sexta-feira, 10 de agosto de 2012

amores






Nossos amores

O tempo arrastou meus amores
para um fundo imperscrutável
Indiscerníveis entre tantas
as memórias que não somos
Assim devem ser os amores
Poeiras do tempo...

Amores descobrem amores
E o ciclo recomeça
O amor é nosso caminho
Apesar dos humores, dos dissabores
Apesar da vida que mata
Apesar do tempo impiedoso

Da velhice que degrada
Da morte a que estamos condenados
Dos homens e mulheres
Que outrora amaram
Itinerantes do amor eterno
Que sempre acaba

Afinal,
Como a vida.

(BAR)

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Um poema de outrora








Enlace Onírico

Oh! Amo as manhãs álgidas e cinéreas
Quando deito em teus cabelos camélias
E libo em teu regaço a ambrosia,
Ah! Beijar-te a boca, nua, eu podia.

De noite, teus olhos de ouro contemplava,
Recôndito impávido de meu lasso,
Sob lençóis alvos, na alcova, eu te chamava
Fazias-me dormir com teu afago.

Tu te levantavas, Encarnada Candura!
Teu doce olor a face minha perfumava,
Ao arrebol emprestava íntima ternura.

Chamaste-me, a voz serena me despertava
Ouvindo-te, do ventre onírico emergia
Ó beijar-te a boca tua não mais podia!


(BAR)

domingo, 5 de agosto de 2012

"O objetivo de viver é viver" (Sponville)


                  

                                O paradoxo da felicidade

Ainda é viva em mim a lembrança das aulas em que eu pude estimular meus alunos ao debate sobre a leitura de textos. Nessas ocasiões, regozijava-me! De certo modo, reexperiencio essa grande satisfação, sempre que componho meus textos e os divulgo aqui neste espaço.
Meu intento – como de costume – é convidar o leitor que me acompanha a ler mais – e a ler o livro A Mais Bela História da Felicidade: a recuperação da existência humana diante da desordem do mundo (2010), que reúne André Comte-Sponville, filósofo, Jean Delumeau, especialista em história das mentalidades religiosas e Arlette Farge, historiadora especializada no século XVIII. O livro se estrutura em entrevistas feitas aos estudiosos. Eu vou-me ocupar com a exposição da terceira parte da entrevista a André Comte-Sponville, intitulada de O paradoxo dos filósofos. O tema de todas as entrevistas é a felicidade. Sponville irá considerá-la na história da filosofia, desde os gregos até os modernos. A terceira parte é dedicada à reflexão sobre como o homem comum pode ser feliz e sobre o papel que a filosofia desempenha na experiência de felicidade.
Já tive a oportunidade de escrever sobre a felicidade, ocasião em que sustentei a tese de que a felicidade não pode limitar-se ao acúmulo de riqueza, tampouco pode ser pensada sem que consideremos a satisfação de condições básicas de sobrevivência. Não me limitarei a apresentar os argumentos do autor; esforçar-me-ei por me posicionar em face de sua argumentação, o que implica nem sempre estar de acordo com ele. Urge, contudo, dialogar com o autor, entender a perspectiva com que ele trata do tema. Lembro que Sponville é ateu, de modo que, como veremos, falar em ‘sentido da vida’ só faz realmente sentido quando abandonamos a ideia de transcendência e nos situamos no âmbito da imanência. Para ele, o sentido da vida é viver a vida. Em tempo, teremos a oportunidade de compreender melhor sua posição, nesse tocante. Mas o leitor, se for cristão, poderá estar certo de que o autor não faz ataque à religião, apenas sua compreensão do sentido da vida é que diverge da compreensão religiosa. De resto, a mensagem de Sponville é a do amor – do amor à vida mesma, à verdade e ao saber.

1. A ausência de infelicidade

A tese de Sponville é a seguinte: viver a vida na esperança de ser feliz é uma forma de ser infeliz. Segundo o autor, para encontrar a felicidade, não precisamos procurar por ela. A experiência de ser feliz não depende da satisfação de todos os nossos desejos, já que eles são “indefinidos, flutuantes e sempre renovados” (p. 56). A insaciabilidade do desejo impede-nos de alcançar a felicidade. Se entendemos, com Platão, que desejo é falta e que, portanto, desejamos aquilo que não temos, experienciaremos o vazio, a frustração. Nem todo desejo é falta, entretanto.

“(...) desejar aquele ou aquela que existe, que se entrega e com quem fazemos amor, é experimentar a presença, a força natural, a plenitude”.
(p. 66)

O que entende o autor por felicidade? Num primeiro momento, pensa a felicidade como ausência de infelicidade. Nós buscamos afastar a infelicidade. Freud nos ensinava que nós buscamos incessantemente o prazer e desejamos permanecer nele. No entanto, a própria cultura impede-nos que experienciemos esse estado por muito tempo. Mas não só ela: “nossas possibilidades de felicidade já são limitadas pela nossa constituição” (Freud – O mal-estar na cultura, p. 63). Consciente de que a definição de felicidade apresentada é ainda insuficiente para compreender essa experiência, o autor reconhece que ser feliz não implica a ausência de inquietudes, de preocupações. É possível experienciar uma felicidade ordinária, episódica, apesar da aridez da vida. Não convém, segundo o autor, querer entender a felicidade como uma alegria perene, porque a alegria é movimento, é flutuante.
Sabemos – e Sponville também o reconhece – que a felicidade não está sempre presente, mas ele acredita que a alegria é sempre possível. A felicidade está na realidade, em potência.

“Se a felicidade existe quando não se é infeliz, ela também existe, sobretudo, quando a alegria parece imediatamente possível, e a fortiori, real. A felicidade não está sempre presente, ela vai e vem, mas não existe nada insuperável que nos separe dela (...)”.

(p. 58)

A definição de felicidade proposta por Sponville é bastante modesta. O autor entende que, se pretendemos que todos os nossos desejos sejam plenamente satisfeitos, para sermos felizes, então nunca conseguiremos sê-lo. A felicidade não é algo absoluto – e estou de acordo. Para ele, trata-se de “uma modalidade da existência, com altos e baixos” (p. 59). Não ser infeliz já é razão para sermos mais ou menos felizes.

“Uma das coisas que a vida me ensinou, e que, apesar de tudo, me propiciou uma forma de sabedoria, foi o seguinte: ser quase feliz já é uma felicidade”.
(p. 59)
(grifo no original)

Retomemos Freud, em O mal-estar na cultura. Nesse trabalho, Freud defenderá que, ao invés de viabilizar a fruição do prazer – sempre perseguido pelos seres humanos – a cultura, por eles criada, tende sempre a frustrá-los, decepcioná-los, afastando-os de seu objetivo. Os obstáculos para a experiência da felicidade são, segundo o autor de O Mal-estar na cultura, maiores. Ser feliz, para Freud, é experienciar intensas sensações de prazer, experiência esta inatingível aos seres humanos, no atual estágio da cultura. Neste trecho, Freud indaga-se sobre qual seria o propósito da vida das pessoas, e ele não hesita em responder ser a felicidade. Sponville – me parece – não concordaria com Freud, se entendemos por propósito a ideia de ‘sentido da vida’:

“(...) o que os próprios seres humanos, através de seu comportamento, revelam ser a finalidade e o propósito de suas vidas? O que exigem da vida, o que nela querem alcançar? É difícil errar a resposta: eles aspiram à felicidade, querem se tornar felizes e assim permanecer. Essa aspiração tem dois lados, uma meta positiva e outra negativa: por um lado, a ausência de dor e desprazer; por outro, a vivência de sensações intensas de prazer. Em seu sentido literal mais estrito, “felicidade” refere-se apenas à segunda”.
(p. 62)

De fato, Sponville está de acordo com Freud, no tocante ao fato de os homens aspirarem à felicidade e de desejarem permanecer nessa condição por longo tempo. Ambos também concordam que tal caso não é possível, porque a felicidade plena é um ideal. Para o pai da psicanálise, a própria forma como a cultura se organiza – essencialmente repressora – impede a fruição permanente do prazer (felicidade). Também para Freud a impossibilidade de experienciar uma felicidade duradoura se deve ao modo como a psique humana se estrutura. Entanto, ao contrário de Freud, Sponville já considera o afastamento do desprazer uma forma de felicidade. A pessoa que não sofre, que não experimenta dor e infelicidade já deve considerar-se uma pessoa feliz. Lembro que a quase felicidade é já felicidade, para o filósofo francês.
Sponville também não parece estar de acordo com Freud ao supor que o propósito da vida humana seja a felicidade. Se entendermos por propósito da vida a ideia de ‘sentido da vida’, certamente, Sponville não comunga da perspectiva freudiana. Veremos, mais adiante, o porquê.  Claro está que, se tomarmos por objetivo da vida ser apenas felizes, se acreditarmos que, sem a felicidade, a vida não faz sentido, muito frustrante será viver, já que a felicidade não é perene e nosso desejo é caracterizado pela insaciabilidade (sempre renovado, dirá Sponville).
A concepção de felicidade de Sponville difere da concepção freudiana. Isso é bem claro. Para o primeiro, a felicidade é um estado de alegria sempre passível de ser experimentado nas circunstâncias comuns da vida; ela pode ser uma experiência débil, difusa. Para Freud, ao contrário felicidade é “vivência de sensações intensas de prazer”. Só há felicidade onde há intenso prazer. Só há felicidade onde há profunda sensação de bem-estar. Como a cultura nos impede de experienciar esse profundo bem-estar (a felicidade), só nos resta a sublimação, ou seja, recorrer a outras formas de experienciar algum grau de felicidade (como a alegria experimentada pelo artista em sua atividade). É que, para Freud, a intensidade do prazer se aufere na satisfação de nossos instintos mais grosseiros (p. 69).


2. O sentido da vida

Ao ser perguntado sobre o sentido da vida, Sponville é bastante claro: a questão do sentido da vida não se coloca no momento em que a felicidade está presente. De fato, não nos preocupamos com o sentido da existência quando estamos envolvidos em sensações de felicidade.

“(...) nossos momentos de felicidade intensa (em que a alegria não é apenas possível, mas real, deslumbrante, espantosa) são aqueles nos quais a questão do sentido da vida não se coloca. Por que teríamos descoberto ou alcançado esse sentido? Por motivo nenhum, simplesmente porque aqui e agora a vida é suficiente para nos completar”.

(p.60)

O trecho em negrito é indispensável para a correta compreensão da posição do autor. Sponville, em nenhum momento, dissocia a felicidade da vida real; não a projeta para um além-morte, para outra vida. Mas, convém, por ora, nos deter no significado da palavra “sentido”. Para tanto, é necessário falar um pouco sobre semiologia. Sponville acredita que a palavra sentido encerra uma noção difícil, porque inclui tanto a ideia de “significado de uma frase” quanto a ideia de “direção ou propósito”. Nas duas acepções, segundo o autor, o sentido remete a alguma coisa que não ele mesmo. Isso fica claro quando pensamos na natureza de todo signo. O signo é signo de outra coisa, um signo está no lugar de outra coisa. Assim, ao nos depararmos com uma placa em que se avisa sobre um acidente a duzentos metros, essa sinal (signo) está “no lugar da coisa” (acidente) a que ele remete. Graças às palavras, que são signos lingüísticos, podemos falar de coisas que não estão presentes em nosso campo observacional. Não é necessário que haja diante de mim uma baleia para que eu fale dela. A palavra “baleia” evoca em minha mente a imagem desse animal (o seu significante). O sentido da palavra “baleia” não é a palavra “baleia”, mas a representação mental desse mamífero que vive no mar. O sentido é, pois, “outra coisa”. Falar em sentido é falar de algo que está fora de nós. Escreverá Sponville “o sentido encontra-se sempre fora e nós estamos sempre aqui” (p. 60). É interessante pensar no emprego do advérbio “aqui”, que é dêitico e que, portanto, em um de seus usos, refere-se ao “lugar onde se acha o falante”. É claro que a palavra “aqui”, nesse caso, não tem como escopo o lugar onde estava o autor. Ela se refere ao “estar no mundo”, à existência mesma. Por isso,  é forçoso concluir:

“O sentido da vida só pode ser uma outra vida (esse é o sentido que as religiões oferecem) ou uma vida diferente (a que se espera)”.
(p. 61)

Para o filósofo, a experiência de felicidade depende de que o objetivo de viver seja a própria vida, depende de que aceitemos a vida, com suas inconstâncias, com seus bons e maus momentos. Não seremos felizes, se nosso objetivo é outro que não a vida real. Citarei a seguir um trecho que torna a argumentação do autor um pouco confusa. Senão, vejamos:

“Os que são felizes não precisam procurar outra coisa além de sua própria vida tal como ela é, como ela passa, como se inventa e se transforma por si mesma a cada instante. Essa é a razão pela qual a experiência de felicidade não é uma experiência do sentido; ela é uma experiência do presente, da realidade, da verdade atualmente disponível”.

(p. 61)

Que fique bem claro. Para Sponville, o mais feliz dos homens é aquele que experiência a felicidade do momento. Projetar a felicidade para o futuro é também viver o vazio, a frustração, a falta, já que o futuro é o não-ser, não existe. Para o filósofo, “o objetivo de viver é viver”.
Certamente, se estamos felizes, estamos reconciliados com a vida e não precisamos nos apoiar na ilusão de serem felizes em outra vida. Para os que estão felizes, a vida é bastante. Todavia, sucede que, para Sponville, a felicidade depende de que estejamos conciliados com a própria vida, mesmo sabendo que ela está repleta também de dor e infelicidade. E o que dizer dos que não estão felizes? Como podem eles se satisfazer apenas com a vida? Como podem eles se regozijar dela?
Nem sempre a vida é suficiente, dirá o autor. Por isso, a necessidade da filosofia. Consoante o autor, há os que não precisam da filosofia, porque parecem possuir uma “sabedoria espontânea”. Tanto melhor, dirá. Mas há os que dela necessitam, porque “sem ela são incapazes de amar a vida tal como ela é”. A filosofia não é tão-só experiência de pensamento, mas também, mormente, experiência do bem viver. Ela nos ensina a viver mais e melhor. Ela nos ensina a enfrentar o sofrimento, porque é preciso aceitar a vida tal como ela é, mas também é preciso enfrentar as suas adversidades.
A função da filosofia é nos ensinar a viver, apesar do paradoxo diante do qual  a busca sempre urgente pela felicidade nos coloca:

“(...) somente aquele que deixou de buscar a felicidade pode ser feliz, somente aquele que ama a vida mais que a felicidade pode ser feliz”.
(p. 63)

No limiar do texto, disse que Sponville iria nos comunicar uma mensagem de amor. Ele a anuncia ao nos ensinar que devemos amar a vida mais do que a felicidade, e amá-la com seus reversos. A filosofia nos ensinará a regozijar-nos. O indivíduo que ama a felicidade não a alcançará, porque a vida se encarregará de evitar que ele a encontre. Assim, ensinará o filósofo:
“Trata-se de passar da esperança da felicidade ao amor pela vida, mesmo que nem sempre seja possível amá-la. E por que ela não seria amada? Não é o valor da vida que justifica o amor que lhe dedicamos; ao contrário, é o amor que lhe dedicamos que atribui valor à vida”.
(p. 63)

A lição de Spinoza é lembrada pelo filósofo: não é porque uma coisa é boa que a desejamos, é porque a desejamos que ela é boa. Logo, não devemos amar a vida por causa do seu valor, já que o valor advém do amor à vida. É porque a amamos que ela tem valor. O valor não está na vida em si, nem nas coisas. Quando o desejo se inclina a uma coisa, essa coisa passa a ter valor. O amor valoriza: “o amor não se submete ao valor do seu objeto: o amor é o criador do valor” (p. 63). Por isso, os valores que criamos depende da intensidade com que amamos. A verdade é um valor, porque a amamos; a honestidade é um valor, porque a amamos; a fidelidade é um valor, se a amamos. O amor é o fundador de todos os valores.
Mas volvemos à citação acima. Abandonar a esperança de felicidade, mas também a esperança como atitude diante da vida. É o que aprendi com Sponville. A esperança nos conforma na espera e nos imobiliza na experiência da ausência. Não se deve ter esperança de um dia ser feliz; é possível ser feliz no presente. Nisso estou de acordo com Sponville. Isso não significa que o presente sempre favorecerá a felicidade.

“Amar verdadeiramente a vida não é apenas amá-la apenas quando ela é feliz, mas amá-la em sua totalidade, seja ela constituída de felicidade ou infelicidade, de prazer, sofrimento, tristeza ou alegria”.
(p. 67)

O amor à vida é a força de que dispomos também para enfrentá-la. Só podemos enfrentar as adversidades da vida, se formos capazes de amá-la. O melancólico é aquele que perdeu a capacidade de amar – ou, ao menos, aquele cuja capacidade de amar se enfraqueceu. O suicida é aquele que perdeu o amor à vida.
Ao cabo da contribuição de Sponville, o autor concluirá – o que, para mim, sempre me pareceu bastante claro – que está no amor a maior fonte de felicidade.

“Como vimos, a alegria real ou possível é o verdadeiro conteúdo da felicidade. Isso quer dizer que não há felicidade a não ser no ato de amar. Trata-se, mais uma vez, de nossa experiência com todas as pessoas”.

(p.68)

Convém nos acautelar ao concluir que Sponville não nos dá margem a objeções. Parece que o autor não considera algumas circunstâncias dolorosas da vida real, ao defender a necessidade de amar a vida como condição para usufruir um pouco de felicidade. Penso nas crianças em cujos lares elas não conhecem o amor dos seus. Penso naqueles que nasceram em condições socioeconômicas muito precárias. Penso na grande quantidade de sofrimento que atinge milhões de pessoas em todo o mundo. Penso ainda que, apesar disso, uma vez vivo (porque não escolhemos nascer), podemos escolher viver... E não posso esquecer a lição de Marcel Conche, em A análise do amor (1998), ao se referir à felicidade do sábio:

O homem feliz de uma felicidade filosófica é o “sábio” – tanto quanto possível. O sábio não tem problema pessoal ou, pelo menos, tem força para enfrentá-los. Com isso, é tanto mais sensível aos problemas alheios. Falei do “privilégio da insensibilidade” do homem comum. O sábio, ao contrário, é tanto mais sensível aos problemas dos outros quanto menos se absorve com os seus. (...) Sua felicidade é um fato. Mas a felicidade não impede que possamos sofrer, como tampouco o sofrimento impede que possamos ser felizes. (...) Felicidade porque não se tem medo nem desejo, porque se está em paz consigo mesmo, em regra com a consciência de seu destino (entendo que sempre temos vivido na inteligência de si e na fidelidade a si), mas também tristeza porque o mundo é triste e não há o que fazer a esse respeito. Felicidade da potência sobre si, tristeza da impotência sobre o mundo”.
(p. 67)

Também Sponville nos fala da potência de gozar a vida cada vez mais. Também estou de acordo com Sponville no tocante ao fato de a felicidade ser, afinal de contas, apenas uma ideia. Existindo a palavra, precisamos nos valer dela. O problema, me parece, é quando enchemos a palavra felicidade de desejo, é quando insuflamos seu significado a tal ponto que ele nos parece difuso, pesado, inapreensível.
O que é a felicidade senão uma emoção de alegria, de satisfação? E o que é uma emoção, senão um padrão de reação, que nos impulsiona à experiência com o significado? Toda emoção envolve sentimentos, mas deles se diferencia por manter uma relação implícita ou explícita com o mundo. A emoção nos move, nos afeta o comportamento, tanto nos faz agir quanto nos faz estancar.
Uma pessoa pode sentir-se feliz, ao obter um emprego, ao ser promovida no trabalho, ou ao alcançar o corpo desejado (muito embora, nesses casos, o padrão de beleza estabelecido socialmente e reforçado pela mídia torna essa realização sempre inatingível, porque o desejo nunca é satisfeito; e sabemos que é provocando a insaciabilidade do desejo que o mercado lucra). Não podemos escapar ao desejo. Não é possível não desejar, mas é possível não se render a todos os seus apelos. A insaciabilidade do desejo torna-nos infelizes.
Ser feliz ou estar feliz? A felicidade tem a ver com um modo de estar no mundo, com um modo de agir, apesar do mundo. Sabemos que fazer atividade física, praticar esportes ter e fazer amigos, etc. torna as pessoas felizes. A felicidade não é um estado de alma; ela envolve todo o corpo. Por isso tem a ver com endorfina, dopamina, serotonina, noradrenalina; por isso também comer (especialmente chocolate, açúcar e lacticíneos), se apaixonar e  fazer sexo nos causa felicidade.
 A questão da felicidade é interminável, como tudo em filosofia... cujas questões nunca se fecham... apenas a vida tem de findar... enquanto houver vida, há a filosofia e a possibilidade de pensar em como ser feliz...



sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Não, português não é difícil!


                              

                              O mito e os equívocos
                      na compreensão comum da língua

Poder falar ou escrever sobre língua/ linguagem é um assunto que me agrada bastante.Mas não tratá-lo de modo trivial, ao sabor do senso comum que, em matéria de linguagem, espera ansiosamente pelas receitas que ensinem como se deve falar e escrever “corretamente” (uso aspas porque a noção de correção idiomática é problemática e dela já tive a oportunidade de tratar em outros textos). Quero aqui apontar as razões por que as pessoas, em geral, entre as quais estão aquelas altamente escolarizadas e letradas (jornalistas, escritores, profissionais da educação, filósofos, etc.), perpetuam a crença de que português é difícil. Particularmente, estou interessado em avaliar os equívocos subjacentes a um juízo que ouvi a uma adolescente há alguns dias, que tem mais ou menos a seguinte forma:

Português é muito difícil, porque tem muitas regras.

Note-se, desde já, que a garota justifica a dificuldade que encontra no estudo do português na escola (ela está cursando o último ano do ensino médio) com a declaração “tem muitas regras”. Vejamos separadamente os dois problemas aí, a saber, o ser o português uma língua difícil e o apresentar muitas regras.
Vou-me socorrer das lúcidas palavras de Marcos Bagno, em Preconceito linguístico, como é, como se faz (2004). No trecho abaixo, o linguista põe-nos o problema, apresentando-nos sua causa:

“Como nosso ensino da língua sempre se baseou na norma gramatical de Portugal, as regras que aprendemos na escola em boa parte não correspondem à língua que realmente falamos e escrevemos no Brasil. Por isso achamos que “português é uma língua difícil”: porque temos de decorar conceitos e fixar regras que não significam nada para nós. No dia em que o português se concentrar no uso real, vivo e verdadeiro da língua portuguesa do Brasil é bem provável que ninguém mais continue a repetir essa bobagem”.
(grifo no original)
(p. 35)

É fato já há muito reconhecido pelos especialistas que há uma grande distância entre os usos da língua que são ensinados na escola e os usos que realmente dela fazem os falantes nativos no dia-a-dia. O que explica, portanto, a reprodução da crença em que o português é uma língua difícil é a forma como essa língua tem sido estudada numa longa tradição de ensino. Afinal, como poderia ser difícil o domínio de uma língua para um falante nativo dessa língua, cuja aquisição se inicia muito cedo em sua vida, entre os três e quatro anos - falante que se serve dela com bastante naturalidade e eficiência nas inúmeras situações de interação em todos os momentos de sua vida? Como poderia ser difícil a sua própria língua materna, cujo sistema de regras (a gramática, falarei dela depois) ele internalizou em tão tenra idade? Qualquer falante nativo de português, independentemente do grau de escolaridade (mesmo um analfabeto) aceitará enunciados como (1) e (2) e rejeitará (3) e (4):
(1) O cachorro é de João
(2) Este brinquedo custa caro.

(3) * O cachorro está de João
(4) *Este o brinquedo custa caro.

(O * indica agramaticalidade)

Mesmo quase nunca consciente das regras subjacentes à construção de (1) e (2), qualquer falante nativo de português não tem dificuldade em considerar tais enunciados como bem-formados gramaticalmente. Ao contrário, não hesitariam em dizer que há algum problema nos enunciados (3) e (4). Para qualquer falante nativo, tais enunciados não são bem-formados, porque infringem alguma regra prevista pela gramática do português. Em (3), em enunciados em que figura uma estrutura do tipo ‘DE-possuidor’, usamos o verbo “ser” e não “estar” (cf. A pasta é do meu pai/ o livro é da minha professora/ o chinelo é do meu irmão). Estou simplificando, para os meus propósitos aqui, a descrição da regra. Já em (4), o português não admite o uso concomitante de artigo e pronome demonstrativo, ou seja, ou usamos o artigo, ou usamos o demonstrativo, mas nunca ambos. Evidentemente, o uso de uma ou outra unidade dependerá de fatores sociocognitivos (ou mais simplesmente contextuais). Para os mais familiarizados com os estudos gramaticais (digo “descritivos”), diremos que os pronomes demonstrativos podem ocupar a posição de pré-determinante (PreD) sempre que ocorra um numeral antes do substantivo núcleo, mas não podem ocupar essa posição caso ocorra artigo ou pronome indefinido. Senão, vejamos:

(5) Estes   quatro brinquedos custam caro.

(6) * Estes alguns brinquedos custam caro.

Fique claro que regra aqui está sendo usado no sentido de ‘princípio de instrução para a combinação de unidades linguísticas’. A regra, portanto, rege o uso adequado da língua, mas num sentido diferente do que normalmente a entendemos numa visão prescritivo-normativista de ensino de língua. Que fique claro: empreguei ‘regra’ no sentido de princípio de estruturação das unidades da língua. Sabe-se, por exemplo, que os sufixos “-ção” e “-mento”, que formam substantivos deverbais, são os mais produtivos. Assim, temos

(7) especificação, realização, formação, sufixação, dominação, significação, etc.
    envolvimento, entendimento, batimento, impedimento, estacionamento, etc.

No entanto, se a palavra terminar em “-izar”, a língua rejeita a anexação de ‘-mento’, admitindo apenas o uso de “-ção” (cf. atualização, mas não “atualizamento”). Trata-se aqui de uma restrição de ordem estrutural à aplicação da regra, que prevê a anexação de ‘-ção’ e ‘-mento’ para a formação de substantivos a partir de bases verbais. Para os demais casos citados, o que impede que tenhamos “formamento” ao lado de “formação” é simplesmente o fato de que, uma vez já disponível uma forma em “-ção’ na língua, não há necessidade de uma forma correspondente em ‘-mento’, a menos que a forma em “-mento” traga alguma especialização semântica. Veja-se o caso do par “nutrimento” e “nutrição”, que derivam do verbo “nutrir”. Como “nutrição” designa a ciência que estuda os alimentos, sentiu-se a necessidade de falar em “nutrimento” para se referir tão-somente ao alimento ou sustento, por exemplo, de atletas. Isso não significa que não usamos “nutrição” no sentido de ‘ato de nutrir’, como em “A nutrição dos atletas deve ser balanceada”. O dicionário Houassis registra as duas formas – nutrição e nutrimento – embora atribua à nutrição, além do significado de ‘ciência’, os de ‘alimento’ e ‘sustento’, reservando à palavra “nutrimento”  a noção de ‘ato ou efeito de nutrir’. As duas formas compartilham os significados “alimento” e “sustento”.
Devemos, contudo, não tomar os dicionários como manuais do saber inquestionável sobre a língua. Muitos usos não são registrados no dicionário e as interpretações dos usos podem ser equivocadas. Dizemos “A nutrição dos atletas é feita por um especialista”, querendo dizer que sua alimentação é orientada por um nutricionista; podemos dizer “O nutrimento dos meus filhos sou eu quem faz”, querendo dizer o sustento deles. Em suma, para evitar a associação que nutrição tem com um campo científico (“nutrição” designa um campo da ciência que estuda os alimentos), os falantes criaram a forma “nutrimento” que exclui de seu campo semântico a noção de “ciência”, compreendendo tão-só as noções de ‘ato de nutrir’ ou ‘sustento’.
Comparem-se, finalmente, as formas “descoberta” e “descobrimento”. Trata-se de duas formas resultantes da anexação de sufixos à base “descobrir”: “descob (ert) + a “ e “descobri + mento”. No entanto, os contextos de uso são diferentes e, portanto, as significações também o são Embora o mesmo dicionário registre “descoberta” como sinônimo de “descobrimento”, falamos em “descoberta científica” e não “descobrimento científico”. Por outro lado, falamos em “descobrimento do Brasil”. Com o uso de “descoberta”, nos referirmos a algo que veio à luz após investigação (algo que se revela depois de um longo trabalho investigativo). Além de associar-se a um evento grandioso, “descobrimento” pode também designar a exposição de algo que antes estava coberto (cf. o descobrimento do corpo/ da cabeça/ das mãos/ dos pés). Disso não se segue que não se possa usar “descobrimento” no sentido que lhe damos no domínio discursivo das ciências. Pelo menos, parece possível o uso de descobrimento tendo como complemento o ‘agente”.  Veja-se o exemplo abaixo:

(8) Antes disso, o reverendo Plot tinha encontrado um osso fêmur enorme em 1676 na Inglaterra. Acreditava-se que pertencia a um gigante. R. Brookes publicou um relatório sobre o descobrimento de Plot em 1763.

Não hesitaríamos em usar “descoberta” no lugar de descobrimento, para nos referir ao achado científico do reverendo Plot. Nos exemplos abaixo, colhidos do site www.linguateca.pt., vemos as formas “descobrimento” e “descoberta” para referir-se ao conhecimento de territórios:


(9) par=ext203641-clt-94b-1: Mostrando-nos, sobremaneira, o risco daqueles que, na vida e na obra, assumiram e ainda assumem a poesia como força de descobrimento íntimo e de elucidação moral .



(10) par=ext218063-clt-93a-3: No ano em que, na Exposição Universal de Sevilha, a diplomacia do comissário Emilio Cassinelo permitiu a síntese expositiva de aspectos polémicos da história de Espanha -- descobrimento da América, desterro dos judeus e expulsão dos árabes --, a sociedade civil manifesta sintomas de um novo mal: o racismo .



(11) par=ext224942-nd-93b-3: Deus convocou o Anjo Consolador e mandou-o conversar com Cristóvão Colombo, que estava em profunda depressão desde as comemorações dos 500 anos do descobrimento da América, no ano passado .



(12) par=ext235874-clt-94a-1: Já enumerámos a descoberta das ilhas atlânticas, simples consequência do descobrimento das costas de África .

Em (9), “descobrimento” significa ‘autoconhecimento’, ‘revelação de si à própria consciência’. Em (10) e (11), a mesma forma designa o evento de descobrir (achar, encontrar) uma nova terra. Em (12), “descoberta” também é empregado nesse mesmo sentido com que usamos, normalmente,“descobrimento”.
Os parcos dados sugerem que não tem havido um esforço entre os falantes nativos de manter uma distinção semântico-pragmática rigorosa no uso das formas “descobrimento” e “descoberta”, pelo menos quando o campos experienciais ativados são o da geografia e das ciências (descobrir novas terras, o descobrimento do cientista ajuda na compreensão...).
O que vim fazendo até aqui foi mostrar como se faz descrição linguística, ou seja, como, grosso modo, trabalha um linguista. Ele trabalha com dados empiricamente demonstráveis e com formulação de hipóteses sobre como a língua funciona.
Proponho que se faça a distinção entre regras descritivas e regras prescritivas. O primeiro conjunto de regras compreende aquelas estipuladas pelo linguista quando da observação e exame do uso da língua na base de textos reais representativos de um corpus. Esse conjunto de regras constitui a gramática internalizada que todo falante nativo tem inscrita em sua mente/cérebro. Trata-se de um componente de regras que ele aciona intuitivamente para construir enunciados em sua língua materna. Cabe ao linguista produzir gramáticas (modelos teóricos) que constituem uma hipótese de como esse componente de regras funciona. Descrever a estrutura e o funcionamento de uma dada língua significa explicitar e explicar seus sistemas de regras (fonológico, morfossintático, semântico e pragmático).
As regras prescritivas são as que regulamentam o uso da variedade de prestígio de uma língua e que devem ser seguidas por todo aquele que pretende ser bem avaliado socialmente. Assim cabe distinguir entre a regra que nos instrui a usar o artigo antes do substantivo e a regra que exige que usemos a forma “dele” como complemento do verbo “gostar”, ao invés da forma “lhe” (cf. Eu gosto dele/ Eu lhe gosto). Nesse último caso, a inserção de “lhe” não viola o funcionamento do sistema gramatical, diferentemente do que sucederia, se usássemos o artigo depois do substantivo (cf. *Menino o falou alto).
A prova de que os falantes nativos de português seguem regras de modo intuitivo são as ocorrências abaixo.

Se eu _________,        você ____________.

            Canto                            dança
            Cantar                          dança
            Cantar                          dançará (vai dançar)
            Cantava                       dançava
           Cantei                            dançou
           * cante

Mas
Caso eu cante, você dança.

Sabemos intuitivamente quais as correlações verbais são normais ou aceitáveis em português, quando do uso da conjunção condicional “se”. Apenas a forma do presente do subjuntivo “cante” é incompatível com o uso de “se”. No entanto, ela combina com “caso”. Isso se torna um problema para o aprendiz estrangeiro de português. A tarefa do linguista é observar o que as pessoas usam e descrever a regularidade do uso e os sentidos produzidos nas combinações em questão. Quando usamos o presente do indicativo na oração com “se” e na oração principal (a que segue, no caso), expressamos a ideia de ‘habitualidade’, ou seja, queremos dizer “toda vez que eu danço, você dança”.
Há regras semântico-discursivas operando nesses casos. Convém investigá-las e descrevê-las. Não me estenderei nesse terreno. Limito-me a dizer que tais regras não são de natureza prescritiva, no sentido de que elas tocam ao uso largamente aceito por todos os falantes nativos da língua. 
     Todos os usos linguísticos são sensíveis às situações de interação, por isso mesmo o uso da variedade de prestígio deve atender a expectativas contextuais. Usamos a variedade de prestígio quando há exigências ou expectativas, tacitamente estabelecidas em nossa cultura, para o uso dela, num dado contexto de interação. Devemos, portanto, entender que somos mais competentes comunicativamente quanto mais capazes somos de adequar os diferentes usos da língua às diversas situações sociocomunicativas. Isso significa que é tão inapropriado fazer uso da variedade coloquial, numa situação em que se espera o uso da variedade de prestígio, (numa entrevista de emprego, por exemplo) quanto inadequado é usar a variedade de prestígio, numa situação em que ela não é esperada ou exigida (na praia com os amigos, em casa com os familiares, etc.). 
           
      
Voltando, contudo, ao problema inicial, devemos considerar que o que se ensina nas aulas de português na escola é pura e simplesmente análise estrutural da língua. Põe-se a língua como entidade a ser dissecada em suas partes constituintes para posterior classificação. Nessa atividade, cobra-se o domínio das nomenclaturas, tais como “substantivo”, “adjetivo”, “sufixo”, “objeto direto”, “sujeito simples”, “oração subordinada substantiva objetiva direta”, etc. Na escola, a língua é estudada como um objeto desvinculado do uso, como uma realidade engessada, estática, como um ‘corpo’ cujas partes devem ser analisadas, sem que lhes reconheçam as funções comunicativas a que se prestam. Daí solicitar ao aluno que encontre os substantivos da frase “Nem todos os animais vertebrados são carnívoros”. Cobra-se ainda dele que indique o tempo em que o verbo “adorar” foi conjugado em “Se nós adorássemos andar a cavalo, nós teríamos pedido para cavalgar”. É também nesse modelo de ensino que o aluno é solicitado a classificar a palavra “que” nos seus diferentes empregos, como em:

(13) Eu disse que ele era meu professor.
(14) O que é isso?
(15) O relógio que você procurava está aqui.
(16) Que beleza!

Essa forma de ensinar pelo exercício de dissecamento-taxionomia da língua inclui também um formato prescritivista-normativista. Assim é que o aluno precisa saber usar o português de acordo com as regras que prescrevem a variedade de prestígio, isso justifica o ensino dos casos de concordância (verbal e nominal), bem como os de regência. Ensina-se, por exemplo,  o aluno a usar o verbo “assistir”, no sentido de “ver”, com a preposição “a”, muito embora o uso real da língua dispense essa preposição. O que lemos e ouvimos é “Pelé assistiu o jogo do Santos ontem na Vila Belmiro”. Como bem observa Bagno, o que se ensina não é o que realmente se usa. Estudos sociolingüísticos já vêm mostrando há tempo que a regência “assistir a” está cada vez mais em desuso, mesmo na língua escrita mais monitorada, mesmo entre os falantes considerados “cultos”. Os grandes jornais da imprensa escrita estão repletos de emprego do verbo “assistir” desacompanhado da preposição “a”. Sendo um verbo transitivo direto, ou seja, cujo complemento não é regido de preposição, “assistir” aceita normalmente a voz passiva (cf. O jogo do Santos na Vila Belmiro foi assistido por Pelé).
É também esse modelo de ensino que perpetua a rejeição a formas como “trago” e “chego”, quando figuram como verbos principais em locuções como em  “tinha trago a mochila” e “tinha chego às duas horas”. Todos os falantes mais escolarizados, ao ouvirem tais formas, costumam julgá-las “erradas”, “estranhas”, “de mau gosto”. Todos eles condenam as pessoas que as utilizam. Todos perguntam “não estão erradas?”. Uma explicação científica para a ocorrência dessas formas deve incluir as seguintes observações:

1ª observação: as formas “trago” e “chego” (fonologicamente semelhantes às formas de primeira pessoa do singular do verbos “trazer” e “chegar”, daí dizermos que são homófonas), se comportam estruturalmente como particípios do verbo “trazer” e “chegar”. Os particípios são as formas nominais do verbo que terminam, sistematicamente, em “-do” e vêm acompanhados dos auxiliares “ter” e “haver” (embora possamos ter particípios na função de adjetivos junto aos verbos “ser” e “estar”, nesse caso eles se flexionam em número e gênero).

(17) Eles têm cantado juntos todos os sábados.
(18) Elas estão encantadas com a sua presença.

2ª observação: os particípios, embora regularmente apresentem a terminação –do, podem apresentar as terminações “-a” ou “-o” (raramente, “-e”), passando a se chamar “particípios irregulares”. Há particípios que apresentam as duas terminações, como, por exemplo, “acendido” e “aceso”, “imprimido” e “impresso”, “elegido” e “eleito”, “pagado” e “pago”,  “pego” e “pegado”, “gastado” e “gasto”, “ganho” e “ganhado”.


Deixando os casos do grupo “ppgg” (pagar, pegar, gastar, ganhar) de lado, por enquanto, para os demais casos a regra válida para a variedade de prestígio da língua prevê o uso das formas em “-do” junto aos auxiliares “ter” e “haver”. Assim, na variedade de prestígio, diremos “eu tenho imprimido muitas provas ultimamente”, “nós havíamos elegido esse prefeito em outra ocasião”. As formas terminadas em “a” e “o” são usadas junto aos verbos “ser” e “estar” (e “ficar”, “continuar”): “A luz está acesa”, “a luz ficou acesa”, “aqui as provas são impressas com rapidez”.
Os usos de “pagar”, “pegar”, “gastar” e “ganhar” têm dado testemunho da dinamicidade inerente a toda língua. Apesar dos esforços por fixar regras, o uso tende a flexibilizá-las. Assim é que se pode ouvir e ler tanto “Eu tinha pagado a conta” quanto “eu tinha pago a conta”, e o mesmo vale, analogamente, para os verbos “pegar”, “gastar” e “ganhar”. Ouve-se tanto “O Flamengo tinha ganho o jogo” ou “O Flamengo tinha ganhado o jogo”.
Pode-se agora entender o que sucede com os casos de “trago” e “chego”. Os falantes criaram a forma irregular do particípio dos verbos “trazer” e “chegar”. Tradicionalmente, tais verbos só exibiam a forma regular do particípio, a terminada em “-do” (trazido, chegado). Evidentemente, as formas irregulares ainda não são aceitais (olha o uso de “aceita”) pelos falantes mais escolarizados e por isso são muito estigmatizadas. E o são porque tais formas são comumente utilizadas por falantes com baixo nível de escolaridade e provindos de uma classe socioeconômica menos favorecida. O julgamento que se estabelece por meio dos rótulos “certo” e “errado” tem base essencialmente elitista. “Certo” e “errado” são resultado de valorações sociais baseadas numa ideologia forjada nas práticas de dominação de classes, segundo a qual a língua exibe em si formas e usos corretos e errados. No entanto, a desconstrução dessa ideologia consiste em fazer ver que a língua considerada “certa” é a língua das classes dirigentes, sendo considerados desvios ou erros os usos da língua feitos pelas classes populares. É preciso fazer entender aos não-especialistas que quem está no poder vai querer impor sua forma de falar a todo o resto da sociedade e vai considerar os modos de falar não recobertos pela norma estabelecida pelo poder como desvios ou erros. No final das contas, vale insistir, a problemática da noção de erro em matéria de linguagem se desloca do âmbito puramente linguístico para o domínio do social, lugar onde é forjada. Censurar um uso linguístico é censurar a própria pessoa ou comunidade que dele se serve. No Brasil, o baixo nível de escolaridade está diretamente correlacionado com o baixo nível socioeconômico de um indivíduo. Sendo privado de uma escolarização plena, não tem ele acesso à variedade linguística de prestígio e, portanto, a um instrumento de poder fundamental com que poderá lutar por maior justiça e igualdade social. Sem o domínio desse capital simbólico, está ele excluído, marginalizado social, cultural e politicamente. Essa exclusão é reforçada todas as vezes que seu modo de falar é censurado e discriminado.
Quando dizemos que toda língua se constitui de uma gramática, estamos querendo dizer que toda língua comporta um sistema de regras e unidades, por meio das quais estas podem ser combinadas em construções de extensão e nível variados. Assim, existe uma regra em português que prevê o uso do verbo na primeira pessoa do singular sempre que usamos na posição de sujeito o pronome “eu”. Todo falante nativo dirá ou escreverá “Eu amo, adoro, gosto, aceito, bebo, etc.”. Mas não dirá nunca “Eu ama, adora, gosta, aceitamos, etc.”. Trata-se de uma regra mais rígida, ou seja, que não admite escolhas. Há, contudo, regras mais flexíveis, tais como a que admite o uso ou não do artigo antes do pronome possessivo. Podemos dizer “O meu irmão” ou tão-somente “meu irmão”.
Vejamos como o componente de regras funciona no domínio da regência verbal a partir de alguns exemplos. De fato, não temos escolhas ao usar o verbo “gostar”. Temos de usá-lo com a preposição “de”, impreterivelmente. Dizemos “Eu gosto de chocolate” e não “Eu gosto chocolate” (embora a criança, nas fases iniciais de aquisição da linguagem, possa dizê-lo). Também não podemos usar outra preposição no lugar da preposição “de”: * Eu gosto a chocolate; *Eu gosto para chocolate. Em inglês, ao contrário, dispensa-se qualquer preposição quando o complemento de gostar (like) é um substantivo. Em inglês, dizemos “I like chocolate”.
O verbo “amar”, por seu turno, deve ser empregado sem qualquer preposição na relação com seu complemento. Dizemos “Eu amo você”, “Nós amamos nossos avós”. O uso da preposição “a” tem, tradicionalmente, valor estilístico. Mas é necessário dizer que tal uso não parece vigorar ordinariamente. Na fala cotidiana, não dizemos “amar a nossos pais”, mas “amar nossos pais”.
Sabemos também que verbos há que mudam de significado conforme mude a regência. É o caso de “confiar”. Regendo a preposição “em”, “confiar” tem sentido de ‘ter confiança’, ‘depositar esperança’, como em “Eu confio em você”. Mas, se usado com a preposição “a”, tem o sentido de “entregar aos cuidados de”, como em “Confio a você meus meninos”.
Uma regra bem flexível em português é a que prevê o apagamento do sujeito, quando empregado na primeira pessoa (do singular ou plural). Dizemos “Estamos aqui reunidos” ou “Nós estamos aqui reunidos”, ou ainda “ (Eu) Estou aqui reunido”.
Não posso mais, neste espaço, me demorar na discussão sobre como se comporta esse mecanismo de regras que chamamos de gramática. Gostaria de referir, antes de terminar, o trecho da professora Irandé Antunes, em Muito além da gramática – por um ensino de língua sem pedras no caminho (2007), que corrobora o princípio teoricamente incontestável segundo o qual todas as línguas do mundo se constituem de um sistema de regras:

Todos os usos da língua são submetidos à aplicação de regras. A própria natureza das línguas, que faz delas meios da inter-relação social, marcas da identidade cultural dos grupos, leva a esse cuidado, para que as línguas mantenham seu padrão e a cara que tem”.
(grifo no original)
(p. 72)

Uma última observação importante: as regras que apresentei aqui são as que seguem os usuários da língua de modo intuitivo e que são descritas e explicadas pelos linguistas. O papel do linguista é descrever e explicar os padrões de usos da lingua, é descrever e explicar seu modo de estruturação e funcionamento. O linguista NÃO DITA O QUE SE DEVE DIZER OU ESCREVER, ELE APENAS DESCREVE E EXPLICA O QUE E COMO SE DIZ. Para tanto, ele formula hipóteses e as testa na observação dos dados linguísticos, representados em um corpus.





quinta-feira, 2 de agosto de 2012




Filósofo

Estou embriagado de alma
Ébrio de espírito obreiro
De palavras que dançam
                                  [ociosas
A dança do saber
Ao som de filosófica sonata!

(BAR)

quarta-feira, 18 de julho de 2012

A comunicação é uma encenação (Charaudeau)


                          
                                 O discurso como encenação

                                                  Como o texto faz falar



Vou-me esforçar por que este texto seja o mais inteligível possível ao leitor, porque estou ciente de que as questões de que me ocuparei podem lhe ser ignoradas. A fim de facilitar tanto quanto possível a compreensão pelo leitor, é forçoso que eu defina, previamente, alguns termos que constituirão o conjunto  de pressupostos mediante os quais se orientarão minhas reflexões. Entre eles, estão:



a) Ato de linguagem – é a ação social na qual o falante, apropriando-se da língua, converte-se em sujeito da produção de enunciados, segundo uma intencionalidade que pode lhe estar ou não transparente.  Todo ato de linguagem evidencia duas condições: o da produção e o da interpretação. Assim é que todo ato de linguagem instaura dois tipos de relações:

- a relação que o sujeito enunciador e o sujeito interpretante estabelecem entre si em face do propósito linguístico;



- a relação que eles mantêm um em face do outro.



Todo ato de linguagem encerra o Explícito, que toca à atividade de Simbolização referencial feita na/ pela linguagem (ou seja, atividade através da qual a realidade é referida e conceituada pela linguagem), e o Implícito, que toca às representações coletivas que nos foram legadas pelas nossas experiências sócio-culturais e que constituem o conjunto de saberes a respeito do mundo. O Implícito é dependente das circunstâncias de produção do discurso.



b) Discurso – constitui a totalidade de um ato de linguagem particular.



c) Texto – é a configuração linguística de um ato de linguagem.



d) real – o real não existe independentemente do discurso. Trata-se de uma instância construída na e pela linguagem em discurso. Ao usar a língua, os protagonistas supõem sua existência exterior ao discurso, de modo que eles agem como se a realidade verdadeira exterior à linguagem existisse. No entanto, o que chamamos de real não é senão produto das representações coletivas produzidas nas práticas sociais mediante o uso da linguagem (em discursos).



e) Circunstâncias de discurso – constitui o conjunto de saberes pressupostos pelos protagonistas da linguagem e que são atualizados quando da interação verbal. Trata-se de

- saberes pressupostos a respeito do mundo: práticas sociais partilhadas;

- saberes pressupostos sobre os pontos de vista recíprocos dos protagonistas.



Cabe ainda considerar que a significação de um ato de linguagem não preexiste à interpretação. A significação é construída pelos protagonistas no interior da prática discursiva. Assim é que nossos enunciados e as palavras não significam fora do discurso. Toda interpretação é uma suposição de intenção (Charaudeau, 2010). Assim, o sujeito interpretante formula hipóteses sobre a intencionalidade do sujeito enunciador. Para ser mais preciso, o sujeito interpretante elabora hipóteses a respeito:



- do saber do sujeito enunciador;



- do seus pontos de vista em relação a seus enunciados;



- do seus pontos de vista em relação ao próprio sujeito interpretante.



O sujeito interpretante não pode nunca deixar de formular hipóteses. Também o sujeito enunciador formula hipóteses sobre o saber do sujeito interpretante.



f) sujeito



Definir o sujeito, no interior da Análise do Discurso, é concebê-lo como um ser do discurso, como um ser social que se inscreve no discurso. O sujeito, assim, não se confunde com o sujeito psicológico. Trata-se do sujeito socio-histórico, interpelado pela ideologia. Ele é caracterizado pela heterogeneidade e pela dispersão. A rigor, devemos pensá-lo como uma função do discurso (a função sujeito). Pensá-lo como heterogêneo significa entender que ele é atravessado por diferentes vozes sociais. Sua identidade não é fixa; está, ao contrário, em constante reconstrução no discurso. Logo, não podemos imaginá-lo como a pessoa de carne e osso, dotada de autonomia quando da produção de seu discurso. O sujeito não é o senhor do que diz, tem apenas a ilusão de sê-lo. Essa “ilusão” é produto da ideologia.

O trecho que se segue ajuda-nos a compreender alguns aspectos do sujeito. Em Autoria, discurso e efeitos do trabalho simbólico (2007), Eni P. Orlandi esclarece-nos a respeito do conceito de sujeito:

“Quando o sujeito fala, ele está em plena atividade de interpretação, ele está atribuindo sentido às suas próprias palavras em condições específicas. Mas ele o faz como se os sentidos estivessem nas palavras: apagam-se suas condições de produção, desaparece o modo pelo qual a exterioridade o constitui. Em suma, a interpretação aparece para o sujeito como transparência, como o sentido lá”.

(p. 65)



O excerto em tela permite-nos entrever algumas noções desenvolvidas na Análise do Discurso que precisam ser explicitadas. A primeira delas é que não só o sujeito interpretante se encarrega de produzir um sentido para os textos produzidos pelo sujeito enunciador, mas este também produz sentidos para seus próprios enunciados. Ao fazê-lo, ele se ilude quanto à transparência desses sentidos. Os analistas do discurso propõem que a linguagem é caracterizada pela opacidade, de tal modo que o sentido não é autoevidente, não está  inscrito nos enunciados, mas são construídos pelos sujeitos em interação, assumindo a forma de efeitos de sentido. O sentido é dependente da formação ideológica, do lugar sócio-histórico de onde se enuncia. Estou evitando falar em formação discursiva, já que não tenho a intenção de me alongar nessa problemática. Mas é certo que os sentidos são produzidos relativamente a uma dada formação discursiva.

Em suma, a noção de sujeito com que operarei a análise de uma amostra de discurso, mais adiante, é a que se acha nas palavras de Fernandes, em Análise do Discurso: reflexões introdutórias (2007):



“(...) o sujeito discursivo deve ser considerado sempre como um ser social, apreendido em um espaço coletivo; portanto, trata-se de um sujeito não fundamentado em uma individualidade, em um “eu” individualizado, e sim um sujeito que tem existência em um espaço social e ideológico, em um dado momento da história e não em outro”.



(p. 33)





1. O discurso como encenação



Interagir pela linguagem é encenar, à guisa do que acontece no teatro. No teatro, o diretor se vale de um espaço cênico,  que inclui os cenários, a luz, a sonorização, os atores e o texto. Os atores visam a produzir efeitos de sentido em um dado público imaginado. Também o locutor se vale de textos para produzir efeitos de sentido num destinatário imaginado.

Todo ato de linguagem coloca em confronto pelo menos dois sujeitos: o enunciador e o enunciatário, que se alternam nessas funções cada vez que têm o turno de fala. Temos, então, um sujeito enunciador e um sujeito interpretante. Entretanto, todo ato de linguagem, enquanto evento de produção e interpretação de enunciados, implica saberes supostos entre os protagonistas, saberes que estão intimamente relacionados às dimensões do Explícito e Implícito, que, por sua vez, são indissociáveis das circunstâncias de discurso.  Todo ato de linguagem pode ser representado na seguinte equação, tomada a Charaudeau (2010):



         Ato de linguagem = [Explícito x Implícito] C de D



Lê-se “C de D” como “circunstâncias de discurso”.



Uma vez designando por EU o sujeito responsável por produzir o ato de linguagem e por TU o sujeito interlocutor desse ato de linguagem, convém entender que:

- O TU não é simplesmente o destinatário de uma mensagem, mas um sujeito que constrói uma interpretação na base de um ponto de vista sobre as circunstâncias de discurso; portanto, também sobre o EU.



- O TU- interpretante não se identifica com o TU-destinatário, ao qual o Eu se dirige. Assim, o TU-interpretante, ao produzir uma interpretação, constrói uma imagem do Eu, que difere da imagem que o Eu fez de si mesmo, quando da produção de seus enunciados.



Em outras palavras, o Eu dirige-se a um TU-destinatário que esse EU acredita (deseja) adequar-se ao propósito de seu ato de linguagem (o Eu faz uma “aposta”). Entretanto, ao descobrir que o TU-interpretante não se identifica com o TU-destinatário imaginado (fabricado), é forçado a concluir que o Eu que produziu o enunciado não é o mesmo EU construído pelo TU; trata-se de um EU suposto (fabricado) pelo TU- interpretante.

Assim, no domínio da produção, se acha um EU que se dirige a um TU-destinatário (fabricado pelo EU); no domínio da interpretação, se acha um TU-interpretante, que constrói uma imagem do EU-enunciador.

Passarei a usar a abreviação EUc (Eu comunicador) para referir-me ao EU responsável pela produção do enunciado; e a abreviação TUd (Tu-destinatário) para referir-me ao TU a quem se dirige o EUc. Correlativamente, distinguirei um TUi (Tu-interpretante) que não se identifica com o TUd e que age independentemente do Eu e que se investe de autor do ato de interpretação; e um EUe (Eu-enunciador) que é uma imagem construída pelo TUi (Tu-interpretante).

Vê-se que o que antes eram dois sujeitos, agora tornaram-se quatro sujeitos, a saber: o EUc, o TUd, o EUe e o TUi.

Convém esclarecer melhor essa configuração cênica do ato da linguagem. Vamos situar cada ser do discurso relativamente aos domínios da produção e interpretação. Situando-nos no processo de produção, o EUe é uma imagem fabricada pelo Euc (EU-comunicador) – ele pode estar explicitamente marcada no enunciado, como em “Eu não quero mais sair”, ou pode estar apagada, como em “Ele disse que você não cumpriu com o acordo”.

Situando-nos no processo de interpretação, o Eue é uma imagem construída pelo TUi (isto é, uma hipótese de como é a intencionalidade de EUc, que se realiza no ato de produção).

É importante reter que, independentemente do âmbito em que nos situemos, o Eue (como também o TUd) é um ser do discurso e que só existe no ato de produção-interpretação. Sendo uma entidade discursiva, ele independe em parte do Euc (e do TUi). O Eue é tão-só uma máscara de discurso utilizada pelo Euc. O Euc é o sujeito agente que se institui como responsável pelo processo de produção do ato de linguagem, em função das circunstâncias do discurso. O TUi é o sujeito responsável pela interpretação que pode não coincidir com a imagem TUd construída pelo Euc.

Como pensar estas oposições relativamente aos efeitos de sentido? Quem é o responsável pela produção dos efeitos de sentido? Resumidamente, convém entender que:



- O Eue (sujeito enunciador) é um sujeito da fala tanto quanto o TUd. É ao Eue que compete produzir efeitos de sentido sobre o TUi. Mas esses efeitos de sentido dependem do TUi, e este é responsável por construir uma imagem do Eue. O Eue é, portanto, sempre uma imagem do discurso que mascara em maior ou menor grau o Euc.



- O Euc (sujeito comunicador) é um sujeito agente, que se situa na esfera exterior ao ato de linguagem, como também o é o Tui (sujeito interpretante). O Euc é o sujeito responsável pela produção de um ato de linguagem e é a relação entre Euc e Eue que produz um efeito de sentido sobre o TUi. O Euc é sempre entendido como uma testemunha do real.



Finalmente, convém ainda ter em conta que todo discurso se estabelece na base de contratos e estratégias. Por contrato, devemos entender que os protagonistas de um discurso estão dispostos a sustentar um acordo sobre as representações linguísticas do corpo de práticas sociais em que se inserem. Há uma expectativa mútua de que ambos se esforçarão para manter o contrato tácito.

Por estratégia, devemos entender que o Euc procura estruturar e encenar suas intenções (o que configura sua intencionalidade) de modo a produzir determinados efeitos – persuasão, sedução, convencimento – sobre o TUi, com o objetivo de levá-lo a identificar-se – consciente ou inconscientemente – com o TUd idealizado pelo Euc.

Consoante ensina Charaudeau, em Linguagem e Discurso – modos de organização (2010),



“(...) falar, em outras palavras, comunicar é um ato que surge envolvido em uma dupla aposta ou que parte de uma expectativa concebida por aquele que assume tal ato: (i) o “sujeito falante” espera que os contratos que está propondo ao outro, ao sujeito-interpretante, serão por ele bem percebidos; e (ii) espera também que as estratégias que empregou na comunicação em pauta irão produzir o efeito desejado”.

(p. 57)





2. Uma amostra de análise



Vejamos, agora, como se pode operacionalizar os conceitos anteriormente discutidos. Segue-se um recorte de uma situação discursiva do programa de televisão A Grande Família.





.



Situação: Lineu colocando terra em pratinhos de planta para evitar acúmulo de água que possa atrair o mosquito da dengue.



TUCO – Tá fazendo o que aí popozão?



LINEU – Esses vasos aqui são um convite a dengue. Sabia que é na água parada que a fêmea do mosquito da dengue deposita os seus ovos?



TUCO – Que que adianta depositarem aí nesse vasinho se agora lá tem um lugar muito maior pra fazer isso.



LINEU – Onde? (espantado)



(Lineu e Tuco se dirigem até a casa de Agostinho, onde o encontram enchendo com uma mangueira a sua piscina)



LINEU – Agostinho! Você pode me dizer o que é isso?



AGOSTINHO – Isso aqui, Lineu, isso aqui é uma pscina.



LINEU – oh, Agostinho, onde você vê uma piscina, eu vejo um possível foco de dengue.



AGOSTINHO – Onde você vê um foco de dengue eu vejo um foco de dinheiro.



TUCO – Popozão, o Agostinho ele escreveu a gente no programa de hospedagem domiciliar do panta. O turista vai ficar hospedado aqui como se ele estivesse num hotel



AGOSTINHO – É hotel com piscina. O senhor tem que ter ó (com o dedo indicador tocando a própria cabeça).





Começarei notando que as personagens assumem cada qual uma identidade social definida em termos biológicos (no caso da relação pai-filho), mas também legais (já que o pai é um papel social assumido por uma pessoa que detém direitos e reconhece deveres). No Pequeno Dicionário de sociologia (2009), lemos no verbete papel social o que se segue:



“tarefas decorrentes de um status, que devem ser realizadas por uma pessoa, ligadas e apreciadas positivamente por um círculo de pessoas”.

(p.109)



A noção de status expressa melhor a noção de pai como um sujeito social portador de direitos e submetido a deveres instituídos por lei. Esse conjunto de direitos e deveres definem seu status social. A identidade social é, portanto, esse conjunto de direitos e deveres estabelecidos e reconhecidos socialmente.

Todavia, o fenômeno da identidade não pode ser pensado fora dos quadros da linguagem. Daí ser necessário estabelecer uma identidade discursiva (ou linguística) A identidade social e a identidade discursiva são indissociáveis. A primeira é reforçada, reiterada, ou ocultada no discurso; e a identidade discursiva se constrói na base da identidade social. Lembramos que a dimensão biológica associado ao status de “pai” é também passível de receber significações pelos atores sociais.

O Eu constrói sua identidade na relação com o outro e vice-versa. Charaudeau ensina que a identidade se constrói na base de um paradoxo: o Eu, para tomar consciência de sua existência, precisa da diferença do outro; mas ao tomar consciência dessa diferença, desconfia dele e sente necessidade de rejeitá-lo, ou de assimilá-lo, eliminando a diferença. No entanto, procedendo assim, não disporia mais da diferença a partir da qual se define; ou perderia um pouco da consciência de sua própria existência, que se constrói na diferenciação. A solução é a regulação sutil entre aceitação e rejeição do outro; valorização ou desvalorização do outro.

A identidade social deve ser designada, a rigor, como identidade psicossocial, já que está impregnada de traços psicológicos. A identidade discursiva configurará o modo de ser assumido por um sujeito no momento mesmo em que produz seu discurso. Assim é que um pai (identidade social) pode comportar-se discursivamente como alguém autoritário, protetor, compreensivo, indiferente, etc. (identidade discursiva). A construção da identidade discursiva depende da mobilização de um dois espaços de estratégias, a saber, de credibilidade e de captação. A credibilidade se vincula à necessidade que tem o falante de que se acredite nele, tanto em termos de valor de verdade de seus enunciados, quanto em termos de sua sinceridade. Há diferentes atitudes discursivas relacionadas a estratégia de credibilidade, mas não vou defini-las aqui.

Basta saber, finalmente, que a captação consiste na necessidade que tem o falante de assegurar que seu interlocutor reconheça seu projeto de intencionalidade, ou seja, acolha suas ideias, compartilhe de seus pontos de vista, opiniões e crenças.

Em suma, como observa Charaudeau, em Identidade social e Identidade discursiva, o fundamento da competência comunicacional (2009):



“(...) a identidade discursiva se constrói com base nos modos de tomada da palavra, na organização enunciativa do discurso e na manipulação dos imaginários socio-discursivos. Ao contrário da identidade social, a identidade discursiva é sempre algo “a construir – em construção”. Resulta das escolhas do sujeito, mas leva em conta, evidentemente, os fatores constituintes da identidade social (...)”.

(p. 5)





A identidade social de Agostinho não conta com traços biológicos definidores (em relação a Lineu e ao Tuco), evidentemente; mas tão-só se define no corpo de práticas sociais, que fixa seu status por uma relação legalizada com a filha de Lineu (Agostinho é marido da Bebel). Agostinho é o genro de Lineu, e seu status social se define na relação que estabelece com ele, Lineu, que reconhece esse status.

O primeiro turno de fala é de Tuco. Ao valer-se da língua, Tuco se investe em sujeito do discurso, instaurando um EUc (responsável pela produção do enunciado). O Euc constrói uma imagem de si, o EUe.  Este EUe não está explícito no enunciado, embora pressuposto. Esse Eue é um sujeito-que-pede-uma-informação. Em outras palavras, o EUe se inscreve como um sujeito que visa a obter uma informação, através de seu ato de linguagem. Lineu é o TUd, a quem se dirige o Euc, ou seja, uma imagem construída pelo Euc. Esse TUd é construído como um ser do discurso em condições de oferecer a informação solicitada pelo EUe. Mas note-se que Lineu, na posição de sujeito interpretante (TUi) não responde diretamente à pergunta do EUe. O EUe é construído de modo diferente pelo TUi, já que a imagem do EUe construída pelo TUi é de alguém que parece ignorar a importância de prevenção contra o mosquito da dengue; em outras palavras, ignora que o que o pai fazia era encher de terra os pratinhos de planta a fim de evitar a proliferação do mosquito da dengue. A imagem do Eue, construída pelo TUi, é, portanto, a de um sujeito ignorante da importância daquela iniciativa, mas também ignorante de um conhecimento dado por uma educação científica, qual seja, o fato de que é a fêmea do mosquito Aedes aegypt que deposita os ovos na água parada.

No segundo turno de fala de Tuco, o EUe assume uma imagem de si como ‘quem-precisa-advertir’ o TUi da imprudência de outra pessoa (no caso, do cunhado Agostinho). O EUe consegue, nesse caso, obter o efeito pretendido, já que mobiliza o TUi a verificar o fato que foi enunciado (TUd coincide com TUi). Lineu, TUi, ao formular a pergunta “onde?” pretende que o EUe lhe mostre o lugar que favoreceria a proliferação do mosquito da dengue. E Lineu se depara com uma piscina de plástico e com Agostinho a enchendo de água.

Lineu, ao pedir explicação para Agostinho sobre o que estava fazendo, instaura-se como um EUe explícito no enunciado (veja-se a marca “me”), que dispõe de poder para interpelar Agostinho. O Eue constrói uma imagem de TUd como ‘alguém que tem de dar explicação sobre o que está fazendo’. Mas TUi não coincide com TUd, porque TUi age de modo diferente do esperado pelo EUe. TUi se coloca na posição de mero respondente. Agostinho responde o óbvio: trata-se de uma piscina. É interessante perceber que Agostinho faz de conta que não entende a intenção subjacente à produção do enunciado “Você pode me dizer o que é isso?”. Claro é que Lineu não estava perguntando sobre a realidade de X (isso). Ele sabia tanto quanto Agostinho que o objeto em questão era uma piscina. O contrato foi, momentaneamente, quebrado, porque Agostinho não reconheceu o fato de que ambos compartilham da mesma representação social a respeito daquele objeto. Nesse momento, fica clara a ideia de que o real não preexiste ao discurso. Isso é patente na sequência do discurso. Vou reproduzi-la baixo:



LINEU – oh, Agostinho, onde você vê uma piscina, eu vejo um possível foco de dengue.



AGOSTINHO – Onde você vê um foco de dengue eu vejo um foco de dinheiro.



Ambos assumem o objeto ‘piscina’ como um dado de um modelo de mundo compartilhado. Mas, considerado como objeto de discurso, importa ver como a significação desse objeto é construída por cada um dos sujeitos. Do ponto de vista de Lineu, a piscina não é piscina, mas um “foco de dengue” em potencial. Do ponto de vista de Agostinho, a piscina não é puramente piscina, mas um “foco de dinheiro”, ou seja, um meio de obter lucro. Piscina se reveste de duas significações que expressam interesses antagônicos: constitui um ambiente favorável ao mosquito da dengue e representa, assim, um risco à saúde pública; e também um meio de ganhar dinheiro. Lineu tem interesse na prevenção; Agostinho, na obtenção de lucro. A identidade discursiva aí fica bem clara e se constrói numa relação caracterizada por antagonismo de interesses: Lineu é o pai de família responsável, consciente de seus deveres como cidadão (identidade discursiva); Agostinho é o genro irresponsável, (agindo como) um capitalista desinteressado do bem-estar da comunidade, que deseja apenas lucrar.

Na situação discursiva em questão, não importa tanto a referência à piscina como uma entidade pertencente ao mundo propriamente dito, mas como uma entidade que constitui objeto de discurso. Trata-se de duas realidades diferentes, segundo os pontos de vistas dos sujeitos em interação. Essa realidade não é fixa, acabada, imutável e dada a priori. Creio esclarecedoras as palavras seguintes de Marcuschi, em A Construção do mobiliário do mundo e da mente: linguagem, cultura e cognição, que se topa no livro Linguística e Cognição (2005):



“Não nego que exista certa relação entre linguagem e algo externo a ela, mas nego que ela seja estável, pronta e universal, e a mesma para todo sempre. Afirmo que conhecer não é um ato de identificação de algo discreto existente no mundo e mediado pela linguagem: conhecer é uma atividade sócio-cognitiva produzida na atividade intersubjetiva (...). E a concordância geradora do consenso é o ponto de intersecção que produz a crença objetiva”.



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Há, portanto, uma realidade consensual; mas é preciso romper com uma visão realista do mundo, que supõe uma realidade objetiva acessível e igual para todos. Esse mundo objetivo é mera ilusão. A realidade se constrói por processos sociocognitivos dotados de um investimento linguístico e moldados num dado sistema cultural. Assim é que, ainda segundo o autor



“Conhecer um objeto como cadeira, mesa, bicicleta, avião, livro, banana, sapoti não é apenas identificar algo que está ali, nem usar um termo que lhes caiba, mas é fazer uma experiência de reconhecimento com base num conjunto de condições que foram estabilizadas numa dada cultura. O mundo de nossos discursos (não sabemos como é o outro) é sócio-cognitivamente produzido. O discurso é o lugar privilegiado da designação desse mundo”.

(id.ibi)







Embora ciente de que o texto já extrapola os limites da conveniência suposta para a publicação em blog, preciso esclarecer o que se deve entender por objetos de discurso. O conceito se situa na problemática da construção da rede referencial do texto, mas implica a relação entre linguagem e realidade, tal como a vim pensando aqui. Volvendo ao trecho em que se acham as contribuições finais de Lineu e Agostinho e recuperando aí o problema da representação da entidade “piscina”, devemos entendê-la como uma entidade do discurso (ou seja, entidade oriunda de uma construção mental, que constitui um referente). No momento em que, por ato de designação, pinça-se uma entidade e a introduz no discurso, cria-se um referente passível de predicação. A rede referencial (ou seja, o sistema de referentes textuais) é montada pelos objetos-de-discurso. Os objetos-de-discurso são as entidades (referentes) construídas pelo discurso e é nele e por ele que são postos, delimitados, transformados, desenvolvidos, etc. Assim, no trecho em que figura a palavra “piscina”, que reproduzo novamente abaixo,









LINEU – oh, Agostinho, onde você vê uma piscina, eu vejo um possível foco de dengue.



AGOSTINHO – Onde você vê um foco de dengue eu vejo um foco de dinheiro.





o referente “piscina” é categorizado como “foco de dengue” (na fala de Lineu) e como “foco de dinheiro” (na fala de Agostinho). Para efeito de compreensão do discurso, não importa que se trata de um mesma entidade do mundo conhecido segundo uma dada representação coletiva consensual como “piscina”, ou seja, ‘tanque artificial destinado à natação ou ao banho para entreter’. Esse é o sentido dicionarizado, que não está em jogo na interação, já que, como disse, o discurso constrói a significação das palavras. Há um núcleo metadiscursivo (Charaudeau), que consiste neste sentido relativamente estável e consensual, que figura no dicionário e que  se sedimentou com uso feito pelas gerações. Mas ele é apenas uma parte da construção do que é um signo na significação de um ato de linguagem. Não posso ir além disso.

Veja-se, por exemplo, como Carlinhos Cachoeira, enquanto referente de discurso, pode ser reconstruído nos enunciados abaixo:



(1) Acusado de comandar a exploração do jogo ilegal em Goiás, Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira, foi preso na Operação Monte Carlo, da Polícia Federal, em 29 de fevereiro de 2012, oito anos após a divulgação de um vídeo em que Waldomiro Diniz, assessor do então ministro da Casa Civil, José Dirceu, lhe pedia propina. O escândalo culminou na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Bingos e na revelação do suposto esquema de pagamento de parlamentares que ficou conhecido como mensalão.



(2) Balanço das atividades da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) mista que investiga relações entre o bicheiro Carlinhos Cachoeira e parlamentares e autoridades apontou que mais da metade dos depoentes convocados se recusou a falar. Segundo o presidente da CPI, senador Vital do Rêgo (PMDB-PB), das 24 pessoas chamadas para depor, apenas 11 falaram aos parlamentares - sendo que duas delas deram depoimentos parciais.





Em (1) introduz-se o referente “Carlos Augusto Ramos” (nome do contraventor), cujo uso produz uma ilusão de neutralidade do sujeito-escritor, após o qual se acha a expressão “ o Carlinhos Cachoeira”, designação com que ficou conhecido na mídia e pela sociedade brasileira. Trata-se da mesma pessoa, mas de dois modos diferentes de representá-la (construi-la). Em (2), aparece o termo pejorativo com que se designa o agente do jogo do bicho. Trata-se de uma representação depreciativa de “Carlos Augusto Ramos”, de duas identidades construídas discursivamente. Em contrapartida, omite-se a identidade dos “parlamentares e autoridades” com que o bicheiro manteve relações, mas obtém-se um efeito de sentido de denúncia contra o fato inadmissível de representantes do poder político envolver-se em negociatas com um contraventor. Um cenário de corrupção muito conhecido dos brasileiros, porque marca indelével de nossa história política.

Queria ter podido abordar outra questão que me parece fundamental para todo leitor que pretende tornar-se mais experimentado no seu trabalho de interpretação e compreensão de texto: a questão do autor. Quem é o autor? Que estatuto discursivo tem ele? Como se estabelece sua relação com o discurso e com o leitor? São algumas das questões implicadas nesse tema e que pretendo (re)visitar em outra oportunidade.