sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

"Não sou nem ateniense, nem grego, mas sim um cidadão do mundo". (Sócrates)

                        

                                    Posicionar-se é preciso
                                                              Da necessidade de conhecer
A filosofia nasce do espanto ou da admiração. Ela nasce no momento em que  a validade das opiniões correntes é posta em questão; no momento mesmo em que essas opiniões não podem ser mais aceitas sem que passem pelo crivo da crítica. A Filosofia nasce quando começamos a nos indagar sobre os fundamentos de nossas crenças. Tem ela um compromisso com a ruptura com o senso-comum. São essenciais em todo fazer filosófico a atitude filosófica e a reflexão filosófica. Cabe salientar: fazer filosófico, porquanto filosofia é atividade, é ação pelo intelecto, pela razão, que visa à verdade.
A atitude filosófica é a atitude de indagação. Ela se ancora em questões tais, como “o que é?”, “como é?”, “por que é?”, “para que é?”. Quando perguntamos “o que é x?”, estamos interessados em saber sobre sua realidade mesma, sua essência ou significação (o que é  verdade?, o que é  justiça?, o que é  sociedade?). Quando perguntamos “como é x?”, estamos interessados em saber sobre a estrutura, o funcionamento de uma coisa ou realidade, ou seja, indagamos sobre as relações entre suas partes constitutivas (o que depende de um trabalho analítico, investigativo). Quando perguntamos “por que é?”, estamos interessados em saber as causas, a origem de uma realidade. Finalmente, quando perguntamos “para que é?”, buscamos responder a que serve uma coisa, qual é a finalidade de uma coisa, de um evento humano. A atitude filosófica é, portanto, uma atitude que visa a buscar o saber pelo questionamento, pela elaboração de perguntas, disso se segue que, em filosofia, as perguntas importam mais do que as respostas; e estas só podem ser alcançadas (não de forma peremptórias) quando adequadamente elaboradas. A filosofia é um mosaico de discursos sempre em aberto, sempre transbordante. Não há, nos seus domínios, espaço para dogmatismo, para ortodoxias rígidas. Estes, se manifestos, tenderão a ser atacados.
A reflexão filosófica, ensinará Marilena Chauí, está centrada nos seres humanos, pois que se ocupa do pensamento, da linguagem, da ação e do conhecimento, realidades estas inerentes à condição humana. Reflexão consiste na atividade pela qual nos valemos do pensamento para pensar o que foi elaborado pelo pensamento. É uma atividade, portanto, através da qual o pensamento volta-se sobre si mesmo. Lembro aqui a distinção, feita por Caio Prado Jr., entre “pensamento elaborador” e “pensamento reflexivo”. O primeiro elabora o conhecimento na base dos dados sensíveis, ou seja, nas informações que nos afetam os sentidos. O pensamento reflexivo pensa o produto do pensamento elaborador, pensa aquilo que é conhecido. O pensamento elaborador é responsável pela conceituação, ou seja, a representação na mente das ocorrências ou feições da realidade. Poder-se-ia dizer também a transformação das experiências de mundo do sujeito em dados de sua consciência ou em conceitos. O pensamento reflexivo, a seu turno, opera sobre conceitos ou se dirige para o encadeamento de conceitos. A rigor, ele se volta para a trama de significações resultante do encadeamento de unidades linguísticas (palavras, sintagmas, orações, frases), visto que não há conceito sem alguma forma de linguagem. Para o que me interessa aqui, vale lembrar que as palavras criam conceitos. Não há significação fora dos quadros da linguagem e, dada a flexibilidade, plasticidade, dinamicidade e recursividade inerentes às línguas, bem como a sua abrangência e importância como forma de mediação das relações dos homens entre si e com o mundo, a linguagem verbal é, por excelência, o locus dos conceitos.
Claro está aqui que a filosofia tem um compromisso com a crítica. Crítica recobre a capacidade para julgar, discernir e decidir; trata-se, pois, de um exame racional desinfetado de preconceitos, de prejulgamentos, pelo qual avaliamos, ponderamos um conceito, um pensamento, uma obra artística, um acontecimento, etc. Importa ver também que, sendo de caráter crítico, a filosofia rompe com o senso-comum, o supera, já que, em face de um problema, o senso-comum não procura pelos fundamentos do fato ou fenômeno. A atitude filosófica, ao contrário, se interessa por eles.
 O senso-comum desconhece em que princípios se baseiam suas crenças. Suas interpretações sobre o mundo tendem a ser rasas, parciais, subjetivas, supersticiosas. Sempre que nos guiamos pelo senso-comum, escolhemos agir da maneira como sempre agimos. O senso-comum inclui lugares-comuns, ditados, se constrói discursivamente e fornece reconstruções/ representação da realidade incompletas, parciais, quase sempre relativas a um sujeito abstrato. Disso não se segue subestimar sua importância, já que mesmos os cientistas, filósofos e intelectuais de um modo geral se orientam pelo senso-comum em seu cotidiano. Não podemos prescindir dele, evidentemente. Nossos conhecimentos mobilizados no dia-a-dia são os conhecimentos originários do senso-comum. Ademias, a ciência não prescinde do senso-comum, já que ele fornece as questões que ela buscará explicar.
Um conceito que interessa à filosofia e que constitui o seu ventre é o conceito de razão. Quando pensamos em razão, vem, de imediato, à nossa mente a figura de Sócrates, especialmente a de Descartes e Kant, estes últimos porque se preocuparam em refletir sobre o conhecimento racional. Kant, por exemplo, procurou determinar os limites da razão, sua estrutura e alcance, em síntese, as condições em que o conhecimento é possível.
 Usamos a palavra razão (e derivados), corriqueiramente, em nossos discursos; o provam dizeres como “Fulano tem razão, quando diz isso”, “Suas atitudes não são racionais”, “por que razão você chora”, etc. Note-se que, no primeiro caso, “razão” pressupõe ‘explicação’, ‘justificação’, ‘coerência’, ‘certeza’; no segundo, também evoca ‘coerência’, ‘norma’, ‘consistência’; e no último, também evoca ‘explicação’ ou ‘causa’.
Razão implica coerência, ordenamento, regras, sistematicidade. A razão é, pois, uma atividade ou uma forma de ação que se realiza nos seres humanos por meio de leis ou regras de estruturação do pensamento e de suas ações. A razão é consciência intelectual e moral. Como consciência moral, ela nos dá os princípios que orientarão nossa conduta, nossas ações na convivência uns com os outros.  
Quando assistimos a um desses indivíduos, em geral adestradores de certos animais selvagens, como o crocodilo, enfiando a sua cabeça na boca desse réptil, julgamo-lo, embora admirados com o que vemos, um ‘louco’, ou seja, julgamos sua atitude irracional. Tal é o caso porque agir racionalmente é agir segundo cálculos. Esses cálculos são, muitas vezes, preditivos. Ou seja, calculamos os prováveis efeitos de nossas ações antes de executá-las. Agir racionalmente é agir segundo objetivos para cujo alcance nos valemos de meios adequados. Colocar a cabeça na boca de um jacaré é expor-se ao risco de perder a vida. Isso, em geral, nos parece contrário ao bom-senso (razão). A razão nos ensina que, nessa ação, há perigo, há risco de morrermos. Quem o faz rejeita a predizibilidade dos cálculos que nos permite fazer a razão.
Situada no domínio do pensamento, ou seja, pensada como atividade estruturante de pensamentos, de conceitos, do próprio conhecimento, a razão é indissociável da linguagem verbal. Daí podermos falar em razão discursiva. Linguistas não falarão em procedimentos racionais do discurso, já que razão é um conceito do domínio filosófico. Mas eles ensinarão sobre as operações discursivas, sobre as estratégias discursivas, ou seja, sobre os mecanismos pelos quais estruturamos nossos enunciados, nossos textos para produzir discursos, que são formas de ação social, que são acontecimentos sócio-históricos por meio da linguagem, que são eventos socio-interacionais de produção de sentidos.
Dedução, indução, intuição constituem modalidades da razão. Todos três constituem procedimentos pelos quais buscamos alcançar conhecimento. A razão opera também na base de princípios, tais como o princípio de identidade, o princípio do terceiro excluído, o princípio da não-contradição e o princípio da razão suficiente. Este último reza que para tudo que existe há uma causa. Todo acontecimento, todo comportamento têm uma causa. O princípio da não-contradição, a seu turno, diz-nos que uma coisa não pode ser e não-ser ao mesmo tempo, e num mesmo contexto. Assim, “A é A e não pode ser “não-A”, ao mesmo tempo e no mesmo contexto”. Não se pode dizer, por exemplo, que “João é homem, mas não é ser humano”, já que o conceito de ‘homem’ e de ‘ser humano’ relacionam-se por implicação. Da mesma forma se digo “O Fusca é um carro, mas não é um veículo”, incorro em contradição, já que ‘carro’ é hipônimo de ‘veículo’, ou seja, o conceito de carro (específico) inclui o conceito de veículo (genérico). No entanto, vale lembrar que a linguagem tem seus “truques”, ela não é serva da lógica, ela não se confunde com a lógica. Em dado contexto, podemos dizer “O Fusca é um carro, mas não é um carro” ou “O Fusca não é um carro, é um meio de transporte”. Vale lembrar a lição de Bakhtin: toda palavra é signo ideológico. Claro está que, na primeira frase, ‘carro’ não tem o mesmo significado para o falante: na primeira ocorrência, significa, hoje para nós, ‘veículo de quatro rodas que trafega em ruas, rodovias e que serve para a locomoção de muitas pessoas nas grandes cidades’, mas, na segunda, ‘carro’ traz um ponto de vista, traz uma avaliação de um sujeito situado em determinado lugar valorativo (ou seja, sócio-histórico): ‘carro’ para ele é sinônimo de status, de poder sócio-econômico, de luxo. Carro, na segunda frase, é um bem que deve ser exibido, que deve atrair atenção, pela sua beleza, é um bem cuja posse indica a origem socioeconômica do proprietário. Compartilhamos do saber ser o Fusca um modelo ultrapassado, um carro antigo, pouco sofisticado; quem ainda o possui dá sinais de que não dispõem de muitos recursos. Na segunda frase, carro é o carro do ano, o carro dos tempos modernos, com sua sofisticação, com o seu luxo, seu designe que desperta em muitos o sentimento do belo, da admiração (ou da cobiça). Importa ainda ver que a era moderna se define também por ser a era do predomínio da tecnologia, do seu crescente e ininterrupto desenvolvimento; disso se segue que o Fusca está defasado  entre os carros que atualmente circulam nas ruas de nossa grandes cidades. Para o falante, em virtude de ele não mais poder estar entre os signos da (pós)-modernidade, não merece mais a denominação de ‘carro’; melhor chamá-lo “meio de transporte’, já que serve tão-só ao deslocamento de pessoas e, por outro lado, está associado aos meios pelos quais as pessoas, especialmente as menos favorecidas sócio-economicamente, se deslocam de um lugar para outro, ou seja, através de ônibus, vans, kombis, metrô. É claro que, no caso do metrô, muitas pessoas bem sucedidas economicamente se valem dele para ir ao trabalho, como sucede no Rio de Janeiro, como as que se dirigem para o centro ou zona sul da cidade; o que importa, na verdade, é perceber a crença de nosso falante segundo a qual o fusca não se define como um carro, já que, para ele, ‘carro’ é signo de poder, possuí-lo significa ser privilegiado sócio-economicamente; é, em suma, signo de status. Se não há razão para considerá-lo carro, o fusca passa à categoria de ‘meio de transporte’, não é mais signo de status (porque não é mais carro), servindo apenas ao deslocamento de pessoas. Qual não seria a surpresa se esse falante visse um amigo executivo de terno e gravata dirigindo seu fusquinha 86?
Estou ciente de que me afastei demais do tema de que vinha me ocupando. Mas esse afastamento foi proposital, já que planejava escrever sobre argumentação e compreensão textual. No entanto, não pude deixar de apresentar o que me parece essencial a estas atividades: a capacidade de pensar, de pensar reflexivamente, de elaborar a crítica. Uma argumentação bem-sucedida é aquela que convence a audiência ou o leitor da validade de uma tese; é aquela cujos argumentos estão encadeados de modo a compor um todo coerente, justificado; um todo cujas partes estão articuladas segundo princípios lógico-semânticos e discursivos.
Conquanto muitas pessoas não se dêem conta disso, estamos argumentado o tempo todo em nosso cotidiano: desde as conversas triviais, entabuladas entre pessoas num ônibus, a caminho do trabalho, até nas atividades daqueles que se dedicam a compor textos, tais como “artigos (“científicos” ou jornalísticos”), “teses”, “dissertações”, tratados filosóficos, livros, etc. A argumentatividade é uma qualidade inerente às práticas de linguagem. Argumentando, produzimos enunciados na forma de atos de fala e por meio deles agimos sobre o outro. A linguagem é, assim, uma ação intersubjetiva que se atualiza socialmente, a cada nova instância de comunicação, a cada novo jogo de linguagem (Wittgenstein).
A argumentação, quando incide sobre o domínio da razão, poderá, se bem conduzida, levar ao convencimento; quando, no entanto, recai sobre a emoção, o sentimento, as paixões do indivíduo, ela poderá persuadi-lo; ela é, aqui, pois, uma atividade de persuasão.
Lembro-me de que, nas aulas em que precisava ensinar meus alunos a escrever textos dissertativos - tipos que, por excelência, são destinados à função de argumentação – incomodava-me o ter de oferecer-lhes o esquema estrutural de um texto argumentativo, que consiste na sequência ‘tese-argumentos-conclusão’ e não poder esperara que compreendendo tão-só a estruturação de um texto dissertativo pudessem me apresentar bons textos . E, especialmente, na faculdade, quando podia eu supor que já dominassem tal esquema, e me preocupando, então, em trabalhar com eles os chamados operadores argumentativos (justamente os elementos responsáveis por estabelecer as relações lógico-semânticas e discursivas entre os enunciados e por indicar-lhes a força argumentativa), percebia, com frustração, que não eram bem-sucedidos, quando tentavam escrever textos em que tinham de apresentar sua posição em face de uma dada questão.
As dificuldades que os estudantes têm para desenvolver, na escrita, um texto argumentativo advém da pouca familiaridade com a leitura,  particularmente de textos do tipo dissertativo. É na leitura aturada de muitos textos desse tipo que eles conseguirão apreender as estratégias empregadas pelos autores para conseguir convencer seus leitores. O papel do professor nesse processo é imprescindível, pois que é ele quem orientará os alunos na compreensão das estratégias argumentativas, na apreensão dos recursos empregados para produzir sentidos, para orientar os enunciados no sentido de determinadas conclusões, com exclusão de outras. É o professor que sinalizará para o aluno a função discursivo-argumentativa de um operador, as relações de causa-consequência entre enunciados, em geral sinalizadas por um operador, bem como os pressupostos veiculados em partes do texto. Por exemplo, se digo a alguém que é também amigo de João algo como “Embora João seja honesto, ele não é um profissional competente”, estou apresentando uma tese. Agora, imaginemos um contexto em que os falantes são amigos de trabalho e que João, sendo amigo em comum, é também um funcionário da mesma empresa. João foi advertido de sua falha na execução de uma tarefa. Quem pronuncia “embora João seja honesto”, pressupõe “João é honesto”, ou seja, coloca o conteúdo “João é honesto” como algo já dado, como aceito pelos interactantes. Em outras palavras, ao introduzir o enunciado com “embora”, pre-suponho o conteúdo “João é honesto” como expressando uma verdade consensualmente aceita, indiscutível (no discurso de que participo com o meu interlocutor). O pressuposto é um conteúdo inscrito no enunciado, embora, por definição, não “revelado”, “não-explicito”, que é ‘posto’ à margem da argumentação, pois que apresentado como se não fosse passível de recusa. No entanto, isso não significa que não possamos argumentar sobre o pressuposto, que não possamos recusá-lo, contradizê-lo. Significa, pois, que ele é assumido como algo estabelecido por consenso. O que o falante parece pressupor é a aceitação, na verdade, do da proposição colocada. Uma aceitação que pressupõe ser em comum com o interlocutor.
Vejamos também que o conteúdo “João é honesto” é apresentado como um argumento em favor de João, possivelmente em favor da permanência dele no emprego (supondo que os falantes compartilhassem o conhecimento de que João poderia ser demitido). Assim, “João é honesto” encaminha a conclusão “João deve permanecer no trabalho”. Essa conclusão pode ser sustentada de várias maneiras. Podemos, por exemplo, apresentar uma justificativa razoável para ela: “João deve permanecer no trabalho, porque honestidade torna o profissional uma pessoa confiável para a empresa”.
Note-se que, apesar de encaminhar a referida conclusão, o enunciado ‘João é honesto’, porque é introduzido por ‘embora’, é apresentado como um argumento de menos peso. Se a intenção do falante é argumentar no sentido da demissão de João, o argumento de maior peso, ou seja, determinante da conclusão ‘João deve ser demitido’, é justamente o argumento subsequente ao enunciado com “embora”: é o enunciado ‘ele não é um profissional competente’. Esse argumento veicula a ideologia da ‘competência’, ou seja, só tem o poder de executar ações, de tomar decisões seguras quem dispõe do conhecimento/ competência necessário para tanto. O argumento veicula a crença de que empresas valorizam mais o conhecimento de que dispõem seus funcionários do que seu caráter. Claro é que um terceiro enunciador poderia discordar disso. Mas, afinal, a prática argumentativa instaura um conflito e se desenvolve em espaços de conflitos. Diria mais: o discurso é o palco de conflitos, nele entrecruzam opiniões, crenças, representações ideológicas, visões de mundo, concepções conflitantes.
Sumariamente, enquanto o enunciado “embora João seja honesto” implica a conclusão “João deve permanecer no emprego”, o enunciado “João não é um profissional competente” leva à conclusão “João não deve permanecer no emprego”. Não é difícil concluir que os dois enunciadores estão de acordo quanto ao fato de João ser honesto, mas discordam quanto ao fato de a honestidade ser uma qualidade fundamental quando se tem de decidir pelo futuro de João na empresa. Para um deles, a honestidade pode bastar para que ele permaneça na empresa; para o outro, ela não é suficiente, o que conta mais é a sua competência.
E assim entre honestidade e competência, deverá o professor comprometer-se com a formação de cidadãos capazes de se situar criticamente na sociedade em que vivem, para que possam usufruir de seu direito à liberdade, à sua atuação política, à sua participação nas esferas culturais marcadas pelo letramento; para que tomem parte do legado de conhecimentos, socialmente produzidos; para que, emancipados, não aceitem mais conformar-se à massificação produzida pela televisão, para que rejeitem as opiniões agastadas e ventiladas na mídia, nas redes sociais, nas colunas de revistas destinadas a públicos em geral estereotipados (como as destinadas às mulheres), as ideologias que tendem à homogeneização, a reduções, a ditar padrões, a inculcar valores insuspeitos e que passam ao largo do crivo da crítica, para que, em suma, sejam intelectualmente autônomos e, portanto, capazes de escolher seus valores, de decidir por uma ética em cujo programa de ação esteja o benefício comum, a defesa do pensamento que não se cansa de pensar a si mesmo, o homem e a complexidade do mundo.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

"O professor só pode ensinar quando está disposto a aprender" (Janoí Mamedes)

                      

                    A formação do professor de português
                   Da antiga prática à crise que se arrasta

Para que os leitores que me acompanham, quer assiduamente, deixando o testemunho de seu interesse por meus textos, quer esporadicamente, dando aqui ou ali sinais de pouco interesse em minhas publicações (principalmente naquelas que se destinam à defesa do ateísmo, de que tenho me ocupado com mais afinco ultimamente) não concluam por minha predileção pelo referido tema (embora fosse equivocado assim pensar, dada a natureza diversa dos textos neste espaço propalados), tomarei para reflexão, nesta nova oportunidade em que, pela produção textual, me confronto com o mundo, a formação do professor de língua portuguesa. Este texto, quiçá, interesse aos meus ex-alunos do curso de Letras, muito embora (acredito eu) muitos deles passem ao largo de minhas publicações neste blog. Isso não me surpreende, desde que soube que é possível um aluno de Letras não gostar de ler e não exercitar a prática de escrita. Instaura-se uma crise!
Não pretendo alardear a crise (que olhada de perto explica a ineficácia do ensino de língua portuguesa em nossas escolas, isto é, explica como nossos alunos, após alfabetizados, tendo desde então percorrido onze anos de suas vidas em bancos escolares, podem chegar à universidade sem ser capazes de ler e escrever com eficiência), mas ela é um fato reconhecido e revisitado pelos profissionais que se dedicam a pensar sobre os problemas da Educação brasileira. Dentre estes profissionais, destacam-se muitos linguistas que, não se limitando a interesses meramente acadêmicos, voltaram suas preocupações para além dos corredores das universidades, concentrando-as no que se vem fazendo, nas escolas e nos cursos de formação de professores (graduação e pós-graduação lato sensu), com os conhecimentos que têm sido produzidos ao longo de mais de quarenta anos, desde a implementação da Linguística nos cursos de Letras, em 1963.
Este texto vem a propósito na ocasião em que me ocupei com o desenvolvimento de meu próximo artigo acadêmico, que será destinado à publicação em breve. Nesse trabalho, propus-me a pensar sobre a formação do professor de português, tendo em vista a dificuldade de superar o modelo de ensino tradicional baseado em atividades de metalinguagem e análise estrutural da língua.
Todos nós, que tivemos acesso à escolarização básica, sabemos que nas aulas de português que nos foram ministradas sempre predominaram atividades durante as quais éramos, enquanto alunos, levados a ‘classificar as palavras’, ‘identificar as vozes verbais’, ‘fazer análise sintática’, ‘classificar as orações subordinadas’, etc. Essas atividades podem ser entendidas como atividades de metalinguagem, porque nelas usamos a língua para refletir sobre a própria língua tomada em si mesma, ou seja, desvinculada de contextos de uso. Trata-se aqui de levar os alunos a compreenderem o mecanismo gramatical da sua língua materna, entre outras coisas, levá-los a compreender as regras subjacentes à formação das orações, frases, palavras, as propriedades semânticas, sintáticas e morfológicas das palavras (substantivo, adjetivo, artigo, verbo, etc.). A língua é, assim, entendida como um objeto a ser dissecado, suas partes discriminadas e classificadas e seu ‘sistema de regras’ (gramática) explicitado. É o que sucede quando tomamos a frase abaixo e a analisamos do ponto de vista sintático. Senão, vejamos:

(1) O Brasil foi descoberto por Pedro Álvares Cabral em 1500.

Estamos diante de uma frase bem-formada em língua portuguesa. Isso significa dizer que ela foi construída de acordo com a gramática dessa língua, a saber, com o seu conjunto sistemático de regras. Em primeiro lugar, as palavras que a compõem se organizam em blocos de sentido, ou sintagmas. Formam elas blocos de palavras entre as quais há coesão. Assim, discriminamos “o Brasil”, “foi descoberto por Pedro Álvares Cabral em 1500”, num primeiro nível de análise. Dentro deste grupo maior, identificamos ainda “por Pedro Álvares Cabral” e “em 1500”. A análise poderia prosseguir discriminando níveis hierárquicos mais “baixos”. No entanto, não vou me aprofundar na complexidade das estruturações sintáticas. São, pois, sintagmas os seguintes grupos de palavras:

O Brasil  - sintagma 1
Foi descoberto por Pedro Álvares Cabral em 1500 – sintagma 2
Por Pedro Álvares Cabral – sintagma 3
Em 1500 – sintagma 4

Os grupos assim constituídos correspondem à nossa intuição enquanto falantes nativos, relativamente à conexão existente entre as palavras que os compõem. Assim, “sentimos” que “o Brasil” forma uma unidade sintático-semântica, mas não se pode dizer o mesmo de “Brasil foi” ou “Pedro Álvares Cabral em 1500”.
Existem, porém, dois expedientes, comumente aplicados, para assegurar a validade de nossa intuição. Ou seja, por eles prova-se que aqueles grupos constituem verdadeiros sintagmas. Partimos de dois princípios: a) todo sintagma é passível de substituição por outro sintagma funcionalmente correspondente, ou seja, por um sintagma que possa ocupar a mesma posição do sintagma que se trata de substituir; b) todo sintagma pode ser transposto para outras posições na cadeia sintagmática. O primeiro teste chama-se de “comutação”. Veja-se o que ocorre com a nossa frase aplicando os dois testes:

(1a) O Brasil foi descoberto por Pedro Álvares Cabral em 1500.

        A América foi descoberta por Cristovão Colombo em 1492.

      O menino estudava matemática    todos os dias.

Importa ver que no lugar de “O Brasil” podemos introduzir os sintagmas “a América” ou “o menino” (o número de possibilidades é ilimitado). No lugar de “por Pedro Álvares Cabral”, podemos colocar “por Cristóvão Colombo” (ou por qualquer outra estrutura funcionalmente correspondente). O sintagma “foi descoberta por Cristóvão Colombo em 1500” pode ser substituído pelo sintagma “estudava matemática todos os dias”. Assim também o sintagma “todos os dias” pode comutar com “em 1492”.
Embora nem sempre usuais, podemos dar às frases aqui exemplificadas outras configurações, o que significa dizer que podemos deslocar os sintagmas para outras posições, organizando-os de modo diverso da versão original da oração.
(1b) Por Pedro Álvares Cabral foi descoberto o Brasil em 1500.
      Em 1500, foi descoberto o Brasil por Pedro Álvares Cabral
      O menino todos os dias estudava matemática.
       Estudava o menino matemática todos os dias
      Matemática estudava o menino todos os dias
      Todos os dias estudava o menino matemática
      Todos os dias estudava matemática o menino (?)

Claro parece que alguns constituintes, em virtude do grau de coesão que mantenham com outros não são facilmente deslocáveis. Por exemplo, a frequência com que sujeito pode se deslocar para depois do verbo (sendo sua posição canônica antes do verbo) depende de o verbo não exigir complemento. Casos frequentes são os que seguem:

(1c) Muitas coisas aconteceram aqui.
       Aconteceram muitas coisas aqui.
       Nasceu muita criança neste ano.
       Muita criança nasceu neste ano.
       João escondeu o bicho debaixo da cama.
       Escondeu João o bicho debaixo da cama.

 A posposição de “João” ao verbo “esconder”, que exige o complemento “o bicho” não é tão usual. Na fala corrente, tende a não se verificar.
Aspectos de concordância e regência são também evidenciados aos alunos durante as atividades de análise da língua fragmentada e descontextualizada. Por exemplo, o aluno aprende que o verbo, na variedade padrão da língua, assume o número e a pessoa do sujeito. Ao fazê-lo, ele modifica sua forma morfológica para adequar-se ao sujeito. Assim é que “O Brasil”, constituído por um núcleo substantivo no singular, determina a forma do verbo. Este assume a forma de 3a pessoa do singular (todo substantivo, por designar coisas, fatos, eventos dos quais falamos representa no discurso a terceira pessoa, ou a não-pessoa, em relação as duas pessoas do discurso, a 1a e a 2a).
Já há muito, os professores reconheceram que o estudo formalista da língua, ou seja, baseado na análise de sua estrutura, com discriminação das suas entidades, identificação dos tipos de relações entre elas, das regras subjacentes a essas relações, não contribuem para alcançar o objetivo fundamental do ensino de português a falantes nativos dessa língua. Em outras palavras, não levam os alunos a ler melhor, escrever e falar de acordo com a norma padrão. Não é ensinando gramática que levaremos nossos alunos a se tornarem mais proficientes no uso de sua língua materna.
Avultou-se à consciência a necessidade de dar às práticas de leitura e produção textual um espaço maior no tempo em que ocorrem as aulas de português. É somente quando consideramos a língua em uso, realizada em textos reais, compreendida nos processos discursivos, que estaremos efetivamente contribuindo para o desenvolvimento do que se tem chamado “competência comunicativa” dos falantes nativos.
A competência comunicativa (para os estudantes de Letras trata-se de uma lição fundamental e que não pode ser negligenciada) é a capacidade de o falante nativo não só produzir enunciados em sua língua de acordo com as regras da gramática internalizada, que está inscrita em sua mente/cérebro, mas também de usá-los adequadamente às diferentes situações comunicativas de que participa. A competência comunicativa é sensível não só às regras daquela gramática, sem as quais não é possível, mas também às regras ou normas sócio-culturais. Assim, um falante comunicativamente competente sabe como se comportar linguisticamente em situações sociais solenes, como enterros, celebrações religiosas,  ou em situações que demandam formalidade (mas não necessariamente solenidade),  como congressos, reuniões de trabalho, ou ainda quando precisam se dirigir a advogados, diplomatas, desembargadores, a seus professores, especialmente quando estão apresentando uma comunicação em congressos, etc.
Ter competência no uso de nossa língua é saber transitar nas diferentes esferas sociais de modo adequado às normas nelas vigentes. Essas normas são internalizadas por nós via cultura. É porque partilhamos de um mesmo código cultural e linguístico que somos capazes de reconhecer estas normas, estas convenções de nossa sociedade. O uso da língua perpassa todas as esferas institucionais de nossa sociedade, desde a família até as esferas jurídicas, passando por escola, universidade, associações por ideologia ou lazer, burocracia; em suma, compreende os espaços privado e público.
O que me motiva ao magistério, o que me motiva, mormente, no exercício de minha vocação como intelectual e professor de língua portuguesa é justamente o enfrentamento da crise, tão bem patenteada por Coimbra (2006), em A Formação do Professor de Português, quando escreve sobre o fato de a grande maioria dos professores de português atuantes nas redes escolares pública e privada não serem nem leitores nem escritores (em sentido lato):

 “(...) o reconhecimento de suas próprias deficiências levá-los-ia a entender as dificuldades dos alunos e a modular sua relação com as deficiências deles. Ou seja, esses professores ainda não se tinham dado conta das dificuldades inerentes ao escrever e de suas deficiências pessoais. Tinham passado iludidos pela escola e pelo curso de letras: ou nunca tinham escrito na vida ou nunca tinham tido problematizada a sua escrita e nunca se tinham perguntado se sabiam ler e escrever suficientemente bem para querem-se professores de português”
(p.28)

       Do fragmento citado, chegamos à conclusão irrecusável de que a condição prévia para se ensinar a ler e a escrever com eficiência é saber ler e escrever com eficiência. Daí que o ensino de leitura e de escrita deve ser feito por leitores/ escritores a leitores/escritores. Se os professores não têm o hábito de ler, se não praticam o exercício da escrita e reescrita contínuo, como podem eles pretender ensinar aquilo com que sequer estão familiarizados?

sábado, 21 de janeiro de 2012

"Render-se à ignorância e chamá-la de deus sempre foi algo prematuro, e continua sendo hoje." (Isaac Asimov)" (

                                         

                                             O sacerdote
                                       Uma proposta de leitura em  “O Anticristo”


       Como instituição sócio-política, a religião sempre se serviu do poder para conservar sua influência. Historicamente, ela se via às voltas com o poder político vigente. Ela sempre necessitou do poder (do Estado, do Soberano, dos tiranos, das autoridades políticas em geral) para prosperar.
Se a Igreja cristã é hoje uma potência, devemos isso a um homem chamado Constantino. Se não fosse por este imperador romano, homem de vanguarda, tolerante, convertido ao cristianismo sinceramente (depois que em sonho recebera de Deus um sinal de que venceria a batalha de Ponte Milvio, vindo, de fato, a conquistar o subúrbio de Roma, às margens do Tigre, depois de matar seu opositor Maxêncio), o cristianismo continuaria sendo o que fora antes do aparecimento deste homem notável: uma seita. Cabia a ele uma missão gloriosa: a Salvação da humanidade! Ele assume a dianteira desta empresa, como homem a quem Deus outorgou (em sonho) o poder providencial. Conta-nos o historiador Paul Veyne, em Quando nosso mundo se tornou Cristão (2011), a respeito da nova missão de Constantino:

“(...) Constantino apreciava o fato de ter sido escolhido, destinado pelo Decreto divino a desempenhar um papel providencial na economia milenar da Salvação; ele disse, escreveu isso, em um texto autêntico que se vai ler mais adiante, mas tão exagerado que a maior parte dos historiadores o desprezam, pelo que tem de pretensioso, e dele não falam”.
(p. 13)

O fato de Constantino ter-se arvorado em ministro do poder de Deus na terra não nos surpreende; outros tantos, depois dele, o fizeram. Jesus Cristo acreditava-se realmente o filho de Deus e pregava não haver outro caminho de se chegar a Deus senão por ele. A despeito de seu desprezo pela política, de sua tentativa de elevar a Palavra de Deus sobre todas as formas de poder terreno, Cristo não deixou de ser um homem que exerceu uma influência política nas terras por que passou.
O exercício do poder é indispensável à religião. Este texto mostrará isso. Para tanto, vou-me valer da obra O Anticristo, de Nietzsche. Deter-me-ei num momento de seu texto em que ele se dedica a pensar sobre o papel do sacerdote. Antes de fazê-lo, contudo, o filósofo alemão nos contará sobre como era, nos tempos primitivos, a relação entre Israel e Yahwen (um dos nomes do Deus de Israel nos Livros Sagrados). Segundo Nietzsche, houve um tempo em que Israel concebia seu Deus como signo da justiça, como expressão de poder, de prazer e esperança em si. Por intermédio de Deus e na confiança nele, os hebreus daqueles tempos confiavam na natureza. A ele deviam a chuva. Assim, Nietzsche escreverá a respeito dessa relação harmoniosa:

“Yahweh é o deus de Israel e, por conseguinte, o deus da justiça: lógica de todo o povo que possui poder e a consciência tranquila. É no culto solene que se manifestam estes dois aspectos da afirmação própria de um povo: mostra-se agradecido pelos grandes destinos que o elevaram à dominação, sente gratidão pela regularidade do ciclo das estações e por qualquer êxito na criação de animais e na agricultura”.
(p. 59)

Primeiramente, cabe observar que por intermédio de Deus afirma-se a identidade nacional de um determinado povo; o Deus de Israel é um elemento da identidade deste povo. Em segundo lugar, é pela gratidão (ainda não é submissão) que o povo israelense se relaciona com seu Deus: agradece os benefícios e o sucesso em suas ações cotidianas (como na criação de animais e no cultivo da terra). O povo se investe de poder através de Deus. Há que considerar também a relação harmoniosa entre homens, Deus e natureza.
Esse estado harmonioso foi interrompido por dois acontecimentos: a guerra contra os assírios e a anarquia interna predominante. Não obstante, o povo conservou a imagem de um rei que reunia em si o coração de um bom soldado e a rigidez de um juiz. Nietzsche colocará na conta do profeta Isaías a maior responsabilidade pela conservação dessa imagem divina. Note-se bem: o povo passou a projetar uma imagem outra de Deus. Escreverá Nietzsche, nesse tocante:

“O deus antigo nada mais podia fazer do que o fizera em outros tempos. Deviam tê-lo deixado sucumbir. Em vez disso, que aconteceu? Modificaram a noção que dele tinham – deformaram essa noção: e por esse preço o conservaram. Yahweh, o deus da “Justiça”, já não mantém a sua unidade com Israel, já que não é a expressão do orgulho de um povo: não passa agora de um deus condicionado”.
(p. 59)

Essa passagem nos permite compreender um ponto importante da reflexão de Nietzsche. Note-se que a transição da imagem de Deus se deu na forma de um ser autônomo para um ser submisso. O deus de Israel, expressão de orgulho desse povo, passaria a ser um poderoso expediente para o exercício do poder. Concluirá Nietzsche que se operou uma falsificação da noção de Deus. E a quem caberá valer-se desse expediente para exercer seu poder, sua influência? Entra em cena a figura do sacerdote, sobre a qual Nietzsche vai dispensar seu desprezo:

“Esses sacerdotes realizaram o prodígio da falsificação de que permanece como documento comprovativo uma grande parte da Bíblia. Com desprezo ímpar por toda a tradição, afrontando toda realidade histórica, transcreveram em sentido religioso o seu próprio passado nacional, isto é, fizeram dele um estúpido mecanismo de salvação: a ofensa contra Yahweh merece punição; o amor por Yahweh, recompensa. Muito mais dolorosamente sentiríamos essa escandalosa se a milenar interpretação eclesiástica não nos houvesse tornado quase insensíveis às exigências da probidade in historicis [em questões históricas]

(p. 60)

Vale atentar para o uso das formas “transcrever” e “mecanismo”. Nietzsche acusa os sacerdotes de reproduzir a história da relação de Israel com seu Deus num outro sentido. Que sentido é este? O religioso. O sentido religioso instaura uma relação de submissão não do homem a Deus (que é um mecanismo), mas  de uma classe de homens a outra. Devemos ter em conta isso: Deus é um mecanismo para a expressão do poder de uma classe sobre outra, no caso, da classe dos sacerdotes sobre a população crédula. O poder da Igreja surgiria como uma forma de apagar aquela falsificação histórica, tornando essa população, como Nietzsche assinala bem, “insensíveis às exigências da probidade”, ou seja, insensíveis à honestidade daqueles que contam a história, a relatam. A história mesma é apagada na consciência dos que dela souberam por intermédio de outra voz, a voz do poder, que a deturpou.
Nietzsche não poupará críticas aos filósofos, que, segundo ele, apoiaram a Igreja. Para Nietzsche, a Igreja é “a mentira da “ordem moral universal” (p. 60). E nos esclarecerá sobre o que significa “ordem moral universal”. Eis um conceito central em seu raciocínio:

“Que existe, sem qualquer dúvida, uma vontade de Deus, que decide tudo o que o homem deve ou não fazer, que o valor de um povo ou de um indivíduo se gradua segundo a sua maior ou menor obediência à vontade de Deus; que nos destinos de um povo ou de um indivíduo mostra-se dominante a vontade divina que castiga ou recompensa segundo seu grau de consciência”.
(ibi.id).
(grifo meu)

O sacerdote introduzirá a doutrina do pecado (que tratei alhures como “flagelo psíquico”). Decerto, um instrumento de poder, pelo qual a Igreja conserva seus seguidores na obediência, na submissão, na escravidão psíquica, na ignorância. Para compreendermos como opera essa doutrina, devemos ter em conta o seguinte. Em primeiro lugar, os homens, como seres de linguagem, seres simbólicos, darão muita importância às palavras. Diremos, sem incorrer em erro, que as palavras têm poder, ou melhor, estão a serviço do poder. Muitas delas, certamente. Em segundo lugar, nossa mente ou nossa consciência tem base simbólica. Bakhtin já nos ensinara sobre isso: a realidade da consciência é o signo. Uma palavra de ordem proferida pelo pai tenderá a provocar a obediência da criança. O pai exerce sua autoridade sobre a criança não só do ponto de vista econômico e moral, mas também simbólico. Seus comandos verbais são formas de expressão de seu poder. Mesmo que sejam questionados ou que o pai se sinta afrontado pela desobediência da criança, a necessidade de exercer o poder pela palavra ainda sim estaria patente.  Mesmo a desobediência a um ato verbal de ordem, produzido por alguém que ocupa um lugar mais alto numa hierarquia, só prova que as palavras servem para determinar posições hierárquicas e fixar poderes.  
No entanto, o sacerdote não pode, por razões óbvias, exceder-se no grau de sua autoridade, dando-lhe uma face agressiva; é necessário certo tempero de docilidade hipócrita, a fim de cativar o fiel para que se submeta à Vontade de Deus, que não é senão a vontade do sacerdote. Lembremos que o sacerdote é o representante de Deus na terra; ele está na posse daquele mecanismo (a vontade de Deus) e exerce, por meio dele, a sua vontade.
Veja-se como Nietzsche entende o papel do sacerdote. O filósofo o chamará “parasita”.

“Posta em lugar desta lastimável mentira, a realidade significa certa espécie de homem parasita que não prospera senão a expensas de todas as formas sãs da vida, o sacerdote, abusa do nome de Deus, chama “reino de Deus” a um estado de sociedade no qual é ele quem fixa os valores; chama “vontade de Deus” aos meios que emprega para alcançar ou manter tal situação; com cinismo glacial, valoriza os povos, as épocas, os indivíduos, conforme forem úteis ou resistiram à preponderância sacerdotal”.

(ibi.id)

Interpretemos alguns pontos importantes aí. A palavra “parasita” é reveladora da natureza aproveitadora desses senhores da ingenuidade e credulidade. Eles, os sacerdotes, estabelecem com seus seguidores uma espécie de parasitismo ou, se preferirmos, esclavagismo. Neste último caso, um grupo se aproveita do trabalho, das atividades e dos produtos - delas resultantes - de outro grupo. O sacerdote vive, conforme escreve Nietzsche, à custa dos que se esforçam por atender à Vontade de Deus.
A natureza ideológica da religião começa aí a ganhar formas nítidas. Note-se que, por meio de representações, por meio de um aparato simbólico, constroem-se formas de realidade com vistas à reprodução e à conservação do poder. A Vontade de Deus aparece à consciência dos fiéis como realmente poder de decisão de deus, como expressão de sua soberania. Pela sua vontade, deus deseja atingir um propósito. Ele tem um propósito para os homens. Devemos-lhe obediência, a fim de sermos beneficiados, agraciados com a realização de sua intenção. Sucede, no entanto, que essa Vontade não é a de Deus, mas a da classe dominante: a dos sacerdotes.
O Reino de Deus também é uma expressão de sentido ideológico. Ela aparecerá à consciência como um verdadeiro reino instituído por Deus, onde a paz, a harmonia, a felicidade e o amor restarão, quando todo mal for definitivamente extirpado. Sucede, entretanto, que o Reino de Deus é produto do desejo que têm os sacerdotes de fixar seus valores, de estabelecer sua moral, fazendo com que os demais se submeta a ela. O Reino de Deus é o modelo de sociedade desejada por eles. Tacitamente, Sua Santidade Bento XVI tem nos dado provas dessa megalomania. Virá, inclusive, ao Brasil para discursar para os jovens sobre como deve ser uma sociedade segundo a vontade de Deus. Não pode faltar, é claro, a abstinência sexual e o abandono do uso do preservativo, porque o sexo só pode ser feito dentro dos limites rígidos do casamento. E isso é uma concessão do Reino de Deus, já que, ao que parece, nele o sexo não será mais uma necessidade. Por ora, deve-se permiti-lo com restrições.
Nietzsche continuará a tecer duras críticas ao papel do sacerdote. Mostrará que a “revelação” não será outra coisa senão a expressão da necessidade de consolidar a falsificação. Descobrem-se as “sagradas escrituras” (p. 61). Elas tornam-se o parâmetro para avaliar a obediência. A Vontade de Deus, já há muito estabelecida, agora conta com um expediente de controle, um poderoso instrumento literário com que se pode policiar o comportamento daqueles que se afastam da Vontade de Deus. Aliás, nos dirá Nietzsche, que o mal resulta do afastamento das Escrituras.
O sacerdote ordena os tributos que a ele devem ser pagos. Escreverá o filósofo:


“Desde então, todas as coisas da vida estão de tal modo ordenadas, que o sacerdote se torna por toda a parte indispensável, em todos os acontecimentos naturais da vida, nos momentos do nascimento, do casamento, da doença, da morte, para não falar do “sacrifício” (“a ceia”), aparece o santo parasita para os desnaturalizar – na sua linguagem: para “os santificar”.
(p. 61)

Não pode nos passar despercebido o fato de Nietzsche opor “santidade” a “natureza”, de tal sorte que tudo que é considerado santo é negação da natureza, do natural, da vida mesma, ou, como Nietzsche poderia dizer, “da potência da vida” (alusão a sua “vontade de poder”). A santificação é uma desnaturalização. Mais uma operação ideológica, portanto. Vale dizer, a esta altura, que estou entendendo por ideologia uma forma de representação/ construção da realidade que, falseando-a, serve à produção, reprodução e conservação de relações de poder. Sua Santidade é a personificação máxima da Ideologia da Igreja, já que ela encarna as aspirações à santidade, ou seja, a tudo que represente a negação da natureza, da vida mesma como a conhecemos. Isso explica a reprodução de discursos que atacam o valor da vida neste mundo (lugar de perdição e de pecado). Disso se segue o condenar práticas naturais como sexo, masturbação, homossexualismo, o apetite insaciável, etc. como pecados.
Na parte final de seu texto, o filósofo alemão articulará a noção de pecado ao papel do sacerdote e à noção de Deus. Dirá Nietzsche que pecado é a designação para a desobediência a Deus, que não é senão, insisto, desobediência à lei do sacerdote. Incorre em pecado quem transgride essa lei, quem desobedece ao sacerdote. Para Nietzsche, apenas ao sacerdote cabe o poder de “salvar”. As palavras finais de Nietzsche ajudar-nos-ão à compreensão do poder ideológico de que é portador o conceito de “pecado”. Lembro que, com Bakhtin, as palavras são tecidas de fios ideológicos. Toda palavra será portadora de um ponto de vista, pois que ela representará a realidade a partir de um lugar valorativo. Ela será ‘lugar’ também onde se expressam ou se deixam ver as lutas de classes; é lugar do conflito, da tensão, por excelência.

“Examinados psicologicamente, os “pecados” tornam-se indispensáveis em toda a sociedade organizada sacerdotalmente; são os verdadeiros instrumentos de poder, o sacerdote vive do pecado, tem necessidade de que se “peque”... Princípio supremo: “Deus perdoa a todo aquele que faz penitência” – ou, por outras palavras, ao que se submete...”

(p. 61)

A noção de “pecado”, um dispositivo ideológico, entra a fazer parte, pois, do círculo da submissão ao poder sacerdotal, que se expressa da seguinte forma:


                                                                   Pecado

                                Redenção                                          Obediência

          

                               Obediência                                        Redenção

                                                                  Pecado

                                                              

Não podemos perder de vista o poder da noção de pecado, mediante o qual se submete toda a humanidade. Refiro-me ao dogma esdrúxulo do Pecado Original. É muito mais fácil exercer e consolidar o poder quando não há resistência a ele. E, para que esta não se note, é preciso que o grupo sobre o qual outro faz valer seu poder não seja capaz de reconhecer neste exercício alguma forma de opressão. A ideologia serve a isso: ela permite que as formas de poder apareçam como justificáveis e válidas. A ideologia promove a aceitação da opressão, justamente por mascará-la, sob a forma de algo que é entendido como “natural”, dado a priori. Assim, os homens não mais se reconhecem como produtores de suas instituições, mas como produtos delas; se vêem como “dominados”, “controlados” por elas. A sociedade se sobrepõe a eles. No caso em questão, a Igreja se sobrepõe à comunidade humana constituída pelos seus seguidores.
Na ilustração, não é difícil ver que o pecado instaura a condição continuada de submissão. A condição de pecado pode ser superada, de tempo em tempo, pela restituição da obediência, mas a queda é inevitável (e é bom que seja assim, consoante nos ensina Nietzsche: a possibilidade mesma da perenidade do poder da Igreja depende de que nunca o homem deixe de ser pecador). O caminho para a redenção é a obediência, mas esta é frágil, e novamente o homem cai em pecado (ou seja, em desobediência). E o circuito é interminável: ele buscará obedecer para alcançar a redenção, mas voltará a pecar. O pecado, tal como concebido, nunca poderá ser superado, por duas razões: por exigir uma obediência a uma Vontade que não é senão a expressão do desejo de uma sociedade cujos valores são fixados por uma autoridade que se supõe acima do mundo (quer-se, pelo poder, construir uma sociedade ideal; acima da medida humana); por outro lado, o pecado recobrirá as paixões humanas, logo ele é a resposta para explicar as nossas tendências anticivilizatórias. A cobiça, a inveja, a avareza e outras tantas paixões que conturbam a ordem social, embora próprias da nossa natureza, serão consideradas pecaminosas. É pecado, em suma, tudo que diz respeito à naturalidade, que decorre da natureza. Entendo por natureza aquilo que nos define como seres humanos, o que diz respeito à essência dos homens (supondo-se a complexidade dessa essência). Pinker nos ensinará sobre nossa natureza, em seu livro “Tabula Rasa” (fica aqui o convite à leitura). Se a mente tem uma organização resultante da seleção natural, uma programação construída ao longo de milhares de ano no processo da evolução, e se essa organização explica nossos comportamentos e tendências tais como não só o egoísmo  mas também a capacidade de cooperação, o pecado penetrará na consciência a fim de nos culpar por nossos maus comportamentos, ainda que a estrutura de nossa mente, que nos predispôs a eles seja, como se acredita, resultado de uma criação divina. Deus é tão pecador quanto nós, não podemos escapar a essa conclusão.
Proponho aqui um ateísmo esclarecido, o que significa dizer que os ateus devem buscar posicionar-se de modo crítico, munido de conhecimentos indispensáveis a uma eficiente tática argumentativa. Reconhecer a vinculação da religião, da Igreja com a política, com o poder, com a ideologia dominante, com as classes dominantes (sem embargo da retórica em favor dos excluídos, dos desgraçados, dos menos favorecidos) é mister, para que possamos, como propus em outra postagem, atacar de dentro. Para que fique elucidada esta minha posição, quando digo que não podemos atacar de fora, quero dizer o seguinte: atacamos de fora quando nos perdemos na tentativa de ridicularizar o outro, de repisar um determinado argumento como falacioso ou produto de seu delírio; aliás, juízos de valor desse tipo só valem se os definimos bem. Julgamos ser a ideia de Deus fruto de um delírio, de fato; mas não basta tachar aqueles que a professam  de delirantes; isso é inútil, só gerará desavença. Não atacamos visando atingir a emoção, mas a razão. É provável que nossos esforços não logrem êxito, a principio; caso assim nos pareça, devemos rever nossas estratégias argumentativas. É possível que os caminhos tomados estejam equivocados. Atacamos as Escrituras, apontando seus erros, suas falsidades, suas fábulas, mas nos esquecemos de que o seu conteúdo é continuamente instilado na cabeça deles em constantes sessões de pregações, leituras e preleções. O seu conteúdo é martelado todas as vezes que eles vão à igreja para ouvir o padre ou o pastor falar-lhes: um ostentando uma veste pomposa e um ar solene, de superioridade; outro, mais formalmente adequado ao ambiente dos negócios, vociferando, escandalosamente, um discurso enfadonho e mais surpreendentemente penetrante e persuasivo. Não só seu discurso parece anestesiar as consciências que se sentam naqueles bancos (e choram, gritam, cantam, repetem em uníssono as palavras que o bispo/ pastor profere), mas também seus gestos, a entonação da voz (sempre elevada, berrante!) têm o poder de envolver, tem o impacto de terremoto, um terremoto psíquico, que abala as estruturas da racionalidade, da decência, da dignidade, do ser mesmo dos homens que estão ali e que se submetem, que se abandonam, com corações ingênuos e aflitos, desesperados mais desejosos de conservar a esperança, desejosos de que lhes seja revelada a Verdade, que nem o ateu, nem a ciência, nem a sociedade utilitária, consumista, individualista poderá rejeitar; a ela todos haverão de se submeter um dia, quando Deus vier reclamar seu lugar de soberano e instituir aqui ou além o seu Reino (depende de que livro lemos na Bíblia).
Se nós, ateus, não nos apercebermos da natureza ideológica da religião e não buscarmos compreender o vínculo entre fé - Igreja e Poder - política, nossa ação argumentativa, que é forma de participação social, cultural e política também, estará fadada ao fracasso.
Pensar a relação entre discurso e ideologia é indispensável ao sucesso de nossas investidas argumentativas, já que, com Miotello (2005: 176):

“(...) a ideologia é o sistema sempre atual de representação de sociedade e de mundo construído a partir de referências constituídas nas interações e nas trocas simbólicas desenvolvidas por determinados grupos sociais organizados. É então que se poderá falar do modo de pensar e de ser de um determinado indivíduo, ou de determinado grupo social organizado, de sua linha ideológica, pois que ele vai apresentar um núcleo central relativamente sólido e durável de sua orientação social, resultado de interações sociais ininterruptas, em que a todo momento se destrói e se reconstrói os significados do mundo e dos sujeitos”.

Nossas relações de mundo são, essencialmente, simbólicas, ou seja, relações mediadas por significados. O mundo é resultado da construção de significações pela função de simbolização da linguagem; essas formas de significar o mundo ganham caráter ideológico (porque a ideologia não é possível sem um material simbólico: o discurso é, por excelência, o lugar de sua manifestação), na medida em que servem para produzir e reproduzir (sustentar) relações de dominação. Nietzsche, tacitamente, nos chama atenção para isso.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

"Por simples bom senso, não acredito em Deus. Em nenhum." (Charles Chaplin)

        

     O ateísmo ativista
  Repensando o projeto


A palavra ativismo é definida, na Enciclopédia e Dicionário Koogan- Houaiss, tanto como ‘atitude moral que privilegia as necessidades da vida e da ação, sobre os princípios teóricos’ como ‘propaganda ativa em favor de uma doutrina’. O ateísmo propalado por autores como Richard Dawkins, Sam Harris e Christopher Hitchens tem sido compreendido como um ateísmo ativista justamente porque esses autores, ao publicar obras e participar de debates e conferências, em televisão e em universidades, atuam incisivamente contra a religião e a fé. Eles, realmente, partiram para o ataque. Cada qual do seu modo: Dawkins valendo-se de sua competência enquanto biólogo e expoente do darwinismo. Sua obra Deus: um delírio foi escrita sob a perspectiva baseada em sua formação. Ele considerará a fé um vírus, que contamina a consciência das pessoas, impedindo-as de pensar coerentemente sobre suas crenças religiosas e suas crenças sobre o modo como o mundo funciona.  Sam Harris, a seu turno, atacará de modo mordaz a fé religiosa e, particularmente, a fé islâmica. No Posfácio de seu livro A morte da Fé (2009), em resposta a uma das críticas que recebera de seus leitores (algumas por e-mail), o autor é claro:


“Se existe algum livro que ataca mais duramente a religião, eu o desconheço. Isso não quer dizer que meu livro não tenha muitas falhas; mas com certeza ele não pode ser acusado de tentar apaziguar a fé religiosa”.
(p. 272)

O excelente livro deus não é grande (2007), de Hitchens, conta com relatos de suas experiências como jornalista enviado a regiões de conflitos, com ataques sem peias a personalidades porta-vozes da fé, como Madre Teresa de Calcutá. Conhecimento e experiência conciliados de modo lúcido e ácido no ataque ao fenômeno da religião – é o que encontramos, em suma, na obra deste grande e saudoso intelectual.
Comum aos autores aqui mencionados é a tese segundo a qual a fé deturpa a razão, se alimenta da irracionalidade, embota a consciência. Veja-se, a título de exemplo, o que escreve Sam Harris nesse tocante:

“A fé religiosa, embora seja a única espécie de ignorância humana que não admite sequer a possibilidade de correção, continua a ser protegida contra as críticas em todos os cantos da nossa cultura. Ignorando todas as fontes de informação válidas acerca deste mundo (tanto espirituais como mundanas), nossas religiões assumiram antigos tabus e fantasias pré-científicas como se estes encerrassem o mais profundo significado metafísico. (...) Na melhor das hipóteses, a fé religiosa torna as pessoas, mesmo as bem-intencionadas, incapazes de pensar racionalmente sobre muitas das suas preocupações mais profundas e; na pior das hipóteses, é uma fonte contínua de violência entre os seres humanos”.

(p. 259)


Hitchens, por sua vez, apontará o fato de a larga propagação de religiões estar ligada à inversão ideológica que declara os homens não mais como criadores de deuses, mas como criaturas destes. O ventre das religiões é justamente essa ideologia. Nela se ancoram as doutrinas, os rituais, a fé. A dimensão da cultura (criação humana), onde devemos situar as religiões e os seus deuses, é apagada nessa concepção invertida (ideológica). A ideologia aqui referida mascara a verdadeira realidade que envolve homens e deuses: aqueles como os verdadeiros criadores; estes como suas verdadeiras criaturas.
Comum aos autores referidos aqui é também a ideia de que a religião nasce da ignorância sobre como o mundo é e de que se alimenta dessa ignorância. O alicerce da religião é a ignorância. E a fé religiosa estorva a capacidade de as pessoas desenvolverem o pensamento reflexivo e crítico.
É interessante ver que Dawkins, particularmente, se preocupa muito com a educação das crianças; ou melhor, se preocupa com a incapacidade de as crianças fazerem determinadas escolhas, como escolher se vão seguir ou não a religião de seus pais. Para ele, uma criança não se define como católica ou islâmica; ela não é nem uma nem outra, não tem maturidade para avaliar as implicações de assumir este componente de sua identidade; na verdade, segundo o autor, a ela é imposta a religião dos pais. A preocupação de Dawkins se justifica pelo fato de que a forma como o adulto se relacionará com a sua fé, defenderá suas crenças religiosas e encarará a religião em sua própria vida dependerá do modo como a doutrina religiosa foi inculcada nele, quando criança, pelos pais. É claro que, aliada aos pais, está a Igreja e seus cursos de doutrinação (no caso da Igreja Católica, o catecismo e a crisma). O modo como a religião influenciará o comportamento desse adulto durante a vida dependerá de como se desenvolveu a atividade de adestramento psicológico dele, quando criança, promovida pela família e Igreja.
Convém, agora, sintetizar a preocupação fundamental dessa corrente de ateístas: combater a ignorância religiosa, fonte de erros, irracionalidade e, em casos extremos, de violência. Mas é preciso elucidar esse ponto e a pergunta que devemos fazer é: no que consiste essa ignorância? Vale perguntar ainda: como ela se manifesta?
Os estudos filosóficos ensinaram-me a buscar o rigor na definição de termos e no tratamento de questões sobre a qual me debruço. Preciso, pois, me deter na definição de dois conceitos operacionais: o pensamento e a ignorância. O conceito de pensamento que me interessa aqui é aquele que se estrutura simbolicamente, ou seja, pela linguagem verbal. É o que devemos chamar de pensamento conceitual. Não existe fora dos quadros da linguagem, donde se segue que pensar é, com Kant, “conhecer através de conceitos”. Assim é que a mente constrói conceitos e os organiza na forma de juízos. Para mim, linguista, na forma de proposições, textos, discurso. O pensamento é essencialmente linguístico ou discursivo. Para Kant, pensar é julgar, é calcular. Quando tomamos os conceitos ‘menino’, ‘caiu’ e ‘no chão’ (as palavras criam conceitos) e os organizamos numa oração, formamos uma proposição ou pensamento: “O menino caiu no chão”. Essa frase reconstrói um estado-de-coisas no mundo tornando-o dado de nossa consciência, ou seja, forma de conhecimento. Posso desenvolver esse pensamento, articulando-o a outro pensamento. Por exemplo, posso articular àquela oração uma causa: “O menino caiu no chão, porque estava correndo do cachorro”. Casos há em que a oração introduzida pela conjunção “porque” não veicula a causa, mas a explicação para o que se enuncia anteriormente: “Deve ter chovido, porque o chão está molhado”. Note-se que “porque o chão está molhado” é uma justificativa para o ato de fala “deve ter chovido”, produzido na base de uma inferência feita a partir da constatação do estado do chão. É como se disséssemos: “Eu afirmo [deve ter chovido], porque o chão está molhado”. Diremos que a relação causal opera sobre proposições, de tal modo que B é causa de A; mas a justificativa ou explicação opera sobre atos de fala, de tal sorte que o que se apresenta é uma explicação/ justificativa para o ter dito B, ou seja, para a enunciação de B (Deve ter chovido).
Esses exemplos mostram que as relações entre os pensamentos envolvem também pensamentos não anunciados, ou seja, envolvem pressupostos e operações linguístico-cognitivas como inferências. Aliás, a inferenciação é uma atividade fundamental e indispensável na compreensão de textos, seja orais, seja escritos. Ao usarmos a linguagem, em nosso dia-a-dia, estamos em todo momento fazendo inferências. Um caso de pressuposição é ilustrado em “O carro parou de trepidar”. Desse enunciado depreendemos o pressuposto “O carro trepidava”. A unidade que ativa o pressuposto, ou que o sinaliza, é “parou de”. É por meio desse elemento linguístico que inferimos “o carro trepidava”. O pressuposto está inscrito no enunciado e é recuperado na base desse enunciado.
Em O que é Filosofia (2008), Caio Prado Jr. distinguirá entre o pensamento elaborador, que operando sobre conceitos e os articulando na forma de enunciados, é responsável pela produção de conhecimento, e o pensamento reflexivo, a saber, aquele que se volta sobre o já pensado (o conhecimento produzido).  O pensamento reflexivo é o pensamento sobre o pensamento. Na verdade, a conceituação, ou seja, a representação que a mente faz das ocorrências do real já é uma etapa do pensamento elaborador. Prado nos ensina sobre a relação entre essas duas formas de pensamento:

“Desse primeiro momento ou nível da atividade cognitiva (isto é, a elaboração da conceituação representativa da Realidade), o instrumento dessa atividade,que é o pensamento elaborador do conhecimento, se volta sobre si próprio e toma reflexivamente por objeto aquele mesmo conteúdo conceptual ou Conhecimento por ele elaborado”.
(p. 20)

O pensamento elaborador, responsável pela conceituação, se desenvolve a partir da experiência sensória do indivíduo. Ele se apóia nos dados acessíveis aos sentidos, conta com a experiência de mundo do indivíduo pensante. A transformação dos dados postos aos sentidos em dados de consciência, ou seja, em formas de conceitos, é no que consiste a conceituação.
Compreendida esta etapa, passo a considerar o conceito de ignorância. Não podemos deixar de referir o nome de Sócrates, considerado pelo Oráculo de Delfos, o homem mais sábio que já existiu, porque reconheceu sua ignorância, ao proferir a famigerada frase “só sei que nada sei”. Grosso modo, pensamos em ignorância como carência, insuficiência, falta ou ausência. Ignorar é desconhecer. Todos nós ignoramos em alguma medida. A ignorância reconhecida por Sócrates é o que eu chamaria de ignorância propulsora, a saber, aquela que nos impele ao conhecimento. Ela abre caminho para o conhecimento; uma vez reconhecida, o indivíduo se esforçará por saná-lo com o conhecimento. Ela é, assim, um vazio que deve ser preenchido com conhecimento(s).
A ignorância também pode ser pensada como um engano do indivíduo em relação à qualidade e correção de seus conhecimentos ou crenças. A ignorância faz com que ele tome por verdadeiro o que é falso, incorrendo em ilusão ou em erro. A ignorância mantém-no no nível das opiniões falsas ou da aparência, impedindo-o de alcançar a essência das coisas, a(s) verdade(s). Importa também entender, nessa discussão, o valor das evidências. Uma evidência é tudo aquilo que se impõe ao espírito de modo claro, distinto e para o qual se dispensa demonstração. A evidência racional importa às ciências. Descartes reconhecia a evidência intelectual como o único critério de objetividade. Consoante o filósofo, não podemos aceitar como verdade nada sem que antes se imponha ao espírito como evidente.
Entendemos por que Dawkins (e outros), ao ser indagado sobre o porquê de não acreditar na existência de Deus, responde de modo a fazer entender ao seu interlocutor que “faltam evidências”. Claro está que o conhecimento, para ter validade (incluindo-se, evidentemente, o conhecimento científico) precisa apoiar-se nas evidências. Elas constituem o conjunto de elementos necessários para corroborar ou negar uma dada teoria ou hipótese científica. É claro que as evidências não estão disponíveis de antemão; elas dependem de pesquisas desenvolvidas na base de um conjunto de pressupostos.
As evidências diferem dos indícios em termos de grau de confiabilidade ou certeza. As evidências são tomadas como provas de que uma crença ou ideia é verdadeira. Elas validam conhecimentos. Os indícios são sinais que apontam para a probabilidade de que algo tenha acontecido ou exista. No domínio da criminologia, da jurisprudência, do Direito, fala-se em indícios, sempre que na cena de um crime há pistas que podem ajudar para o conhecimento de quem foi o seu autor, bem como de como foi praticado.
A ignorância atacada pela corrente do ateísmo ativista representado nas figuras de Dawkins, Harris e Hitchens é uma espécie de ignorância que toma como verdades insuspeitas, inquestionáveis, inatacáveis determinadas crenças que carecem de evidências, de base empírica. Elas sequer contam com indícios. Mas também é uma ignorância que infertiliza o pensamento reflexivo. Ela o turva, obscurece-o e, não raro, o impede. A ignorância religiosa torna seu possuidor uma pessoa ingênua, incapaz, às vezes, de perceber as incoerências, contradições, disparates que vazam de seus pensamentos. Lembro que pensar é encadear proposições, frases, juízos; pensar implica um trabalho cuidadoso com a linguagem verbal, baseado em alguns princípios da lógica.
Vamos a um caso que constatei em uma postagem no facebook. Primeiramente, vale elencar algumas proposições vulgarmente produzidas sobre Deus, herança dos ensinamentos teológicos mediante a Igreja:

1. Deus é Pai;
2. Deus é amor;
3. Deus é bom;
4. Deus é todo-poderoso;
5. Deus é onipresente;
6. Deus é onisciente.

Na postagem, estampava-se a foto de um acidente de trânsito fatal. Quase toda uma família morta, exceto um menininho. A criança sobreviveu. A imagem incluía o dizer: “Quando Deus põe a mão”. Quer-se fazer crer que Deus, “pondo” suas mãos invisíveis, salvou a criança, evitando sua morte. Mas, inexplicavelmente, deixou seus familiares morrer. Devemos supor que Deus tenha um plano para aquela criança e outro “plano” para seus familiares? Mas o que dizer da criança que, além do trauma provocado pelo acidente e pela visão aterradora de ver seus familiares mortos, deverá levar uma vida na condição de órfã? Deus não foi bem sucedido. Um pai reconhece que uma criança necessita de seus pais; um pai que ama não deixaria seu filho abandonado; e o mais impressionante: se Deus é todo-poderoso, por que não salvou a todos, se não quis evitar o acidente (embora pudesse fazê-lo, já que seu poder de agir é absoluto)? Ele não parece tão plenamente presente assim, mas chegou a tempo de salvar a criança (devia estar ocupado naquele momento, mas se apressou em socorrê-la).
O que devemos reter, nesta ilustração, é o fato de que o que se diz de Deus entra em choque, em conflito com as ocorrências do real. A sobrevivência do menino surpreende, é claro; mas pode ser explicada pelas circunstâncias do acidente, por exemplo, a posição em que a criança se achava, seu tamanho, o ponto em que a força do impacto incidiu (provavelmente, no lado onde estava o motorista e as outras pessoas que morreram). Importa ver que não precisamos da hipótese de Deus para explicar o que parece ser um “milagre”, um acontecimento extraordinário e impressionante. Se lançamos mão dela, ficamos ainda sem explicação para o fato de Deus só ter salvado a criança e ter deixado morrer as demais pessoas no carro (seus familiares). Para os religiosos, em geral, crendo não ser a morte o fim da vida, não nos surpreendemos que possam dizer que a morte das outras pessoas que estavam no carro era plano de Deus, era a sua vontade. Essa crença absurda é para mim aterradora! Ter um ser todo-poderoso, senhor do universo, a decidir quem deve viver e quem deve morrer excede em horror qualquer história de terror já criada pelo gênio humano.
Lançar mão do dispositivo Deus para explicar os acontecimentos do mundo não só nos dá explicações errôneas sobre o modo como o mundo funciona, não só não nos fornece conhecimento nenhum, como também pode acarretar-nos mais inquietações do que serenidade. Talvez, essas inquietações não encontrem abrigo no coração dos fiéis, simplesmente porque eles não se ocupam em pensar seriamente sobre suas afirmações, sobre suas crenças a respeito da relação entre Deus e o mundo, a respeito do modo como Deus atuaria no mundo. Seria mais justo admitir que, se há um criador do Universo, esse criador se desinteressou de sua criação; ele não intervém em favor de suas criaturas, donde se conclui não evitar que terremotos matem milhares de pessoas, que um tsunami arrase uma cidade no Japão, que vulcões, epidemias causem choro e dor a muitos corações.
A ignorância a que se opõem ferrenhamente aqueles autores é também a ignorância da prepotência, da arrogância, da vaidade. As pessoas de fé não se permitem sequer pôr em xeque suas convicções. Raramente (ou nunca) se perguntam: “e se eu estiver errado?”. Essa pergunta honesta também poderia ser sugerida a nós, ateus, por eles, religiosos. Pode ser que estejamos errados; mas a falta de evidências a favor da existência de Deus tem corroborado até hoje a posição ateísta, a tem sustentado firmemente.
Quando o ateu nega a existência de Deus e se arvora na defesa de sua posição, ele, deve se esforçar por mostrar que muitos erros e crimes foram cometidos em favor da crença numa ideia ilusória. Devemos ter em conta que tudo que os homens fizeram até hoje (guerras, doutrinas, templos, vestimentas pomposas, sistemas hierárquicos, tratados de teologia, rituais, privações, etc.) em torno do nome de Deus fizeram-no em favor da consolidação e manutenção da crença em um ser que não pode ser experienciado sequer por microscópio ou outras técnicas avançadas (como as que são empregadas para estudar a complexidade de um átomo). Na escala existencial, Deus está abaixo de um micróbio, ou mesmo de um átomo (ou mesmo de um nêutron). A despeito de tantas crueldades, guerras, genocídios em seu nome, estranhamente, ele se mantém em profundos silêncio e omissão. Mas esse fato não incomoda as pessoas religiosas .
É verdade que não são todas as pessoas que chegam ao extremo de guerrear e cometer crimes em nome de Deus, mas muitas poderão, ao menos, romper relações ou evitá-las, caso descubram que um amigo ou colega nega-se a acreditar em Deus. Deus (a ideia de Deus) instaura uma cisão, uma discriminação, uma divisão no interior de uma sociedade ou comunidade. Sam Harris nos ensinou sobre o poder de uma crença, de uma ideia. A crença move as pessoas, leva-as a agir. Uma crença equivocada poderá (o faz) levar a ações equivocadas e, não raro, funestas.
Tem razão Gleiser ao nos chamar a atenção para o fato de que os ateístas da vertente ativista ignoram o que se passa nos corações dos fiéis, quando estes se entregam às suas orações, se envolvem em seus rituais e se relacionam com os imprevistos da vida. Por isso, o ataque ou a crítica não deve ser direcionado para o desejo ou o sentimento de que haja algo além da materialidade do mundo, da vida tal como a conhecemos. O problema dessa crença é a sua consequência. As pessoas que seguem tenazmente a doutrina da vida além-túmulo acabam por apregoar o desapego, o desinteresse pelas coisas desse mundo. Os mais extremistas, lançam aviões contra arranha-céus ou se suicidam com bombas presas ao corpo, levando consigo vários inocentes. Tudo porque acreditam que gozarão de felicidade eterna no paraíso reservado a eles por Deus (Alá).  É verdade que, entre nós, os cristãos católicos e evangélicos não alcançam esse grau de paixão envenenada; mas os últimos, especialmente, pregam um discurso apocalíptico e de conversão à causa de Cristo. Os católicos não fogem à regra. Também esperam pelo Juízo Final, com o retorno de Cristo. Há, como observou bem Onfray (2007), na doutrina cristã propagada por Paulo (embora nem todos os textos com seu nome tenham sido escritos por ele), obsessão pela morte, pelo fim absoluto.
O ataque deve ser dirigido, portanto, no sentido de evitar que a onda de ignorância alimentada pela religião em relação a questões éticas, políticas, sociais e culturais penetre as nossas instituições e sirva de parâmetro para estabelecer formas de convivência antidemocráticas e eivadas de preconceitos. Exemplos disso são a implementação por certas autoridades políticas da corrente evangélica do ensino da Bíblia nas escolas, a perseguição aos homossexuais, a disseminação da ideia absurda e repugnante de que a aids é um castigo de Deus aplicado aos homens, etc.
É claro que o debate aberto, a insistência em que a religião pode ser discutida sim devem constar da agenda ateísta. Se os religiosos participam, através de associações, pela mediação da igreja, social, cultural e politicamente, defendendo suas opiniões, seus valores, suas crenças, também nós, ateus, devemos lutar por maior participação nessas esferas. O conflito de percepções, de interpretações, de valores, de éticas é indispensável.
Devemos abandonar atitudes demasiado agressivas, as ofensas, as ridicularizações, sem deixar de sermos irônicos (quando necessário) e sagazes. A orientação de nosso discurso deve, não raro, situar-se no domínio em que as crenças religiosas são apresentadas e articuladas. É preciso atacar de dentro, e não de fora, o que significa apreender as conexões entre os dizeres. Se queremos pôr a nu a ignorância, devemos tateá-la nas entranhas de sua materialização verbal. Isso significa atentar para como os pensamentos são tramados e como reproduzem as gritantes incoerências da doutrina e das Escrituras.