sem me delongar nesse tocante, a descoberta por mim da filosofia foi determinante do abandono de uma tradição que me condicionou a aceitar ideias e crenças sem examiná-las com rigor racional. Escreve-nos Conche:

“(...) minha razão me premia a afastar a ideia de transcendência. O sofrimento das crianças, considerado mal “absoluto”, pareceu-me constituir um argumento invencível a toda e qualquer teodicéia. Como Deus sem Providência me parecia inconcebível, afastei a noção de Deus. Vi-me ateu, para grande satisfação da minha razão, talvez também para minha satisfação pessoal”.
(ib.id.)

A razão, em mim, rugiu e tomou o lugar honroso que lhe cabia. Na página seguinte (p. 105), Conche patenteia-nos o significado do cristianismo:

“O cristianismo havia significado e significava para mim o sofrimento: o sofrimento da razão, porque a ideia de Deus não é clara, as “provas” não provam, os testemunhos são duvidosos, os milagres impossíveis – mas eu tinha posto fim a tal sofrimento afastando a ideia de Deus, que agora eu sustentava que só tinha sentido se se admitisse a Revelação, logo apenas para e pela fé; em seguida, o sofrimento da alma e do coração, por eu me viver como um “pobre pecador”, isto é, sempre com uma ideia deprimente de mim mesmo”.

Desejo me deter um pouco neste trecho, porquanto entendo repercutir ele vivamente em meu espírito. É o que eu sentia também, nos momentos mais tenebrosos e aterradores de minha depressão. A imagem do “eu” que construía era demasiado negativa, aviltante. Às visões cristãs do homem, do mundo, da existência mesma pecaminosa do homem, devo as interpretações distorcidas e punitivas que eu fazia de mim mesmo. Entendamos isso. Conche nos ajuda a compreender o cristianismo como religião do sofrimento, por um lado; e religião da culpa, por outro. Nunca me esqueço do momento em que, iniciando a missa, o padre convocava a multidão a bradar em uníssono “somos culpados e reconhecemos nossa culpa”. Não me lembro exatamente da forma das expressões, ou seja, como os enunciados eram proferidos, mas a prática discursiva ainda me lembra: éramos instados a reconhecer que somos pecadores e culpados pelos nossos pecados e devíamos ali pedir perdão a Deus. O sentimento de culpa, no cristianismo, deve ser constantemente alimentado, martelado na cabeça dos fiéis, porque é esse sentimento que os mantém presos à crença na Igreja, como instituição porta-voz da Vontade de Deus, e no próprio Deus, como Juiz cósmico e absoluto. O sentimento de culpa causado pela natureza inalteravelmente pecaminosa do homem é o “arreio” que mantém preso e disciplinado o rebanho. Esse mecanismo de escravização da consciência, que consiste em infundir sentimento de culpa com vistas a conservar a adesão dos fiéis ao universo simbólico e ritualístico da sua religião (no caso especial, da religião cristã) não pode ser percebido como tal, já que ele é construção ideológica e, portanto, coerente com o sistema doutrinário e teológico, que lhe confere base explicativa. 
A doutrina capta um dos sentimentos que nós experimentamos, muita vez: o de culpa; mas ela também capta a consciência que temos de que tendemos a desobedecer a autoridades, de que tendemos a subversões, e também de que temos grande suscetibilidade às nossas paixões (somos coléricos, somos egoístas, ambiciosos, desejamos os excessos, etc.). Vejam-se os sete pecados capitais! Disso se segue que ela impõe a obediência irrestrita a Deus, ou a sua Vontade, exige muito de nós, em sacrifício de nossa natureza. Ela nos implode no íntimo (no ser), na medida em que coloca-nos imperativos que nossa natureza é incapaz de seguir, como “amar a Deus sobre todas as coisas” ou “amar ao próximo como a si mesmo”.
Insisto sempre que o cristianismo se desenvolveu com uma retórica que promove o aviltamento da condição humana. Donde se segue o anunciar que somos pecadores desde o início dos tempos. O cristianismo é a religião do excesso ou extrapolação do imperativo moral. Não nego seu valor na construção de nossa moralidade ocidental, mas quero fazer ver que, em certa medida, suas exigências excedem os padrões humanos, ou melhor, excedem os limites de nosso senso moral (que se desenvolveu, em parte, para alguns, no longo processo da evolução natural). A moralidade pode ter raízes evolutivas na espécie humana, mas claro é também que seu desenvolvimento depende de processos formativos pela cultura.  E quero insistir em que a Bíblia, se lida cuidadosamente, não pode servir de parâmetro para a moral de homens justos que vivem no ocidente do século XXI.
No cristianismo, sofrimento é uma virtude. Isso é patente quando ouvimos ou lemos coisas do tipo “o sofrimento nos faz crescer”, “o sofrimento nos fortalece”. Há, na ideologia cristã, dignidade em sofrer. Cristo encarnou essa dignidade. É ele a figura central graças à qual essa concepção pôde tornar-se o pilar da fé. O sofrimento de Cristo é um exemplo de sofrimento para os cristãos. Com a mesma força e resignação com que Cristo suportou seu suplício até a morte pela crucificação, também os cristãos deverão enfrentar seu sofrimento, seus percalços. Na lógica cristã, não devemos nos revoltar com o sofrimento que nos acomete, devemos aceitá-lo, devemos nos resignar a ele e devemos nos sentir conformados na consciência de que o merecemos, porque somos pecadores. O sentimento de culpa mantém-nos resignados ao sofrimento, porque ela fornece uma justificativa coerente. Somos culpados pelo nosso sofrimento - eis a lógica cristã: o reconhecimento da culpa ou mesmo a necessidade obsessiva de nos sentirmos culpados nos leva a aceitar o sofrimento.
A fé não se abala com o sofrimento; ao contrário, ganha mais força. Isso já foi notado por homens mais competentes do que eu, mas não nos deixa de surpreender até hoje. A fé estará sempre divorciada da razão, nesse sentido, porque não nos permite entender que o sofrimento não nos torna dignos, não nos beneficia, que todo esforço da vida segue no sentido de evitá-lo. Não há, definitivamente, recompensa alguma em sofrer. Não há benefício no sofrimento. A fé não nos permite ver isso. A razão prescreve: "se algo não lhe serve para livrá-lo do sofrimento, dispense-o!" A fé, ao contrário, prescreve: “ainda que algo não lhe sirva para afastar ou evitar o sofrimento, não o dispense, agarre-se a ele com mais força”. Isso explica porque encontramos ainda hoje aqui e ali masoquistas cristãos que se flagelam. O cristianismo é a religião do culto ao sofrimento e da dor. Assim, o cristianismo ensina que o sofrimento é justo, porque pecamos e só podemos chegar a Deus pelo reconhecimento de que somos culpados. Só  pode, contudo, se inclinar a Deus aquele que se arrependeu, após ter se reconhecido culpado. Pecado-sofrimento-culpa-arrependimento esse é o caminho torturante e aviltante, único aliás, que nos leva a Deus. A consequência pode ser desastrosa para o psiquismo humano: o pecado, um flagelo psíquico; o sofrimento, o bem necessário; a culpa, uma auto-punição reconhecida; e o arrependimento, uma dor ofertada a ideia de Deus em sacrifício. O fiel se sacrifica, é ele também o cordeiro sacrificado para a adoração da ideia de Deus.
Conche, então abandona a religião, permitindo que a filosofia ocupe o lugar que antes era ocupado por aquela:

“(...) a filosofia significava para mim a felicidade e, dia após dia, me proporcionava tal felicidade”.
(ibid.id.)

Não era, entretanto, qualquer filosofia que lhe acarretou felicidade.  Era a filosofia de Montaigne, de Lucrécio, de Epicuro, dos céticos e dos pré-socráticos. Confrontada ao espírito religioso, o espírito filosófico descoberto por Conche permitiu-lhe estimar o homem e o coração humano.

“(...) Montaigne considerava Sócrates uma figura mais elevada do que Jesus Cristo; constatei que, sendo o evangelho impotente para modificar o coração do homem, não havia cristãos de fato; perguntei-me enfim se havia sentido em propor, como Jesus Cristo, um ideal impossível aos homens. (...) senti crescer minha estima pelo homem e pelo coração humano.”

(p. 106)
(grifo meu)

Conche seguirá meditando sobre o significado de “tornar-se grego”. Observará, no decorrer de suas meditações, que há muitas filosofias gregas e que teve, por isso, de escolher umas por exclusão de outras. As preocupações do filósofo que daí se seguem não me interessarão aqui.
A esta altura, e intentando pôr um  termo a este texto, posso apresentar algumas conclusões a que se pode chegar após a leitura deste texto:

1a) clara está a influência que os livros exercem na minha formação intelectual e humana; clara está a minha intimidade com os livros, a minha insistência em recorrer a eles como espaços de abertura para o diálogo com o leitor;

2a) Uma posição ateísta bem fundamentada depende de que esteja nela pressuposto um espírito filosófico. Dele depende sua consistência. Lembro que a filosofia desanuviou-me a consciência, abrindo caminhos para que eu me tornasse ateu;

3a) Tanto a descoberta do espírito filosófico quanto a adoção do ateísmo tiveram uma repercussão muito benéfica em minha alma. Tanto uma quanto outra infundiram em mim um sentimento de profunda libertação e felicidade;

4a) Não há demérito em abandonar um conjunto de crenças e convicções sedimentadas na consciência por força de uma longa tradição cultural, para assumir um sistema de visão de mundo contrário, que nos pareça vantajoso ou útil.

A tradição não pode nos determinar, não pode ditar quem somos ou seremos. Ela não pode servir, para todos os atos de nossa vida, como parâmetro inquestionável.  Não é porque cresci e me formei numa tradição que me inculcou valores e crenças aparentemente coerentes sobre como o mundo funciona que tenho eu, forçosamente, que me agarrar a ela até a morte. Comportar-se, assim, é rejeitar a possibilidade de descobrir o espírito filosófico em si. É evitar avançar na compreensão mais profunda e sólida do mundo (eu diria “mais verdadeira”).É preciso ousar! É preciso desconfiar, ao menos uma vez, para descobri-lo. Eu ousei! Eu decidi por outros valores: não mais a Bíblia e seus discursos que, hoje, descobri resultarem de falsificações e fabricações por escribas inescrupulosos; e sim o saber filosófico com seus vastos jardins de reflexões.
Não mais o dogmatismo, mas o exercício do pensamento livre e crítico. Não mais as respostas prontas que dizem “verdades” insuspeitas, mas as questões; as dúvidas mais do que as certezas definitivas; o debate racional e equilibrado, e consistente, mais do que a pregação cansativa, as ladainhas e a martelação dos dizeres cristalizados, dos clichês vazios e enfadonhos.
Para uns, posso parecer enfadonho e desagradável; para outros, interessante e admirável. Não pretendo agradar a todos; não sou mais cristão! Ou não traz o cristianismo ainda um sentido universalizante, a saber, a pretensão de ser uma religião universal - e única verdadeira? Não sou mais o dono da verdade, não detenho verdade, mas esforço-me por buscá-la onde quer que ela esteja; julgo válida a empresa; por isso também a religião tornou-se-me dispensável e somente quando eu a abandonei repousei minha alma na felicidade filosófica.







segunda-feira, 5 de março de 2012

"A leitura é para o intelecto o que o exercício é para o corpo." (Joseph Addison)

                                           


                                           Um convite à leitura
                                  Meditações sobre o ato de ler

Novamente, a voz de Fernando Pessoa conduz-me as palavras que aqui exponho. Dispenso o rigor na feitura deste texto. Não sei ainda, contudo, que caminhos verbais percorrerei. Vale a pena percorrê-los e esse é o convite que faço ao leitor. Percorramo-los juntos! Sem mais, leiamos estes passos de Pessoa:

“Leio e estou liberto. Adquiro objectividade. Deixei de ser eu e disperso. E o que leio, em vez de ser um trajo que ainda vejo e por vezes me pesa, é a grande clareza do mundo externo, toda ela notável, o sol que vê todos, a lua que malha de sombras o chão quieto, os espaços largos que acabam em mar, a solidão negra das árvores que acenam verdes em cima, a paz sólida dos tanques das quintas, os caminhos tapados pelas vinhas, nos declives breves das encostas.
Leio como quem abdica. E, como a coroa e o manto régios nunca são tão grandes como quando o Rei que parte os deixa no chão, deponho sobre os mosaicos das antecâmeras todos os meus triunfais do tédio e do sonho, e subo a escadaria com a única nobreza de ver.
Leio como quem passa. E é nos clássicos, nos calmos, nos que, se sofrem, o não dizem, que me sinto sagrado transeunte, ungido peregrino contemplador sem razão do mundo sem propósito, Príncipe do Grande Exílio, que deu, partindo-se, ao último mendigo, a esmola extrema da sua desolação”.
(p. 86)


        Pretendo que este texto instaure um espaço dialógico  com o leitor caracterizado pela informalidade. Por isso, eu o tratarei como “você”. É a você, leitor, que me dirijo. E, desde já, lhe confesso que esses passos de Pessoa acarretam-me alguma dificuldade; situada, é verdade, mas momentaneamente instransponível. Não sei o que significa “Príncipe do Grande Exílio”. Mas esta lacuna é ilustrativa de um princípio básico em matéria de interpretação/ compreensão textual; eu diria melhor, em matéria de construção da coerência do texto: o leitor que não dispuser dos conhecimentos prévios necessários à produção do sentido para o texto terá dificuldades para levar a cabo tal empreendimento. É claro que tais dificuldades podem não prejudicar a compreensão global do texto (a coerência é global). Algumas dificuldades, ou seja, lacunas no conhecimento de mundo compartilhado entre o autor e o leitor, podem perturbar o processo de interpretação/ compreensão do texto. Falta-me o conhecimento sobre o referente da expressão “Príncipe do Grande Exílio”, que, escrita em maiúscula, pode remontar a um codinome de um rei de Portugal, ou à obra política O Príncipe, de Maquiavel. Veja, leitor, que, quando lemos, estamos continuamente produzindo hipóteses, fazendo inferências. Elas serão confirmadas ou rejeitadas ao longo da leitura, sendo necessário, para tanto, recorrer, eventualmente, a outras fontes de conhecimento (como outros textos do autor, sobre dados de sua biografia, textos de seus críticos, resenhas sobre a obra lida, etc.).
Deixando de lado essa dificuldade pontual, vou propor a minha leitura. E isso é importante: muitas leituras são possíveis, dependendo das experiências de mundo de quem lê. Os textos potencializam muitos sentidos (embora excluam outros). Muitos, certamente, são possíveis, embora não todos. Podemos “ver” muitas coisas num texto, de acordo com o acervo de conhecimentos que vamos acumulando em nossas experiências de mundo. Para produzir um sentido para o texto que lemos, nós ativamos modelos cognitivos, que estruturam os conhecimentos (linguístico, encilopédico, pragmático, macrotextual, etc.) adquiridos nas nossas mais diversas experiências de mundo.
Quando assumimos o princípio da Linguística Textual (e também da Análise do Discurso) segundo o qual os sentidos estão abertos, são múltiplos, temos, forçosamente, de lidar com a questão dos limites da interpretação. Trata-se do problema de que se ocupa Umberto Eco, em seu Interpretação e Superinterpretação (2005).  Leiamos com atenção como o autor nos coloca o problema aqui referido:

“Poder-se-ia dizer que um texto, depois de separado do seu autor (assim como da intenção do autor) e das circunstâncias concretas de sua criação (e, consequentemente, de seu referente intencionado), flutua (por assim dizer) no vácuo de um leque potencialmente infinito de interpretações possíveis”.
(p. 48)

Quero que você tenha em conta dois problemas inferíveis do texto de Eco: 1o) o espaço escrito ou a modalidade escrita instaura, necessariamente, um distanciamento entre o escritor e o leitor (o texto produzido é um espaço dialógico, potencialmente repleto de significações, que o escritor instaura e do qual o leitor participa). 2o) Uma vez instaurando esse espaço, ou seja, uma vez produzindo seu texto, o escritor o destina a espaços sociais (sócioideológicos) para a leitura; logo, o autor não está mais sobre o domínio dos sentidos que poderão ser produzidos pelos leitores; o texto não mais “pertence” ao autor-escritor. Quando o texto, então escrito, é trazido a lume, passa a ser um objeto de interpretação; digo melhor, um objeto social de interpretação sócio-histórica. Os leitores são sujeitos sociais interpretantes e o texto um objeto sócio-histórico interpretável.
Todo escritor experiente, quer seja renomado, quer escreva no anonimato, lida com esses dois problemas. Muitos grandes escritores o reconheceram. Vejamos o caso do filósofo Ludwig Feuerbach, em Preleções sobre a Essência da Religião. Á página 16, na sua 1a preleção, o filósofo aponta para o primeiro problema por mim mencionado, relativo ao processo de produção escrita:


“(...) existe uma enorme diferença entre a palavra oral e escrita. A oral se relaciona com um público determinado, presente, real; a escrita, porém, com um público indeterminado, ausente, que existe para o escritor somente na imaginação; a palavra tem por objeto homens, a escrita, espíritos; porque os homens para os quais escrevo existem para mim somente no espírito, na imaginação (...)”.


Frisemos bem os aspectos da escrita apontados pelo filósofo alemão:
1o) a relação entre produtor do texto e receptor se dá in absentia, ou seja, há um distanciamento espaço-temporal entre o momento da enunciação (da produção do texto) e o da recepção (onde se situa o leitor). O receptor está ausente no momento em que o escritor produz seu texto. Ele lê em outro contexto, em outro momento;

2o) O leitor ou a audiência é produto construído discursivamente no momento mesmo em que o escritor produz o texto. É o que Feuerbach exprime com o termo imaginação ou espírito. Decerto, o escritor “imagina” destinatários para o seu texto, mas imagina-os durante o processo mesmo de construção de seu discurso. Por isso podermos dizer que o leitor é produto do discurso socio-historicamente produzido. Quando escreve seu texto, ou produz o seu discurso, o escritor produz uma “imagem do leitor”, não o leitor de carne e osso, evidentemente.

O reconhecimento destes aspectos da modalidade escrita, aspectos que tocam ao evento de enunciação dessa modalidade envolve outros problemas, tais como o fato de o escritor não poder prever todas as possibilidades de sentido para o seu texto. E a isso acrescento – coisa que a experiência de escritor de qualquer um de nós o atesta – nós, quando escrevemos, sentimos que não estamos no controle dos significados produzidos por nosso discurso. Parece-nos que as palavras nos escapam, os sentidos são fugazes, se esfumaçam. E aqui cabe um esclarecimento. Nós nunca dizemos tudo que pretendemos dizer. Não nos comunicamos dizendo tudo, se assim fosse, se entulhássemos nossos enunciados de palavras, certamente o sistema linguístico tornar-se-ia pouco eficiente comunicativamente. A dinamicidade e a flexibilidade  da língua dependem de que não precisemos buscar a suficiência do sentido. Tanto isso é verdade que, se uma pessoa insiste nos rodeios durante sua fala, seu discurso torna-se cansativo e nos aborrece. É que as lacunas de nossos discursos, os silêncios, aquilo que fica por ser enunciado, que se cala, são preenchidos com informações/ conhecimentos oriundos de nossos contextos sociocognitivos compartilhados. Esse contexto sociocognitivo encerra o conjunto de conhecimentos pressupostos (enciclopédico, sociointeracional, etc.) e partilhados entre os interactantes (no caso, escritor e leitor). As lacunas do discurso enunciado são supridas na base do compartilhamento, nunca total, mas parcial, dos contextos sociocognitivos dos interactantes.
Não devemos nos inquietar, contudo, uma vez que a linguagem não é transparente, os sentidos não são fechados. Não há completude de sentidos. E nós, escritores ou falantes, não estamos no controle total do que dizemos, ou melhor, dos significados que pretendemos produzir. Isso, para mim, é instigante, fascinante. Por isso, a linguagem, para muitos de nós, parece apresentar “armadilhas”. Às vezes, as palavras nos traem e surgem mal-entendidos. As interações sociais estão repletas deles. Quando usamos a língua, estamos, em todo momento, negociando significados: uns serão acolhidos; outros mais rejeitados, reelaborados, reinterpretados, criticados.
Eu, ao compor este texto, tenho um projeto de sentido e espero que o leitor o aceite. É possível que o leitor não o aceite completamente, discorde, complemente com suas ponderações, com seu discurso. Mas voltemos à minha proposta de leitura dos excertos de Pessoa.
Chama-me a atenção o fato de o poeta iniciar cada um dos parágrafos com um enunciado iniciado com “leio”. Essa reiteração confere coesão e contribui para a construção da coerência do texto. Note você, leitor, que os enunciados que se seguem em cada um dos parágrafos relacionam-se ao conteúdo do enunciado inicial com “leio”. As categorias semânticas base do primeiro parágrafo são ‘liberdade’ e ‘objetividade’. A leitura liberta o olhar egocêntrico, dando-lhe objetividade, um olhar que se lança ao exterior (ao mundo). Há leveza quando nos desprendemos desse olhar egocêntrico que só “vê” a aparência do “eu” (o eu não é real, é uma imagem de nós construída por nosso cérebro). O eu é um ilusão forjada pelo cérebro, é sentimento de si. O poeta, lendo e liberto, consegue ver claramente o mundo e, ao vê-lo com clareza, percebe que o mundo também ganha atributos humanos. O mundo se humaniza no olhar do poeta liberto. Note que isso é verdade quando percebemos a sequência de presopopeias (figura de linguagem que consiste na atribuição de sentimentos ou comportamentos humanos a coisas, objetos): “o sol que vê a todos”, “a lua que malha de sombras o chão quieto”, etc. Quero fazer ver aqui quão fascinante é a linguagem: ela nos permite construir realidade, modificar nossos modelos de mundo “consensuais”; ela nos permite recriar universos de sentidos, permite-nos experimentar o real de outras maneiras. É claro que o sol não pode ver, mas quando atribuímos um verbo como “ver” que designa uma experiência sensorial própria de seres animados a seres inanimados como o sol ou a lua, obtemos efeitos de sentido. A realidade não está mais “estática” aos olhos do autor; ao percebê-la, ela também o percebe; ao senti-la, ela também o sente, o abrange.
Eu poderia dizer, receando produzir um lugar-comum, que o ato de ler nos abre uma janela para o mundo, permitindo-nos experienciá-lo com mais objetividade, permitindo-nos vê-lo de modos variados. Ao ler, o mundo nos fala, nos revela a nós. O autor abandona seu ser disperso, portanto, desatento, espalhado, que outrora não apreendia as coisas com exatidão e clareza.
No segundo parágrafo, diz-nos o poeta que “lê como quem abdica”. É interessante ver que efeito de sentido tem a palavra “abdicar”, uma ação que associamos a autoridades régias. De fato, essa relação está clara no texto. Basta ver a ocorrência de “Rei”, “mantos régios”, “coroa”. Ao propor minha interpretação, quero fazer ver a você, leitor, como o processo de interpretação se desnuda; quero pôr a nu o próprio processo de construção do sentido que proponho. Penso – e não me equivoco (haverá de concordar comigo, espero) – que aquelas palavras, vale dizer, “Rei”, “mantos régios” e “coroa” estão relacionadas ao campo semântico de “Poder”. Elas evocam a ideia de Poder, de Governo Absoluto. Note o que escreve Pessoa:

E, como a coroa e o manto régios nunca são tão grandes como quando o Rei que parte os deixa no chão, deponho sobre os mosaicos das antecâmeras todos os meus triunfais do tédio e do sonho, e subo a escadaria com a única nobreza de ver.”

Quando o Rei (símbolo máximo do poder monárquico) abandona sua coroa e seu traje real (que são símbolos de seu poder), que lhes confere majestade, grandiosidade, onipotência diante dos seus súditos, quando os abandona no chão (lugar baixo), não os ostentando na cabeça (coroa) e no corpo (traje), tais símbolos deixam de representar o Poder do Rei. O Rei, ao deixá-los ao chão, destitui-se de Poder. Do mesmo modo, o autor se despe de seus triunfos, êxitos, de seus sucessos, todos alimentados no tédio e no sonho. Na subida, a única nobreza (que não é mais como a de um Rei) a de “contemplar” (ver). Aqui também há o componente semântico da liberdade, da libertação captado no primeiro parágrafo e que assumi como básico.
Vamos prestar atenção, agora, no último parágrafo, que se inicia com “Leio como quem passa”. Uma leitura que não se apega, que não se prende a princípios dogmáticos. A ocorrência de palavras como “sagrado”, “ungido” nos remete ao discurso religioso. As religiões buscam dar sentido à vida; um sentido fechado, acabado, inquestionável. Mas o autor reconhece que não há propósito no mundo. E ele o contempla sem pretender ter razão, sem pretender explicá-lo definitivamente. O sentido último do mundo não lhe interessa; o autor é indiferente a ele. Por isso, dá ao mendigo um punhado (esmola) de sua tristeza extrema (desolação). Ele compartilha, como transeunte, que não se detém num lugar, do sofrimento humano com aqueles cujas vozes não são ouvidas - vozes ignoradas dos indigentes transeuntes que habitam o mundo sem propósito.
Caberia vê-lo como um Cristo desmitificado, como um Cristo impotente diante do sofrimento humano? Um Cristo que precisou exilar-se, compartilhando apenas de sua miséria com os miseráveis? Deixo aqui este caminho interpretativo em aberto. No que me baseio para sugerir essa possibilidade interpretativa? Ora, justamente a passagem “me sinto sagrado transeunte, ungido peregrino”. Cristo peregrinou e fora ungido (ou batizado por João Batista). Conta-se a lenda que, naquele momento, teria pousado sobre ele o Espírito Santo. Evidentemente, se levarmos adiante essa possibilidade interpretativa, estaríamos diante de um Cristo desconstruído, não mais o Cristo bíblico, o personagem carismático forjado nas Escrituras; mas o Cristo humano (e apenas humano) transeunte, que passa indiferente, muito embora contemple, mas só; não age em favor do bem-estar de seus semelhantes. E sua única generosidade consiste em compartilhar sua miséria. Exilar-se, é, pois, afastar-se sendo indiferente ao sofrimento do mundo.
Voltemos ao significado de leitura, então. Que imagens de leitor nos oferece Pessoa? Quero dizer, aqui, que estou simplificando um pouco as coisas, quando falo em autor ou uso o nome de Pessoa. Claro é que, como já tive a oportunidade de discutir, o autor é uma abstração e o responsável pela unidade de seu discurso, mas ele se manifesta na forma de uma função: a função de sujeito. É o sujeito que diz de um determinado lugar social. O autor é, como ensina Maingueneau (2010: 30), “[sic.] a instância de estatuto historicamente variável que responde por um texto”. Mas deixemos de lado os detalhes teóricos, embora eu os julgue relevantes para o desenvolvimento da competência de leitura dos leitores. De fato, o leitor comum atribui uma voz unívoca e absoluta ao autor; dá a ele o poder de ser senhor do que diz. E a partir dele formula perguntas tais como “o que quis dizer?”, “o que isso significa?”, quando deveria levantar outras perguntas, tais como “para que ele o diz?” e “como o diz?”. O “para que” remete ao propósito, ao objetivo, à intenção de quem enuncia; o “como” ao modo como o que se diz é dito (o enunciador adere ao que diz, se distancia, assume atitudes de dúvida, certeza, insatisfação?, etc.) O “como” diz respeito a “como o enunciador se representa (encena) no discurso", no sentido mesmo teatral.
Que imagens de leitor nos oferece Pessoa? Ora, em síntese, em todos os parágrafos, retém-se a ideia de um leitor que se liberta, através da atividade de leitura. E essa liberdade experienciada, uma liberdade do ego, do olhar centrado em si mesmo, o faz olhar o mundo, o faz ouvir falar o mundo. Tanto a abdicação quanto o comportamento de transeunte envolvem um movimento de liberdade, ou de libertação. Não o prende, depois que ele lê. A leitura o faz compreender o mundo, compreender também as coisas sobre as quais ele não tem poder. A miséria é um fato reconhecido e compartilhado. O leitor, cidadão do mundo, é um leitor que se exila. Este exílio é também um refúgio. Pode a indiferença ser nosso refúgio? Digo, refúgio como estratagema para evitar a “desolação”?
Note você, leitor, como a leitura demanda sempre um trabalho intertextual. Um texto remete a outros textos. Por exemplo, agora me ocorreu que o filósofo Marcel Conche, em Análise do Amor, escrevera a respeito da busca pela felicidade. Enquanto folheava o seu livro à caça do trecho pertinente, reconhecia “coisas” que me passaram despercebidas. Li o livro há tempo; hoje, se eu retomar a leitura, ela não será a mesma, porque, desde então, acumulei mais conhecimentos, à luz dos quais produziria outros gestos interpretativos. Lamento não ter encontrado o trecho. E me custa agora continuar a procurá-lo. Conche nos fala de uma felicidade dependente de certa indiferença ao sofrimento alheio. Ele reconhece a importância da solidariedade, entenda bem! Ensina-nos que a vida é um movimento de criação de obstáculos à morte. Para ele, a morte nos abraça a todos; sentimo-nos filiados uns aos outros pelo sentimento de morte. Morreremos, é fato! Para  Conche,

“A morte está onipresente em nossa época. (...) A moral se inscreve nas estratégias de sobrevivência. (...) A obrigação moral significa que a morte diz respeito a todos nós, que é necessário enfrentá-la juntos, porque estamos vivos juntos. O egoísmo é uma insensatez porque cada um só tem sentido por via dos outros”.
(p. 47)

Para validar sua posição, com base em Heidegger, lembra Conche que o ser do homem é um ser-com os outros, um ser de relação com (os outros). Não me aprofundarei no conceito de “outros”, segundo Heidegger.
O que Conche, ao cabo, nos ensinará é que a felicidade (que ele distinguirá entre superficial e profunda) depende de que não nos afundemos nos problemas alheios. Se acumulamos as preocupações, os problemas dos outros, tomando-os como nossos também, o resultado será catastrófico e a felicidade impossível. Quiçá, me pareça válida a lição de Epíteto, para quem só podemos mudar nossas opiniões sobre as coisas, nossos sentimentos em relação a elas. Se uma dada ordem de coisas, após tê-lo avaliada, não puder ser alterada pelas nossas ações, se não dispomos de meios para tanto, se não nos cabe agir sobre ela, então não devemos buscar culpados e nos apoquentar. A felicidade depende de serenidade, prudência, capacidade de auto-exame e ponderação sobre as circunstâncias que nos parecem adversas. Nossas formas de ver as coisas, nossas opiniões sobre as situações do mundo, estas sim, segundo Epíteto, podem ser alteradas. Para Epíteto, só há felicidade se nossas formas de se relacionar com o mundo forem orientadas pela serenidade, pela calma e firmeza.
Fui longe demais, reconheço, e meus passos espirituais poderiam ser ainda mais largos, não duvide disso você que me lê. Não quero cansá-lo mais do que já o cansei.
Quero, apenas, compartilhar com você a minha satisfação ao compor este texto, ao chegar a esta altura com a débil segurança (mesmo que isso lhe pareça antitético) de que logrei sucesso. A bem da verdade não era esse meu projeto. Eu pretendia escrever sobre a neurose e sobre as noções de normalidade e anormalidade, que me foram sendo esclarecidas, à medida que lia um livro interessante, intitulado de O que é neurose? Encontrei aí passagens férteis para reflexões, instigantes mesmo. Veja, a título de exemplo, o seguinte passo:

As pessoas são únicas, expressões singulares da natureza, e de uma complexidade psíquica profunda, sendo nossa ignorância quanto a elas muito grande.
Muitas vezes são os homens retos e puros, espontâneos e autênticos, corajosos, criativos e rebeldes que são considerados “anormais” por uma sociedade que, no fundo, teme as mudanças que eles possam provocar”.

A psicanálise põe em derrocada todas as nossas pretensões à normalidade, anunciando que todos somos neuróticos em alguma medida. Todos lançamos mão de certo número de mecanismos de defesa, em face das frustrações e situações que nos ferem, nos injuriam. Os neuróticos adoecidos abusam de tais mecanismos e temem mudanças. Neles, as experiências dolorosas, mal vividas e compreendidas não são verbalizadas; ficam acumuladas em silêncio. Também os neuróticos tendem a agarrar-se às suas convicções, assumem-se como donos da verdade, não admitindo serem contrariados. Não conseguem conviver com a diversidade (de opiniões, de visões de mundo, crenças, comportamentos, hábitos). Tudo isso me levaria á concepção de Freud de religião como uma “neurose coletiva”. Ah! Mas aí, certamente, eu iria muito longe... Falta-me pavimentação nos caminhos que se me encurtam, agora, ao espírito.









domingo, 4 de março de 2012

"Escrevendo, vou-me reconhecendo" (BAR)

                                    

                 Labor

Tamanha em mim é a vontade de escrever, que, mesmo desamparado da inspiração, acordo na alma as palavras preguiçosas. Custa-me escrever mais uma linha, mas, ainda assim, prossigo escrevendo. Escrevo apenas para preencher espaços com palavras descompassadas. Escrevo porque tenho necessidade. Porque preciso pôr o dentro no exterior, de modo que quem me lê possa ler-me por dentro. Só me conhecem essencialmente quem me lê, não como quem lê um jornal para informar-se, mas como quem lê poesia (emocionado) e se detém a cogitar da vida sem ter pensamentos.
Leia-me desapegado de preconceitos. Leia-me esvaziado de si e cheio de mim. Minha escrita exige a plenitude do Ser que nos escapa e nos comprime a alma. Encha-a de uma Angústia que reúne a todos nós num mesmo Mistério. Leia-me cheio de Vida ou de medo da morte.
Escrevo para ser mais, para existir mais. As palavras me absorvem, me devoram, me envolvem, me comovem. Escrevo porque sou enamorado da linguagem. Escrevo porque o silêncio me aborrece, me exclui. Escrevo para encontrar-me nos labirintos de minhas inquietações, que pesam. Escrevo porque a vida é frágil; o amor é frágil; o sofrimento, inefável; e o sentimento de mim que me legou a vida é forte, visceral e cálido.

sábado, 3 de março de 2012

"É humano querer o que nos é preciso, e é humano desejar o que não nos é preciso, mas é para nós desejável." (Fernando Pessoa)


Horas Murchas


O mal todo do romantismo é a confusão entre o que nos é preciso e o que desejamos. Todos nós precisamos das coisas indispensáveis à vida, à sua conservação e ao seu continuamento, todos nós desejamos uma vida mais perfeita, uma felicidade completa, a realidade dos sonhos (...)
É humano querer o que nos é preciso, e é humano desejar o que não nos é preciso, mas é para nós desejável. O que é doença é desejar com igual intensidade o que é preciso e o que é desejável, e sofrer por não ser perfeito como se se sofresse por não ter pão. O mal romântico é este: é querer a lua como se houvesse maneira de a obter”

(Livro do Desassossego, p. 83)

Pensamentos  vigorosos e grávidos de inquietude tomaram formas robustas em meu espírito; num átimo apenas, parecia-me possível apreendê-los para discipliná-los ao gosto de meu senso crítico-reflexivo. No entanto, se me abateu sobre o espírito um desânimo que me tornou espinhosa a tarefa. Quiçá, agora que começo a escrever estas linhas, o texto que se desnuda ao gesto interpretativo do leitor possa parecer-lhe amputado. As palavras antes vivas de uma energia sanguínea e fervorosas na alma quiçá lhe pareçam esquálidas neste papel virtual.
Se, por ventura, os enunciados subsequentes vierem a animar o leitor, peço-lhe que não desista da leitura. É justamente o desencanto e o desânimo que alicerçam o grito amordaçado, portanto, inaudito, destas palavras. Há, como observa Pessoa, o que é indispensável à nossa vida e o que é desejável, sem que seja necessário. Todavia, somos seres de desejo. É humano desejar aquilo que nos é dispensável, aquilo de que não temos necessidade. A psicanálise ensina-nos, porém, que nós, seres humanos, não sabemos, na verdade, o que desejamos. Estamos sempre insatisfeitos com aquilo que conseguimos ser. O produto de nossos desejos é sempre visto como incompleto, insatisfatório, ineficiente. É o que nos ensina Fábio Herrmann, em O que é psicanálise?:

“(...) nós somos aquilo que desejamos ser. É fácil entender, já que desejo é o nome  daquilo que faz com que a gente pense, faça, seja. Ele parece vir de dentro da alma, mas é criado na vida social e biológica, de sorte que se pode dizer até que “somos desejados” desta ou daquela maneira. Somos desejados ativos ou entediados, cruéis ou compassivos, apavorados ou distraídos. Aliás, a humanidade deseja-se como é; e dizia, constrói-se e constrói o seu mundo de acordo com tal desejo. Só que não acredita que, de fato, se tenha desejado como é. Assim, tendo transformado o mundo a fim de lhe servir de casa [cultura], acha que não está ainda bem feito, que sobram muitas coisas desumanas a humanizar. O céu é muito alto, o tempo é longo demais, as guerras muito frequentes. Ora, se o tempo e o espaço são demais infinitos, é que os homens têm em si uma aspiração em desacordo com seu tamanho e duração de vida. Quanto às guerras, quem as faz?
(p. 55)

Logo o leitor será conduzido ao desencanto que me alimenta estas palavras. Vale, por ora, referir outros trechos que nos ajudam a aclarar nossa consciência e assentar nossos pensamentos em terrenos sólidos. Leiam-se os trechos abaixo, colhidos de Preleções Sobre a Essência da Religião, de Ludwig Feuerbach. As citações constituem palavras do tradutor sobre as teses de Feuerbach, ainda na seção introdutória da obra. Leiamos com atenção os trechos, o primeiro dos quais mais longo, pois que referido na íntegra:

“A religião é, pois, a fase infantil da humanidade. Um dia o homem descobrirá que ele adorou sua própria essência, que criou em sua fantasia um ser semelhante a si, mas infinitamente mais perfeito, que está sempre pronto para lhe oferecer consolo no sofrimento e proteção nos momentos mais difíceis e angustiantes da existência. A religião será então substituída pela cultura, pela ética, pelo humanismo, porque só a cultura pode unir os homens, não a religião. A fé, a religião, separa, cria cisões entre os homens devido à rivalidade entre as diversas seitas. Não é ateu no verdadeiro sentido, diz Feuerbach, aquele que nega o sujeito, e sim o que nega os predicados do sujeito. Em outras palavras: o verdadeiro ateu não é aquele que diz “Deus não existe”, e sim o que diz “a bondade não existe, a justiça não existe, a misericórdia não existe”, etc., porque aqui surgiria o problema (...) concernente ao que seria mais importante: Deus ou suas qualidades? Ou ainda: devemos ser bons porque Deus é bom ou já não seria o próprio Deus bom porque é bom ser bom? Se o mais importante é então ser bom, podemos abraçar a bondade independentemente de Deus, mas se o mais importante é seguirmos a Deus, poderemos adorá-lo e cultuá-lo independentemente da bondade, o que a história mostra em todas as suas páginas através das crueldades praticadas pelo fanatismo religioso”.

(p. 10)

Feuerbach nos ensinará que a essência humana foi elevada e representada como Deus, para assim ser adorada. Divinizou-se o sentimento, a afetividade. Deus é mera abstração. Acompanhemos abaixo o raciocínio do autor, nas palavras do editor:

“Feuerbach concluiu então: não foi Deus que se fez carne para salvar o homem, porque antes de Deus se rebaixar ao homem foi necessária a elevação da essência humana até Deus, ou seja, foi necessária a divinização da afetividade, do sentimento. Deus torna-se, assim, um reservatório de todos os valores positivos aos olhos do ser humano, mesmo que sejam em si contraditórios. Por exemplo: Deus é infinitamente bom e justo, mas o homem não cogita que quem é infinitamente bom nem sempre pode ser justo e que, inversamente, quem é justo nem sempre pode ser bom. Deus, conclui então, é um conjunto de infinitos atributos exatamente porque não é nenhum, porque é uma mera abstração. Por isso é dito ser inefável, incognoscível, indefinível, inesgotável.”

(p. 8)

Mais adiante, encontramos outro trecho que vem confirmar uma intuição que tive a oportunidade de expressar em palavras alhures, neste espaço. Trata-se de um argumento poderoso, já que atinge o coração da fé. A conclusão a que chegamos é que, para crermos em Deus, ou para termos fé, precisamos ser egoístas, egocêntricos e soberbos. Este trecho busca desenvolver a origem da religião que, para o filósofo alemão, se encontra no medo. O medo produz no homem a necessidade da religião ou de Deus.

“O homem se sente condicionado, dependente; por isso teme pela sua vida, pela sua saúde, pela sua sorte, pelos seus interesses, sejam eles os mais quotidianos e superficiais. Daí poder a religião ser explicada também como um fruto do egoísmo. O homem chega a implorar aos deuses, antes de uma batalha, pela destruição dos seus inimigos. Muitas vezes não importa o que interessa a outros homens, mas sim o que interessa a quem implora, seja individual ou coletivamente. Assim, o homem rende graças por se sentir salvo ou curado, mas nesse momento não se lembra da justiça, pois não se lembra que outros homens não tiveram o mesmo privilégio e foram massacrados pelos mais estúpidos acidentes. Donde concluir Feuerbach que esta chamada Providência Divina ou Predestinação, que distribui felicidade e desgraça indistintamente para bons e maus, ricos e pobres, não possui uma só característica que a pudesse distinguir de “sua majestade o acaso”.
(p. 9)

Alhures, esta mesma ideia de egoísmo relacionada à fé ocorreu-me. Aquele que roga para que seja curado de câncer terá de ignorar que o vizinho ao lado, ou milhares de pessoas, morreu de câncer. Quem dá graças a Deus por ter saído ileso de um acidente, terá de ignorar que uma família morreu num acidente em outro lugar. Quem agradece a Deus o alimento que tem sobre a mesa, antes de degustá-lo, deverá ignorar que milhões de pessoas no mundo passam fome.
A sensatez de Feuerbach, seu espírito vivo e ácido, merece ser notada nas seguintes palavras que lhe são imputadas:



“Construo minhas ideias a partir das coisas e não procuro, como a maioria, ver as coisas através das ideias preconcebidas e impostas. E aos críticos respondia: Se for o caso, prefiro ser um demônio aliado à verdade do que um anjo aliado à mentira”.
(p. 11)


Se ao leitor pareceu que eu pretendo reunir argumentos em defesa do ateísmo, está enganado. Conquanto eu acredite que poderia eu escrever um livro sobre as vantagens em adotar o ateísmo, que poderia eu reunir nele uma enxurrada de críticas às religiões organizadas, especialmente à judaico-cristã, cuido não ser um empreendimento vantajoso, visto que o público a quem ele deveria atingir, possivelmente, o ignoraria por completo. Mais vale empregar esforços em empreendimentos que possam surtir efeitos desejáveis em curto prazo. Lamento, contudo, que livros como o de Bart D. Ehrman, como Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?, O que Jesus disse? O que Jesus não disse?, Os Evangelhos Perdidos, O Problema com Deus sejam completamente ignorados por muitos religiosos e apologistas da religião. Lamento que lhes sejam negados os conhecimentos que se acham nestes livros. Lamento que os dirigentes de suas formas de pensar, agir e compreender o mundo (pastores, padres, missionários...) lhes ocultem as contradições das Escrituras, a história de falsificações e disputas em torno dos Evangelhos. Lamento que ainda insistam em repisar clichês, tais como “religião não se discute”, coisa que aprenderam no interior de suas igrejas, já que posta seriamente em discussão a religião se esfacela, mostra sua nudez absurda. O sagrado só pode ser preservado, se intocável. Só há sagrado onde há proibição e veneração. Mas os objetos não são sagrados em si, mas assumem o valor de sagrado, pela ação simbólica dos homens. Isso me parece tão evidente, tão claro! Por que não o é para a grande maioria das pessoas no mundo?
Escrevo, no dia em que são trazidas à tona informações sobre as 32 pessoas que morreram na passagem de tornados no meio-oeste e sul dos Estados Unidos. Catástrofes que acontecem todo ano e que, surpreendentemente, não abalam a fé dos religiosos. Sequer parecem inquietados com o fato de que um Deus bom não poderia criar uma natureza tão destrutiva, tão nociva à vida dos seres que o adoram. A Natureza dá-nos em todo momento um tapa na cara, para que acordemos de nosso delírio. Mas ele é forte, penetrante, está arraigado na nossa consciência que, contaminada pela ideologia, de que é expressão, por excelência, a religião, inverteu a relação entre o céu e a terra. Se 32 pessoas morrem por causa de tornados, e se tornados são fenômenos naturais (da Natureza, supostamente criada por um Deus que é bom e amor), como eu poderia, ao menos, não desconfiar de que não há Deus nenhum a zelar por nós? As contradições a que se refere Feuerbach, que são engendradas pela ideia de Deus, sempre que a confrontamos com o modo como o mundo é (e não como gostaríamos, desejaríamos que fosse) saltam aos olhos:

1a  proposição: Deus é o criador de tudo que existe (da Natureza);
2a proposição: Deus é bom e justo
3a proposição: Deus é todo-poderoso

Vejamos o que realmente acontece: tornados matam 32 pessoas nos Estados Unidos; epidemias dizimam populações, etc. Se confrontadas com as evidências, as três proposições são falsas. A terceira proposição é facilmente refutada pela observação de que Deus não tem poder nenhum sobre a fúria da natureza. Se ele criou-a, não tem sobre ela qualquer controle. Nem sobre os microorganismos que matam milhares de pessoas.
Não me alongarei nesse tema, já que, como disse, não pretendo deslindar os embaraços feitos pela penetração das ideias religiosas nas formas como milhares de pessoas percebem/ compreendem o mundo.
Falava eu de empreendimentos que parecem merecer de nós algum esforço. Como pesquisador e professor, na minha agenda, figura o combate a outra forma de ignorância coletiva: a que engendra o preconceito linguístico. Outro fenômeno sócio-cultural tão característico de nossa sociedade que é disseminado em quase todos os setores e ignorado por quase todos os agentes sociais. Coloco-o no mesmo nível de gravidade, visto que produz exclusões, reforça as desigualdades.
A mim, lhe confesso, leitor, cansa ouvir coisas do tipo “Fulano não sabe falar português”, “Você só fala errado”, etc. Nesse domínio, também opera uma ideologia. As pessoas acreditam que há formas corretas e erradas em si mesmas de usar a língua. Acreditam que as expressões linguísticas são certas e erradas, como se tais valores independessem de quem as usam. E somente com muitas aulas de linguística, particularmente, de sociolinguística, podem, ao menos, reconhecer que ‘certo’ e ‘errado’ resultam de valorações sociais feitas pelos segmentos dominantes, ou seja, pela comunidade de falantes que gozam de poder econômico, político e cultural. A ideologia do erro em matéria de linguagem tem uma longa tradição, que remonta ao século V a.C.
Gostaria de que as pessoas fossem educadas, instruídas para que deixassem de escarnecer do modo de falar de seus semelhantes. Cumpre ao professor e à escola educar sociolinguísticamente nossos estudantes, para que compreendam que, por detrás da censura, dos comentários jocosos feitos sobre a fala do outro, existe o preconceito linguístico e a ideologia do “erro” a sustentá-lo. Se fosse trazido à consciência da grande maioria das pessoas que os usos considerados “errados” são aqueles feitos pelos membros das classes dominadas, pelos excluídos social, política e economicamente, ao passo que os usos considerados “corretos” são aqueles feitos pelos membros das classes dominantes, mais favorecidas social, política e economicamente, compreenderiam essas pessoas que o que determina a discriminação dos usos em certos e errados (que são tão só diferenças linguísticas!) é o poder e que tal discriminação vem reforçar as desigualdades, a exclusão nos domínios social, político e cultural. Quando usamos a língua, não custa insistir, podemos nos valer dela como um poderoso instrumento de discriminação social. Pelo uso da língua, demarcamos as fronteiras sócio-culturais entre nós e a quem nos dirigimos. Mostramos não pertencermos à mesma classe social do nosso enunciador, classe social que julgamos tão atrasada quanto “errados” são seus comportamentos linguísticos. Marcos Bagno, quiçá o mais inveterado combatente do preconceito linguístico em nosso país, bem escreve sobre o compromisso sócio-político que deve assumir todo professor de português.À página 81, em Nada na Língua é por acaso, escreverá:

“Numa sociedade que quer ser verdadeiramente democrática, é preciso conhecer, descrever, denunciar e combater os componentes do senso comum que funcionam como repressores de discriminação social, de humilhação, de opressão psicológica e até mesmo de violência física”.


Só a morte me apartará dos livros. A busca pelo conhecimento, em qualquer domínio que ele me seja possível, de acordo, contudo, com as minhas inclinações, só será interrompida quando a luz de meus olhos se apagar. Por vezes, recairá sobre mim o mesmo desalento que me faz buscar novos caminhos profissionais, que me faz dar as costas para a cultura do efêmero, do entretenimento, da alienação. Deixo a lua onde ela deve ficar; não aspiro mais do que àquilo que o meu breve tempo de existência me permite alcançar. E em face de uma audiência inaudível, contento-me em ser eu – um inconformado conformado a mim mesmo.









sexta-feira, 2 de março de 2012

"Mergulhadas no silêncio as palavras tornam-me cantante" (BAR)

                      
 
                               
                           Auto-exame preliminar

No meu cotidiano, vou acumulando palavras em minha alma; palavras que sufoco, silencio, para não me enfadar demais, dando-lhes o direito de gritar. Calo-as para que eu possa conviver em meios sociais com que não me identifico. Sinto-me quase sempre deslocado. Embora me esforce para entabular as conversas triviais e adequadas à ocasião, prefiro o silêncio quando me dou conta de que as bocas que se animam a falar vomitam lugares-comuns. Prefiro o silêncio quando os temas preferidos dos encontros são o Big Brother ou relacionamentos amorosos, em geral, tratados na base dos padrões ideológicos predominantes.
Prefiro o silêncio, deixando-me absorto, a contrapor-me sempre que me parece necessário. Não sigo as tendências e não permito que meus pensamentos se conformem à maneira de pensar predominante. E, quando ouso problematizar, percebo que os que estão em meu derredor não conseguem acompanhar-me. Alguns se cansam; evitam aprofundamentos. Preferem manter-se à superfície dos temas culturalmente relevantes; limitam-se a reproduzir o senso-comum. Ignoram o que nos ensina a filosofia: a atitude filosófica nos permite não aceitar sem examinar as opiniões provenientes do senso-comum de nossa sociedade.
O que distingue, basicamente, um filósofo do homem comum é que a este último satisfaz o viver imerso na realidade, conforme as condições sócio-culturais; ao contrário, o filósofo não apenas vive a realidade, mas busca examiná-la, questioná-la para compreendê-la. Muitos aceitam tudo que se lhes dizem sem ponderar; o filósofo é aquele que suspeita, não aceita de antemão as ideias preconcebidas, as opiniões correntes e os preconceitos de sua sociedade.
A filosofia foi, para mim, um trampolim para a adoção do ateísmo. E também instrumentalizou-me para a construção de uma consciência crítico-reflexiva, uma consciência que não se acomoda às diretrizes sociais, aos sistemas de ideias que não fazem senão nos moldar, nos adaptar, nos conformar ao status quo.
Meus alunos me perguntavam como poderiam mudar a maneira de trabalhar língua portuguesa na escola em face das condições sócio-culturais que insistem em reforçar a ideologia do “erro” em língua. A questão é complexa e não se pode dar a ela uma resposta simples. Mas o que lhes ensinava, nessas ocasiões, é que precisariam assumir o papel de agentes de educação. Precisariam adotar uma prática pedagógica que lhes permitisse ir na contramão. O domínio da sala de aula é jurisdição do professor e, exibindo este uma sólida formação, estará apto a resistir às condições pouco favoráveis. Ele engendrará novas condições.
Escusa dizer que nos espaços de relacionamentos virtuais da internet grassam postagens eivadas de lugares-comuns, ditos agastados, ideologias, opiniões rasas típicas do senso-comum. Vejamos alguns exemplos:




"Não ame pela beleza, pois um dia ela acaba. Não ame por admiração, pois um dia você se decepciona. Ame apenas, pois o tempo nunca pode acabar com um amor sem explicação." (anônimo)

“A vida não é perfeita, não é como um conto de fadas onde existe um "e viveram felizes para sempre". A vida é tal e qual como ta deram. A perfeição está em vivermos cada momento como se fosse perfeito *
(anônimo)


O leitor poderia contribuir com mais exemplos; decerto, eles são fartos. Não vou me ocupar em examinar essas postagens colhidas do facebook
Veja-se, a título de ilustração, o efeito causado pela doutrinação religiosa. As religiões nos enraízam  crenças e opiniões, moldam nossa consciência de mundo, habituam-nos a pensar e compreender o mundo segundo o seu sistema de dogmas e ideias. Elas adestram nosso pensamento, tornando-nos incapazes de pensar além da sedimentação de crenças com que nossa consciência foi modelada. Ir na contramão desse engessamento de consciências perpetrado pelas religiões pode-nos acarretar alguns desafetos, pode pôr-nos à margem de certas convivências.
Também se ousamos avaliar negativamente a influência de programas reality shows como o Big Brother na formação de uma consciência de cidadania, corremos o risco de atrair para nós alguns resmungos de desagrado. A grande maioria das pessoas que se deixam estar diante da tela de um televisor não se preocupa em lançar um olhar crítico sobre o que a televisão lhes oferece. No contexto pós-moderno, torna-se difícil ao homem comum compreender  que os meios de comunicação, como a televisão, são produtores de representações ou imagens ideológicas, justamente porque, segundo Claude Lefort, a ideologia contemporânea é uma ideologia invisível, aparece como não-localizada, não-determinável, embora, se encontre, no caso, nos meios de comunicação de massa. O discurso que aí se produz aparece como anônimo, como impessoal, totalizando-se em o discurso do social. A ideologia disseminada pela televisão é uma ideologia que homogeneíza, massifica. A televisão torna-se um poderoso veículo de espetacularização da realidade social.
Os livros exercem sobre mim um fascínio. A leitura me engendra férteis inquietações. Deleito-me quando, por ventura, minhas especulações se confirmam na leitura de um trecho, nas considerações de um grande estudioso. Alegro-me quando, ao me deparar com um trecho como o seguinte, colhido de Conferências sobre leitura (2005), apercebo-me de que todo esforço é válido para incentivar a prática de leitura:

“(...) o ato de ler, se criticamente feito por grandes parcelas da população, significa mais poder aos cidadãos: maior capacidade para enxergar as contradições sociais, melhores fundamentos na hora de tomar decisões (até mesmo decisão na hora de votar nas eleições), competências mais apuradas para chegar às raízes da injustiça e desigualdade, etc.”



Há sempre um livro entre mim e o outro. (BAR)


quinta-feira, 1 de março de 2012

"O meu entusiasmo para a vida provém de minha falta de vontade para me conformar" (BAR)



Na contramão


“(...) há três tipos de autores: em primeiro lugar, aqueles que escrevem sem pensar. Escrevem a partir da memória, de reminiscências, ou diretamente a partir de livros alheios. Essa classe é mais numerosa. Em primeiro lugar, há os que pensam enquanto escrevem. Eles pensam justamente para escrever. São bastante numerosos. Em terceiro lugar, há os que pensaram antes de se pôr a escrever. Escrevem apenas porque pensaram. Esses são raros”.

(Schopenhauer, A arte de escrever, p. 57)

Escrever é uma forma de arte? Escrever é como o artesanato: demanda laborioso trabalho espiritual. Se comparada à arte, a escrita é também criação, reconstrução da realidade, também demanda uma técnica e se produz com um estilo. Escrever me é um desafio em que me envolvo habitualmente. E não pensem que eu não submeta meu texto a releituras revisionais. A peneira do intelecto é mais eficiente quando relemos nossos textos. Há sempre um pensamento extraviado da configuração semântica pretendida. Há sempre um enunciado mal arranjado na estrutura da sintaxe. Há sempre uma palavra que não está adequada, que destoa da rede conceitual materializada no texto.
Confesso que eu estaria mais propenso a afirmar-me como pertencente ao terceiro grupo de autores, a que se refere Schopenhauer. Mas o limite entre este grupo e o segundo não me parece ser tão marcado assim. Se há um limite, ele é tênue. Muitos pensamentos dignos de nota trafegam em minha alma, muitas vezes ao dia; mas seus movimentos são difusos e suas manifestações carecem de densidade; não raro, se me afiguram como uma brisa roçando a pele; são leves e fugazes. Quase não os sinto. E para pensar é preciso antes sentir. Pessoa nos ensinara: pensar é sentir. Talvez, não precisemos sentir previamente ao pensar; tem razão Pessoa: pensar é sentir, o que significa dizer que o pensamento talvez seja o sentimento capturado em palavras, corporificado verbalmente. O pensamento é um corpo verbal de sentimento. Isso explica por que os pensamentos que derramo sobre o papel são carregados de emoção, de sentimento. Há neles uma carga afetiva.
Certa vez pareceu a alguns que eu enunciava uma obviedade, ao ter declarado “as palavras são grávidas de sentimento”. Salvo o efeito literário ou poético deste enunciado, houve quem o julgasse lugar-comum. Mas um olhar mais aguçado mostra que tal não é o caso. Claro está que o enunciado aqui reproduzido foi apartado de seu contexto; e sabemos que nada na língua significa sem estar ancorado num contexto. O uso da língua é uso social contextualizado. Na ocasião, a frase figurava num debate cuja questão consistia em querer saber se as palavras valiam mais ou menos que os sentimentos. Embora isso não tenha feito muito sentido para mim, manifestei o que pensava.
Podemos escrever para adestrar os pensamentos. Podemos escrever para conferir-lhes forma, coesão, exatidão, clareza. Na mente, nem sempre eles são límpidos, fortes e coesos. Não raro, estão embaralhados, fragmentados, desencontrados; são magros, pouco encorpados.. Escrever, nesse sentido, é uma atividade que nos permite arranjá-los segundo as coerções de uma modalidade. Quiçá, não devêssemos falar em coerções da escrita, já que isso tornaria o escrever uma atividade castradora da liberdade espiritual. Longe disso: a escrita pode ser livre, subversiva. Pode romper com certos cânones do academicismo. E, de fato, não há limites rigorosos entre fala e escrita, a despeito do que comumente pensamos.
Um assunto puxa o outro, conforme vê o leitor. E este texto é escrito à medida que os pensamentos me fluem. Sinto, e isso me basta!
Nasci para viver na contramão. E haveria outra forma de melhor expressar isso senão pelo exercício do magistério? E não vão na contramão os educadores (professores, pedagogos... alguns pais)? Não cabe a nós resistir, malgrado existirem condições adversas, malgrado a existência de ideologias do desencanto, do pessimismo? Lendo o livro Política para não ser idiota, deparei com uma definição de utopia que me deixou, momentaneamente, com um assombro deleitoso: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”. O enunciado é auto-explicativo. Escusa comentá-lo. Mesmo sendo o paraíso do imaginário de idealistas, a utopia nunca poderá deixar o horizonte humano. E tal como o horizonte, que não traça rigorosamente uma divisão entre céu e terra, a utopia não demarca nitidamente a separação entre o irrealizável e o realizável. Dentro de um projeto, há possibilidades de realização que excluem outras. Há sempre, contudo, uma parcela realizável e realizada. A teoria de Marx pode ser considerada como utópica; seu comunismo deveria favorecer a realização plena dos potenciais humanos, a começar pelo trabalho, que deveria ser um exercício de liberdade. A história, contudo, mostrou-nos um lado obscuro e tenebroso do comunismo que Marx não podia vislumbrar. Ele não vivera o suficiente para assistir ao sequestro de sua teoria por ditadores ambiciosos e implacáveis. O fracasso do comunismo não implica acreditar que o capitalismo é ainda o melhor sistema econômico. Talvez, consoante me disse uma vez uma amiga professora de História, o desejável fosse uma combinação do capitalismo com o comunismo. É possível que estejamos aqui diante de uma utopia, mas lembremos que é ela que nos permite caminhar...
Doravante, intentando pôr um ponto final neste texto, sem pretender que ele tenha alcançado o acabamento do sentido (os sentidos estão sempre abertos), tomo para ancoragem de minhas observações posteriores parte do último comentário de minha querida amiga Zélia, fiel leitora e enunciadora perspicaz:

Infelizmente há os aproveitadores que administram a miséria mental e espiritual dos fiéis através da sua angustia existencial. É preciso um longo processo para remover o ser humano de sua opinião cega, e sinceramente eu não acredito que isso um dia aconteça! Pois a maioria não gosta de refletir, são pessoas tão arraigadas em suas crenças, e é tão cômodo viver no conforto do senso-comum sem questionar.”

(grifo meu)

Achei a ideia de “administrar a miséria mental” uma imagem muito pertinente, pois, afinal, é disso mesmo que se trata: quando entramos para uma religião ou quando uma religião entra em nós, delegamos aos agentes da doutrinação (pastores, padres, pais, e correligionários) a administração de nossas formas de perceber o mundo, de pensá-lo e discuti-lo. Entendo “perceber” como interpretar. É na percepção que as sensações se organizam e ganham sentido. A administração se dá pela força penetrante da ideologia religiosa, que se instaura na inversão base de todas as outras formas de pensamento ilusório que configuram a doutrina: Deus criou os homens à sua imagem e semelhança. Não é difícil mostrar que esse enunciado inverte a relação entre a realidade e a ideia. Não é difícil mostrar que o real está de ponta a cabeça. É justamente o contrário. Se desfizéssemos essa inversão feita pela ideologia, as coisas ficariam mais claras ao espírito e poderíamos ver o mundo sem a bruma que nos fez recair sobre a consciência a religião. Quando assumimos que são os homens que produziram seus deuses (incluindo aqui o Deus judaico-cristão), então compreendemos, entre outras coisas, por que o número de deuses é proporcional à quantidade de culturas. Deuses são entidades culturais, portanto, produtos simbólicos; portanto, produtos da imaginação humana. Convém referir um trecho elucidativo, em O que é imaginário? (1997):

“Através do imaginário, o homem, como define H. Bérgson, “é uma máquina de produção de deuses”. A isso acrescentamos que o homem em si mesmo é fantástico, à medida que manifesta a faculdade humana de transcender o humano. Ao construir os deuses, o homem toma como referência uma realidade dada que caleidoscopicamente reordena, reestrutura e recria. Nesse processo, o imaginário tem como referência o real, dando-lhe outros sentidos fornecidos pelo material simbólico que utiliza”.

(p. 37)

O Deus de Jesus venceu os deuses pagãos; mas esse Deus tem de conviver com Shiva (terceiro deus da trindade hindu, a quem se atribui um poder destrutivo e fecundante), mas também com  Brahma, Oxalá, Iemanjá, Oxóssi, Oxumaré e tantas outras divindades. Seriam todas estas produto de uma ilusão ou apenas o Deus judaico-cristão é o deus real e verdadeiro? Ou será mais sensato dizermos que só pensamos sê-lo porque a cultura ocidental formou-se a partir dos valores, ideias e visão de mundo da cultura judaico-cristã (não ignorando o outro afluente que é a cultura greco-latina) e por que formados nessa cultura podemos assim pensar? A máxima segundo a qual somos produtos de nossa cultura é aqui evidente. Pensamos o que pensamos porque somos antes de tudo indivíduos que compartilham um mesmo código cultural, um mesmo sistema de interpretação e compreensão de mundo. Esse sistema deve trabalhar a dialética entre homogeneidade e diversidade, convergência e divergência.
Permita-me alongar-me um pouco mais. Sabe-se que mito e religião são indissociáveis. Mito é um ingrediente indispensável à religião, visto que religião se constrói na base de histórias sobre a criação do mundo, a influência de deuses, sua natureza, sua relação com os homens, etc. É interessante descobrir que o mito da Arca de Noé, que retrata um dilúvio provocado pela ira de Deus fundiu-se com outras tradições indígenas. Na Austrália, a oeste, os aborígenes acreditam que o que sobrou da arca pode ser encontrado ao sul do rio Fitzroy. No Peru, os incas acreditavam que o deus Viracocha, não satisfeito ao tentar pela primeira vez criar os homens, lançou sobre eles um dilúvio, transformando-os em pedra. Na Grécia Antiga, acreditava-se que Zeus mandou um dilúvio sobre os homens, para puni-los em virtude da arrogância deles. O Egito antigo também possuía seus deuses: Rá, deus-sol e criador; Chu, deus do ar úmido; Geb, deus da Terra, entre outros. Também os egípcios tinham seu mito da criação e sua visão de mundo era plasmada numa mitologia demasiado complexa, em que a luta entre caos e ordem, criação e destruição constituía tema comum às suas histórias.
Devo dizer a possíveis desavisados – embora a você, amiga, não seja necessária essa advertência – que religiões são temas interessantíssimos e que merecem ser estudados. Mitos contam muito sobre nós, dizem as nossas verdades. Contam a nós como nos relacionamos com o mundo, como compreendemos a existência, que insiste em resvalar no absurdo, a despeito de insistirmos em criar deuses que nos propiciem explicações simples e fáceis para o mistério que nos abraça. Mas estes mesmos deuses são expressão de quem somos. Em alguma medida, eles representam o humano em nós. São nossos espelhos, imagens de nós que projetamos sobre a Angústia. Insisto, para que não sobre qualquer dúvida, na importância do mito como um guia, já que nos orienta em nossas relações com o mundo. No mundo antigo, ele ajudava as pessoas a encontrar sentido para as suas vidas. Ele é um elemento atuante na estrutura de nossas mentes, de sorte que se tornara ponto de partida para a psicologia. Ele esclareceu mecanismos misteriosos da mente humana e Freud e Jung reconheceram nele um fértil caminho para os estudos da mente.
Quando lemos um pouco sobre religiões, sobre suas entidades, sobre seu sistema de ideias e crenças, sobre sua simbologia, então devemos concluir que o Deus pessoal e único em que milhões de pessoas acreditam é apenas a versão de divindade moldada por um imaginário cultural específico. Ou todos os deuses referidos aqui são verdadeiros ou nenhum deles o é. Por que seria o Deus judaico-cristão o verdadeiro? Não temos critérios para estabelecer isso, a menos que recorramos à autoridade. De fato, é o que sucede. O cristianismo ganhou força, desde seu surgimento como religião organizada, pela proficiência de uma autoridade, chamada Constantino. E ainda hoje entre nós sua força e sua legitimidade são garantidas pela autoridade (do Papa, dos arcebispos, dos bispos, dos padres, dos diáconos, dos pastores...). É notável que, em nossa era, gozemos de condições favoráveis à negação de sistemas autoritários. Uma autoridade que vise a legitimar seu poder contrariamente à vontade de uma maioria tenderá a ser sobrepujado.  Temos assistido ao declínio de governos ditatoriais como na Líbia. Se a autoridade não é conferida por um consenso e se quem a assume não a exerce visando ao bem comum criará as condições para que dela destituído. Claro que isso depende de uma tomada de consciência pelas classes oprimidas. Felizmente, é o que temos assistido em países como a Líbia. A democracia não se faz da noite para o dia, é claro, mas a luta vale a pena.
Mas eu falava de religiões e queria encerrar dizendo, amiga, que é necessário que qualquer grupo de oposição ao status quo venha a compreender de que forma o aparato ideológico molda a consciência de indivíduos que aderem a determinados sistemas de crenças. No caso das religiões, vale procurar entender como a ideologia é capaz de legitimar um conjunto de crenças, universalizá-las, tornando-as inquestionáveis. O seguinte excerto colhido da obra O que é ideologia, de Marilena Chauí, dá-nos um ponto de apoio, serve-nos como uma âncora para que desenvolvamos nossas reflexões. Fica aqui um convite a leitores ateus ou simplesmente impregnados do espírito filosófico que venham a ler este texto. Tendo sempre em conta que a ideologia está a serviço do poder e que através dela o real aparece de ponta a cabeça, refletindo-se na consciência dos homens de modo abstrato e invertido, as palavras da filósofa brasileira é como um frescor em nossa ferida ardente:

“(...) segundo Marx, a inversão religiosa não “reflete” coisa alguma – sendo criação do espírito em um mundo sem espírito, a religião é produção imaginária de algo que não existe. A inversão consiste em atribuir a essa criação do espírito a origem da realidade, em lugar de compreender que é a miséria real que está produzindo a crença no espírito, numa divindade poderosa que pune e recompensa as ações humanas. A religião, como toda ideologia, é uma atividade da consciência social. A religiosidade consiste em substituir o mundo real (o mundo sem espírito) por um mundo imaginário (o mundo com espírito). Essa substituição do real pelo imaginário é a grande tarefa da ideologia, e por isso ela anestesia como o ópio”.
(p. 96)
(grifo meu)

Aqui se expôs um pouco do pensamento de Marx sobre ideologia. O essencial está aqui. Autores posteriores também refletiram sobre o conceito. Importa ver o caráter universalizante da ideologia e sua capacidade de mascarar a realidade, fazendo-a aparecer à consciência de tal modo que as reais causas da formação daquela sejam apagadas. Assim é que podemos dizer que sentimos Deus nas pequenas coisas, que ele se manifesta, embora de modo “escuso” ou incompreensível, num pressentimento, numa experiência de interiorização, ou nos acontecimentos que nos deixam pasmados, ainda que a realidade nos dê, em todo momento, um tapa na cara, como quem se esforça por nos acordar de um sonho. Deus é um sonho que a realidade insiste em exorcizar. Mas muitos continuam a sonhar e a ver o mundo, a senti-lo (pensá-lo) pela lente distorcida (ideologia) que a religião cimentou em suas cabeças.
Sigamos na contramão, minha amiga, não aceitando sem examinar ideias que nos são dadas em embrulhos vistosos, atraentes; suspeitemos de seus conteúdos. A suspeita, nesse caso, anda em companhia do bom-senso.