segunda-feira, 29 de agosto de 2011

"Se a alma humana é imortal, um crente do século XXI é tão imortal quanto o homem de neandertal" (BAR)


            
             Das gerações – enquanto existimos


A morte de um parente – como sucedera recentemente com minha avó materna – leva-nos a nos confrontar com o fato de que nossa existência é finita. Minha mãe hoje declarou-me: não importa quão dolorosa seja a morte de uma pessoa que amamos, temos de continuar a vida. Uma dolorosa verdade, sem dúvida: depois da morte, a vida deve continuar.
Assumir o ateísmo, afirmar a inexistência de qualquer divindade, de qualquer providência divina implica negar a existência da alma, como uma espécie de holograma, como uma entidade imaterial que, não obstante, é representada com contornos corpóreos (pense nos espectros representados no cinema). Assumir o ateísmo implica negar a possibilidade de uma existência a-corpórea ou espiritual depois da morte. Para os ateus, a morte é o fim da vida consciente; não há vida pós-morte; não há alma que transcenda à matéria.
É claro que a negação da vida pós-morte é baseada em evidências. Quando vemos um corpo num caixão, vemos um corpo imóvel, destituído de suas funções vitais (não há atividade cerebral, batimento cardíaco, respiração, etc.). Ninguém que morreu se manifestou a algum de nós, vivos, para nos dizer se há ou não uma vida após a morte. Mas, principalmente, há o fato de que algo como espírito (no sentido metafísico) não existe no universo materialmente organizado.
Muitos pensadores ateus insistem no fato da pluralidade de religiões ou cultos, cada qual deles com suas divindades. As três grandes religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo e islamismo) professam a crença em um único Deus, supostamente o verdadeiro. Os demais povos que não professam a crença no deus de Abraão, de Jesus Cristo ou de Maomé estariam errados. A pluralidade de religiões é, assim, mais uma evidência de que elas são criações culturais, humanas. Afinal, é razoável supor que, se o Deus de uma das três religiões monoteístas aqui referidas fosse o Deus verdadeiro, ele poderia revelar-se a todos os povos, de modo a contribuir para que todos, ao cabo, abraçassem a mesma crença (quem sabe assim pondo-se um fim às guerras ideológicas da fé?!).
Quem tiver a oportunidade de ler Uma breve história do mundo, de Geoffrey Blainey, conhecerá muito sobre a trajetória humana neste planeta, desde o aparecimento dos primeiros hominídeos nos territórios do Quênia, Tanzânia e Etiópia (na África) até o século XX. A relação humana com o sobrenatural é, como sabemos, antiquíssima. Naquela obra, podemos ler a respeito da civilização que floresceu na Mesopotâmia, em 3.700 a.C.:

“Os sacerdotes, com seus rituais, sacrifícios e orações, pediam que os ventos soprassem na direção certa trazendo e molhando o chão ressecado. Imploravam também, quando suas preces eram atendidas além da medida, que a água das enchentes baixasse. E mais: proclamavam as maravilhas do universo”.
(p. 53)

Sabe-se que muitos povos primitivos atribuíam à natureza um simbolismo mágico. A ignorância desses povos tornava-os suscetíveis à atribuição de divindade a corpos celestes. Vejamos as passagens abaixo:

“Nas tribos nômades e nos vilarejos rurais, os fenômenos meteorológicos causavam muito medo. Na Tasmânia, os aborígenes ficavam apavorados com as grandes tempestades. “A chuva forte da noite”, escreveu um observador branco em 1831, “seguida do lampejo vívido de raios e de trovoadas ensurdecedoras fez os nativos demonstrarem enorme temor”. Na noite seguinte, a visão de uma “faísca elétrica” no céu escuro provocou gritos de pavor. Talvez a simples ideia de ser atingido aumentasse o medo (...)”
(p. 41)

“Os povos nômades, que viviam sob as estrelas, e os povos já estabelecidos em lugares fixos, que viviam sob os céus sem nuvens das primeiras civilizações do Oriente Médio, tinham toda a razão em observar o céu noturno – em noites sem Lua, era um tapete maravilhoso estendido sobre eles. Seu aspecto mudava constantemente, e os padrões das alterações eram observados e comentados. No clima seco da Austrália Central, onde não existiam rios permanentes, alguns grupos aborígenes consideravam a Via Láctea um grande rio celeste. Aos olhos de muitos povos, criaturas poderosas viviam no firmamento. Para outros, um buraco escuro na Via Láctea era a casa do demônio”.
(pp. 42-43)

Também na Idade Média, muitas pessoas, inclusive sacerdotes, acreditavam poder determinar o local exato onde morava o demônio.
A crença em que forças sobrenaturais (divinas ou demoníacas) estariam atuando por detrás dos fenômenos naturais, ou melhpor, seriam responsáveis por eles, remonta aos nossos antepassados. Naqueles tempos muito remotos, os seres humanos mantinham uma relação mítica com o universo natural; foram necessários milhares de anos para que o pensamento mítico fosse abalado pelo advento do pensamento racional.
Outro interessante testemunho de nosso gênio criativo para o misticismo religioso é dado por Daniel Dennett em Quebrando o encanto – a religião como fenômeno natural. À página 109, no capítulo As raízes da religião, escreve:

“Os jivaro, do Equador, acreditam que você tem três almas, a alma verdadeira, que você tem desde o nascimento (esta volta ao seu lugar de nascimento depois da morte, e aí se transforma num demônio, que morre, por sua vez, virando uma mariposa gigante, que quando morre vira nevoeiro); a arutam, uma alma que você obtém por meio do jejum, banho em uma cachoeira e tomando um sumo alucinógeno (torna você invencível, mas tem o hábito infeliz de ir embora quando você está em dificuldade); e a musiak, a alma vingadora que foge da cabeça de uma vítima e mata seu assassino. É por isso que você tem que ficar fora do alcance da cabeça de sua vítima”.

Talvez, você se ria de uma crença tão fantástica, mas me pergunto sobre se há uma diferença fundamental entre crer numa alma que vira uma mariposa gigante e crer no Espírito Santo ou na ascensão de Cristo corporificado ao céu, ou ainda crer em que uma pequena rodela de pão ázimo e um pouco de vinho num cálice são realmente o corpo e o sangue de Cristo transformados.
O caso dos habitantes da ilha de Tana, no Pacífico, quando da chegada das forças norte-americanas, durante a Segunda Guerra Mundial, patenteia-nos quão ingênua é a crença num Messias. Os soldados americanos foram à ilha para recrutar trabalhadores que ajudassem na construção de uma pista de pouso e de uma base na ilha Efate, que era uma ilha vizinha de Tana. O retorno dos trabalhadores foi repleto de histórias sobre homens brancos e negros que possuíam riquezas inimagináveis ao povo de Tana. Os ilhéus ficaram confusos. Os que foram convertidos ao cristianismo deixaram de ir à igreja e iniciaram a construção de pistas de pouso, armazéns, capacetes, modelos de aviões esculpidos. Não tardaram a marchar com as letras USA pintadas, esculpidas ou tatuadas no peito e nas costas, professando a crença em John Frum como seu Messias (não há nenhum registro de que John Frum foi o nome de algum soldado americano).
Acompanhemos, nas palavras de Daniel Dennett, citando MotDoc (2004), o restante desse fato:

“(..) Quando o último GI norte-americano foi embora, no fim da guerra, os ilhéus previram o retorno de John Frum. O movimento continuou a florescer e, em 15 de fevereiro de 1957, uma bandeira norte-americana foi erguida na baía Enxofre para declarar a religião de John Frum. Nesse dia, todos os anos, é comemorado o Dia de John Frum. Eles acreditam que John Frum está esperando escondido no vulcão Yasur com seus guerreiros para entregar seus presentes ao povo de Tana. Durante as festividades, os anciãos marcham em uma imitação de exército, um tipo de treinamento militar misturado com danças tradicionais. Alguns levam imitações de rifles feitas de bambu e usam memorabilia do exército norte-americano, como bonés, camisetas e casacos. Eles acreditam que seus rituais anuais atrairão o deus John Frum do vulcão e entregarão sua carga de prosperidade a todos os ilhéus [MotDoc, 2004]”
(p. 111)

A visão de mundo apocalíptica, na bíblia, apontava uma destruição absoluta e iminente do mundo. No Evangelho de Marcos, disse Jesus que alguns de seus discípulos não provariam a morte antes da chegada ao poder do Reino de Deus. Aconteceu, contudo, que a geração passou e o Reino de Deus, cuja vinda era iminente, não veio (v. Ehrman, 2008).
No tocante à possibilidade de sermos nós, seres humanos, dotados de uma alma transcendente imortal, uma visão ateísta, para ser coerente, deve ater-se às evidências, todas apontam para a impossibilidade disso.
Eu aceito, sem inquietude e desespero, felizmente, o peso das evidências: nossa vida consciente sucumbirá à morte. Estou ciente de que os homens conferem à sua existência significações que lhes são caras. Acreditamos que gozamos de privilégios existenciais em comparação com as demais formas vivas, quer tenham alguma forma de inteligência desenvolvida ou não: somos amados por um deus todo-poderoso e somos dotados de uma alma que gozará da vida eterna após a morte. Mas, e se estivermos errados?
Nossos antepassados estavam errados ao endeusar estrelas? Povos primitivos atribuíam divindade ao sol. Estariam eles errados?
Recentemente, um furacão, chamado Irene, atingiu o Canadá e os Estados Unidos, matando, nesse último país, mais de dezoito pessoas.
(http://www.sidneyrezende.com/noticia/143211+furacao+irene+deixa+canada+sem+energia+eletrica).

   Assistindo a mais um dos sem-número de eventos naturais catastróficos, no Fantástico, ontem, concluí: ‘estamos diante de mais uma dentre as milhares evidências de que a natureza mostra sua força cega, indomável e soberana’. O que eu via era uma força extraordinária de uma natureza onipresente, que não dá espaço para nenhuma forma de deus todo-poderoso.
Fico pensando onde estão nossos antepassados? Seus espíritos ainda sobrevivem em algum lugar transcendente? Ou seremos só nós, homens civilizados da era moderna, os beneficiados pela imortalidade da alma? Serão os nossos deuses os vitoriosos, ao fim de nossa breve passagem pela vida?
O que sei (e sabemos todos) é que muitas gerações já passaram e as que estão vivendo também passarão. Outras mais, muito provavelmente, surgirão. É possível que as novas gerações venham a superar muitas de nossas ilusões, fantasias e crendices. É possível que essas gerações superem as formas de religiões existentes e estabeleçam outras, ou as eliminem a todas. Quem sabe essas gerações superem o a irracionalidade religiosa e alcancem um grau mais elevado de aperfeiçoamento moral e racional?
Penso ser assim a nossa existência: atravessada por gerações que se esforçam por trabalhar a relação dialética entre tradição e inovação, entre o velho e o novo, entre a conservação e a ruptura. Não podemos nos esquecer de que nós, hoje, pertencemos a uma geração de seres humanos que vivem num mundo secularizado (embora ainda marcado pela tensão entre racionalidade e fé) e, enquanto existimos, existem também as nossas visões de mundo, crenças, verdades, mas outras gerações também existirão e também produzirão e conservarão suas visões de mundo, crenças e verdades.
Se a crença na imortalidade da alma revelar-se verdadeira (um dia?), então um cristão do século XXI é tão imortal quanto o homem-de-neandertal.



quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Há alguns anos atrás...



                                                  Reaprendendo a amar


 Há alguns anos atrás, eu a surpreenderia com um buquê de rosas ou com uma bela caixa ornada de rosas e poesias. Sem, ao menos, ter conversado com você, eu já revelaria as delícias de minha alma.
Há alguns anos atrás, eu suporia estar lhe agradando com essas gentilezas, sem sequer conhecê-la verdadeiramente. Há alguns anos atrás, bastar-me-iam as sugestões de minha idealização, de minha imaginação, de meus suspiros cordiais. E, sem que você imaginasse, eu elucubraria alguns sonetos, nos silêncios de minhas noites, inspirados na sua imagem.
Há alguns anos atrás, eu estaria atacado de minha febre lírica irremediável. E o gênio ultra-romântico estaria apossado de mim e conduziria minha pena imaginária a compor meus versos de amor endoidecidos.
Mas tudo isso teria de mim há alguns anos atrás. Algumas sessões de terapia foram necessárias para exorcizar esse espírito liricamente impetuoso e  incomum. Meu lirismo se antecipava a mim, há alguns anos atrás.
Há alguns anos atrás, eu sofria mais, eu chorava mais, eu morria mais por tudo isso. Mas há alguns anos atrás eu não era a mesma pessoa que eu sou hoje.
Há alguns anos atrás, eu não acreditava que sempre podemos mudar e reaprender a amar.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

O prazer da leitura



                              Leitura e resistência
                       Por que resistimos à leitura?


Em Quebrando o encanto – a religião como fenômeno natural (2006), o filósofo Daniel Dennett, escreve sobre a atividade de todo filósofo:

“Sou um filósofo, não um biólogo, um antropólogo, um sociólogo ou um teólogo. Nós, filósofos, somos melhores em fazer perguntas do que em respondê-las, e isso pode parecer, para algumas pessoas, uma cômica admissão de futilidade (...) Mas qualquer pessoa que tenha abordado um problema realmente difícil sabe que uma das tarefas mais árduas é encontrar as perguntas certas e a ordem de fazer essas perguntas”
(pp. 29-30)

Tendo em conta esse ensinamento, quero dizer algumas coisas sobre o título deste texto. Encerrará ele uma pergunta adequada? Pensei em estampar a pergunta: por que lemos pouco? Mas isso implica a pressuposição de que nós, brasileiros, lemos pouco. Há pesquisas que confirmam isso, é verdade; mas essa pressuposição encaminharia minhas reflexões em um sentido que não é o pretendido. Não estou interessado em avaliar as influências sócio-culturais, ideológicas e econômicas que dificultam o acesso à leitura ou a inibem. Muitos culpam a televisão; outros estendem a culpa à internet, ao vídeo-game, à sobrecarga de tarefas, à escassez de tempo, minguado em longas e exaustivas jornadas de trabalho, etc.
Quando se coloca como matéria de debate a influência negativa da televisão na formação de leitores, questiona-se, principalmente, o poder sedutor das imagens, ou melhor, a capacidade que elas têm de simplesmente não exigir a atividade de pensamento. Expressões como anestesiamento da consciência, regressão da consciência, semiformação, entre outras, perpassam os discursos críticos sobre a relação intricada entre televisão e livro, ou, em outras palavras, entre ver televisão e ler livro. Mas, devo esclarecer, refiro-me ao hábito de ver televisão e ao hábito de ler livros. O hábito, por definição, implica repetição, automatismo. É toda forma de comportamento que adotamos cotidianamente, de modo quase sempre irrefletido.
Tenho, contudo, de interromper o curso de minhas palavras aqui, porque não pretendo refletir sobre essa relação. Na verdade, quero pensar a leitura como uma experiência. Desse modo, pensarei a leitura relacionada à vida comum, individual; e a partir do individual, tentarei pensar sua influência sobre o coletivo.
Já deve ter ficado claro que por leitura entendo a atividade de interpretar e compreender textos. Leitura é interpretar, produzir sentido. É claro que podemos ler outros objetos passíveis de interpretação, tais como uma obra de arte (pintura, escultura), filmes, expressões corporais, o mapa astral, a mão de uma pessoa, etc. Queiramos ou não, em todo momento, estamos lendo o mundo.
É oportuno o ensinamento de Paulo Freire, quando nos ensina, em A importância do ato de ler, que a leitura do mundo deve preceder a leitura da palavra e esta leitura deve ser a continuidade daquela. Palavra e mundo se interpenetram; são indissociáveis. Não é óbvio para todos que o mundo é interiorizado em nossa consciência pelas palavras; mas é.
É na relação palavra-mundo (tão bem lembrada pelo educador brasileiro) que situo minha reflexão sobre a resistência à leitura. Como eu esteja preocupado com o individual nesse tocante, começo por contar um pouco sobre minha relação com a leitura.
Os livros, ou melhor, a leitura de livros, para mim, tornou-se extremamente importante com a maturidade de minha vida universitária. Ao final do curso, ler se transformou numa atividade indispensável à minha vida. Deixou de ser resultado de uma exigência acadêmica para uma necessidade intelectual. Creio ser essa transição uma etapa fundamental para que gostemos de ler e ler mais, e mais.
Gosto é coisa que se molda culturalmente e depende da experiência. Não podemos dizer que não gostamos de maçã, se nunca experimentamos, comemos uma maçã. E se me perguntam se eu gosto de caviar, tenho, para não incorrer em equívoco, limitar-me a dizer “não sei”. E não sei, porque nunca experimentei. Posso até não ter vontade de experimentar, certamente por força dos hábitos alimentares determinados em minha cultura. Gosto mais de feijão com arroz e não sinto necessidade de comer ovas de peixes. Não podemos negar aqui a influência da cultura: ela educa-nos também do ponto de vista alimentar, ela impõe-nos padrões alimentares aos quais nos habituamos, molda nossos gostos e preferências alimentares.
É claro que a transição a que me referi só é possível em condições sócio-culturais e educacionais que as favoreçam. Não podemos negar que a leitura, tradicionalmente, no âmbito escolar, sempre esteve relacionada à obrigação (ler para fazer testes, provas, resolver exercícios de interpretação, etc.), mas quase nunca trabalhada como uma atividade interacional, dialógica, de construção de subjetividades, de formação da consciência crítica-emancipatória, de autonomia intelectual, etc. Em geral, o leitor-aluno era um leitor passivo que se submete ao texto, que tomava o autor como senhor do que diz/escreve. E nós somos herdeiros dessa tradição. Isso, certamente, é um obstáculo àquela transição.
O tema é demasiado complexo, como se vê. Há muitas conjunturas a considerar: classes socioeconômicas, políticas educacionais que incentivem a produção cultural (como a leitura), incentivo familiar, etc. De minha parte, minha mãe deu uma grande contribuição para que eu me tornasse, hoje, um leitor inveterado de livros. Ela lia histórias infantis para mim antes de dormir, quando eu era criança. Eu apreciava ouvir aquelas histórias, que se repetiam muitas noites. Eram vários livros, mas eu gostava de um em especial: A bonequinha preta. Era a história de uma bonequinha que queria ver a rua e desobedeceu a sua mãe aproximando-se demais da janela. Ela caiu, mas foi, porsteriormente, encontrada por um feirante... A moral da história é: sempre obedeça aos seus pais.
A leitura ganhou espessura em minha vida quando reconheci que somente através dela conseguiria alcançar meus objetivos profissionais. Como minha profissão é alicerçada na leitura (professor de português tem de ser, antes de tudo, um leitor; afinal, como podemos formar leitores, se não somos leitores?), para mim não foi custoso passar por aquela transição. Fico, sinceramente, intrigado (para dizer o mínimo) quando percebo que muitos alunos fazem Letras e admitem não ter o hábito de ler. Isso é contraproducente. A condição mínima para cursar Letras é apreciar a leitura. Isso vale também para todos os cursos universitários, mas, nessa área, especificamente, é condição imprescindível, porque é nela apenas que a linguagem, mormente em sua forma escrita, é objeto de estudo, de reflexão. Não só se lê muito, mas aprende-se muito sobre como se lê, sobre como se constroem os objetos simbólicos (textos), sobre os mecanismos da linguagem, sobre as possibilidades de leitura, etc.
O fato de eu ter-me formado em Letras não é suficiente para justificar meu interesse pela leitura; apenas explica-o em parte. Evidentemente, não precisamos fazer Letras para sermos leitores experientes e gostarmos de ler. Por isso, considero que aquela transição decorreu de outras experiências que vivi.
Houve um grande período em minha vida em que os livros foram meus melhores amigos, ou substituíram-nos. Eles preenchiam um vazio, decorrente de um sentimento profundo de deslocamento em relação ao mundo. De certo modo, buscava nas páginas de livros um refúgio; elas me serviam para uma fuga. A realidade era dura demais, fria demais, indiferente demais. Nos livros, sobre os quais me debruçava, num silêncio quase sagrado (porque imperturbável), eu buscava conforto e contentamento. Mas eu não me alienava, não me alheava do mundo. Porque o mundo me chegava através dos livros.
Quando lemos, complexificamos nossas percepções de mundo, as aprofundamos, as modificamos. Lemos para compreender melhor o mundo. Lemos também para aprender a viver nele, sem nos conformamos totalmente a ele. Lemos para incomodá-lo e não para vivermos comodamente nele.
Nos momentos mais graves de meus estados depressivos, os livros me eram um amparo. Eles amparavam meus sentimentos, meus pensamentos. Evidentemente, só a leitura não bastava. Era preciso estabelecer uma ponte entre leitura e realidade. A construção dessa ponte não foi fácil, visto que quanto mais letrados ficamos tanto mais seletivos socialmente nos tornamos. Quando lemos mais, restringimos mais nossos círculos de amizade.
Por muito tempo conservei a crença em que eu só conseguiria ser feliz amorosamente se eu encontrasse reciprocidade intelectual no outro. De certo modo, quanto mais letrados ficamos mais desejamos nos relacionar com pessoas com quem possamos ter afinidade intelectual, pessoas que contribuam para o nosso aperfeiçoamento intelectual também.
Felizmente, não conservo mais essa crença não só porque não há razão para supor que haja relação necessária entre reciprocidade intelectual e prosperidade amorosa, como também porque essa forma de pensar me legava uma imagem que julgava não me ser adequada. Ao contrário do que poderiam pensar, eu sou uma pessoa bastante sociável, só me faltava a consciência do lugar da intelectualidade, do legado das leituras na convivência com as pessoas.
Devemos sempre ter em conta  que, se, por um lado, ler expande nosso espírito, alarga nossa consciência social, de mundo, torna mais complexas nossas formações de pensamentos, nossas ideias, lega-nos a necessidade do questionamento, da não-aceitação a dogmas, a crenças para as quais não é possível uma justificativa racional, nos torna mais sensíveis aos engodos das ideologias; por outro lado,  acaba por nos reorientar os modos de conviver nesse mundo,  modifica as esferas de nossa sociabilidade, fazendo com que abandonemos certos círculos de amizades, ou, ao menos, limitemos nossa atuação neles.
Creio em que, para se começar qualquer discussão sobre o valor da leitura na vida social, valeria a pena começar com a pergunta: que lugar tem a leitura em minha vida?

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

"A alma equilibrada conjuga amor com conhecimento" (BAR)


Quando falamos coisas inteligentes


A certa altura de minhas leituras matinais habituais, se me deparou um trecho que me repercutiu vivamente no espírito, em No que acredito (2011), do filósofo Bertrand Russel. Topa-se, no capítulo segundo (A vida virtuosa), um pensamento simples, mas cuja verdade deixa-nos atônitos (pasmo foi o que senti ao lê-lo):

“A vida virtuosa é aquela inspirada pelo amor e guiada pelo conhecimento”
(p. 44)

Decerto, minha perplexidade tem mais a ver com o fato de que quem o enuncia é um filósofo do que, propriamente, com o conteúdo do enunciado, dado que conjugar numa mesma frase amor e conhecimento é uma prática linguística que me é muito peculiar. Não me resta senão concordar, nesse tocante, com Russel. E tenho, forçosamente, de concordar também com o que ele nos ensina na página seguinte a respeito do valor do amor relativamente ao conhecimento:

“Ainda que o amor e o conhecimento sejam ambos necessários, em certo sentido o amor é mais fundamental, na medida em que levará indivíduos inteligentes a buscar o conhecimento a fim de descobrir de que modo beneficiar aqueles que amam”.
(p. 45)
(grifo meu)

Não intento aqui esmiuçar os pensamentos de Russel sobre a questão da vida virtuosa. Trouxe-os à baila apenas porque eles me animaram o espírito a expor algumas reflexões sobre ideias que lhe ficaram a pulular. Deter-me-ei nelas doravante.
Para algumas pessoas, atualmente, não há, a rigor, filósofos, já que filósofos precisam do ócio. Certamente, essa imagem do filósofo é apropriada para definir os gregos antigos, os quais dispunham, como Sócrates, de tempo livre para pensar e questionar. Sócrates, aliás, ficou famoso também por seu hábito de indagar as pessoas comuns que circulavam nas ruas de Atenas sobre a validade de suas opiniões e de suas crenças. Platão nos dá testemunho das ocasiões em que aconteciam os diálogos durante os quais os participantes expunham seus pensamentos sobre diversos temas. Essas ocasiões envolviam, muitas vezes, reunião de amigos ao redor de uma mesa farta de alimentos. Comia-se, bebia-se e filosofava-se...
Em virtude de transformações históricas (que não poderiam ser aqui levantadas), entretanto, os filósofos que se formam nas universidades do mundo são chamados de “filósofos profissionais”. Eles cumulam a função de pesquisadores e de professores de filosofia; isso, contudo, não os impede de produzir a sua filosofia, especialmente quando as universidades a que estão vinculados lhes possibilitam (com financiamento e incentivo à pesquisa) condições necessárias à sua constante atividade de pensamento. O filósofo Daniel Dennett, ainda em pleno exercício de suas atividades filosóficas, é um exemplo (e para ficar só neste dentre os milhares existentes) de filósofo que produz conhecimento ao mesmo tempo que o ensina a seus alunos na Tufts University.
É claro que a observação de que hoje pode-se falar de "filósofos profissionais" sugere as condições típicas de uma sociedade capitalista, nas quais a quantidade de tempo empregado à produção é proporcionalmente inversa à quantidade destinada ao lazer ou, se quisermos, ao ócio. Em outras palavras, time is Money – é necessário empregar mais tempo ao trabalho (e aqui entra a ideologia que faz a cisão entre ‘trabalho manual’ e ‘trabalho intelectual’, fazendo do primeiro, aliás, a única forma “verdadeira” de trabalho) e reduzir o tempo livre, que poderia ser destinado, entre outras coisas, ao exercício do pensamento reflexivo. Aos que são privados de uma formação continuada e qualificada, a dependência ao imperativo de produção se agrava. Como seja mais difícil o sucesso na reivindicação de melhores salários e da diminuição da carga horário de trabalho, nessa circunstância, não vêem alternativas senão empregar sua mão-de-obra e submetê-la às condições determinadas pelo empregador (capitalista). Quanto menor a qualificação maior a submissão. E escusa dizer que vivemos na era do conhecimento e da necessidade crescente de especialização, o que torna ambos fatores determinantes de inserção e maior participação sociocultural, política e econômica dos sujeitos sociais.
A vinculação entre saber (conhecimento) e poder fica patente no ensinamento de Jean-François Lytoard, em A Condição Pós-Moderna (2009). Gostaria de citar o trecho em que o autor nos ensina sobre a importância do saber na pós-modernidade:

“O saber é e será produzido para ser vendido, e ele é e será consumido para ser valorizado numa nova produção: nos dois casos, para ser trocado. Ele deixa de ser para si mesmo seu próprio fim; perde seu “valor de uso”. Sabe-se que o saber tornou-se nos últimos decênios a principal força de produção, que já modificou sensivelmente a composição das populações ativas nos países mais desenvolvidos e constitui o principal ponto de estrangulamento para os países em via de desenvolvimento (...)”
(p. 5)

Pode-se, sem muito custo, depreender daí as condições que tornam possível aos nossos estudantes, especialmente do nível escolar, pensar que certos conhecimentos não servem para nada. Esse é o caso, tradicionalmente, da filosofia, enquanto disciplina escolar. O conhecimento ou saber é algo que deve ser consumido e deve servir para alguma finalidade prática. Seu valor é medido pelo quanto ele é útil para angariar algum benefício imediato. Não devemos, entretanto, culpar nossos alunos de pensar assim; na verdade, muitas pessoas pensam da mesma maneira e continuam a reiterar a crença em que filosofia não serve para nada, que ela está apartada do mundo, que ela é privilégio de poucos iluminados, ou de pessoas que vivem com a cabeça na lua. Como ensinou-nos Marx, a forma como pensamos explica-se pelas condições socio-econômicas em que vivemos: o real justifica as ideias, e não o contrário (o contrário é ideologia). 
Trata-se, portanto, de ideologia ou crenças infundadas aquelas formas de pensar, frutos de uma ignorância muito comum, mesmo entre os mais escolarizados. Aliás, devo ser honesto: no tempo em que ainda era universitário, nos primeiros períodos do curso de Letras, eu também acreditava que filosofia era um discurso quase exotérico, que nada me dizia a respeito de coisas importantes. Com o passar do tempo, dei-me conta de que os filósofos se interessaram pelo estudo da linguagem (aliás, muita coisa que sabemos hoje de gramática (no sentido vulgar do termo) e que aprendemos na escola remonta às reflexões de Platão (séc. III a.C.), seguido por Aristóteles) e, desde então, aprofundando meus estudos em filosofia da linguagem, dei o “salto intelectual” que muito me beneficiou: comecei a conhecer o pensamento de grandes filósofos. Hoje, estudar filosofia é, então, um prazer.
Para o filósofo Antônio Gramsci, a faculdade de filosofar é extensiva a todos os homens. Evidentemente, é preciso que se lhes sejam dadas as condições (sociais, culturais, educacionais) necessárias para que venham a desenvolvê-la. Decerto, filosofar não é conhecer profundamente o pensamento de um ou outro filósofo. Conhecê-lo é importante num sentido dialógico: claro, nenhum de nós é um sujeito adâmico que diz a primeira palavra, que pensa o primeiro pensamento, que é a fonte de tudo que diz e pensa; pensamos e dizemos com os outros; nossas reflexões se formam na esteira de uma longa tradição de mentes que pensaram antes de nós.
Se, por um lado, é com Sócrates que aprendemos que o filósofo não se confunde com o erudito, que o filósofo é um indivíduo que, reconhecendo ser ignorante, deseja saber, deseja a verdade e, para alcançá-la, se vale da razão; por outro lado, é com Deleuze que podemos aprender sobre a matéria-prima da filosofia, a saber, o conceito.
Vou-me deter um pouco num tema importante: a criação de conceitos. Para o filósofo Deleuze, em O que é filosofia? (2009),  a filosofia é o trabalho de criação contínua de conceitos. Como veremos, essa concepção lançará algumas luzes sobre o próprio fazer filosófico, ou seja, sobre o próprio exercício de filosofia.
Deleuze ensinará que todo conceito é complexo, porque constituído de vários componentes. Não há, portanto, conceito simples. Mas disso não se pode concluir que o conceito é um todo acabado que encerra todos os componentes. Para ele, o conceito tem irregularidades. O conceito também se entende pela sua relação com os problemas. Ademais, todo conceito se relaciona a outros conceitos. Assim, todo conceito é relativo, dada a sua relação com os seus componentes e com outros conceitos, mas também absoluto, pela sua consistência e posição que ocupa num terreno conceitual, mas também pelas condições que impõe aos problemas.
Para que fique clara a complexidade de todo conceito, pensemos no conceito de ave. O conceito de ave compreende as noções de ‘animal’, ‘vertebrado’, ‘voar’, ‘penas’, ‘asas’, ‘bico’, ‘ovos’, etc. Duas noções são importantes aqui: a de extensão e a de intensão. Entende-se por extensão de um conceito o conjunto ou a classe de entidades ou objetos recoberto pelo conceito. Por exemplo, ‘ave’ é extensivo a galinha, canário, papagaio, etc. Por outro lado, intensão designa as propriedades de um conceito na base das quais ele é definido. Assim, o conceito de ‘ave’ tem uma definição intensional que inclui as noções de ‘animal’, ‘vertebrado’, ‘voar’, ‘asas’, etc.
Todo conceito só se torna operacional pela sua definição. Na verdade, sua validade depende da definição. Mas do que são feitos os conceitos? Reformulando a questão: o que é necessário para podermos construir pensamentos baseados em conceitos? Precisamos de palavras. As palavras, longe de serem etiquetas de que nos valemos para identificar ou nomear as coisas do mundo, são formas de criação de conceitos. As palavras, repito, permite-nos criar conceitos mediante os quais organizamos nossas experiências de mundo numa estrutura dotada de sentido. Não há possibilidade de existir pensamento conceitual fora dos domínios da  linguagem verbal.
Não existe uma separação entre o mundo, de um lado; e as palavras, de outro. Na verdade, o mundo, ou melhor, as nossas experiências de mundo são interiorizadas (pela consciência) e tornadas ‘dados’ de nossa consciência mediante os conceitos criados pelas palavras.
Convém aqui lembrar a função simbólica da linguagem, mediante a qual a linguagem fornece as categorias na base das quais organizamos nossas experiências de mundo e tornamo-las dados de nossa consciência, ou seja, formas de conhecimento.
Vejamos um pouco como se dá isso. Pensemos no conceito de ‘galinha’. Se assumirmos que ‘águia’ seja um protótipo (o modelo) para a categoria ‘ave’, devemos reconhecer que ‘canário’, ‘andorinha’, ‘gaivota’, ‘papagaio’ estejam mais próximos desse protótipo, ou seja, do conceito de ‘ave’, de que 'águia' é o um modelo, do que  ‘galinha’ (embora seja considerado uma ave). Mas devemos lembrar que a galinha não voa, ao contrário das espécies de aves aqui referidas. E devemos reconhecer que a categorização científica sobrepõe-se à categorização feita pelo senso-comum. Assim é que, para muitas pessoas, o morcego é uma ave, visto que voa. Mas o mínimo de instrução científica nos permitirá dizer que ele é um mamífero e, portanto, não pode ser incluído na categoria das aves (já que nenhuma ave se alimenta como os mamíferos).
O léxico é um campo muito fértil para explorarmos a função simbólica da linguagem, já que ele nos fornece as categorias que, organizadas em campos semânticos, permitem-nos construir campos cognitivos que expressam nossa compreensão da realidade. Por exemplo, ao pensar no conceito de ‘galinha’, posso desencadear um frame ou modelo cognitivo que inclui outros conceitos como ‘pinto’, ‘ovo’, ‘galinheiro’, ‘chocar’, ‘fazenda’, etc. A experiência nos dá o conhecimento de que a galinha não voa, mas caminha, anda. Logo, um enunciado como (a), embora gramaticalmente bem-formado, é, semanticamente, inaceitável, porque não descreve um estado-de-coisas do mundo tal como o conhecemos:

(a) A galinha voava para o sul.

Mas uma frase como (b) é perfeitamente aceitável, porque representa ou descreve um dado estado-de-coisas do mundo:

(b) A galinha vive no galinheiro.

Pensemos ainda nos conceitos de ‘andar’, ‘voar’ e ‘saltar’. Podemos associar o primeiro conceito a outros como ‘homem’, ‘mulher’, ‘cachorro’ e ‘carro’ (muito embora, quando associado a este último, a noção se modifica). Podemos associar ‘voar’ tanto a ‘avião’ quanto a ‘ave’, mas não a ‘carro’ ou ‘casa’. Sabemos que o sapo ‘salta’, homens e mulheres também podem saltar, mas o ‘carro’ não salta, nem a ‘pedra’  ‘chora’.  Isso é óbvio demais, mas por justamente ser óbvio demais não é pensado. A semântica estrutural nos permitirá compreender bem essas relações com a noção de semas (componentes de significado). Ora,  a forma 'chorar' só pode relacionar-se com 'seres' [+ animado], em geral [+ humano]. Portanto, chorar é um conceito que envolve o conceito de animação/humanidade. Uma pedra, como seja desprovida de animação, não pode "chorar".
Pensemos também na relação hipônimo-hiperônimo, ou seja, entre um termo mais específico e um termo mais geral. Dizemos que ‘transporte’ é hiperônimo de ‘carro’, ‘ônibus’, ‘avião’, e cada um destes é hipônimo daquele. Se pensarmos no conceito de ‘mobília’ como hiperônimo para ‘mesa’, ‘cama’ e ‘sofá’, tendemos a negar a relação dele com ‘liquidificador’ ou ‘geladeira’, que seriam mais propriamente integrantes da classe ‘eletrodoméstico’.
A filosofia, desde a antiguidade, nasce como um estudo alicerçado no logos (palavra, discurso). Tem razão os filósofos que entendem a filosofia como um discurso, mas de um tipo específico. Trata-se de uma forma de discurso que se baseia na razão (no sentido de que se submete aos seus princípios) e que está preocupado com a busca da verdade.
O discurso filosófico, racional, por excelência, opera com conceitos, sua matéria-prima. Quando um filósofo se pergunta sobre o conceito de liberdade, por exemplo, é sobre seus componentes que ele se pergunta. Aqui, a razão opera sobre o interior do conceito e, nesse sentido, ela é auto-reflexiva. Todavia, não basta fazer abstração (ou seja, isolar o conceito da realidade). O testemunho empírico, a experiência, em suma, é indispensável. Qualquer definição de liberdade não pode escusar as formas como ela tem sido experienciada ou cerceada ao longo da História.
Aprendi com a filosofia que devemos estar atentos à forma como pensamos, à forma de nossos raciocínios, aos seus conteúdos, ao modo como os concatenamos, para evitar contradições, falácias. Aprendi com a filosofia a explorar a relação intrínseca e fascinante entre linguagem e pensamento. Nesse sentido, a filosofia promove o retorno do pensamento sobre o pensamento elaborador. O pensamento reflexivo (o que “reflete”) é pensamento que se volta sobre a própria atividade pensante.
Aprendi com a filosofia (embora também seja uma exigência da forma de atividade de pensamento científico) a necessidade de definir os termos, os conceitos que empregamos em nossos discursos; em outras palavras, evitar a polissemia tanto quanto possível. Aliás, qualquer discussão só pode ir adiante se os interactantes estiverem de acordo quanto aos conceitos dos termos empregados, bem como se compartilham dos pressupostos envolvidos na discussão. 
A análise do discurso vem corroborar essa necessidade de nos situarmos no domínio discursivo e na esteira conceitual quando interagimos. Dependendo da formação discursiva, as palavras terão sentidos diferentes. Uma sigla como MST (movimento dos sem-terra) terá um sentido na boca de um representante desse movimento que reivindica o direito a usufruir da terra, e outro na boca de um latifundiário.
Evidentemente, nas conversações cotidianas, em que predomina o senso-comum, o rigor na precisão de conceitos, no acerto quanto às nossas interpretações das palavras, na delimitação de domínios conceituais, na clareza de definições é, muita vez, dispensável, muito embora certo grau de assentimento seja necessário. Ora, devemos estar de acordo quanto aos sentidos que damos às palavras que empregamos; discussões calorosas surgem, muitas vezes, dos mal-entendidos em relação aos significados que pretendemos atribuir às palavras que empregamos num dado contexto. Mas, insisto, que não pensamos como filósofos em nossas atividades triviais do cotidiano, nem os filósofos se comportam como tais.
Comportar-se de modo inteligente é saber qual o lugar da inteligência, quando e como deve ser empregada. Falamos coisas inteligentes quando os outros esperam que as falemos, do contrário, seremos pedantes. A inteligência deve atrair e não repelir; deve causar admiração e entusiasmo, e não intimidação e desconforto.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

A alma é o recipiente da vida




“A alma é o recipiente da vida. Uma alma rasa contenta-se com pequenos goles da vida, não é capaz de apreendê-la em toda a sua espantosa profundidade, enche-se com os momentos triviais e julga estar satisfeita. Uma alma funda, que exibe largas medidas, quer apreender a vida em toda a sua extensão, que é infinita e absurda, enche-se de suas vísceras, vê a intensidade do amor num lapso de olhar e se julga plena, mas sempre alimentada pelo espanto. Uma alma funda é vazia de convicções sem provas e planta sementes de questionamentos, onde há vastas pastagens de ignorância”

(BAR)

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

suspiros noturnos...



A um lindo ideal


Pudera estas palavras encontrar abrigo em seu coração, pois que é a você que elas são escritas; a você que esteve ao meu lado naquela sexta-feira e que me falou ao coração com delicadeza, com entusiasmo, com sabedoria, quando eu ressuscitei os fantasmas que habitaram minha alma durante anos.
Receio, contudo, que você nunca chegue a conhecê-las e nunca sinta a beleza lírica que nelas escondi para estampá-las aqui. Quiçá, ignore a dificuldade que agora experimento de levar adiante este texto. É que impus ao meu coração uma barreira, por precaução, embora eu desconfie que esse impedimento decorra de um sentimento arraigado de insegurança.
Ah! Se soubesse que tenho relutado em atender aos apelos de meu coração e em aceitar que as imagens idealizadas de nossos encontros venham a acumular-se em minha alma. Nós de mãos dadas, num passeio matinal; compartilhando do mesmo saco de pipocas, e nos beijando diante daquela imensa tela, dando às nossas vidas uma só direção.
E não  diria que é impossível, se há entre nós tanta afinidade (gostamos de ver filmes, gostamos das mesmas músicas, compartilhamos os mesmos valores, acreditamos na supremacia do amor e na sua aliança necessária com o sexo, gozamos de prosperidade intelectual, temos objetivos em comum, temos projetos que se vão numa mesma trilha) Ou não?
Disse-me ser eu seu ideal, pois eu quero ser a sua realidade, o seu conforto, o seu amparo, e ser mais e mais o seu amigo...

domingo, 31 de julho de 2011

Uma breve história da sexualidade feminina



A sexualidade como parâmetro de inserção
social feminina – Do período paleolítico à Antiguidade Clássica

Objetivo: Evidenciar e discutir a condição social da mulher desde o Período Paleolítico até a Antiguidade Clássica tendo como parâmetro de inserção a sexualidade.

A sexualidade desempenha um papel fundamental na vida e na sociedade humanas. Seu estudo tem grande importância na medida em que permite compreender a história mundial nas suas diversas dimensões: social, cultural, política, econômica, moral, abrangendo, inclusive, a vida cotidiana do homem comum. A sexualidade imiscui-se nos modos como os seres humanos determinaram/ conduziram sua vida e marcaram distinções relativamente aos gêneros (masculino e feminino). No tocante aos meus interesses aqui, a sexualidade, como veremos, será um parâmetro de poder masculino na determinação dos tipos de inserção da mulher nas sociedades, desde o Período Paleolítico (20.000 a 8000 a. C.), caracterizado pela vida nômade e pelas atividades de caça e coletas, até a Antiguidade Clássica, no ocidente (800 a.C), com o advento das cidades-Estados gregos.
Nesse recorte temporal, vou considerar também a forma como a sexualidade foi experienciada e regulada nas dinastias chinesas; portanto, examinarei a inserção da mulher nas sociedades ocidentais e orientais.
Vou partir das seguintes premissas:
a) A sexualidade sempre esteve associada às esferas de poder; através dela, os homens expressaram, ao longo da História, seu poder hegemônico sobre as mulheres;
b) Em todas as sociedades humanas, a sexualidade sofreu alguma forma de restrição e/ ou controle;
c) A sexualidade era experienciada na tensão entre o desejo de prazer e a necessidade de controlar a natalidade;
d) As formas de inserção social de homens e mulheres nas sociedades passam pelas complexas condições da determinação de seus papéis relativamente à sexualidade.

Em História da sexualidade (2010), Peter N. Stearns, observa, na seção introdutória A sexualidade e o advento da agricultura, o seguinte:

“(...) nas sociedades primitivas havia um embate com a tensão entre o reconhecimento do prazer sexual e o interesse e a necessidade, em nome da ordem social e até mesmo da sobrevivência econômica, da introdução de padrões regulatórios essenciais”.
(p. 21)

Inicialmente, portanto, deve-se ficar claro que a sexualidade humana era encarada não só na sua dimensão erótica (o prazer), mas também na sua função biológica (a reprodução).  Na modernidade, como sabemos, a mudança fundamental ocorrida na sexualidade foi a separação entre prazer sexual e função reprodutiva. Desde a década de 1960, a grande parte das pessoas do Ocidente já fazia sexo sem finalidade procriadora, mas meramente recreativa, muito graças à disponibilidade de dispositivos contraceptivos, tais como a pílula.
Evidentemente, servindo o sexo à produção de bebês e dadas as necessidades de sobrevivência, em condições econômicas ainda muito precárias, o controle da natalidade tornou-se uma exigência para as sociedades pré-agrícolas, mas também sempre foi uma constante nas sociedades posteriores que se formaram na Antiguidade Clássica.
As sociedades de caçadores-coletores (período paleolítico) estavam interessadas no controle da natalidade, muito embora não dispusessem dos meios eficazes para tanto.
Essas sociedades viveram segundo duas tensões, relativamente à sexualidade: a arte deu testemunho da primeira tensão, ao registrar a ênfase que recaía sobre a bravura e as façanhas masculinas. A segunda, relacionada à prática sexual, combinava o deleite proporcionado com as necessidades de controlar a natalidade.
A primeira imagem da mulher é fornecida pelas esculturas, sem rosto, com contornos que marcam, ao que parece, o apreço que se dava à obesidade. Parece que a obesidade era vista como um atributo erótico. O vestuário feminino incluía decotes que salientavam os seios (quando estes não eram totalmente exibidos) e fendas que deixavam-se ver os pêlos pubianos. Indícios arqueológicos, datados de 70 mil anos, encontrados na costa da África do Sul, sugerem que o uso de batom visava a tornar a boca da mulher parecida a uma vagina, o que indicava disponibilidade sexual.
A arte também expressava o universo masculino, salientando seu dote fálico. A representação do potencial sexual masculino indicava a dominância fálica; portanto, dos homens.

“Uma famosa gravura encontrada na França retrata uma leoa lambendo um enorme pênis humano, e outras representações mostram com clareza a dominância do falo. Costumava-se esculpir gravetos fálicos, que provavelmente eram usados em rituais sexuais. Alguns grupos fabricavam jóias para adorar o pênis, e ornamentos desse tipo foram encontrados em cemitérios”
(p. 24)

É interessante notar que a arte servia, pelo menos em parte, a uma forma de construção e reprodução simbólica do domínio masculino.
Os parceiros sexuais eram escolhidos de acordo com sua grande habilidade para a caça: quanto melhor caçador era um homem mais atraente era a uma mulher. Algumas sociedades de caçadores-coletores não pareciam valorizar a virgindade feminina.
Nessas sociedades, a atividade sexual era mais ou menos precoce e admitia-se a pluralidade de parceiros. Alguns grupos mantinham relações monogâmicas ou a monogamia seriada (ou seja, fidelidade a um parceiro durante algum tempo e posterior busca por outro parceiro). Havia uma relativa liberdade na escolha de parceiros para fins sexuais e a escolha era, em geral, determinada por atributos físicos apreciáveis, ou pela habilidade de caça.
Com o advento da agricultura – um marco da historia da humanidade – por volta de 9000-8000 a. C. – instaurou-se um novo sistema econômico na História. Os seres humanos não careciam mais de se deslocar incessantemente de um lugar para outro, podendo estabelecer-se num determinado local, por muito tempo.
Com o estabelecimento de novos padrões econômicos, propiciados pela agricultura, modificou-se a estrutura da sexualidade. Ensina-nos Stearns, nesse tocante, o seguinte:

“Os padrões agrícolas de sexualidade refletiam um novo conjunto de necessidades e oportunidades econômicas, e os efeitos demonstram o quanto a sexualidade humana pode se tornar flexível em face de novas conjunturas.”
(p. 29)
Vale dizer que foi nas condições de vida baseada numa economia agrícola que se originaram as desigualdades: uma minoria de pessoas, entre as quais estavam proprietários de terra, sacerdotes, mercadores, passou a gozar de privilégios que não eram acessíveis a camponeses. Os que detinham maior poder econômico eram mais desejáveis sexualmente; além disso, podiam desfrutar de práticas sexuais diferentes, que eram impossíveis aos menos abastados.
Com a criação de vilarejos que se situavam contíguos, a maior parte das famílias morava muito próximas umas das outras, o que possibilitou mais oportunidade para a supervisão e controle do comportamento sexual, desempenhados, principalmente, por pais e parentes mais velhos.
É nesse período que se estabelecem, propriamente, os regimes patriarcais, já que as sociedades agrícolas passaram a adotar medidas que visavam a assegurar a paternidade, mediante a criação de regras para controlar a sexualidade feminina. Assim, instauravam-se diferentes padrões sexuais para homens e mulheres. Ensina-nos Stearns a esse respeito:

“Todas as sociedades agrícolas tornaram-se, de certo modo, patriarcais – isto é, dominadas por homens (de pai para filho); e uma expressão fundamental do patriarcado foi o impulso de controlar a sexualidade feminina e diferenciar padrões de gênero”.
(p. 31)

A preocupação exacerbada com o controle da sexualidade feminina deu origem ao sentimento de ciúme. Diferentemente do que sucedia nas sociedades caçadoras-coletoras, que não davam tanta importância à possessividade sexual, nas sociedades agrícolas, o ciúme tornou-se uma emoção complicadora nos relacionamentos, complicação que se estende até os dias de hoje.
De passagem, vale notar que a preocupação em conter os excessos sexuais advém da observação da própria atividade sexual entre os animais, propiciada, evidentemente, pela vida agrícola. Os homens procuraram, desde então, estabelecer padrões sexuais diferentes dos padrões sexuais dos animais: aqueles deveriam ser mais respeitosos e dominados. Evitavam-se, assim, comportamentos animalescos nas práticas sexuais humanas.
A arte, nesse período, continuou a privilegiar a sexualidade masculina, muito embora expressasse uma preocupação com a relação entre sexualidade e fertilidade. A fertilidade sexual era associada à fertilidade agrícola e a figura da mãe foi destacada.
São nas condições agrícolas de vida que surge, portanto, o papel da mulher-mãe e protetora do lar. As mulheres passavam mais tempo se ocupando dos preparativos do parto e cuidando dos recém-nascidos, ao contrário do que sucediam com as mulheres das sociedades calcadas na coleta e na caça.
De passagem, novamente, vale notar que a masturbação passou a ser desaprovada, em certas sociedades, em virtude da ênfase no sexo com fins procriativos. O judaísmo, por exemplo, a rotulava de prática pecaminosa; outras sociedades, entretanto, embora a desaprovassem, não lhe atribuíam natureza de pecado.
Tenho insistido em que havia sempre uma necessidade de controlar a sexualidade feminina, com vistas a um controle correlato: o da natalidade. Em partes do nordeste da África, originou-se o costume da circuncisão feminina. A remoção do clitóris se dava no início da puberdade e visava à limitação do prazer sexual feminino. Novamente, aqui, a prática visava ao controle da sexualidade feminina.
Essa incessante preocupação com o controle da sexualidade feminina culminou com a formulação de códigos legais e religiosos que procuravam garantir a fidelidade sexual das mulheres. Na Mesopotâmia, o Código Hamurabi, instituído por volta de 1700 a.C., rezava que aos homens era permitido manter concubinas e amantes, enquanto as esposas não tivessem filhos, mas a esposa gozava de posição superior à concubina. A monogamia coexistia com a poligamia.
Em relação ao estupro, a lei judaica o tratava como crime, mas não sem a observação de que uma mulher que fosse estuprada deveria provar que a relação sexual se deu sem seu consentimento.

“O estupro comprovado de uma mulher casada era passível de punição com pena de morte (assim como o adultério, embora aqui para ambas as partes); mas o estupro de uma mulher solteira era considerado um crime não contra ela, e sim contra o pai, que era “dono” da filha e, portanto, tinha sua propriedade aviltada – o estuprador deve se casar com a mulher (mesmo contra a vontade dela). A Bíblia apresenta diversas histórias de estupro, incluindo algumas em que o estuprador é perdoado por causa de suas ligações com autoridades. No caso da lei judaica, assim como em outras sociedades, a preocupação com o estupro demonstrava que episódios de sexo forçado de fato ocorriam e que violavam normas aceitas; mas também fica claro que quase sempre as mulheres estavam bastante vulneráveis, e que o estupro era tido como uma violação da honra da família do que um ataque propriamente à mulher”
(p. 43)

Também foi neste período que surgiu a prostituição. Em decorrência da crescente especialização da economia, e a introdução do dinheiro, criaram-se condições para que mulheres (às vezes, também homens, em prática homossexuais) pudessem vender favores sexuais. As prostitutas, talvez, fossem as únicas mulheres livres da dominação masculina, muito embora ocupassem um nível baixo na escala social. Em sua origem, a prostituição tinha valor elevado, dada a crença na suas associações com deuses e deusas. No antigo Israel, há evidências de “prostitutas sagradas”.
A prostituição surge num contexto em que a sexualidade estava cerceada à função reprodutiva e submetida, portanto, ao controle permanente. As prostitutas representavam, assim, oportunidades para que homens dessem vazão as suas necessidades sexuais. Claro é que também a prostituição contribuiu para instaurar práticas de escravidão, já que muitas mulheres capturadas na guerra e pertencentes a grupos conquistados eram destinadas a essa forma de vida.
Como nos ensina Stearns, sobre a herança legada pelas sociedades agrícolas, no tocante à sexualidade,

“As primeiras sociedades agrícolas deixaram um legado para a sexualidade humana que, em certa medida, perdura ainda hoje. Novas distinções entre homens e mulheres em termos de sexualidade foram fundamentais. A prioridade dada ao sexo com fins reprodutivos, mas com restrições comunitárias, não eliminou a noção do sexo como prazer, e certamente não evitou uma ampla gama de efeitos e reações, de acordo com regiões particulares e classes sociais particulares, mas, em contrapartida, criou algumas novas tensões e incertezas”

(pp. 44-45)

Situando nossas considerações na Antiguidade Clássica, particularmente na China da dinastia de Zhou, em meados de 1050, e com a introdução do confucionismo cuja doutrina servia de um guia moral na base do qual os homens deveriam viver, buscando a realização de suas virtudes, observaram-se poucas mudanças. A virilidade e as façanhas sexuais masculinas ainda eram valorizadas, embora o desejo sexual da mulher fosse levado em conta. Naquele período, produziram-se muitos manuais de sexo, destinados a homens e mulheres, o que indicava certa equiparação sexual entre eles.
Havia também uma tolerância à masturbação, inclusive feminina. Por outro lado, as mulheres eram proibidas de fazer sexo antes do casamento, para que, assim, se mantivessem interessantes aos seus futuros maridos. Uma mulher que já não fosse virgem tenderia a ser abandonada pelo marido. E o temor ao abandono serviu de uma regra moral para que elas se mantivessem virgens.
Evidentemente, a repressão de sua sexualidade incutia-lhes uma curiosidade e ansiedade pela primeira relação sexual, sempre nos limites do casamento. A virgindade feminina era zelada pelos pais, já que sua perda significaria a possibilidade de desinteresse matrimonial pelo pretendente. As mulheres se casavam muito cedo, pouco depois da puberdade; os homens, ao contrário, porque precisavam alcançar certa estabilidade econômica, casavam 10 ou 15 anos mais tarde. Isso significa também que eles já se casavam com grande experiência sexual (já que continuavam a ter acesso às prostitutas). Tal experiência lhes permitia, evidentemente, maior controle sobre a vida sexual de suas esposas. Deve-se ter em conta que a valorização da virgindade da mulher visava sempre ao controle de sua sexualidade, já que virgindade era condição necessária para arranjos matrimoniais. Uma mulher sexualmente inexperiente era mais facilmente submetida ao poder do marido.
A necessidade de dispensar atenção especial ao comportamento sexual feminino decorria do interesse em que os homens estivessem certos de que teriam gerado os próprios filhos. E era desejável que estes fossem varões.
As regras confuncionistas relativamente à vida conjugal estabeleciam que maridos e esposas não mantivessem relações sexuais fora do leito conjugal. Mas os homens gozavam de liberdade, podendo recorrer a práticas sexuais extraconjugais; as mulheres, oficialmente, não.
Ao final do período clássico, na China, o regime sexual, razoavelmente padronizado, estabeleceu uma distinção entre mulheres respeitáveis e mulheres não-respeitáveis. Estas identificavam-se com as prostitutas, muito embora algumas delas pudessem, eventualmente, ser elevadas à condição de concubinas. As mulheres respeitáveis, por sua vez, sofriam maiores sanções à sua sexualidade.
Entre os antigos gregos, continuou-se a valorizar o controle e a reclusão femininas, bem como a virgindade antes do casamento. Os casamentos, como em todas as sociedades agrícolas, eram assentados em arranjos econômicos, e não pela atração sexual. A cultura mediterrânea valorizava, oficialmente, a monogamia.
Na Grécia Antiga, era evidente que as mulheres ocupavam posição de considerável desrespeito. Eram vistas como criaturas libertinas e imorais naturalmente, o que lhes acarretava o peso de um controle sexual constante. Já as respeitáveis eram cobertas com vestes que não deixassem à mostra partes do corpo que estimulassem o apetite sexual masculino. Os homens, a seu turno, podiam, nas competições atléticas, exibir sua nudez parcial ou total. A atuação das mulheres, na esfera pública, cingia-se à participação em festivais agrícolas e ao auxílio em atividades religiosas, o que servia de meio para conservar sua abstinência sexual.
Houve mulheres que ascenderam socialmente, como a jovem Aspásia, embora ocupasse apenas o papel de concubina. As que ocuparam o papel de cortesãs, como Elpinice, também gozaram de maior prestígio. Elas eram promíscuas e sua conduta contrariava os padrões normais da época.

“Em geral, os gregos parecem ter considerado a atividade sexual como algo normal, mas com estrito controle das mulheres, regulação cujo intuito era concentrar a participação feminina na reprodução e fidelidade. Os homens dispunham de maior liberdade de ação e tinham à disposição os serviços de grupos especiais de mulheres, mas também faziam uso de outros meios aprovados. Contudo, mesmo a sexualidade masculina podia ser influenciada por uma preocupação bastante difundida com o excesso de prazer: os gregos acreditavam na importância da moderação em todas as áreas e, havia a ideia de que os orgasmos podiam entorpecer a capacidade intelectual pelo menos temporariamente”
(pp. 57-58)

É claro que a emancipação da mulher não se reduz à sua emancipação sexual, ou seja, a conquista de direitos sobre o domínio do próprio corpo e a liberdade de expressão de sua sexualidade; sua emancipação contou com reivindicações e lutas nos campos políticos, culturais, ideológicos e econômicos. Decerto, o acesso crescente à educação e ao mercado de trabalho (ocupando funções que, outrora, lhes eram vedadas), não sem a luta incessante por condições igualitárias de direitos (como salário igual ao dos homens, por exemplo), a luta por maior participação política (que culminou com a ascensão ao poder presidencial, no Brasil, por exemplo, de uma mulher) foram determinantes para sua liberação. Educação e trabalho (não-alieanado, dirão os marxistas) sempre estiveram e estarão na dianteira no longo processo de emancipação não só das mulheres, mas do gênero humano. Nesse sentido, a emancipação feminina deve não só representar, mas também criar condições para a emancipação do próprio gênero humano – tese com a qual as feministas, atualmente, parecem estar de acordo.
Todavia, como vimos, a sexualidade sempre foi um campo de tensões entre os gêneros e sempre serviu de meio para conservar certas condições de submissão, exploração e opressão em que vivia a mulher e que contribuiriam mais tarde para estabelecer o sexismo, mais uma dentre as muitas formas de preconceito, as quais as sociedades modernas têm-se encarregado de enfrentar.