quarta-feira, 9 de novembro de 2011

"Quando o primeiro espertalhão encontrou o primeiro imbecil, nasceu o primeiro deus." (Millor Fernandes)

                     Ser ateu


Certa vez, numa conversa on-line com uma amiga distante, ocorreu-nos a ideia de que haveria alguma ligação necessária entre ser graduado e ser agnóstico ou ateu. A razão para tal crença é simples: quanto mais instruídos ficamos tanto menos dispostos a aceitar passiva e resignadamente os abusos intelectuais da religião. No entanto, em conversa recente com alguns professores, pude me certificar de que isso não é verdade. O assunto religião e Deus ou é contornado ou não é tratado com seriedade. Na verdade, os professores sequer se preocupam em refletir sobre esse tema; talvez, porque tenham coisas mais importantes com que se ocupar, no que estou de acordo. Todavia, não pude deixar de notar que eles simplesmente se recusam a ver para além de sua herança religiosa.
Este texto que lhes escrevo, leitores, tem um caráter confessional e deve parecer-lhes um exame pessoal aberto, não-tendencioso e honesto, produzido por alguém cuja sensibilidade, entusiasmo e amor exorbitam as medidas da alma.
Começarei explicando por que assumo o ateísmo. Em primeiro lugar, em matéria de pensamento ou de intelectualidade, penso ser uma virtude abrir mão de nossas crenças e opiniões, caso sejamos convencidos, mediante um discurso consistente e embasado em argumentos racionais, de que tais crenças e opiniões são insatisfatórias para explicar um dado estado-de-coisas. É o que ocorre no domínio das ciências.  Acolher o ateísmo é dar ouvidos à inteligência, à razão e inclinar o coração à dignidade humana. É claro que, para assumir o ateísmo, temos de nos confrontar com alguma forma de religião ou crendices ao longo da vida, a menos que tenhamos nascido em países como Dinamarca, Suécia e Japão, cuja taxa de ateus é, em comparação ao resto do globo terrestre, superior. Mas lembro, de passagem, que todo bebê é ateu... nascemos ateus. 
Em comparação com a quantidade de pessoas que seguem uma religião ou se dizem religiosas, os ateus é uma minoria irrisória. Nunca dantes me dei conta de como nós, brasileiros, usamos a palavra Deus e evidenciamos nossas inclinações ao divino em nossas práticas discursivas cotidianas. É claro, dirá o leitor, você nasceu e vive, senão no maior, num dos maiores países religiosos do mundo (mais precisamente católicos). E cabe aqui um esclarecimento desde já: ainda me surpreendo utilizando expressões como “Deus me livre!”, “Meu Deus!”, “Deus que me perdoe!”, etc. Mas isso não depõe contra mim, já que há uma explicação adequada cultural e linguisticamente: nossa língua portuguesa está repleta de expressões em que se acha a palavra “Deus”, bem como de outras entidades religiosas (santos), simplesmente porque nossa cultura se formou predominantemente pelo pensamento e valores desenvolvidos e disseminados pelo cristianismo. Certamente, há exemplos de expressões análogas em outras línguas ocidentais, já que a cultura ocidental se formou (não só) pela influência judaico-cristã. No entanto, a palavra Deus, para mim, está esvaziada de sentido transcendente; designa pura e simplesmente uma ideia oriunda de nossa imaginação e, de certo modo, de nosso entorpecimento racional.
Em segundo lugar, a assunção de meu ateísmo, ao contrário do que sucede com os religiosos, em geral, não me outorga a autoridade de levar ninguém a acolher os argumentos ateus, muito embora não se possa simplesmente negar-lhes o peso. Podemos preferir continuar apegados às nossas crenças absurdas e viver em conflito e com inquietações (ou simplesmente indiferentes à nossa tragédia), mas não podemos, se nos dermos ao trabalho de pensar reflexivamente e de iluminar nossa alma com a lucidez da razão, perceber a coerência e consistência dos argumentos.
Na vida prática, nada muda; apenas minha vida interior se desanuviou. Tornei-me mais sossegado espiritualmente e mais conciliado com o humano em mim. Minha sensibilidade desmedida e exacerbada encontra inspiração nesta vida orgânico-material, mas também espiritual (porque sempre inclinada ao Bem e ao AMOR), não mais numa vida transcendente (ainda que eu conserve uma esperança na sobrevivência do espírito e na reencarnação). E não há contradição aí: os budistas creem na reencarnação sem que precisem acreditar na existência de alguma divindade. Isso, contudo, é matéria para outro texto. Escuso-me de me alongar nesse tocante.
Eu ouso dizer que, ao assumir publicamente meu ateísmo, torno-me uma pessoa ainda mais sensível e um pouco menos egocêntrica e egoísta. Percebi que, para ser religioso, para seguir algum sistema doutrinário religioso, devemos sufocar nossa sensibilidade por sob o peso de nosso egoísmo. Explico-me: é que eu me dei conta de que os religiosos agradecem a Deus, se alguma coisa de pior não lhes aconteceu (por exemplo, caso tenham se acidentado, ou acometido de alguma enfermidade, ou sido vítima da maldade humana, etc.), mas sequer se preocupam com o fato de que, em algum outro lugar, uma pessoa ficou paraplégica, ou está padecendo de câncer, ou foi vitimada por um projétil numa tentativa de assalto.
Após o massacre na escola de Realengo, o arcebispo decidiu celebrar uma missa, para confortar os inconsoláveis. Não me oponho à celebração, é claro; mas me pergunto até quando as autoridades religiosas continuarão a fechar os olhos para a inação de Deus, para o seu completo silêncio? Serei ainda mais incisivo: até quando continuaremos a chorar nossa miséria amparando nossos corações num delírio que atenta contra a nossa própria condição de seres pensantes? Até quando entoaremos cantos, nos ajoelharemos e nos humilharemos por medo do absurdo e fecharemos nossos olhos para a grande medida de sofrimento humano que grassa pelo mundo? O sofrimento trama as malhas da existência humana. Isso é uma verdade inabalável.
Não é aqui o lugar para desenvolver uma argumentação consistente, equilibrada e convincente em favor da inexistência de Deus. Preciso refletir mais sobre os caminhos racionais que meu espírito haverá de trilhar. No entanto, não poderia deixar de notar que a existência irrecusável do mal no mundo constitui um obstáculo intransponível para a teologia. Muitos teólogos tentaram resolvê-lo, mas sem lograr sucesso, simplesmente porque os fatos, as evidências são mais fortes do que qualquer argumento racionalmente aceitável.
A grande questão, que não deixará de retumbar  no espírito e no coração de quem quer que esteja disposto a pensar, é: como conciliar a possibilidade de existência de um Deus infinitamente benevolente, onisciente, onipresente e ONIPOTENTE com a existência irrecusável do mal no mundo e do sofrimento dele consequente? E, antes, que ocorra a alguém a ideia de que, parte desse sofrimento é causado pela própria ação humana, no que estou de acordo, isso não serve de argumento para sustentar a possibilidade de Deus existir; mas, ao contrário, a torna ainda mais inaceitável, já que poderíamos contra-argumentar no sentido de responsabilizar a Deus pela miserabilidade de sua criação. Ora, se Deus nos criou, ele é cúmplice, ou melhor, é responsável por nossas mazelas, por nossas loucuras, por nosso sofrimento. Mas os religiosos ainda tentarão sair com esta: “Deus nos deu o livre-arbítrio”, embora se contradigam ao assumir que Deus determina completamente, do início ao fim, o intercurso da vida de uma pessoa. Para além dessa contradição, há uma inverdade no dogma do livre-arbítrio. Nós, homens, não temos “livre-arbítrio”; nossos comportamentos e ações são orientados por um sistema de valores morais e de Leis estabelecidas pelo Direito. Como seres sociais, devemos viver de acordo com a moral de nossa sociedade; devemos cumprir as leis, devemos fazer escolhas de acordo com o grau de incidência das diferentes formas de coerção social. Como seres sociais, devemos ser educados, aprender, entre outras coisas, sobre ciência, sobre história, etc., para podermos gozar da condição de seres humanos integrados ao mundo civilizado. A insistência no livre-arbítrio é um estratagema de que lançam mão os religiosos para “desculpar” a Deus de sua clara  incompetência ou incapacidade de criar seres humanos um pouco melhores.
É muito provável que um sacerdote, se indagado sobre o porquê de Deus não evitar ou, pelo menos, não diminuir o sofrimento no mundo, não encontrando explicação razoável para isso, saia pela tangente, numa atitude intelectualmente desonesta, dizendo: “é a vontade de Deus”. Deus quer que soframos? Ora, isso é ultrajante!
Feuerbach, em A essência do Cristianismo, desenvolverá e sustentará a tese de que Deus nada mais é do que a essência humana objetivada, ou seja, projetada para fora de si e tornada objeto da razão e do coração. À página 64, escreve o filósofo:

“Deus como Deus, i.e., como um ser não finito, não humano, não determinado materialmente, não sensorial, é apenas um objeto do pensamento. É o ser transcendente, sem forma, intocável, sem imagem – o ser abstrato e negativo; só é conhecido pela abstração e a negação (...). Por quê? Porque não é nada a não ser a essência objetiva do pensamento, a capacidade ou atividade em geral, que se a chame como se quiser, pela qual o homem se torna consciente da razão, do espírito, da inteligência.”

Mais adiante, acrescentará:

“Deus é a razão que se pronuncia, se afirma como ente supremo.
(p. 65)

O trabalho de Feuerbach merece ser reconhecido, especialmente, pelo seu valor desmitificador ou dessacralizador, na medida em que ele humaniza Deus. Essa humanização se exprime na forma de um “rebaixamento” ontológico ou de uma desconstrução ideológica. Ou seja, Deus deixa de ser concebido como um “ser” superlativizado, para ser entendido como uma ideia, ou melhor, como a objetivação da razão humana. Deus, assim, não é um “ser” separado do humano, mas a própria construção imaginária da sublimação da essência humana.  A essência humana é projetada na forma de um Deus, ao qual se atribui predicados humanos, que são superlativizados. Deus é o anseio humano por perfeição: se os homens são bons, então o seu Deus é infinitamente bondoso; se os homens são amorosos, o seu Deus é infinitamente amoroso; se os homens são misericordiosos, o seu Deus é infinitamente misericordioso.
Ao fazer a crítica antropológica da religião, Feuerbach teve o mérito de nos mostrar que são os homens que criaram Deus (e a religião) e não o contrário. Todo o entorpecimento, o embaraço, o anestesiamento, o anuviamento e o obscurantismo da consciência do homem religioso advém dessa inversão ideológica: os homens deixam de se reconhecer como criadores de uma ideia ou conceito, para fazer dele um “ser” independente capaz de criá-los e governá-los.
Se, algum dia, eu vier a desenvolver a minha posição ateísta, começarei considerando as ideias de Feuerbach, muito embora delas eu divirja em alguns momentos. Por exemplo, se Deus é a razão humana objetivada como ente supremo, como pretendia o filósofo, então é imperioso reconhecer que se trata de uma razão deturpada, depravada, alienada, corrompida em sua lógica.
O que me aviva profundamente o espírito no discurso ateu é a ideia de que, para amar e seguir os elementares preceitos morais e buscar a justiça, não precisamos crer em Deus. Não somos melhores nem piores porque não acreditamos em Deus.  Apenas devemos enfrentar nossa própria condição humana conflituosa, contraditória e angustiante. Devemos prestar contas a nós mesmos (aperfeiçoando a Justiça) por nossos erros; devemos lidar com as nossas tragédias existenciais, enfrentar nossa estupidez e ignorância, sem querer buscar abrigo numa ilusão.
É claro que a existência de um Deus misericordioso, bondoso e sempre diligente seria maravilhosa, mas maravilhosa demais para ser verdade. A experiência, contudo, não nos dá sinais de que ele possa existir. E os argumentos apresentados para sustentar a sua existência são inconsistentes. Contudo, não me entristeço, pois acredito que o AMOR poderá subsistir, que para amar basta-nos doarmo-nos, entregarmo-nos ao seu mistério.
Em todo caso, se, um dia, quando eu morrer, Deus a mim se revelar, ele terá de me dar boas explicações para a sua omissão, o seu silêncio e a sua negligência. Por enquanto, prefiro dar voz à inteligência e à razão e fazer ecoar de meu coração humano, demasiadamente humano para ignorar as abomináveis tragédias cometidas por certos tipos de homens. Prefiro me solidarizar com as vítimas de catástrofes naturais e de moléstias para as quais os homens de ciência não encontraram a cura. Mas também prefiro dormir aliviado com a esperança de que existem homens que trabalham incansavelmente para solucionar os males que nos atormentam, que nos fragilizam e nos levam à morte.


“Os religiosos deveriam deixar de olhar para o próprio umbigo para olhar o umbigo do mundo, onde reside o absurdo de nossas tragédias” (BAR).

O Deus escuso


                          
                                           

                                    Entre o escuso e o absurdo
                                 um Deus insensível                       



Amansando os ânimos


Devo, desde já, advertir a quem quer que suponha pretender eu desconverter  qualquer leigo religioso de suas crenças religiosas que os últimos textos que escrevi (e o mesmo vale para este) e  que divulguei neste blog, nos quais procurei articular fortes argumentos favoravelmente ao ateísmo, repousam em dois propósitos principais: abrir a possibilidade de um diálogo com outra tradição discursiva e possibilitar-me uma nova forma de me situar existencialmente. Decerto, o envolvimento intelectual e emocional com o percurso da incisiva e lúcida argumentação ateísta não pode confundir-se com apego a outra forma dogmática de discurso. Ateísmo dogmático é tão reprovável quanto a mais irracional ortodoxia religiosa. Qualquer forma de dogmatismo é inaceitável à luz do conhecimento filosófico, cuja distinção se expressa naquela célebre fórmula socrática: só sei que nada sei. A filosofia é um discurso de abertura, não de fechamento. O filósofo não detém verdade alguma; ele reconhece sua ignorância e persegue a verdade. É fiel a essa verdade, mas só na medida em que ela é passível de ser perseguida, de ser procurada, porque dotada de realidade.
Peço, gentilmente, que me reconheçam o direito de expressar-me, de ser fiel à minha inteligência, de empregá-la para fertilizar outros espíritos que comunguem de minhas ideias. Não me queiram convencer de que minha alma trilha veredas escuras e sombrias, que se desvia dos caminhos de uma salvação sem condenado, porque ela não está, de modo algum, embaraçada; mas liberta; portanto, desapegada.
Minha alma está, ao contrário, experienciando um deleitoso estado de leveza e libertação dogmática. Está imbuída de vontade de potência. Está num profundo namoro com a minha própria humanidade, da qual ela é a mais fidedigna expressão. Sou fiel a mim mesmo. Sou fiel à minha autoconsciência, como agente que faz escolhas, que é delas o único responsável que se responsabiliza pelas suas consequências, sem que precise esperar que uma suposta providência venha atenuar o peso com o qual elas me comprometem.
Não estou me deixando influenciar por discurso algum; tal caso não se aplica a mim, mas àqueles que o supõem, pois que estes sim se influenciam com uma grande quantidade de palavreados cuja validade parece-lhes insuspeitável . Por que se achar no direito de poder recomendar doses homeopáticas de Deus e da Bíblia a quem sequer está doente ou desviado do bom-senso?
Eu gozo de uma lucidez que nunca dantes experimentei em minhas orações noturnas, em meus vastos momentos de solidão em que, conversando comigo mesmo, conservava por sob as mãos, apoiado sobre o peito, o pequeno livro do Evangelho. Longe de ser venerada, essa lucidez é apenas reconhecida. Convém-me saber a que me levará esse alvorecer anímico!
Se Deus existe e deu aos homens a razão, como uma propriedade que lhes distinguem dos animais, então ele não a fez capaz de alcançá-lo, de penetrá-lo, de compreendê-lo (já que se prescreve ser ele o incognoscível!), porque ele simplesmente não queria ser conhecido, perquirido e aborrecido. Se ele quisesse ser realmente conhecido, ele daria à razão a capacidade para tanto; e mais, ele simplesmente concederia à experiência a dignidade de sua presença. Bastava que ele aparecesse e a neurose coletiva por repetições, prescrições e proibições estaria resolvida (ou não!, quem sabe?). Mas do valor da experiência tratarei mais adiante.
Detenho-me, por ora, no que me interessa aqui: argumentar desfavoravelmente ao suposto de que os religiosos dizem o ser de Deus. O que muitos religiosos não entendem, de jeito nenhum (porque, como já assinalei em outro texto, em matéria de religião, a inteligência é desvalorizada em face da absolutização da fé) é que eles não dizem o ser de Deus, mas representações mentais desse ser. Neste mundo, só podemos nos contentar com as representações, com as construções de nossa mente. O “acesso” ao divino (se é que a palavra “acesso” cabe aqui) não é, evidentemente, imediato, mas mediado pela imaginação. Não convém entender o “acesso” ao divino do mesmo modo como tenho acesso (cognitivo) a uma pedra diante de mim. A pedra, ao contrário de Deus, é um objeto deste mundo, um corpo natural, com propriedades detectáveis, acessíveis a um exame detido; ela pode ser experimentada (podemos tocá-la, vê-la, manuseá-la, constatar-lhe a aridez e a insipidez, sentir seu aspecto duro, etc.)
Eu não posso deixar de notar meu desconforto, quando me dizem que a Bíblia é a mente de Deus, é a fonte de tudo quanto devemos aprender sobre ele: uma metáfora, certamente, mas uma metáfora inadvertidamente sedutora.
O nó ideológico insuperável que as religiões produziram, a cujo reconhecimento  seus adeptos, pelo menos os mais ferrenhos, se negam, foi ter invertido a relação entre o criador e a criatura: não é Deus quem criou os homens, mas os homens que criaram deuses (ou o Deus dos monoteísmos). Experimente sustentar essa evidência diante de uma pessoa religiosa e aguarde o que ela dirá: Blasfêmia! Pecador! Ou é possível que permaneça num silêncio de prepotência, por acreditar-se saber para além do conhecível.  E lançar-lhe-á um olhar penetrante e, em suas orações noturnas, orará a Deus para que ele perdoe a todos que duvidem ser ele o criador de todas as coisas. Parece haver, não raro, uma histeria nos religiosos mais ferrenhos, muita vez, certamente, abafada pelo sentimento de piedade aos infelizes que ignoram o mistério, cujas saias aqueles se cuidam capazes de levantar. Tal histeria me faz suspeitar de que eles são mais suscetíveis à intolerância do que aqueles que  eles acreditam sejam seus adversários, simplesmente porque decidiram dar ouvidos à razão, ao invés da que, por razões pessoais ou convicções de suas especialidades, foi destronada. Simplesmente porque seus “adversários” se opõem a uma crença intocável, muito embora as evidências a derrubem, ou, pelo menos, a empurrem para a beirada de um abismo.
Se Deus criou os homens, ele os criou e depois foi se esconder em algum lugar inacessível a eles, só para que eles ficassem a vida inteira a procurá-lo. Bem, um Deus assim, a quem se atribui o poder de ser onisciente, deveria ser capaz de prever que essa brincadeira de esconde-esconde acarretaria muitas guerras, muito ódio, muito derramamento de sangue, muitas disputas de poder, muita discórdia, muita controvérsia inútil... Ora, o mínimo que ele deveria fazer, já que nos deve isso, é aparecer e dizer: "Basta! A brincadeira acabou! Eu estou aqui! Parem de brigar e discutir!" Desenvolverei essa ideia de um Deus escuso, mais adiante.
Faz-se mister, doravante, considerar uma famigerada contribuição filosófica para sustentar a existência de Deus. Além  das conhecidas cinco vias para a existência de Deus, desenvolvida por Tomás de Aquino, pelo uso exclusivo do raciocínio especulativo, há, na terceira meditação de Descartes, a tentativa de mostrar que a ideia de Deus é necessária.  Para tanto, esse filósofo racionalista baseava-se no Cogito (eu penso). Descartes sustentava que, se consideramos os efeitos, devemos reconhecer que a ideia de Deus como substância infinita existe no e para o pensamento. Descartes acreditava, além disso, que a própria existência dessa ideia no pensamento dos homens só poderia ser consequência da ação de Deus. Digamos, simplesmente, que Deus teria plantado essa ideia na cabeça dos homens. Note-se bem que, segundo o filósofo, tem de haver o mesmo grau de realidade tanto na causa (no caso, naquilo que causa a ideia) quanto no efeito (o produto dessa ideia). Vê-se, sem muito custo, que ele identificou a realidade da ideia de Deus com a necessidade da existência de Deus – coisas que, para um homem habituado à atividade do pensamento reflexivo, são bem diferentes.  Refiro a posição de Sponville, em O Espírito do ateísmo (2009), no que toca a esse argumento cartesiano:

“O argumento me convence menos ainda (...) Por quê? Primeiro, mais uma vez, porque nada prova que essa causa infinita seja um Sujeito ou um Espírito (poderia ser a Natureza) – a não ser que se o pressuponha na ideia de perfeição, o que é um tanto forçado; depois porque não é nem um pouco evidente que deva haver pelo menos tanta realidade na causa quanto no efeito (os átomos não pensam; o que não exclui que sejam causa do pensamento em nosso cérebro); enfim, e sobretudo, porque a ideia de infinito, no homem, é uma ideia finita, assim como a ideia de perfeição é uma ideia imperfeita. Eu veria aí quase uma característica do homem. O que é um ser humano? É um ser finito (ao contrário de Deus), que tem uma ideia do infinito (ao contrário dos animais), um ser imperfeito que tem uma ideia de perfeição. Mas essas ideias, a humanidade obriga, são elas próprias finitas e imperfeitas. (...) O homem é um ser finito aberto para o infinito, um ser imperfeito que sonha com a perfeição. É o que chama de espírito, e essa grandeza é tanto maior quanto não ignora sua própria finitude. Isso torna a “prova” de Descartes inoperante”.
(pp. 90-91)
(ênfase minha)


Certamente, custa aos seres humanos definir o infinito e a perfeição, dois atributos que os religiosos dizem ter Deus. A ideia de infinito e perfeição é, necessariamente, limitada pela própria natureza limitada da razão humana. O mistério do ser humano, quiçá, consista nessa abertura para o infinito, da qual nos fala o autor, a despeito de ser um ser finito. Mas ser capaz dessa abertura não significa poder sustentar o valor intocável desse mistério. Uma coisa é crer na existência de Deus; outra coisa bem diferente é reconhecer a existência da ideia de Deus. Dirá Sponville:

“Deus não é um teorema. Não se trata de prová-lo, nem de demonstrá-lo, mas de crer ou não crer nele”.
(p. 91)

Certa vez, depois de compenetrar-me em algumas de minhas leituras corriqueiras, fui despertado para a ideia de que assim como não é possível provar a existência de Deus, assim também não é possível provar a sua inexistência. Posto isso, abre-se o terreno para a tolerância, no que estou de acordo; mas, certamente, não se torna infértil o terreno para reflexões. Devemos reconhecer, com Sponville, que o ônus da prova tende mais para aqueles que crêem do que para os que não crêem na existência de Deus. Ademais, sentimo-nos muito mais obrigados a provar aquilo que é do que provar aquilo que não é. Em outras palavras, sentimo-nos mais forçados a provar que alguma coisa existe, ao invés de provar a inexistência dessa coisa, especialmente se essa coisa não conta com o testemunho da experiência, nem de sua possibilidade remota.
No tocante ao valor da experiência como prova para a inexistência de Deus, escreverá Sponville:

“Em se tratando de uma questão de fato, a experiência é mais decisiva que os raciocínios. Uma de minhas principais razões para não crer em Deus é que não tenho nenhuma experiência dele. É o argumento mais simples. É um dos mais fortes. Ninguém me tira a ideia de que, se Deus existisse, deveria ser muito mais visto ou sentido. Bastaria abrir os olhos ou a alma.”
(p. 92)

E o que vemos quanto mais abrimos os olhos e aguçamos a alma? O mundo. As três principais religiões monoteístas falam de um Deus oculto, de um Deus que se esconde. E vem nessa ocultação de Deus uma qualidade, uma virtude. Paradoxalmente, chamam a Deus de Pai. Ora, por que um pai bondoso iria esconder-se de seus filhos? Por que iria abandoná-los ao mundo – um mundo que é, não raro, tão frio e desolador? Um pai amoroso manda notícias suas aos seus filhos, quando de sua viagem. A ideia de um Deus que se esconde é inconciliável com a ideia de um Deus que é Pai. Um Deus que prefere brincar de esconde-esconde com seus filhos não pode sequer ser chamado de Deus. A ideia da natureza de Deus, do que seja Deus entra num profundo conflito com o reconhecimento de que esse Deus nos é oculto, inacessível de qualquer forma racionalmente aceitável.
O que é preciso reconhecer é que, entre a ideia de Deus e a crença em sua existência mesma medeia todo um discurso dogmático e seriamente contrário à razão; eu diria mesmo fragmentado, desconexo, ilógico, amputado. Convido o leitor a deter-se na leitura das seguintes palavras Michel Onfray, em Tratado de ateologia (2007), com as quais critica a fábula de Adão e Eva. Lembre-se que, nessa história fictícia, Deus proíbe Adão e Eva de consumirem o fruto de uma árvore, posto que permita ao demônio tentá-los. Aliás, a cumplicidade entre Deus e o demônio sempre foi algo que me intrigou. Por que Deus permitiria a existência do demônio, se ele pode tudo? Por que Deus permitiria que o demônio atazanasse ou seduzisse os frutos primeiros de seu grandioso ato criativo? Estranho, não?
Coube a Eva – e devemos reconhecer-lhe o mérito – provar o fruto proibido e, assim, dignificar nossa humanidade, beneficiando-a com o poder do discernimento. Com a palavra Onfray:

“O que há no dossiê dessa história? Um Deus que proíbe ao casal primordial o consumo do fruto da árvore do conhecimento. Evidentemente, trata-se de uma metáfora. São necessários Padres da Igreja para sexualizar essa história, pois o texto é claro: comer esse fruto desvenda e permite distinguir o bem do mal, portanto assemelhar-se a Deus. Passar por cima do ditame de Deus é preferir o saber à obediência, querer conhecer em vez de se submeter. Digamos de outro modo: optar pela filosofia e não pela religião”.
(p. 54)
(ênfase minha)

A mordida de Eva significou a abertura do homem para o real. Abre-se a consciência humana para esta vida. A criatura se humaniza.

“(...) a nudez, sua parte natural, mas também, e a partir dessa nova aquisição do saber, sua parte cultural, pelo menos suas potencialidades por meio da criação de uma tanga com folhas de figueira – e não de vinha... E mais: a rudeza do cotidiano, o trágico de todo destino, a brutalidade da diferença sexual, o abismo que separa para sempre homem e mulher, a impossibilidade de evitar o trabalho penoso, a maternidade dolorosa e a morte imperial. Uma vez libertos, e para evitar o acréscimo de transgressão que permite alcançar a vida eterna – pois a árvore da vida está ao lado da árvore do conhecimento -, o Deus uno, decididamente bom, doce, amante, generoso, expulsa Adão e Eva do paraíso. E assim estamos desde então...”
(pp. 54-55)


Como vemos, basta-nos um leve debruçar-se sobre o discurso construído e inculcado na cabeça dos religiosos, para nos pasmar com a suas malhas absurdas. A ação do clero, nesse tocante, é tentar tapar seus buracos, por onde vazam as contradições (um Deus piedoso, mais punitivo; um Deus atencioso, mas escuso; um Deus bom, mas que permite o mal; um Deus que é só amor, mas que lança sobre os “ímpios” sua fúria, seu ódio, etc.). Eu poderia avançar ainda mais em minhas reflexões, observando as formas como a doutrina católica, por exemplo, se manifesta na vivência religiosa da igreja. Uma série de deveres e proibições que atentam contra o bom-senso deveria, forçosamente, ser notada.
Uma das questões que sempre me inquietou, quando da observação da vivência religiosa em igrejas, é o porquê de as mulheres terem seu campo de atuação e participação tão limitado. Na hierarquia eclesiástica, o máximo que uma mulher pode alcançar é o posto de madre,  a quem cabe administrar o convento – o que, ideologicamente falando, não difere muito da administração do lar – papel que, durante muitos séculos, ela se via condicionada a cumprir. Tanto num caso quanto no outro a mulher está limitada a um espaço físico. E sua vida ganha significância apenas nos limites desse espaço físico. Não é custoso reconhecer que a figura central da hierarquia eclesial são os homens (padres, cônegos, freis, bispos, arcebispos e o papa). Todas figuras masculinas. Nenhuma mulher pode rezar missa; no máximo, auxiliar nos preparativos dos cerimoniais. Talvez, pudéssemos dizer se tratar de um sexismo tácito, para cuja validação nenhum argumento racionalmente fundado seria possível. O que torna o padre mais apto a rezar uma missa do que uma madre? Dito de outro modo, por que um homem e não uma mulher?
Ponho termo a este texto, citando o excerto de Onfray, que nos convoca a experienciar profundamente – e sem evasivas – o sentido de ser humano.

“Lição número um: se recusamos a ilusão da fé, as considerações de Deus e as fábulas da religião, se preferimos querer saber e optamos pelo conhecimento e pela inteligência, então o real nos aparece tal como é, trágico. No entanto mais vale uma verdade que desespera imediatamente e permite não perder completamente a vida colocando-a sob o signo do morto-vivo do que uma história que consola na hora, certamente, mas nos faz passar ao largo de nosso único verdadeiro bem: a vida aqui e agora”.
(p. 55)

Vale lembrar a frase que me foi dada a conhecer por uma amiga, numa estimulante e carinhosa conversa on-line: “a minha religião é o amor”. Nisso estou de acordo, porque o amor nos torna lúcidos. Essa forma de religião não reivindica submissão, mas crítica madura e equilibrada, para que seja cada vez mais aperfeiçoada. Por isso, muitas vezes, em meus escritos, tomo o amor para objeto de reflexão. E costumo elevá-lo ao altar mais dignificante dentre as virtudes humanas. Esse AMOR nos quer fiéis à nossa inteligência, um amor cego é obsessão, é apego irracional. Minha hipersensibilidade ancora-se hoje e cada vez mais na única certeza que a nossa condição humana nos permite ter: a de que um dia iremos morrer. Se não podemos com a inevitabilidade da morte, condição necessária de nossa própria natureza orgânico-material, então que sejamos fiéis ao AMOR que se pode experienciar nesta vida, e não projetá-lo para um ser ou ideia que para comigo não dá sinais de qualquer afinidade.


“Eu sou homem e nada do que é humano me é estranho”
(Terêncio, 184 a.C. – 160 a.C.)

"A religião é comparável com uma neurose da infância." (Sigmund Freud)

                                            
                                                Ser um ateu livre

Qual não foi minha satisfação quando minha mãe revelou-me estar ciente de que sou ateu! E a reação dela não me surpreendeu: disse-me que respeitava e que devemos seguir o que nos parece melhor, muito embora ela precise acreditar em Deus. Meu irmão lhe participou o fato, depois que eu, quando indagado por ele, lhe confirmei que sou ateu.
Antes de descer a pormenores deste acontecimento comum da vida, gostaria de dizer um pouco acerca do relacionamento entre pais e filhos, e, particularmente, entre o meu relacionamento com meus pais.
Devemos retificar o primeiro mandamento: não é amar a Deus sobre todas as coisas; mas amar e honrar nossos pais sobre todas as coisas. É lugar-comum dizer que os filhos são espelho dos pais, o que significa dizer que eles são resultado de uma herança educacional recebida dos pais. De fato, sua personalidade será formada, decisivamente, na convivência com os pais desde que nascem. Todavia, também a personalidade deverá uma boa parte à atuação de outros significativos (amigos, professores, etc.).
A formação da personalidade e do caráter numa criança se dá no confronto entre a herança recebida dos pais e os outros padrões educacionais a que a criança está exposta ao longo de sua socialização secundária.
Viver em sociedade implica participar da dialética social, ou seja, um indivíduo, em sociedade, exterioriza seu próprio ser nesse meio social e interioriza esse meio como realidade objetiva. Nenhum indivíduo nasce membro de uma sociedade, mas nasce com a predisposição à sociabilidade. O início do longo e ininterrupto processo de socialização se dá na interiorização. Pela interiorização, um indivíduo interpreta um dado acontecimento como dotado de sentido. Esse acontecimento é a manifestação da subjetividade do outro, a qual se torna significativa para esse indivíduo. O indivíduo, portanto, assume o mundo no qual o outro vive e dele participa também. É só depois de ter passado pelo processo de interiorização que o indivíduo torna-se membro de sua sociedade. A socialização primária é, portanto, aquela que ocorre na infância e em virtude da qual se torna um membro de sua sociedade.
A socialização secundária, a seu turno, é o processo pelo qual um indivíduo é incessantemente introduzido nos mais variados setores da realidade objetiva de sua sociedade. Quanto mais diversa e, culturalmente, rica for essa socialização mais atuante será esse indivíduo; além disso, seu desenvolvimento cognitivo e emocional se tornará mais complexo.
É claro que a socialização primária terá um valor mais importante e constituirá a base na qual se desenvolverá a socialização secundária. Durante todo esse processo, a criança identifica-se com os outros significativos, ou seja, absorve suas atitudes e papéis, interioriza-os, tornando-os as suas atitudes e papéis. Donde se segue o lugar-comum de que somos o reflexo do meio em que vivemos, porque, ao assumirmos as atitudes e os papéis dos outros, assumimos o mundo deles. É interessante notar aqui que a criança, ao identificar-se com as manifestações subjetivas do outro,  também se identifica a si mesma. O “eu” se constrói na relação com o “eu” do outro e esse “eu-outro” é nessa relação também constituído. Evidentemente, entra aí, como função preponderante, a linguagem. É pela palavra que se dá a mediação dessa relação. Não descerei a pormenores nesse tocante.
Em A construção Social da Realidade (2007), Berger& Luckmann ensinam-nos sobre a personalidade:

“(...) a personalidade é uma entidade reflexa, que retrata as atitudes tomadas pela primeira vez pelos outros significativos com relação ao indivíduo, que se torna o que é pela ação dos outros para ele significativos. Esse processo não é unilateral nem mecanicista. Implica uma dialética entre a identificação pelos outros e a auto-identificação, entre a identidade objetivamente atribuída e a auto-identidade subjetivamente apropriada”.
(p. 177)

A possibilidade mesma de assumir o mundo social como uma realidade dotada de sentido depende da linguagem, a qual nos permite construir um universo simbólico básico na base do qual se inscrevem e se estabelecem os significados socialmente objetivados e subjetivados.
Dizer que todo indivíduo é determinado pela sociedade, é absorvido pelas estruturas de sua sociedade é reconhecer que seu desenvolvimento está relacionado com uma ordem social específica, da qual participam como mediadores os outros significativos. O desenvolvimento orgânico do ser humano será direcionado e sofrerá influências socialmente determinadas. O homem se desenvolve na correlação entre um ambiente natural e um humano (social).
Essas considerações, que vêm a propósito justamente para explicar como se dá o desenvolvimento sociocognitivo e subjetivo de um indivíduo, processo este no qual a atuação dos pais é fundamental, contribui para ratificar a ideia de que nossa maturidade e autonomia dependem de que participemos de experiências ricas e significativas ao longo da vida, experiências que nos exponham a outros “mundos significativos”, para com eles nos identificar e para neles marcarmos nossa diferenciação ou identidade.
Quando pensamos em liberdade (e não livre-arbítrio, porque este, na verdade, não temos), devemos pensá-la em termos de negociação. Negociação é um conceito-chave para entender a dialética social. Quando usamos a linguagem, negociamos significados (já que é preciso haver um acordo tácito quanto ao sentido que damos às nossas palavras). Nesse sentido, a liberdade é negociada, porque, por um lado, ela nunca é total, porquanto constrangida pelos dispositivos legais e pelos padrões morais de uma sociedade; por outro lado, o domínio para a realização de minha liberdade está intimamente ligado ao domínio em que se realiza a liberdade do outro.
Nesse sentido, sou livre para escolher tornar-me ateu e minha mãe reconheceu o domínio de minha liberdade, bem como eu reconheci o seu domínio de liberdade. Ela me perguntou sobre as razões de eu assumir o ateísmo e, embora, imediatamente, tenha eu pensado quão custoso seria explicar-lhe, disse algumas palavras, sem me aprofundar. Ela, por algum momento, replicou-me baseando-se na sua herança católica (e aqui ficou claro como o modelo de interpretação/ compreensão legado pela doutrina católica é determinante na contra-argumentação). Somos incapazes de ir além desse modelo interpretativo cristalizado em nossa consciência e nos guiamos por ele.
E aqui reside o grande problema da religião: o adestramento da consciência, o condicionamento do pensamento, ou mesmo a sua suspensão, quando reconhecemos não haver mais possibilidade de diálogo e dizemos: religião não se discute. E por que não se discute? O que tem ela de especial que a torna imune ao debate, à reflexão? Que ela busca nos confortar e aliviar o nosso sentimento de angústia  (e entendo “angústia” no sentido que lhe deu Heidegger, ou seja, sentimento de insegurança em face da consciência do nada) pode parecer ingenuamente evidente, se esquecermos que ela também é responsável por uma grande dose de angústia, na medida em que nos incute o sentimento de pecado, de culpa. Há angústia maior, ou seja, inquietação maior do que o sentimento de que estamos, desde a origem dos tempos, condenados ao pecado? Somos transgressores, desobedientes, indisciplinados e nos resta apenas viver pedindo perdão a Deus incessantemente, na esperança de que nos seja dada a paz eterna, após a morte.
Não é verdade que a religião seja uma panacéia para a nossa angústia, para as nossas aflições e enfermidades. Religião atende aos conformados; o problema é que eu não me con-formo. Entenda o sentido original: ‘dar forma’. Percebi, com o tempo, que a crença em Deus me inquietava, ao invés de me apaziguar. E nos momentos mais tenebrosos de minha depressão, eu rezava com minha mãe o terço, e isso se tornou hábito durante algumas semanas. Todos os dias, copiosamente, proferia as orações do pai-nosso e da ave-maria. 
Houve um período em minha vida, em que ia quase todos os domingos à missa com minha mãe e uma amiga. E, quando decidi fazer a crisma, minha convivência com amigos da igreja, tendo, inclusive, participado de “grupos jovens”, cuja função era angariar jovens para participar de palestras, cantar e orar, tornou-se prática corriqueira. E lembro-me de que eu fui encarregado de produzir uma apostila com os conteúdos que seriam debatidos nos encontros e esses conteúdos foram escolhidos para propiciar uma reflexão crítica. E é claro que eu sabia que as palavras “reflexão” e “crítica” não podiam combinar-se no mesmo sintagma. Eram proibidas. O grupo acabou antes mesmo de começar suas atividades, por razões de organização e disponibilidade de horário de seus integrantes.
Há dois anos, ofereci-me para dar aulas de interpretação textual a jovens na igreja que eu então freqüentava. As aulas eram dadas aos sábados e ocorriam em duas horas antes da missa. Elas tiveram de cessar logo, porque os poucos alunos deixaram de vir. Uma senhora paroquiana lamentou: “pois é, professor, essa juventude não quer nada; não perca seu tempo”. Deixei a igreja um pouco frustrado e voltei para casa.
Certa vez, um menino não compareceu à aula e, quando perguntei sobre a razão de sua ausência, sua colega respondeu-me que ele não se sentia confortado na igreja, porque sua religião era outra. Dissera-me ela que ele era de centro (não sei se de seita kardecista ou umbandista).
Esse acontecimento é ilustrativo do impacto emocional que a religião que assumimos nos provoca. Adotar um sistema de dogmas, rituais e discursos religiosos é adotar uma forma particular de interpretar, compreender e de se relacionar com o mundo. O problema consiste em que a assunção desse modelo de interpretação/compreensão e relação acaba por nos embotar, por nos engessar a consciência reflexiva. O embotamento da consciência é um dos malefícios perpetrados pela religião, que, ao invés de abrir o indivíduo para a compreensão totalizante do mundo, o encarcera num universo estreito onde tudo deve ser explicado segundo um padrão de compreensão autoritariamente determinado.
Assim, padres das igrejas cristãs condenam o uso do preservativo pela pífia razão de que o sexo deve servir à procriação, donde se segue a prescrição de que tem de ser feito só no casamento. Mas eles ignoram dois fatos: um é que o preservativo serve, principalmente, para nos proteger de doenças venéreas, entre as quais a aids (e é o único meio eficaz de que dispomos para evitá-la, se bem que está sendo submetida a testes uma pílula, em cuja composição entram dois medicamentos tomados pelos portadores de hiv, que, tomada diariamente, poderá proteger homens e mulheres contra a aids – mais uma forma de prevenção, portanto); o outro é que o sexo é anterior ao casamento e este não é garantia de que estaremos protegidos de doenças venéreas. Ora, devemos sempre contar com a fidelidade e, principalmente, responsabilidade do parceiro que, mesmo cometendo adultério, deverá fazê-lo com segurança.
Quem não se lembra do caso de uma moça evangélica que adquiriu aids do próprio marido? O caso dela foi exibido em um dos quadros do Dr. Dráuzio Varella apresentados no Fantástico, em que nos informava sobre as condições sociais da aids após 30 anos de epidemia.
É claro que muitos católicos não seguem, felizmente, à risca os disparates do padre, como a recomendação de que se mantenham castos até o casamento e se abstenham do uso do preservativo. Aliás, se dependêssemos dos padres para educar sexualmente nossos jovens, advertindo-os da necessidade de se prevenirem, a epidemia da aids seria ainda maior; mas, felizmente, hoje, no Brasil, ela está controlada. Nesse tocante, devemos reconhecer o mérito de nossas políticas de saúde e o valor de nosso programa de combate à aids, modelo para todos os países do mundo.
Esses e outros casos patenteiam que a religião não contribui para o exercício de nossa liberdade e autonomia. E não nos enganemos com o argumento falacioso do livre-arbítrio, que não serve senão de um estratagema para desculpar a Deus de nossos erros.
O que é, afinal de contas, o livre-arbítrio? Ora, arbitrar é decidir por si mesmo, determinar com autoridade. O arbítrio que é livre é uma decisão isenta de qualquer forma de coerção. Pensemos bem: é possível viver em sociedade sem alguma forma de coerção? Podemos fazer o que nos der na telha?
Vamos ao Dicionário Básico de Filosofia, de Danilo Marcondes e Hilton Japiassú, e leiamos com atenção o verbete livre-arbítrio, transcrito abaixo:

livre-arbítrio – Faculdade que tem o indivíduo de determinar, com base em sua consciência apenas, a sua própria conduta; liberdade de escolha alternativa do indivíduo; liberdade de autodeterminação que consiste numa decisão, independentemente de qualquer constrangimento externo mas de acordo com os motivos e intenções do próprio indivíduo (...)”.
(p. 170)
(grifo meu)

Certa vez, ouvia uma conversa entre dois professores sentados, junto a mim, em que um deles dizia ter interesse em estudar filosofia. Esse professor é formado em Direito. A certa altura, dizia que os homens não podem viver sem lei; sem a lei, os homens se destruiriam uns aos outros. E com ele está a razão.
A vida social fornece-nos os códigos de conduta, pela moral e pela Lei instituída pelo Direito. Sem esses códigos, ou seja, sem um conjunto de prescrições e proibições nossa vida seria um caos completo e nosso instinto natural que tende ao prazer interdito e à destruição acabaria por prevalecer e causar nossa própria aniquilação. Disso se segue, com Freud, que a instituição da cultura é uma forma de coagir, de moldar, de controlar os impulsos humanos incompatíveis com a ordem imposta pela civilização. A vida civilizada instaura a repressão. O grau dessa repressão variará segundo a natureza autoritária das estruturas sociais.
Relendo a definição de livre-arbítrio, percebemos que não somos livres totalmente para agir segundo nossa vontade. E nossa consciência não goza de liberdade irrestrita. Não somos livres pela consciência, simplesmente porque é na consciência que incide as ações repressivas; nossa consciência, insisto, é produto sócio-ideológico. Ela é formada pela interiorização do código de preceitos de conduta, pela interiorização do sistema fornecido pelo que Althusser chama de aparelhos ideológicos do Estado, que se manifestam no domínio privado e são representados pela religião (Igreja), escola, família, sindicatos, política, direito, Belas Artes, Letras, esportes, etc.
Em suma, nossa consciência é atravessada e moldada por um complexo conjunto de dispositivos sociais orientados no sentido de maior integração do indivíduo à dialética de sua sociedade. Portanto, livre-arbítrio é um chamariz com que se busca fazer compreender o fiel que a inação de Deus em face, por exemplo, dos crimes cometidos pelos homens, decorre do livre-arbítrio concedido a eles. Se dependêssemos de Deus para nos fornecer algum parâmetro de conduta, estaríamos, em pouco tempo, aniquilados. Ora, cobiçar a mulher do próximo é o de menos perto de lançar dois aviões num prédio cheio de pessoas inocentes. Cometer adultério não é nada perto das mortes provocadas por homens bombas.
Pondo termo a esta exposição, vale dizer que nossos filhos, a despeito de terem sido educados segundo preceitos de alguma religião têm o direito de escolher abandoná-los. Antes de ministrar-lhes um conjunto de dogmas irracionais, melhor será propiciar-lhes o acesso ao conhecimento produzido pela ciência, pelas Artes, pela literatura, pela sociologia, pela filosofia, enfim, pelo que de melhor pôde produzir a inteligência humana até hoje.
Abrir os horizontes e não lançar sobre os olhos uma cortina de ferro – essa é a lição que aprendi com meus pais e que gostaria de transmitir aos meus filhos.




"A religião é vista pelas pessoas comuns como verdadeira, pelos inteligentes como falsa, e pelos governantes como útil" (Sêneca)


                                              O último badalar da razão
                                                   Fantasia e religião


 
A crítica à religião pode ser desenvolvida sob perspectivas diversas: pode-se valer de uma perspectiva sócio-histórica, enfatizando sua realidade cultural, sua influência no desenvolvimento da civilização, nos processos sociais, sua aliança com o poder em vários períodos da história, sua natureza ideológica, etc.; pode-se valer de uma perspectiva psicanalítica, considerando-a, como a entendeu Freud, consequência de uma neurose infantil, ou seja, como fruto do desamparo infantil no homem; pode-se também assumir uma perspectiva pela qual se critica seu próprio fundamento teológico, ou seja, pode-se empreender uma crítica à própria construção de seu discurso, avaliando as contradições internas, os disparates, os abusos da razão, os sofismas que entram a fazer parte do emaranhado do próprio sistema de noções e conceitos que lhe são caros.
Dentre os muitos argumentos apresentados para demonstrar a inexistência de Deus, ou, em outras palavras, a impossibilidade de ele existir, creio em que o argumento de ordem empírica acaba por ficar em segundo plano. Em sua forma, trata-se de um argumento simples, que se apóia na experiência: Deus não existe porque, afinal, não temos experiência sensível dele. Não podemos tocá-lo, vê-lo, ouvi-lo, cheirá-lo. A pretensa onipresença de Deus é uma farsa, um conceito sem fundamento, sem realidade, uma ideia que só faz sentido no universo da fantasia, da ficção.
Por que não acreditamos na existência de Papai Noel, lobisomem, vampiro, fadas, gnomos? Resposta óbvia: porque eles não existem. E o que significa dizer não existem? Resposta: significa dizer que não temos qualquer tipo de experiência desses seres, não há evidência de que são reais. Todos esses seres podem ser, no entanto, representados, muito embora isso não lhes garanta o atributo da existência. Alguém pode se vestir de Papai Noel (como, aliás, sucede no Natal), alguém pode se vestir de lobisomem ou de vampiro no Halloween. Mas nós, em sã consciência, não vamos dizer que existem lobisomem e vampiro.
Vou interromper neste ponto a argumentação, enfatizando apenas a ideia de que a experiência é e continuará sendo um critério decisivo para demonstrar a inexistência de Deus. Por quê? Porque ela nos permite situar esse “ser” no âmbito da imaginação ou, como procurarei mostrar, da fantasia.
Meu objetivo principal aqui é patentear a pertinência e o poder das críticas feitas pelo padre Jean Meslier, em sua sétima prova a favor da inexistência de Deus. No entanto, gostaria de fundamentar minha exposição na contribuição de Feuerbach, em sua crítica à religião, particularmente ao cristianismo.
Em termos gerais, a tese de Feuerbach consiste em mostrar que Deus não é senão resultado da projeção da essência do homem para fora de si. Ele identifica a essência de Deus com a essência do homem. E observa que Deus é resultado de um antropomorfismo. O que é isso? Consiste o antropomorfismo na aplicação de predicados humanos a Deus. É o que se exprime no dogma teológico, segundo o qual o homem é feito à imagem e semelhança de Deus. O padre Meslier, como veremos, mostrará como essa ideia entra em conflito com outras ideias associadas ao conceito de Deus.
Ora, o antropomorfismo nos revela que todas as qualidades atribuídas a Deus são qualidades inerentes ao homem; entretanto, uma vez projetadas para fora do ser do homem, elas são superlativizadas, sublimadas. Os homens amam; Deus ama infinitamente; os homens são bons; Deus é boníssimo, etc. Ocorre aqui a projeção das qualidades dos homens em um ser transcendente. Portanto, o homem se aliena, na medida em que instaura uma cisão em si mesmo. A alienação religiosa, em Feuerbach, consiste em tomar como Deus a própria essência humana, que é então separada e projetada para o exterior, tornando-a objeto de adoração, uma ilusão, um ídolo. Dá-se, então, um estranhamento de si pelo próprio homem. Disso decorre a crença disseminada segundo a qual nós homens fomos criados por Deus: o homem aparece à sua consciência como a criatura, e Deus seu criador. Essa “inversão” entre a representação e o real,, entre a ideia e o real, é, o que chamamos, com Marx, de ideologia. Essa inversão acarreta o obscurecimento da consciência dos homens. E Deus passa a ser, então, um “Ser” independente da essência do homem, capaz de “atuar” justamente na consciência, então, obscurecida. É claro que essa “atuação” não é do próprio Deus, que não é senão um produto da alienação, mas dos homens investidos de autoridade para inculcar e “ministrar” essa ideia de modo a controlar a consciências de outros homens.
A despeito da simplicidade com que expus um pouco do pensamento de Feuerbach, creio que as observações feitas até aqui são suficientes para mostrar que devemos ter em conta, para o que se seguirá, a importância do rebaixamento ontológico de Deus: Deus não é mais um ser apartado do homem e elevado, mas a própria essência humana projetada para fora de si. Deus é, com Feuerbach, objeto da razão.
Em Ateísmo e Revolta, Piva afirma, na seção Sétima Prova, que o padre ateu Meslier se esforçará por mostrar

“(...) a presunção e a falsidade das religiões com base nas contradições e nos erros acerca da existência da divindade”.
(p. 174)

Meslier insiste que o erro fundamental das religiões é assumir a existência de uma ou várias divindades às quais atribuem o papel de criar tudo que existe. Também insiste em que os clérigos e os tiranos se beneficiaram dessa convicção e dela se serviram para alcançar privilégios e poderes.
Sua crítica se orienta por três perspectivas: uma é de ordem metafísica; a outra, de ordem física; e a terceira, de ordem moral.
Depois de observar que grandes personalidades do pensamento, ao longo da História, negaram a existência de deuses, como Sócrates, Aristóteles, Pitágoras e o próprio Espinosa, Meslier questiona a própria sustentabilidade da fé dos homens religiosos. Segundo ele, o homem comum mantém sua fé por mero constrangimento e por temor à punição do inferno.

“Uma verdadeira fé, entende Meslier, nasceria de uma persuasão sem constrangimentos e de um consentimento espontâneo por parte do fiel. Uma fé obtida pelo constrangimento só prova a incerteza da existência de Deus. Se este de fato existisse, fosse onipotente e quisesse ser mesmo crível, não haveria a necessidade de persuasão mediante pregações ou de constrangimentos por meio de fábulas, bastando para isso apenas fazer-se indubitável a todos”
(p. 175)

Devemos ter em conta que Meslier escreve num contexto histórico específico, numa época em que a igreja católica exercia um poder ditatorial sobre a vida dos indivíduos; exercia, pois, um controle indiscutível sobre a consciência deles. Naquela época, a ideia de inferno era tomada como verdadeira, crível. Creio, porém, que, atualmente, a grande maioria das pessoas que seguem a religião cristã não devem ser facilmente “controláveis” e enganadas mediante a inspiração do temor ao inferno. Talvez, o fundamento da fé, hoje, seja a ignorância. Quero dizer que grande parte das pessoas que aderem a uma religião não são esclarecidas sobre os desvios, os erros, as trapaças do discurso da doutrinação. Muitas sequer leem a Bíblia, e, se leem-na, o fazem não sem a orientação de alguma autoridade eclesiástica. Quero dizer mais: assumir um ponto de vista crítico é proibido. Pensar, nessas condições, é terminantemente, proibido. Por isso, a religião se fundamenta no aviltamento da razão humana, na subordinação da razão à adoração cega, à confiança sem justificativas, sem explicações que satisfaçam o bom-senso. O próprio Jesus afiança isso, quando diz, advertindo a Tomé: “bem-aventurados os que não viram e creram” (João, 21- 29). Crer sem ver, crer sem pensar, sem refletir, sem questionar, sem entender. Apenas crer e ponto.
A fé se conserva pela ignorância e pelo sentimento de desamparo. Mesmo ao homem comum, que não se preocupa em refletir sobre isto, o absurdo é insuportável e lhe pesa na alma. A simples ideia de que sua vida não tem um propósito metafísico lhe é insuportável. Ademais, com Freud, a religião se mantém no sentimento de proteção que é comum aos homens, no limiar da infância. A religião conserva a infatilidade no homem adulto.
Meslier também questiona o fato de Deus nunca se revelar aos homens, de não lhes expor os seus propósitos e a sua verdade, de modo a acabar de uma vez por todas com suas rivalidades, guerras, conflitos. Argumenta Meslier que, se Deus se revelasse realmente, os problemas angustiantes da humanidade cessariam e a paz e a alegria, finalmente, poderiam ser alcançadas.
A passagem seguinte é ilustrativa da crítica feita por Meslier ao antropomorfismo realizado pelos homens:

“É curioso notar que o deus judaico-cristão aparece nos textos bíblicos falando a linguagem dos homens, e que estes teriam sidos criados à sua imagem e semelhança. Tal antropomorfismo aos olhos de Meslier, nada mais seria do que um artifício de má-fé utilizado por determinados homens para se estabelecerem como chefes religiosos, por conseguinte, como diretores da consciências. É o caso de Moisés, o qual atribui ao deus com quem ele jura ter conversado e dele ter recebido ensinamentos, várias características humanas”.
(p. 175)

Meslier, ironicamente, argumentará que, se os homens fossem criados à imagem e à semelhança de Deus, este deveria ser dotado das mesmas paixões humanas, ou seja, deveria reunir em si maldade e bondade. Além disso, deveria ter “um rosto humano, um traseiro e nádegas” (ibid.id.). Assim, Meslier insiste na ideia de que as divindades procedem da imaginação humana.
Outros argumentos apresentados para tentar “provar” a existência de Deus são postos em xeque por Meslier, como o da beleza e perfeição da Natureza. Por um lado, a perfeição da natureza é um ideal, já que a natureza está repleta de imperfeições; e a beleza em si não prova a existência de Deus. Para Meslier, um materialista, a natureza é auto-suficiente, capaz de por si mesma compor-se e se recompor.
O argumento da causalidade, inspirado em Aristóteles, e consagrado em São Tomás de Aquino, também é submetido à crítica por Meslier. Esse argumento parte da premissa de que: para todo efeito há uma causa. O mundo é um efeito que tem de ter uma causa. Essa causa é, para os religiosos, Deus. No entanto, ainda caberia a pergunta: quem causou Deus? Assim, se seguirmos a premissa, devemos estender a sucessão de causas até o infinito. E, se admitirmos que Deus é incriado, não tendo uma causa que o produz, então o argumento torna-se inválido, porque inválida estará sua premissa. Além disso, como mostra Meslier, por que não se poderia admitir que a causa de si mesma não poderia estar na Natureza?
Meslier insiste, como materialista, na necessidade de recorrermos à experiência, a realidade inquestionável, indubitável da matéria. Ensina Meslier

“(...) não parece ser sensato atribuir existência a uma entidade que nunca se manifesta nitidamente ou que jamais se fez palpável na nossa experiência cotidiana. Um ser assim seria absolutamente imaginário, mítico, visto que nunca foi irrefutavelmente provado. O mesmo não ocorre com a natureza e com o mundo melhor dizendo com a matéria, a qual é real, palpável, onipresente e se impõe aos nossos sentidos e consequentemente, à nossa razão, de um modo irrecusável”
(pp. 176-177)

Meslier se dedicará também a desenvolver sua filosofia materialista sempre orientada para a crítica à teologia em que se fundamenta o catolicismo. Todavia, vou-me limitar a apresentar outro argumento cujo peso é inegável. Diz respeito ao fato de que Deus nunca se manifestou de forma visível aos homens. Escreve o filósofo:

“É ridículo e absurdo dizer que um ser que seria todo-poderoso e infinitamente perfeito não teria entretanto nenhuma perfeição visível e sensível”.
(p. 179)

A ideia de que as nossas misérias, os nossos conflitos, as nossas disputas poderiam ser solucionadas pela simples aparição de Deus e revelação de seus propósitos é cara a Meslier.
O Problema do Mal, que é o problema fundamental e, até hoje indissolúvel, tanto para teólogos, quanto para filósofos, é revisitado pelo padre ateu. Meslier se vale desse problema como um forte e decisivo argumento para demonstrar a inexistência de Deus:

“Os males, as misérias, os vícios e as maldades dos homens fazem evidentemente ver que não há Ser todo-poderoso, infinitamente bom e infinitamente sábio que possa impedi-los ou isso remediar. (...) se existisse um deus infinitamente bom, ele amaria o bem, logo, protegeria e recompensaria os bons ao mesmo tempo que castigaria os maus, pois é próprio da natureza da bondade e da sabedoria realizar o bem e impedir o mal. Como o mal impera imbatível no mundo, esta é uma prova certa e evidente de que no universo não há nenhuma divindade infinitamente bondosa e sábia”
(p. 181)

O problema do Mal, que se exprime na dificuldade de sustentar a crença num ser infinitamente benevolente, chamado, no cristianismo, de Pai, e a existência inegável do mal (quer perpetrado pelos próprios homens, quer na forma do sofrimento decorrente de catástrofes naturais e doenças), traz à cena, novamente, o peso da experiência. Ora, quem tiver o mínimo de consciência histórica verá que todo o desenvolvimento da vida humana, da civilização se deu à custa de muitas vidas, em guerras e em conflitos.
Recentemente, um terremoto ocorrido na Espanha destruiu uma cidade e derrubou o campanário de uma igreja. Deus não poderia ser, ao menos, cuidadoso com o patrimônio a ele erigido? Parece que ele ignora o valor de uma edificação como a igreja, que é destinada à devoção a ele. Estranho, não acham?
Também a experiência nos mostra que, se existisse um Deus, que dele se diz justo, era esperado que a justiça fosse extensiva a todos. Mas o que sabemos é que a injustiça grassa na vida dos homens. O que vale aqui é a lei do mais forte.

“Se Deus fosse de fato perfeito, teria dado ao mundo uma ordem mais justa e também mais vigorosa, uma ordem que nenhuma maldade humana fosse capaz de alterar. De onde se segue que esse Deus não seria um bom pai, nem um pastor zeloso, tampouco um juiz judicioso. Em última análise, trata-se da retomada por Meslier do célebre raciocínio de Epicuro (...)”.
(p. 182)

O raciocínio de Epicuro parece manter-se inabalável até hoje. Ele se expressa assim:

Deus o quer impedir os males e não pode, ou pode e não quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode. Se Deus quer impedir e não pode, então ele é impotente; se Deus pode e não quer, então ele é mal; se não pode e não quer, ele sequer é Deus; se quer e pode, então por que a existência do mal no mundo?

Freud ensinava que a fantasia é único modo da atividade mental livre do domínio do princípio de realidade, ao qual o princípio de prazer está subordinado. No entanto, parece que a religião se apodera da fantasia e a institui como modelo de percepção, compreensão e orientação da vida. Torna os homens seres imersos nesse mundo fantasioso que, a despeito de seu domínio, não nega, por completo, o mundo real. Mas insisto: as religiões precisam, para conservar seu controle sobre a consciência, manter os homens indiferentes a toda forma de pensamento reflexivo que pusesse a nu os mecanismos de logro, as contradições, os disparates, as fábulas, e os dogmas contrários ao bom-senso.