terça-feira, 27 de dezembro de 2011

"O jeito de ver pela fé é fechar os olhos da razão". (Benjamin Franklin)

                        

                     
                             O que todo religioso deveria saber
                       O valor do conhecimento para a emancipação dos homens



   A conversa se estendia deliciosa, quando minha amiga indagou-me sobre o ter-me tornado ateu. Embora conserve sua fé, ela está entre as raras pessoas de fé que se dispõem a ouvir de bom grado um discurso polêmico. Decerto, ela não abraça a religião como as ovelhas cegas e surdas que se sentam enfileiradas nas igrejas. Ela pediu-me que justificasse a adoção do ateísmo e silenciou para que eu falasse, só interrompendo para corroborar alguns de meus argumentos.
Ambos fomos criados na tradição católica, mas, até então, apenas um de nós teve a coragem de romper com essa tradição. Este texto que ofereço à leitura pretende fazer ver que a minha adoção do ateísmo se deveu a razões tão-só intelectuais. Também neste texto dou a saber aos leitores um pouco do que venho aprendendo sobre religião, particularmente, sobre a Bíblia. Para tanto, trarei à baila as contribuições de um dos mais renomados especialistas nos estudos da Bíblia e da origem do cristianismo, autor cujos livros tenho lido com deliciosa atenção, Bart D. Ehrman. Em seu livro Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?, o leitor estará diante de um discurso claro, acessível e honesto. O autor nos ensina, entre outras coisas, sobre as discrepâncias entre os evangelhos, sobre suas contradições, sobre as ficções bíblicas e as dificuldades encontradas pelos historiadores em usar os evangelhos como fontes históricas.
Os meus leitores sabem que tenho escrito pouco ultimamente, por isso pretendo com este texto satisfazer essa carência. É possível, portanto, que ele exceda ao número de linhas ao qual, ultimamente, tenho limitado meus textos. Peço-lhes, pois, paciência.
Sem mais delongas, a adoção do ateísmo por mim resulta de uma aturada convivência com os livros. Tenho insistido em que minhas posições ateístas são intelectualmente fundamentadas. Não me tornei ateu por uma revolta contra as circunstâncias adversas nas quais vi minha vida envolvida; mesmo depois das dificuldades de saúde por que passei, conservei minha fé durante certo tempo. Sucede, contudo, que havia já em minha alma o germe da inquietude, do questionamento, da necessidade do conhecimento. A força motriz de meu ateísmo repousa justamente nessa necessidade de conhecer, de saber, de buscar a(s) verdade(s).
E os leitores que me acompanham desde que decidi publicar em blog meus escritos sabem bem que dois são os maiores valores em minha vida: o amor e o conhecimento. Valores, quer de um ponto de vista ético, quer de um ponto de vista utilitário, são indispensáveis à vida humana. A moral está fundamentada em valores. Em certo sentido, valores consistem em tudo que acarreta felicidade aos homens. Pois bem: o amor e o conhecimento trazem-me felicidade. E, se considerarmos a brevidade da vida e o fato de que certamente morreremos, pareceu-me mais profícuo dedicar-me a (viver ou pensar) o amor e acumular conhecimento.
Vou-me ater à necessidade de conhecimento. Apercebi-me de que o conhecimento é um valor intrínseco à condição humana graças à minha dedicação à leitura de livros de filosofia. A minha incursão neste terreno foi determinante para o meu reconhecimento do valor do saber. Com a filosofia, reconheci que ignorava. Os homens têm, nesse tocante, duas escolhas: ou buscam a ascensão ao conhecimento, reconhecendo, felizmente, que ignoravam, ou continuam ignorando que ignoram. Essa última escolha é comum entre os religiosos: eles permanecem ignorantes de sua própria ignorância. Eles ignoram que ignoram. Na verdade, espero fique claro, no decorrer desta exposição, que as pessoas de fé são ludibriadas.
No que toca à necessidade de conhecimento, gosto de referir uma passagem que se topa no livro Introdução à Filosofia – histórias e sistemáticas (2004), de Roberto Rossi. À página 37, do capítulo quarto, dedicado à consideração da realidade como objeto de saber, escreve o autor:

“Se a realidade fosse simplesmente um dado, não precisaríamos conhecê-la. Os outros seres vivos, tratando a natureza como um dado, apenas se adaptam a ela, aprendendo só o suficiente para sobreviver. Precisamente porque a realidade é um problema, o homem sente a necessidade de conhecê-la. E ela se revela problemática, somente porque o homem a põe em discussão como tal, em virtude de um critério alternativo, que lhe vem daquele conhecimento primeiro da verdade perdida.”

Espero que o leitor me acompanhe na avaliação que farei deste passo. Atentemos para a primeira frase. Admitir ser a realidade um dado significaria dizer que ela se impõe a nós como algo independente e como algo que não demanda conhecimento. Sabemos que o organismo dos animais são uma extensão do meio em que vivem; para eles, a realidade não é objeto de conhecimento. Tudo que precisam saber para sobreviver na natureza já está inscrito em seu organismo; eles estão geneticamente pré-dispostos aos atos necessários à sua sobrevivência. A relação dos homens com a realidade é diferente: para nós, que dispomos da razão e da linguagem (que representa um grande salto de nossa espécie), a realidade não é algo que pré-existe a nós, é algo que precisa ser (re)construído em nossas experiências de mundo. Nossa sobrevivência como espécie depende, em grande parte, do desenvolvimento de conhecimentos sobre ela. As nossas relações com a realidade são mediadas pela linguagem; a realidade entra em nossa consciência, em forma de conhecimento, graças à função de simbolização inerente à linguagem. Sabe-se, hoje, que nossa mente é um processo, ou melhor, um processador de informações (de símbolos). E o conhecimento da realidade - sua (re)construção contínua - se dá pela sua estruturação em categorias fornecidas pela linguagem.
Ora, está claro também que a realidade só é um problema na medida em que os homens a colocam em discussão, o que significa dizer que a submetem a um tratamento discursivo. Essa atitude é, insistentemente, rejeitada pelos religiosos, em geral, que não parecem dispostos a encarar suas crenças religiosas como um problema a ser debatido. Para eles, a realidade da religião é algo dado. Tais quais os animais, eles se adaptam a ela. Vale dizer que essa questão de adaptação ao que se sabe por herança de gerações anteriores é lucidamente desenvolvida por Daniel Dennett, em Quebrando o Encanto – a religião como fenômeno natural (2006). Vou citar um trecho interessante, com que o autor nos ensina sobre essa disposição dos homens (compreensível do ponto de vista de sua evolução) à adaptação às condições que resultaram de uma dada herança de grupos. O próprio filósofo, em debates, insiste na ideia de que as religiões devem ter o mesmo tratamento dispensado a questões políticas ou de interesse público (ou seja, não são imunes ao crivo da razão). É justamente o argumento a que me inclino, segundo o qual é necessário quebrar a “áurea” que torna a religião um assunto inatacável. A religião é uma realidade demasiado humana para não ser passível de discussão, de avaliação racional.
Atentemos para este trecho, em que o filósofo, apoiando-se no arcabouço teórico proveniente do darwinismo, nos ensina sobre nossa tendência sistemática à adaptação às condições culturalmente determinadas:

“Nossos cérebros se desenvolveram para se tornar processadores de palavras mais eficazes, e eles podem também ter evoluído para implementar com maior eficácia os hábitos culturalmente transmitidos das religiões populares. (...) Não há, de fato, razão alguma para supor que os animais tenham qualquer ideia a respeito dos motivos que os levam a fazer o que instintivamente fazem, e os seres humanos não são exceção. A diferença entre nós e outras espécies é que somos a única espécie que se preocupa com sua ignorância! Ao contrário de outras espécies, sentimos uma necessidade geral de compreender, de modo que, mesmo que ninguém deva compreender ou possuir a intenção de inovar qualquer dos projetos que criaram as religiões populares, deveríamos reconhecer que as pessoas, naturalmente curiosas, reflexivas, e dotadas de linguagem na qual enquadrar e reenquadrar suas perplexidades, teriam apresentado a probabilidade – ao contrário das aves – de se perguntar qual seria o significado desses rituais. A coceira da curiosidade não é forte em algumas pessoas, aparentemente. A julgar pela variação observável ao nosso redor hoje, seria justo apostar que apenas uma pequena minoria de nossos ancestrais chegou a ter o tempo ou a inclinação para questionar as atividades em que se engajaram com seus parentes vizinhos”.
(p. 173)
(grifos meus)

Grifei alguns fragmentos que me pareceram mais importantes para a compreensão desse trecho. Elenco abaixo essas ideias:

1º - Ignoramos, tanto quanto os animais, as motivações que nos levam a comportar-nos de modo instintivo;

2º - Em geral, nos preocupamos com a nossa ignorância, muito embora haja muitos dentre nós que permanecem ignorantes de sua ignorância;

3º - Somos, naturalmente, pré-dispostos ao conhecimento.

Ora, se somos dotados de uma inquietude cognitiva, o que explica a permanência na ignorância sobre determinados temas?. Mais especificamente, o que explica a tendência de os religiosos permanecerem ignorantes sobre a falsidade dos fundamentos de sua fé ou de sua religião? O que explica a conformação deles a um sistema doutrinário repleto de inconsistências e embustes? Dennett procura responder a esta questão, no referido livro (recomendo a leitura). O imperativo evolutivo é, de fato, um bom caminho explicativo, mas parece-me que não devemos atribuir a ele um poder explicativo absoluto. Devemos reconhecer que, a par desse determinante herdado pelo processo evolutivo, que leva os homens a fiarem-se naquilo que se sabe (ver. Dennett, p. 174), há o determinante cultural, ou seja, a atuação de gerações como adestradores de comportamentos. Parece lícito admitir que, historicamente, a Igreja, acumpliciada com o poder político, foi decisiva, como instituição ideológica, para a conservação das pessoas de fé em suas crenças, de cuja validade elas sequer suspeitam. Acredito que a conciliação entre os dois caminhos (o evolutivo e o cultural) constitui o modo mais eficaz de explicar por que as pessoas de fé permanecem irresistivelmente apegadas às suas crenças religiosas.
Nesta oportunidade, procurarei mostrar, valendo-me das considerações de Ehrman (na obra já referida), como é possível manter os religiosos ignorantes de sua própria ignorância, o que significa dizer fiéis ao que sabem graças ao adestramento perpetrado pelas instituições eclesiásticas há séculos. Espero que as luzes do conhecimento esclareçam as escuridões dos espíritos que ainda insistem em conservar sua credulidade. Espero que a névoa da ignorância seja dissipada e que as cortinas do esclarecimento se abram, revelando o engodo, a trapaça. Espero que meus leitores compartilhem comigo o pasmo que experimento sempre que, ao me dedicar à leitura, descubro que minhas suspeitas se confirmaram, ou  sempre que reconheço a vasta quantidade de conhecimentos de que, há anos, eu me privei.


1. Removendo o véu: que se faça a luz!

É notável na produção intelectual de Ehrman a sua honestidade. Como fizera em O problema com Deus, o autor nos conta sobre seu ingresso no seminário. Ele cursou o Seminário Teológico de Princeton (e chegou a ser pastor evangélico). Naquele tempo (1978), o jovem Ehrman entrara para a universidade com o único propósito de confirmar suas certezas de fé. Conta-nos, à página 10:

“Como um convicto cristão confiante na Bíblia, eu tinha  certeza de que ela, em todas as suas palavras, tinha sido inspirada por Deus. Talvez tenha sido isso o que me levou ao meu estudo intensivo”.

Sucedeu que as aulas no Seminário frustraram seu desejo de confirmação de sua fé, embora ele estivesse apaixonadamente disposto a argumentar contrariamente àqueles que insistissem em negar à Bíblia qualquer inspiração divina, patenteando suas contradições:

“Como bom cristão evangélico, estava pronto para demolir quaisquer ataques à minha fé bíblica. Eu podia responder a qualquer aparente contradição e a solucionar qualquer potencial discrepância na Palavra de Deus, fosse no Antigo ou no Novo Testamento. Eu sabia que tinha muito a aprender, mas não iria aprender que meu texto sagrado tinha algum equívoco”.
(p. 11)

Todavia, o autor não conseguiu resistir, por muito tempo, à força das evidências, muito embora, inicialmente,  permanecesse contrafeito:

“Algumas coisas não aconteceram como planejado. O que realmente aprendi em Princeton me fez mudar de ideia sobre a Bíblia. Não mudei a maneira de pensar com boa vontade – fui derrotado gritando e esperneando. Orei (muito) por causa disso e lutei (de forma extenuante) contra isso, resistindo com todas as minhas forças. (...) E após um bom tempo ficou claro para mim que minha antiga visão da Bíblia como a revelação inequívoca de Deus era absolutamente equivocada”.

(id.ibid.)
(grifo meu)

Está claro, pois, que Ehrman foi capaz de, por seu compromisso com o saber, abandonar suas opiniões sobre a Bíblia. E mais: ele foi honesto ao confessar isso. E terá a ousadia de nos revelar o que há nos bastidores que sustentam nossas convicções de fé.
Na seção seguinte, intitulada de Um ataque histórico à fé, Ehrman nos apresentará a perspectiva histórico-crítica, sob a qual a Bíblia é estudada nos centros acadêmicos por estudiosos cristãos, evangélicos, agnósticos (e possivelmente ateus). E nos lembra que eles não se preocupam em discutir a existência ou não de Deus. Deus não é a questão sobre a qual se debruçam. Adotando o método crítico-histórico, esses acadêmicos se preocupam em estudar a bíblia como uma obra humana, como um produto cultural e histórico, muito embora reconhecidamente os textos dela não possam ser usados como fontes históricas confiáveis. Nas palavras de Ehrman:

“Nos últimos duzentos anos, os estudiosos conseguiram um progresso significativo na compreensão da Bíblia, com base em descobertas arqueológicas, avanços em nosso conhecimento do grego e do hebraico arcaicos, línguas nas quais os livros das Escrituras foram originalmente escritos, e profundas e penetrantes análises históricas, literárias e textuais. É uma enorme empreitada acadêmica”.
(p. 13)

Estudos sérios desenvolvidos por estudiosos competentes e dedicados à produção do conhecimento só podem contribuir para a elucidação de nossa consciência. Ler a Bíblia na perspectiva histórico-crítica, e não devocional (que é comum entre os religiosos), é poder conhecer a verdade por trás dos textos desta que é a obra mais reverenciada do mundo. No entanto, como bem observa Ehrman (e eu já havia intuído isso antes de lê-lo), as pessoas, em geral, desconhecem os resultados do trabalho desses profissionais; ignoram as suas contribuições, (quase) nada sabem sobre as circunstâncias históricas, culturais, ideológicas nas quais a Bíblia foi fabricada.

“Mas essas visões sobre a Bíblia são praticamente desconhecidas da população em geral. Em grande medida, isso acontece porque aqueles que passam a vida profissional estudando a Bíblia não conseguiram transmitir esse conhecimento ao público em geral e porque, por várias razões, muitos pastores que tiveram contato com esse material no seminário não o partilham com os membros de suas igrejas quando assumiram seus cargos (...).”
(id.ibid.)
(grifo meu)


De passagem, gostaria de notar que a mesma situação de ignorância geral se observa na área dos estudos da linguística atinentes às relações entre língua e sociedade. A ideologia da correção idiomática, segundo a qual existem formas essencialmente corretas e erradas de usar uma língua persiste com muita força na consciência das pessoas (letradas ou não). Eis mais um desafio a ser superado!
Note-se bem: além da ignorância geral sobre os estudos bíblicos desenvolvidos pelos acadêmicos, há também a ocultação dessas contribuições pelos membros das igrejas, quando exercem o ministério. A farsa começa a ser revelada!
Qual é o valor do método histórico-crítico? O que ele nos permite conhecer? Ehrman nos ensinará a respeito dessa abordagem, na página 16. Leiamos com atenção:

“A abordagem histórico-crítica tem um conjunto de preocupações distinto, e portanto, implica um conjunto de perguntas diferentes. No cerne desse ponto de vista está a questão histórica (daí o nome) daquilo que os textos bíblicos significavam em seu contexto histórico original.”

Uma das perguntas aventadas por esse método é “quem foram os verdadeiros autores da Bíblia? Sabe-se que alguns dos autores de textos bíblicos não foram as pessoas que declaravam ser.

“(...) É possível (sim) que alguns autores de certos livros bíblicos na verdade não fossem ou tenham sido quem alegavam ser – por exemplo, que 1 Timóteo na verdade não tenha sido escrito por Paulo, ou que o Gênesis não tenha sido escrito por Moisés? Em que época esses autores viveram? Em que circunstâncias escreveram? Que questões estavam tentando abordar em seu próprio tempo? Como eles foram afetados pelas suposições culturais e históricas de sua época? Que fontes utilizaram? De quando são tais fontes? É possível que os pontos de vistas desses materiais diferissem uns dos outros? É possível que os autores que as utilizaram tivessem visões distintas tanto de suas fontes quanto uns dos outros?
(...)
(pp. 16-17)

Quantas questões podem ser exploradas pela adoção de um método que visa a descobrir a história real por detrás das Escrituras! E não posso deixar de notar minha perplexidade, quando, diante de um religioso portando a Bíblia, ouço-o dizer a respeito da verdade inabalável contida neste livro. Fico perplexo com a sua ignorância, com a sua ingenuidade. E, ao passar por uma igreja abarrotada de gente, lamento que permaneça ali ludibriada por discursos que lhe entorpecem a consciência, com uma série de embustes, de ficções, de crenças seriamente nocivas à inteligência.
O autor nos adverte sobre a questão da inconsistência das interpretações comuns em virtude, especialmente, de não termos acesso aos textos originais. As interpretações da Bíblia, que tão reverenciadas são pelos religiosos e ensinadas a eles pelas autoridades eclesiásticas, podem indicar (como indicam) a descontextualização das mensagens de seus autores. Segundo Ehrman,

“E se nem dispomos de palavras originais? E se, ao longo dos séculos durante as quais a Bíblia – tanto o Antigo Testamento em hebraico, quanto o Novo Testamento, em grego – foi copiado à mão, as palavras tiverem sido modificadas por copistas bem-intencionados mas descuidados, ou por copistas plenamente conscientes de que desejavam alterar os textos para fazer com que dissessem o que eles queriam?”
(p. 17)

Limito-me a sugerir a leitura da página 18, em que Ehrman aponta os principais problemas encontrados nos textos bíblicos, como, por exemplo, a grande probabilidade de a conquista da Terra Prometida ter sido baseada numa lenda.
A situação dos estudantes ingressos na universidade muda. Inicialmente dispostos a conservar suas convicções de fé, rendem-se à força das evidências.

“E assim que esses estudantes baixam a guarda, admitindo que pode haver equívocos na Bíblia, sua compreensão das Escrituras sofre uma mudança radical. Quanto mais leem o texto cuidadosa e intensamente, mais erros encontram; então começam a entender que na verdade a Bíblia faz mais sentido quando se reconhecem suas inconsistências, em vez de se insistir teimosamente que não há nenhuma, mesmo quando elas são tão evidentes”.
(p. 19)

Desacomodar-se, ter a ousadia de ver para além das aparências, superar, com coragem, o legado de equívocos, de enganos, de falsidades que nos foi transmitido por nossa educação religiosa; ao menos, desconfiar de que podemos estar redondamente enganados – essa é a lição que aprendemos nesse excerto.
A seção Do Seminário ao Púlpito, na página 25, é dedicada à observação de que os conhecimentos adquiridos pelos estudantes do seminário, justamente aqueles que são revelados pelo método histórico-crítico, não são transmitidos aos fiéis, quando aqueles se tornam sacerdotes (ou pastores).

“Uma das características mais impressionantes e chocantes do cristianismo hegemônico é que os seminaristas que aprendem o método histórico-crítico em suas aulas sobre a Bíblia parecem esquecer tudo sobre as abordagens críticas das Escrituras, as discrepâncias e contradições, descobrem todo tipo de erros e equívocos históricos, se dão conta de que é difícil saber se Moisés existiu ou o que Jesus realmente disse e fez, descobrem que há outros livros que um dia foram considerados canônicos mas acabaram não sendo incorporados às Escrituras (como outros Evangelhos e Apocalipses), passam a reconhecer que um bom número de livros da Bíblia é assinado por pseudônimos (por exemplo, escritos em nome de um apóstolo por outra pessoa), que na verdade não temos as cópias originais de nenhum dos livros bíblicos, apenas versões feitas séculos depois, todas elas alteradas. Eles aprendem tudo isso e, ainda assim, quando entram para o ministério da Igreja, parecem deixar isso de lado.”

Nenhuma pessoa gosta de ser enganada. Os consumidores sabem bem disso, quando procuram seus direitos no PROCON. Mas as pessoas que se sentam nos bancos de igrejas estão sendo enganadas há séculos, sem sequer desconfiar disso! Aqueles que lhes falam com a autoridade de especialistas na Palavra de Deus estão iludindo-as, ocultando-lhes os fatos, os conhecimentos que adquiriram nos anos em que se dedicaram a estudos seriamente comprometidos com a verdade. As religiões forjam as suas “verdades” inabaláveis, que não são senão resultados de produções falsificadas.
Ehrman conta-nos ainda sobre sua experiência como palestrante, que ensinava aos estudantes sobre as discrepâncias encontradas entre os Evangelhos:

“Em minhas palestras, falei sobre por que os historiadores têm dificuldade em usar os Evangelhos como fontes históricas, dadas as suas discrepâncias e o fato de que foram escritos décadas depois da vida de Jesus por autores desconhecidos que herdaram os relatos sobre eles da tradição oral, facilmente alterável”.
(pp. 25-26)

É, realmente, possível continuar confiante na credibilidade de textos discrepantes, escritos décadas depois da morte do homem em cujos ensinamentos eles foram inspirados, de textos resultantes de uma tradição oral? A Bíblia, como se compreende bem, é produto de muitas bocas e mãos humanas.
Conto ainda com a paciência de meu leitor para levar a bom termo este texto. Como professor universitário, Ehrman nos deixa um ensinamento importante:

“(...) outro dos meus principais objetivos – que deveria ser o de qualquer professor universitário – é fazer com que os alunos pensem.”
(p. 28)

Como professor universitário, dou razão ao autor, muito embora reconheça quão dificultosa é essa empresa. É razoável esperar que alunos universitários venham a se interessar pela reflexão crítica e, decerto, cabe ao professor criar as condições necessárias ao seu desenvolvimento. Fazê-los pensar é indispensável ao sucesso de seu desempenho acadêmico. Todavia, não podemos esperar a mesma inclinação à reflexão dos homens de fé, pelas razões que depreendemos de tudo que foi exposto aqui. Não será com algumas aulas e discussões que conseguiremos livrar as pessoas do adestramento desenvolvido em mais de dois mil anos de erros e falsidades. A despeito de suas contradições e inconsistências, a Bíblia é o livro mais vendido do mundo, portanto mais acessível às pessoas, independentemente de seu grau de escolarização.
Recentemente, li uma reportagem sobre um estudo que procurava corroborar a hipótese de que quanto maior a escolaridade de alguém menos propenso a adotar crenças religiosas estará. Essa correlação entre maior grau de escolarização e rejeição de um comportamento religioso já havia sido por mim sugerida. No entanto, minhas experiências na faculdade onde trabalhava pareciam derrubá-la. Além de qualificar-se com um mestrado (ou mesmo um doutorado), o professor universitário precisa ser alguém interessado em estudos sobre religião. O que observei foi a reprodução dos lugares-comuns que povoam as visões ou opiniões dos religiosos em geral. Quando a temática era Deus, eles não hesitavam em vomitar as concepções herdadas ao longo de anos de exposição ao discurso doutrinário religioso.
Tenho, por ora, que concluir que as pessoas religiosas são as menos interessadas em religião. Pode parecer contraditória essa declaração, mas a esclareço. Parece-me que, para seguir uma religião, é preciso demonstrar pouco ou nenhum interesse em estudá-la seriamente. Para os religiosos, a sua religião é um dado. Eles a herdaram de seus pais e, por um pragmatismo, levam-na adiante, apegados a ela, sem questioná-la.
Como ficou claro aqui (e em outros textos de cunho ateísta), eu ousei questioná-la e abandoná-la. E meu esforço, neste texto, consistiu em fazer ver que, tornando-me ateu, pude estudar e aprender mais sobre religião. Tornando-me ateu, aprendi sobre teologia e a história da formação do cristianismo. Tornando-me ateu, acumulei mais conhecimentos históricos e filosóficos. Tornando-me ateu, corroborei o valor do conhecimento e continuei dedicado ao repúdio a toda forma de ignorância que escraviza, que embota a consciência, que conforma, que resigna e submete. Tornando-me ateu, aprendi mais sobre as relações entre a Igreja e os Estados ditatoriais, sobre a cumplicidade entre os sacerdotes e os tiranos, na longa história da formação do cristianismo. E meus estudos prosseguem, e minhas leituras não cessam, porque o conhecimento é uma busca ininterrupta e nenhum sistema de crenças poderá pretender traçar-lhe um limite definitivo.

 http://ateusdobrasil.com.br/p/1655/



quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

"é sempre mais do mesmo" (Renato Russo)


                                              Mesmice

Após muitos dias sem envolver-me na leitura, decidi recolher-me nas páginas de alguns dos meus muitos livros. Não só o prazer da atividade em si me estimulava, mas também o intento de inspirar-me para tornar a escrever. Escrevo agora, a despeito de não tê-lo logrado. Não estou inspirado; portanto as palavras que figuram aqui são empurradas como móveis que precisam preencher outros espaços.
Estou enfadado da mesmice: dos lugares-comuns que circulam nos ambientes de relacionamentos on-line, dos programas de baixa qualidade cultural oferecidos pela televisão (o Big Brother voltará a ser exibido em janeiro), das frases agastadas que se proferem nessa época do ano (“que seus sonhos se realizem no próximo ano”). Estou enfadado das superstições, simpatias que, nessa época, especialmente, influenciam os espíritos crédulos. Estou enfadado da insistência nas promessas (que não se cumprem). Dos programas que convocam astrólogos, pais de santo, numerólogos e outros tipos de trapaceirólogos que falam à massa sobre as previsões para o próximo ano.
Enfado-me da programação da noite de réveillon. Da Globo com seu Show da Virada e as figurinhas repetidas de sempre (o time dos sertanejos e Ivete Sangalo). Enfado-me com a queima de fogos em Copacabana. Uma mesmice. Não me interessam os efeitos pirotécnicos que se estampam no céu. Não me despertam fascínio; apenas enfado. Enfado-me também com as compras natalinas; com as pessoas que deixam para comprar os presentes na última hora e as mesmas reportagens sobre esses atrasadinhos. Enfastia-me o consumismo típico dessa época; os shoppings lotados, o centro da cidade fervilhante de gente!!! E o sol calcinando a cabeça dos que se apressam para não deixar de dar uma “lembrancinha”!
E tudo que me enfada nesta época do ano haverá de se repetir no próximo ano. O Natal e o Ano Novo já não me encantam mais como outrora. Eu cresci. Foi-se o tempo em que essas datas me entretinham.
É chato ser um adulto crítico!

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

"Invejo todas as pessoas o não serem eu" (Fernando Pessoa)

 
                                  

                                            Pessoa em mim
                            Impressões do desassossego


Ainda estou por descobrir se a vida me está atravessada na alma, ou se eu nasci atravessado na vida. No entanto, tenho este sentimento vigoroso de mim e ele abriu-me um livro que é só meu. Suas páginas são manchadas com minhas lágrimas e com o meu sangue. E nelas eu estampo minhas tristezas, desnudo minha alma que vive a deslizar pelo amor. Embora poucas, as alegrias que ficam espalhadas não são menos intensas.

Tenho uma forte sensação de mim. Não temo a morte porque compreendo que toda forma de vida tende a ela. É o imperativo natural: tudo que vive deve morrer. Abro as páginas de Pessoa e o que acho ali me traz uma paz perturbadora, um espanto sereno; e me deixo estar, com os olhos pregados nestas palavras:

“Fui um momento com consciência, o que os grandes homens são com a vida. (...) Não saber de si é viver. Saber mal de si é pensar. Saber de si, de repente, como neste momento lustral, é ter subitamente a noção de mónada íntima, da palavra mágica da alma. Mas essa luz súbita cresta tudo, consume tudo. Deixa-nos nus até de nós”
(pp. 70-71)

O desassossego de Pessoa acolhe-me como um ninho acolhe uma ninhada. Este desassossego aninhado em minha alma desde que fui lançado a essa existência que excede às pretensões da razão, e desde que lhe reconheci o caráter contingente, pelas mãos de Sartre, esse desassossego me é tão íntimo, que suspeito teria sido eu que o sentia em outras épocas.

“Considero então que coisa é esta a que chamamos de morte. Não quero dizer o mistério da morte, que não penetro, mas a sensação física de cessar de viver. A humanidade tem medo da morte, mas incertamente, o homem normal bate-se bem em exercício, o homem normal, doente ou velho, raras vezes olha com horror o abismo do nada que ele atribuiu a esse abismo. Tudo isso é falta de imaginação. Nem há nada menos de quem pensa que supor a morte um sono. Por que o há-de ser se a morte se não assemelha ao sono? O essencial do sono é acordar-se dele, e da morte, supomos, não se acorda. E se a morte se assemelha ao sono, deveremos ter a noção de que se acorda dela. Não é isso, porém, o que o homem normal se figura: figura para si a morte como um sono de que não se acorda, o que nada quer dizer. A morte, disse, não se assemelha ao sono, pois no sono se está vivo e dormindo, nem sei como alguém pode assemelhar-se a morte a qualquer coisa, pois não pode ter experiência dela, ou coisa com que comparar. A mim, quando vejo um morto, a morte parece-me uma partida. O cadáver dá-me a impressão de um trajo que se deixou. Alguém se foi embora e não precisou de levar aquele fato único que vestira”.
(p. 71)

Não sinto medo da morte, tampouco me esquivo de pensá-la. Ela, como o amor, é tema recorrente em minhas páginas. Pensar a morte permite-nos sentir mais visceralmente a vida, a vida que pulsa em nossas entranhas, não do corpo, mas da alma. Quando pensamos, nos comprometemos mais com a vida. Pensá-la é ressenti-la. E cada pensamento que dedicamos a ela é um pouco dela que ressentimos. Quando pensamos sobre a morte, retiramos-lhe a catadura de horror. De fato, não acordamos da morte, como acordamos de um sono. O despertar para a morte só pode acontecer quando reconhecemos à vida o direito de morrer. Somos grávidos da morte, e esta certeza não se pode abortar. Abortam-se vidas prematuras, mas a morte está entranhada em nós; nascemos pré-destinados a ela. Não há vida sem morte; nem se pode morrer sem estar vivo. É óbvio, dirão, mas insistimos em negar essa implicação.

“O que tem a Assustadora Morte para Assombrar o Homem,
Se as Almas, assim como os Corpos, morrem?...
Da aflição e da dor nos libertaremos;
Não iremos sentir, porque não Seremos”.

(Lucrécio)

Se não mais seremos, não mais sentiremos; não-ser é o fim da consciência. Nada restará de nós, salvo as lembranças na memória dos que aqui ficaram. E, se, por ventura, tivermos sido artistas, legaremos nossa obra à posteridade; isso já é uma forma de sobreviver; mas entenda-se bem: a obra não torna à vida o artista, apenas o torna rememorável. O pó deixa a sua grandeza na obra legada. Isso distingue os artistas (poetas, escritores, escultores, pintores...) dos demais. A morte não os aniquila por completo.
A morte, que, por definição, não nos legará dor alguma (simplesmente porque não há mais o que sentir, quando se está morto) é temida porque ela atinge a todos nós, seres cientes dela, indiscriminadamente. A ela não importa se você se realizou ou não enquanto ser humano. O medo da morte advém, na verdade, do medo da não-realização enquanto pessoa. Provavelmente, uma pessoa que se realizou numa vida de longevidade não temerá tanto a morte.
A fragilidade da vida e a inexorabilidade da morte não me assombram, não me atormentam; sinto-as na lucidez imperturbável de meu espírito; sinto-as pulsantes em minha carne. Eu represento a morte de tudo quanto é baixo nesta vida e proclamo as alturas das coisas delicadas, frágeis, porém sublimes: a alma, o amor, a amizade, a ternura, a existência, a consciência de existir, de estar em relação de significação com os outros...
Eu só sei de mim, se não ignorar o outro, mas preciso dar-lhe a indiferença para alcançar uma dimensão mais potente e íntegra de mim. Dar-se demais ao outro nos fragmenta, e não convém viver colhendo os pedaços de nós, pois que talvez não tenhamos tempo de reunir os fragmentos.
Não temo a morte e sei que ela me espreita; porém o sentimento que tenho dela me adverte, me sinaliza como devo experienciar o tempo breve que tenho de vida. Eu existo por consentimento da morte. A morte é como o credor que nos permite viver, a despeito das dívidas. Viver bem é adiar o pagamento.
Uma consciência aguçada da existência implica reconhecer que a divisão passado-presente-futuro é mera abstração feita pelos homens, é uma forma de representar a temporalidade que se experiencia; uma dimensão que, de outro modo, é um ir-se imensurável. Donde se segue que o futuro é a não-consciência; que sou no presente e só posso saber de mim neste instante mesmo em que estou consciente de que sou entre as coisas e as pessoas que me cercam. O futuro não é senão o presente que não se realizou para a consciência para a qual só há presente (o passado é memória da qual temos que tomar consciência, só assim o passado é presente a nós). A vida se dá a nós através dos momentos, dos instantes e dos sentimentos experienciados, desde o momento em que acordamos até o momento em que repousamos para o sono da noite. A vida se dá a nós pelos relacionamentos, pelo existir que é estar em relação com o mundo, uma relação significativa. Os homens são seres de sentido e o sentido lhes é essencial. Homens vêem-se às voltas com questões sobre o sentido da vida. Quando o sentido lhes escapa, a vida perde o valor. Essa necessidade de dar sentido às suas experiências de mundo explica por que os homens precisam dar sentido à morte. Se a morte é o fim da consciência, se ela porá fim a tudo que experienciamos, então deve ela também ter sentido. Somos caçadores de sentido! Mas a morte é o esvaziamento do sentido. Vida e morte nos vinculam ao absurdo. A morte implode a razão. A vida a excede. À razão resta compreender os modos como a vida se dá, como se manifesta, como é experienciada, sem nunca pretender alcançar-lhe as raízes que lhe permitiram acontecer (para o homem comum deve ser assim). A vida aconteceu e nós passamos a existir. Trazemos na alma excesso de sentido que será destinado ao nada. Para mim, é isso que torna a vida plena de sentido.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

"Se 5 bilhões de pessoas acreditam em uma coisa estúpida, essa coisa continua sendo estúpida." (Anatole France)

                 



                                
                                Para além da ignorância: do ser ateu



Feuerbach tem muito a nos ensinar, em A essência do Cristianismo (2009). Os religiosos deveriam permitir-se à leitura deste eminente filósofo alemão, que legou ao mundo um estudo antropológico, lúcido e consistente, da religião, em especial, do cristianismo. Ele vai às raízes, onde Deus é inventado. À página 134, escreve:

“(...) a especulação religiosa também considera os dogmas separados do contexto no qual eles somente têm sentido; ela não os reduz criticamente à sua verdadeira origem interna; antes transforma ela o derivado em primitivo e inversamente o primitivo em derivado. Deus é para ela o princípio: o homem vem depois. Assim distorce a ordem natural das coisas! O principio é exatamente o homem, depois vem a essência objetiva do homem: Deus”

Reitero aqui: Deus é a essência objetiva do homem. É somente possível um debate equilibrado e racionalmente orientado se os religiosos estiverem de acordo quanto a esta premissa: foram os homens que inventaram Deus. Inverter essa relação é ideologia. E o leitor que me lê me diria: mas pensar assim desmontaria todo edifício da fé, mostraria que as religiões são fabricações humanas pelas quais os homens contemplam, adoram a sua própria essência, nada além disso. Decerto, é isso que Feuerbach se esforçou por nos fazer ver. Para ele, a religião representa a cisão do homem consigo mesmo. Nas palavras do autor,

“(...) ele [o homem] estabelece Deus como um ser anteposto a ele. Deus não é o que o homem é, o homem não é o que Deus é. Deus é o ser infinito, o homem o finito. Deus é perfeito, o homem imperfeito; Deus é eterno, o homem é transitório; Deus é plenipotente, o homem impotente; Deus é santo, o homem pecador, Deus e homem são extremos: Deus é o unicamente positivo, o cerne de todas as realidades, o homem é unicamente negativo, o cerne de todas as nulidades”.
(p. 63)

Depreendemos daí que Deus é a antítese do homem. Na religião, se dá a cisão entre o homem e sua essência, que é objetivada como Deus.
Certamente, Feuerbach contribuiu significativamente para a consolidação de meu ateísmo. Entretanto, como insisti em recente controvérsia com alguns desconhecidos cristãos, numa rede virtual de relacionamentos sociais, meu ateísmo é fundamentado e, embora eles me tenham admoestado de que eu, como o supõem, não li a Bíblia, ou pelo menos não da forma como eles a leram, eu me tornei ateu, em grande medida, porque alcancei uma compreensão dos fatos, da história que a eles escapa. E insisti em que a religião promove a ignorância – e não só uma ignorância que atenta contra o bom-senso, mas também uma ignorância histórica. Afinal, eles se vangloriam de serem leitores (dedicados?) da Bíblia, mas nada sabem a respeito da História de sua fabricação. Estou quase certo de que livros como Evangelhos Perdidos (2008), de uma das maiores autoridades nos estudos do cristianismo primitivo, Bart D. Ehrman, não chegaram ao conhecimento deles (e provavelmente, não chega ao da maioria dos religiosos, que em igrejas, entoam cantos, se ajoelham e louvam as palavras que constam dos evangelhos canônicos). Entretanto, esses mesmos religiosos ignoram o fato de que existem outros evangelhos, hoje, então conhecidos, que foram considerados heréticos e excluídos do cânone. Ensina-nos Ehrman a este respeito, na referida obra:

“Quase todas as Escrituras “perdidas” dos cristãos primitivos eram falsificações. Com relação a isso concordam acadêmicos de todas as correntes, liberais e conservadores, fundamentalistas e ateus. O livro atualmente conhecido como o Proto-Evangelho de Tiago declara ter sido escrito por ninguém menos que Tiago, irmão de Jesus (ver Mc 6:3; Gl 1:19) (...) Mas quem quer que tenha escrito o livro, não foi Tiago. (...) Isso é verdade também com relação a quase todos os Evangelhos, Atos, Epístolas e Apocalipses que vieram a ser excluídos do cânone e falsificações em nome de apóstolos famosos e seus companheiros”.
(p. 28)

Há, portanto, aí, um testemunho histórico de que a Bíblia que chegou até nós foi produto de uma série de disputas, de falsificações e exclusões, em favor dos que detinham o poder. Nesse tocante, Ehrman levanta as questões seguintes:

“Como falsificações puderam entrar no Novo Testamento? Possivelmente, é melhor reverter a pergunta: por que falsificações não entrariam no Novo Testamento? Quem estava compilando os livros? Quando o fizeram? E como eles poderiam saber se um livro supostamente escrito por Pedro foi de fato escrito por Pedro, ou se um livro supostamente escrito por Paulo era realmente de Paulo? Até onde sabemos nenhuma dessas cartas foi incluída em um cânone de textos sagrados até décadas após terem sido escritas, e o cânone do Novo Testamento como um todo ainda não alcançaria sua forma final pelos dois séculos seguintes. Como alguém podia saber, centenas de anos depois, quem tinha escrito tais livros?”

(p. 30)

A VERDADE é intricada e depende de um esforço intelectual ao qual os religiosos que seguem fielmente as doutrinas que lhes são entulhadas na mente não demonstram qualquer disposição. É mais cômodo acreditar que a Bíblia realmente foi escrita por homens agraciados pela inspiração de Deus e não por muitas mãos que, ao longo de muitos séculos, falsificaram e deturparam textos e travaram lutas de poder em torno dos escritos que iam sendo forjados. É mais cômodo acreditar que a única visão de mundo verdadeira e a única forma de compreender a natureza de Cristo são as que foram institucionalizadas pelo cristianismo “vitorioso” do que saber sobre a existência de uma ampla diversidade de cristianismos, recoberta pela designação Cristianismo primitivo. Nos séculos II e III, havia pessoas que acreditavam em um único Deus, mas também havia quem acreditasse em dois, trinta, ou mesmo em 365 deuses (ver. Ehrman, p. 18).
Também nesses séculos, houve cristãos que creram que a Escritura Judaica (“Antigo Testamento”) fora inspirada por um Deus único e verdadeiro. Outros, por outro lado, acreditavam que, embora inspirada pelo Deus dos judeus, ele não era o Deus único e verdadeiro. Houve ainda aqueles que acreditavam que ela fora inspirada por uma divindade maligna. E, finalmente, havia cristãos que negavam qualquer inspiração.
Naqueles tempos, também houve aqueles que divergiam em crenças a respeito da natureza de Jesus. Houve aqueles que atribuíam a Jesus a dupla natureza: humana e divina. Houve os que acreditavam que ele era apenas divino e não humano. Outros ainda creram ser Jesus homem que fora adotado por Deus para filho, mas que não era divino por si mesmo. Havia cristãos que acreditavam ter sido Jesus humano; e Cristo, divino - este teria habitado o corpo de Jesus temporariamente e inspirado seus ensinamentos e milagres, abandonando-o antes da morte.
Nos séculos II e III, cristãos houve que acreditavam que a morte de Jesus nada tinha a ver com salvação; outros, porém, pensavam ao contrário: a morte significou a salvação do mundo. E ainda havia grupos que acreditavam que Jesus nunca morreu.
A religião nunca poderá pretender à verdade; seu pilar é a (confiança sem provas). Com que critério se poderia definir qual das muitas crenças que circulavam naqueles tempos era a verdadeira?
Na seção As Escrituras perdidas (p. 20), Ehrman nos ensina que os Evangelhos encerrados no Novo Testamento foram todos escritos anonimamente; só posteriormente lhes foram atribuída autoria. Nas palavras do autor:

Mas na época em que esses nomes estavam sendo associados aos Evangelhos, outros livros da mesma espécie tornavam-se disponíveis, textos sagrados que eram lidos e reverenciados por diferentes grupos cristãos em todo o mundo: um Evangelho, por exemplo, que declarava ter sido escrito pelo discípulo mais próximo de Jesus, Simão Pedro; um outro de seu apóstolo Filipe; um Evangelho supostamente escrito pela discípula de Jesus, Maria Madalena; um outro do próprio irmão gêmeo de Jesus, Dídimo Judas Tomé.”

(p. 20)

Evidentemente, conforme assinala o autor, alguma pessoa decidiu pela inclusão de quatro desses primitivos Evangelhos no cânone. Donde a pertinência das questões suscitadas por ele:

“Mas como foram tomadas essas decisões? Quando? Como se poderia ter certeza de que estavam corretos? E o que aconteceu com os outros livros?

Vale notar ainda que os estudiosos não estão de acordo se Paulo foi realmente o autor de suas cartas. Há cartas atribuídas a Paulo que não constam do Novo Testamento, como as muitas que ele enviara ao filósofo romano Sêneca.
A única verdade que subsiste, neste terreno de disputas e crenças divergentes, é a verdade dos fatos, da história, que é trazida à cena por estudiosos como Ehrman. A verdade sobre a fabricação das Escrituras Sagradas pode ser resumida nestas linhas:

“Hoje sabemos que em alguma época, em algum lugar, todos esses livros não-canônicos, assim como muitos outros, foram reverenciados como sagrados, inspirados e escriturais. (...) Somente 27 dos livros cristãos primitivos foram enfim incluídos no cânone, copiados por escribas através dos tempos, finalmente traduzidos para o inglês [e para o português], e agora estão nas estantes de praticamente todos os lares dos Estados Unidos [e do Brasil]. Outros livros vieram a ser rejeitados, escarnecidos, amaldiçoados, atacados, queimados, completamente esquecidos – perdidos”.

(p. 21)
Em face das evidências, em face da verdade a respeito da fabricação da Bíblia, pergunto-me com que direito os religiosos podem me censurar por não acreditar em Deus e não acreditar que Jesus tenha operado milagres e tenha sido, em parte, divino? Para mim, o fato de a Bíblia ter sido resultado de uma série de cópias, falsificações e escolhas politicamente determinadas é uma prova suficiente de que não representa nem a mente de um suposto Deus, tampouco fora inspirada por ele. Como poderia Deus ter silenciado em face dessa fragmentação e deturpação de seus pensamentos? Escusa lembrar que há entre os Evangelhos constantes do cânone contradições, como a que diz respeito ao local onde Jesus nasceu. Isso também aponta para o fato de que a Bíblia é um produto literário de mãos e mente humanas.
Os estudiosos admitem, há muito, que mesmo os textos incluídos no cânone são  falsificações. Alguns preferem chamá-los de escritos “pseudonímicos”.
O que a História nos revela sobre Jesus? Que ele era um profeta judeu, um dentre os muitos pregadores que circulavam na Palestina do século I d.C. Jesus anunciava o Reino de Deus – e Reino de Deus não fora empregado como uma metáfora. Jesus acreditava que Deus viria à Terra para estabelecer o seu Reino, sem injustiças e desigualdades sociais. A intervenção divina seria uma intervenção política, que poria fim às relações de classe.
Jesus, contudo, se destacara dos demais profetas, por três razões: primeiramente, ele rejeitava a luta armada; demonstrava-se impaciente com a observância exagerada dos preceitos judaicos; e aceitava as mulheres entre seus seguidores, o que contrariava os costumes das correntes rabínicas da época.
Paulo de Tarso, que outrora perseguia cristãos, converteu-se, tornando-se, segundo alguns estudiosos, o inventor do Cristianismo. Na realidade, foi ele seu principal propagador. Todavia, se considerarmos o modo como Paulo encarava a condição da mulher, seu pensamento é um verdadeiro retrocesso em relação à posição de Jesus. Na Primeira Epístola a Timóteo (2, 11-15), declara:

“A mulher aprenda em silêncio com toda a submissão. Pois não permito que a mulher ensine nem tenha domínio sobre o homem, mas que esteja em silêncio. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E Adão não foi enganado, mas a mulher, sendo enganada, caiu em transgressão; salvar-se-á, todavia, dando à luz filhos, se permanecer com sobriedade na fé, na caridade e na santificação, com modéstia”.

Pergunto-me como uma visão de mundo tão machista e sexista pode ainda orientar o pensamento de muita gente no século XXI, em sociedades modernas que vêm rejeitando as condições de assimetria entre os gêneros, em sociedades em que o homem deixou de ser o pai de família e provedor, em sociedades em que, reconhecidamente, as mulheres vêm alcançando maior participação social e política?
No entanto, devemos nos acautelar. Parece que nem todas as cartas são de autoria de Paulo. Em Gl 3: 28, Paulo declara: “em Cristo, não há homem ou mulher”. Paulo consentiu que mulheres falassem em igrejas, mas recomendava que cobrissem a cabeça, quando orassem e profetizassem.
De qualquer forma, é historicamente comprovado que as condições de existência da mulher, naqueles tempos, eram drasticamente limitadas e caracterizadas por submissão à figura patriarca.
O ateísmo nos permite um olhar de fora, do exterior, não-contaminado, não-infectado de dogmas, preceitos, crenças infundadas. O olhar ateísta permite-nos compreender a religião como uma instituição humana que, historicamente, serviu a interesses políticos. Pensá-la como uma realidade que paira sobre o meio sócio-cultural e político, que está além deste mundo e que, portanto, não pode ser colocada em debate, é mascarar o fato de que ela é uma realidade produzida por homens e, como tal, passível de discussão e entendimento.
Se, por um lado, podemos dizer que Jesus, enquanto viveu, teve boas intenções, pregando o amor, a pacificação e a igualdade; por outro lado, também é correto afirmar que seus ensinamentos não foram bem assimilados pelas gerações posteriores. Em 385, bispos pediam a cabeça de hereges. Em O livro negro do cristianismo: dois mil anos de crimes em nome de Deus,  lê-se a respeito dessa prática nefasta:

“O primeiro a sofrer as consequências do novo costume foi o bispo espanhol Prisciliano, em 385. Condenado e banido por dois concílios regionais, Prisciliano que tinha um grande séquito popular, foi torturado e condenado pelo imperador Máximo, a pedido dos próprios bispos. Junto com ele, morreram seis de seus discípulos, dentre os quais uma mulher”.
(p. 50)

Para sentir-se confortado numa religião, como o cristianismo, é preciso ignorar a sua História, é preciso ignorar os sem-número de eventos de violência, de conflitos perpetrados por homens de fé. É preciso ignorar e se ajoelhar, se submeter, crer sem questionar, ter fé sem usar-se da inteligência racional, sem ousar refletir por um instante sequer, limitando-se a reproduzir o que se vem ensinando há séculos de doutrinação. “Cristo nos salvou”, “Deus é amor”, “Jesus é o caminho, a verdade e a vida”, etc.
As religiões, e já nos ensinara Rubem Alves, são feitas de símbolos. As pessoas religiosas ignoram isso; os católicos creem realmente que no cálice há o sangue de Cristo e que a hóstia é parte do corpo e agradecem por participar desse canibalismo simbólico. A cruz é, no cristianismo, símbolo da salvação, mas o judaísmo a vê como símbolo da maldição. A mim, me custa aceitar a cruz como símbolo de salvação, já que era um local de sofrimento e morte – a pior forma de punição aplicada a criminosos na Antiguidade. Há, aqui, uma violência simbólica.
           Ser ateu significa romper com uma longa tradição de falsificações, de adestramento psicológico, de aviltamento do humano e da inteligência, de assassinatos, guerras, disputas, conflitos. O ateu não é só aquele que afirma não existir divindade alguma, mas também aquele que se recusa a compactuar com uma longa história de absurdos e imposturas, que se recusa a ser um herdeiro de uma tradição que conserva os homens num delírio.
Aqueles que insistem em valer-se da Bíblia como autoridade no modo como vêem o mundo e o interpretam sequer desconfiam de que a leem segundo a leitura que lhes é ensinada na igreja; não leem criticamente; leem como leitores passivos, que se apóiam numa leitura institucionalizada e teologicamente conveniente. Lêem segundo o filtro interpretativo legado por uma tradição de Concílios. Lêem aquilo que deve e pode ser lido. 

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

"Por que eu devo permitir que o mesmo Deus que abandonou seu filho me diga como cuidar do meu?" (Robert Green Ingersoll)

                                   
                                                      


 ATEÍSMO QUE LIBERTA   CONTRA TODA
     FORMA DE PRECONCEITO



Escusa dizer que eu não me tornei ateu da noite para o dia e que esta condição resultou de incessantes períodos de leitura e reflexão. Só mesmo com leitura e reflexões aturadas pude expurgar o excesso de crenças e opiniões infundadas de que uma longa tradição religiosa, da qual eu fui, acidentalmente, uma continuidade, me impregnou. Esta herança tornara-me deslumbradamente ignorante ou, se preferirem, um ingênuo conformado. Conformado com a esperança de que houvesse uma existência metafísica para uma ideia: a de deus, embora eu não me cuidasse um religioso conformado; ao contrário, estava sempre questionando as convicções dos paroquianos, dos familiares e discordando, em silêncio, de toda a pregação cansativa do padre. Eu era um rebelde metafísico em potência, que veio a descobrir a vantagem de viver uma vida que pudesse ancorar-se em explicações e justificativas racionais, com base em evidências disponíveis.
As religiões são um insulto à dignidade humana e elas promovem o aviltamento do humano: os homens precisam se rebaixar para adorar a deus (que não é senão, com Feuerbach, a própria essência humana projetada para fora de si e pensada como um Ser a quem se atribuem qualidades humanas superlativizadas). Toda forma de religião é, historicamente, infensa à razão. Como não encontrem justificativas racionais para validar suas doutrinas, os homens de religião se valeram do conceito de (que é uma confiança sem ter provas). Assim, ensina-nos uma longa tradição discursiva monoteísta: “tenha fé, e ignore as evidências”.
Onfray, em Tratado de Ateologia (2007), escreve, nesse tocante, o seguinte:

“O monoteísmo detesta a inteligência, virtude sublime que define a arte de ligar o que, a priori e para a maioria, passa por desligado. Ela torna possíveis as causalidades inesperadas, mas verdadeiras: produz explicações racionais, convincentes, apoiadas em raciocínios; recusa toda a ficção fabricada. Com ela, evitam-se os mitos, e as histórias para as crianças. Não há paraíso depois da morte, não há alma salva ou condenada, não há Deus que sabe tudo e vê tudo; bem conduzida, e de acordo com a ordem das razões, a inteligência, a priori atéia, impede todo pensamento mágico”
(p. 53)

O monoteísmo ainda ensina-nos ser esta vida de pouco valor e nos incute a crença em que uma vida mais próspera e feliz nos aguarda depois da morte, sem embargo da falta de evidências. As religiões se fundam na ignorância e se desenvolvem pelo medo, pela angústia, pelo desespero daqueles que, conscientes da sua finitude, não encontram sentido em sua vida, sem ancorarem-se na crença na existência de um Criador de todas as coisas, muito embora esse Criador, infinitamente benevolente e amoroso, também teria sido o responsável por criar inúmeros microorganismos e parasitas que causam uma série de enfermidades nos demais seres de sua criação, incluindo aqueles pelos quais ele teria certa predileção (ou não): os homens. Como explicar por que o hiv, o câncer e as inúmeras bactérias existam pelas mãos de um Ser que só quer o bem do homem?
As críticas à mentalidade religiosa podem ser feitas de diferentes maneiras, podem enveredar-se por diferentes caminhos; no entanto, aqui vou apresentar uma crítica mais fundamental, a que se apóia no raciocínio, no poder que a razão tem de representar um estado-de-coisas verificável e confiável do mundo. Veremos, assim, que é a ignorância o pilar do discurso religioso, um discurso envenenado, impregnado de crenças aleijadas e irracionais.
Devemos assumir, tacitamente, a existência de Deus, sem provas, como o fazem os religiosos. Logo as proposições abaixo se baseiam no pressuposto de que Deus existe.

1a proposição: Deus é quem criou o universo e de tudo que nele existe.
(essa proposição implica, entre outras coisas, que Deus criou a Natureza e os seres que participam dela; logo os animais sencientes)

2a proposição: Deus é todo-poderoso

3a proposição: Deus é bom, ou melhor, boníssimo.

Vamos ignorar que na Bíblia, especialmente no Antigo Testamento (convido o leitor a ler O Problema com Deus, de Bart. Ehrman), Deus não era uma personagem tão boa assim; aliás, era muito maléfica. O Deus de Abraão era capaz, inclusive, de fazer pacto com o diabo. Mas vamos ignorar isso, por ora. O Deus de amor fora anunciado por Jesus (muito embora se acredite que esse mesmo deus reserve aos transgressores um local onde haveria dor e ranger de dentes).
As três proposições afirmam coisas a respeito de deus: na primeira, afirma-se que ele é o Criador de tudo quanto existe; a segunda que ele pode tudo, que seu poder de atuar é irreprimível, ele é absoluto, nada o constrange, nada pode impedi-lo de agir; a terceira, enfim, afirma que ele é bom e, sendo bom, rejeita o mal.
Ocorre que tal deus deveria contribuir significativamente para a vida de todos os seres vivos criados por ele. Agora, confrontemos o conteúdo destas proposições com o que realmente acontece no mundo. Em primeiro lugar, como criador de todas as coisas, deus demonstra-se bastante incompetente ou mal: ele criou vírus, bactérias, terremotos, vulcões, enfim, toda uma sorte de manifestações naturais que podem nos fazer enfermos ou nos reduzir a pó. A natureza nos dá provas suficientes de que não há ninguém no comando. Ele bem que poderia resolver (já que pode tudo) o problema dos sismos entre as placas tectônicas, acabando com os terremotos, que não indicam qualquer propósito e que, ao contrário, apontam para o fato de que a formação do planeta não se deu segundo um projeto inteligente. Um ser infinitamente inteligente seria capaz de reconhecer que vibrações do solo com poder de destruição em larga escala não contribui em nada para a prosperidade e felicidade dos seres que habitam estas terras. Não “servem” ao bem deles. Os religiosos supõem ter em mãos um testemunho da “mente” de deus, então gostaria que explicassem a razão da existência dos terremotos sob a ótica de Deus.
Ora, se a Natureza lança diante dos nossos olhos tantos fenômenos catastróficos que indicam que, se houvesse um ser benevolente cuidando de cada um de nós, ele deveria ser capaz de evitá-los, então lidamos com uma evidência para a conclusão de que não há deus nenhum. E ainda fica a nos incomodar a questão: por que um Ser infinitamente bondoso iria criar terremotos, vulcões, furacões, tsunamis, tornados, etc? Por que um deus infinitamente bondoso iria criar parasitas, bactérias, vírus, todos agentes patológicos?
Ainda no tocante à ignorância, tive já a oportunidade aqui de divulgar um texto em que dou exemplos de homossexualismo entre os animais não-humanos. E tive a oportunidade de fazer ver, na base de evidências, que o homossexualismo é um comportamento que participa da natureza; portanto, natural. È preciso muita ignorância para ter a ousadia de afirmar que o homossexualismo é inatural e que o natural é o comportamento heterossexual. E é preciso também grande dose de ignorância para afirmar que o homossexualismo é em si condenável, já que entre povos antigos a prática homossexual era aceitável e apreciável. Os antigos gregos mantinham práticas homossexuais e bissexuais. Assim era antes que as ideias cristãs, pelas pregações de Paulo de Tarso, invadissem o território conhecido como Ásia Menor e chegassem às mentes dos habitantes de Corinto. Muitas sociedades antigas aceitaram o homossexualismo; outras mais o rejeitaram. Assim também nem todas as religiões o condenavam: as da Grécia pagã o adotavam em seus rituais. No entanto, é com o advento e o fortalecimento do cristianismo, ou seja, com a sua propagação pelo mundo ocidental que as práticas homossexuais passaram a ser não só condenadas, como também perseguidas. Pode-se dizer que as culturas influenciadas pelas religiões abraâmicas tendem a ser intolerantes com o homossexualismo. A ideia absurda segundo a qual Deus condena a homossexualidade se deve a tais influências na formação do pensamento ocidental.
Na agenda dos desafios deste primeiro decênio do século XXI, está o combate à intolerância religiosa e à perseguição aos homossexuais. A homofobia tem crescido em nossa sociedade e é urgente que nossas autoridades atentem para o fato de que se trata de uma dentre as formas de discriminação e violência, não raro, justificadas pela herança da doutrinação judaico-cristã. É inaceitável que grupos separatistas, formado por jovens ignorantes e estúpidos, continuem a violentar indivíduos, pelo simples fato ou suspeita de que sejam homossexuais e ainda justifiquem tais atos hediondos por uma suposta autoridade, seja a Bíblia, seja deus. Novamente, vemos aqui quanto uma visão de mundo, provinda de uma cultura distante temporalmente (cultura centrada na figura paterna, autoritária e que inseria a mulher numa condição de degradante submissão) pode influenciar o modo como muitos indivíduos de gerações posteriores, vivendo numa época diferente, atuam e compreendem as condições de existência numa sociedade que busca trabalhar suas desigualdades numa forma democrática de governo laicizado.
É fato que muitas religiões do mundo incluem ensinamentos anti-homossexuais. No Islamismo, em geral, o homossexualismo é proibido. O cristianismo também não o aceita, tratando-o como pecado.
É urgente que se dilua a áurea sagrada da religião, sob a qual muitos homens se encobrem e na qual se garantem quando buscam justificar os atos mais execráveis. É preciso reconhecer, de uma vez por todas, que as religiões têm prestado um lamentável serviço para a depravação da razão e da inteligência humanas e para a justificação da barbárie.