sábado, 12 de março de 2011

"O homem é tão bem manipulado e ideologizado que até mesmo o seu lazer se torna uma extensão do trabalho." (Adorno)

   O ideológico e a indústria cultural: um desafio pedagógico


São os homens, envolvidos num processo de produção material, que fazem a história da humanidade. O homem não se define apenas enquanto “ser”, mas, mormente, por seu “saber”. O homem é um ser natural humano que age tanto como “ser” quanto por seu “saber”.
Se lançarmos olhares sobre a organização dos homens no processo de produção, ao longo da história, não nos será custoso verificar que a humanidade é marcada por divisões contraditórias, que se caracterizam por lutas e conflitos que fazem mover a história: alguns são escravos; outros, senhores; uns são nobres; outros, servos; uns são operários, outros, patrões. Destarte, consoante ensinava Marx, a luta de classes é o motor da história.
É consabido que o sistema capitalista é, essencialmente, explorador. No capitalismo, tudo se transforma em mercadoria, inclusive os homens. No modo de produção capitalista, o operário vende sua força de trabalho, que se torna, pois, uma mercadoria, em troca de um salário. A função da mercadoria é atender a uma necessidade. No tocante à recepção pelo consumidor, deve-se ficar claro que essa necessidade é fabricada: oferecem-se as mercadorias aos indivíduos de tal sorte, que eles são levados a acreditar em que elas satisfazem suas necessidades. Há, no ato de consumir, uma satisfação que não se restringe ao objeto consumido, mas que transcende ao deleite proporcionado por ele. A satisfação, ou o gozo, reside no próprio ato de consumir – ato a que os indivíduos se abandonam através de uma vontade que atende aos imperativos do mercado. O consumismo, assim, levaria a um anestesiamento da consciência das massas.
A par do valor de uso de uma mercadoria, há seu valor estético. Tome-se a mercadoria “tênis”, por exemplo. Essa mercadoria tem um valor de uso, a saber, serve para calçar nossos pés. No entanto, não compramos tênis apenas pela razão de que eles servem para proteger nossos pés ou porque são necessários à mobilidade social (trabalhar, estudar, ir ao mercado, etc.); compramo-los também porque são sofisticados, porque exercem um efeito estético sobre nós. O acabamento da confecção, o designe, as cores, e outros recursos tecnológicos empregados, bem como a marca do fabricante são elementos que determinam a compra de um dado tênis. O tênis reveste-se, assim, de valores sociais referentes ao apelo estético que possui.
Para que se possa compreender o funcionamento das trocas de mercadorias no sistema capitalista, considere-se que, nas sociedades primitivas, um indivíduo que cultivasse abóboras podia trocá-las por outra mercadoria de que necessitasse (um tecido de linho, por exemplo). Todavia, não é o valor de uso que determina a troca, ou seja, que serviria de parâmetro para que se trocasse um par de sandálias por dois quilos de farinha, por exemplo.  Impunha-se estabelecer uma medida comum de troca. Essa medida comum é a quantidade de tempo empregado e necessário para a confecção da mercadoria. Assim é que, se o trabalho de um sapateiro, em termos de consumo de tempo, é maior que o de uma costureira, então é justo que um par de sapatos seja trocado por duas camisas. Ora, a confecção dos sapatos exigiu um consumo de tempo maior; logo seu valor de troca deve ser maior.
Hoje, ninguém troca mais um quilo de açúcar por um quilo de arroz, por exemplo. O dinheiro é o meio pelo qual as trocas são realizadas. Cabe lembrar que o preço de uma mercadoria não resulta exatamente de seu valor de troca; na verdade, na determinação do preço, entram fatores tais como custo da matéria-prima, tempo gasto na sua produção, produção e manutenção dos meios de produção, etc. Tais fatores constituem o chamado custo de produção. Na sociedade capitalista, é raro encontrarmos um sapateiro que fabrica calçados; em geral, o que se nota são indústrias de calçados.
Considere-se, agora, a estrutura de uma fábrica de calçados. Essa fábrica pertence a alguém. O dono da fábrica é que possui o capital, ou seja, ele é dono dos meios de produção e das mercadorias. É ele que comprará o couro e contratará os trabalhadores para confeccionar os sapatos. Terminada a confecção de um par de sapatos, por exemplo, o capitalista não poderá vender a mercadoria pelo valor resultante do preço do couro somado ao preço das horas de trabalho gastas, porque, senão, não obterá lucro algum. Para obter lucro, ou ele deverá vender o produto por um preço maior (o que nem sempre é possível, em virtude das condições do mercado), ou ele deverá pagar aos seus empregados um salário menor. Assim, se ele conseguir que os trabalhadores produzam dez pares de sapatos por dia e recebam apenas o correspondente ao valor (trabalho) acumulado em cinco pares de sapatos, o valor concentrado nos outros cinco redundará em lucro. Assim, no modo de produção capitalista, há um tempo de trabalho excedente não-pago; a diferença existente entre o salário pago aos operários e o valor de trabalho acumulado na produção da mercadoria constitui a mais-valia. A mais-valia, base do regime capitalista e prática econômica de exploração, tornou-se possível em um contexto sócio-histórico em que os trabalhadores, desapropriados dos meios de produção, reificados nos ambientes de trabalho, só possuíam a sua própria força de trabalho, a saber, a sua própria capacidade de trabalhar, como um produto passível de venda.
 Tomemos para reflexão o conceito de Indústria Cultural, doravante. A idéia fulcral que subjaz ao conceito de Indústria Cultural é a que toca à expansão da lógica da mercadoria para as esferas culturais. Assim, ao atuar na realidade humana e ao produzir novas necessidades, a Indústria Cultural oferece entretenimento com vistas a ocultar a contradição que resultaria da diminuição do tempo de trabalho. A Indústria Cultural impõe seu esquematismo aos produtores, reificando os homens, tornando-os peças da produção contínua e ampliada do capital. Avaliando a influência da televisão como parte do sistema da Indústria Cultural na vida cotidiana dos indivíduos, Renato Franco, em A televisão segundo Adorno: o planejamento industrial do “espírito objetivo”, artigo publicado no livro A Indústria Cultural hoje (2008: 113), escreve:


“Ela [a televisão] se insere no universo da diversão e, nessa medida, parece se oferecer ao espectador com a promessa de que irá arrancá-lo do sofrimento imposto diariamente pelas penosas exigências do processo de trabalho, quer sejam estas físicas ou psicofísicas”.



O autor observa ainda que se trata de uma oferta ilusória que reforça a tendência anti-intelectualista da sociedade e que, oferecendo a diversão como uma espécie de subterfúgio às agruras do dia-a-dia, contribui fundamentalmente para a restituição da força de trabalho. A diversão é, assim, uma extensão do tempo de produção. Segundo Adorno, a diversão implica resignação. Tanto o processo de trabalho mecânico quanto a diversão dispensam a atividade do pensamento. Aliás, a televisão não reprime o exercício do pensamento, da reflexão; na verdade, ela não o exige. Diante da televisão, basta aos espectadores deixar-se embriagar pelo fascínio das imagens, que se transformam na totalidade do real. A fronteira entre a imagem e a realidade aparece à consciência de modo atenuado: a realidade produzida pela televisão acaba por se tornar, para os telespectadores, o próprio real. Nesse sentido, pode-se dizer, com Adorno, que a televisão promove a regressão da consciência.




“Essa regressão da consciência não é produzida, contrariamente ao que estamos acostumados a pensar, apenas pelo suposto baixo nível cultural impingido pela televisão comercial aos seus consumidores, mas, sobretudo, pelo conjunto dos aspectos implicados no consumo doméstico desse aparato tecnológico.”
(Franco, 116)


Tomando-se a atuação da Indústria Cultural no âmbito cultural, cabe observar que a cultura, pela ação desse sistema de entretenimento e manipulação social, sofre um processo de mercantilização, para cujo desenvolvimento concorrem a racionalidade da produção e a indústria. Assim, os vínculos culturais se revestem de homogeneidade e a Indústria Cultural confere a tudo um ar de semelhança. A dinâmica da Indústria Cultural se assenta na necessidade de repetição ilimitada e incessante de certos produtos. Essa repetição massacrante se observa nos programas de televisão, nas programações de rádio e em toda a indústria do entretenimento. Novamente, aqui, vale notar que a repetição engendrada pela Indústria Cultural, que martela na consciência dos indivíduos a necessidade de consumo, está relacionada à regressão dos nossos sentidos e de nossa condição humana – condição que se erige sobre duas faculdades especificamente humanas: pensar e saber.
No tocante à manipulação ideológica da Indústria Cultural, conforme já foi observado, os bens de consumo que são oferecidos às pessoas, apenas aparentemente atendem a necessidades que, por assim dizer, emanam delas. Os bens culturais são, na verdade, impostos como se fossem reivindicados pelos indivíduos. Através de uma rede de manipulações, na qual se incluem pesquisas de mercado promovidas pelos agentes da Indústria Cultural, vai-se determinando para toda a sociedade o que se deve fazer, como se deve fazer, o que se deve pensar, como se deve pensar, o que se pode ou não desejar, etc. Por isso, insistimos em que as supostas necessidades do público consumidor são, na verdade, imposições, são fabricadas por todo um complexo de ações institucionais, que influenciam o inconsciente do sujeito, fazendo-o acreditar que deseja determinado produto, que necessita consumi-lo, que se trata de algo indispensável a sua existência.
A Indústria Cultural é responsável por produzir indivíduos subjetivamente esvaziados que, no momento em que consomem, não só buscam uma identificação narcísica com o objeto manipulado, mas também se submetem docilmente aos imperativos do mercado.
Doravante, vamo-nos ocupar com um elemento das práticas sociais responsável pelo obscurecimento da realidade, ou seja, graças ao qual os homens representam para si a sua relação com as suas reais condições de existência: a ideologia. Portanto, na representação ideológica, consoante ensina Althusser, não é a realidade tal como é produzida pelos homens que se representa, mas a relação imaginária dos homens com sua própria condição real de existência.
Vamos assumir que a ideologia é um dos meios usados pelas classes dominantes para exercer sua dominação. A ideologia mascara as reais condições de existência dos homens. Obscurece as contradições, oculta a exploração do modo de produção capitalista. A ideologia se sustenta sobre a suposição de que as idéias existem em si e por si mesmas e sobre a separação entre trabalho material e trabalho intelectual, ou seja, entre aqueles que executam tarefas e aqueles a quem compete a produção das idéias, a quem cabe “pensar”. O trabalhador é, então, aquele que não deve pensar; deve tão-só despender seu vigor no processo de produção de mercadorias; o “pensador”, a seu turno, é aquele que, não trabalhando, se encarrega de produzir idéias.
Vamos adotar, para efeito de reflexão, o conceito marxista de ideologia em cujo cerne se acha a idéia de ocultação da realidade. A ideologia, consoante ensina Marilena Chauí (1980: 129), constitui:


“um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (idéias, valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e com devem fazer. (...) A função da ideologia é a de apagar as diferenças como de classe e de fornecer aos membros da sociedade o sentimento da identidade social, encontrando certos referenciais identificadores de todos e para todos, como, por exemplo, a humanidade, a liberdade, a igualdade, a nação ou o Estado”.



Fique claro, pois, que a ideologia é, por natureza, hegemônica, já que, necessariamente serve para estabelecer e sustentar relações de dominação e, assim, constitui um instrumento de reprodução da ordem social que favorece a grupos dominantes.
Embora nos situemos na concepção marxista de ideologia, colhemos a contribuição do filósofo Mikhail Bakhtin que, ao tratar do conceito de ideologia, procura corrigir o equívoco perpetrado pelos marxistas, ao sugerirem que a relação entre a infra-estrutura e a superestrutura é direta. Em outras palavras, Bakhtin rever a proposição marxista, segundo a qual os acontecimentos da estrutura sócio-econômica repercutem imediatamente na esfera da superestrutura (em que se acham a cultura e a ideologia), situando a questão da ideologia não na consciência do sujeito, tampouco num universo supra-individual e transcendente, mas na esfera do cotidiano, o que o leva a propor uma ideologia do cotidiano. A ideologia do cotidiano está em relação dialética com a ideologia oficial (a das classes e instituições dominantes). A ideologia do cotidiano é (re)produzida nos encontros casuais do dia-a-dia, nas esferas marcadas pela proximidade com as condições de produção e reprodução da vida.
Destarte, de um lado, se acha a ideologia oficial e dominante relativamente estável; de outro lado, a ideologia do cotidiano, relativamente instável. Ambas  em relação recíproca, constituindo o contexto ideológico pleno e único, inserido no processo global de produção e reprodução social.
Como adotássemos a perspectiva de Bakhtin, ao conceito de ideologia citado anteriormente deve acrescer-se a idéia de que a ideologia é a expressão de uma tomada de posição determinada. Essa tomada de posição redunda na adoção de uma perspectiva de classe, ou seja – considerando-se que o discurso é o lugar privilegiado da manifestação ideológica -, ao tomarmos posição em face de um assunto, de uma questão qualquer; enfim, ao participarmos das múltiplas práticas de linguagem, falamos a partir de um determinado lugar social, adotamos determinadas perspectivas, que, a seu turno, dizem respeito a posições de classes em conflito.
Tendo em conta que o discurso é o “lugar” da constituição do sujeito e da manifestação da ideologia, impõe-se considerar, em consonância com a perspectiva de Bakhtin, a natureza ideológica da palavra. Vamos assumir que toda palavra é signo ideológico. Em toda palavra utilizada, inscreve-se um “ponto de vista”. Toda palavra é tecida por inúmeros fios ideológicos, já que, ao tomar a palavra, o sujeito representa a realidade a partir de um lugar valorativo. A palavra acumula, assim, “as entoações do diálogo vivo dos interlocutores com os valores sociais, concentrando em seu bojo as lentas modificações ocorridas na base da sociedade (...)”. (Stella, 2005: 178)
É preciso ter em conta, quando se considera o papel da palavra nas relações humanas, que a palavra é responsável pelo contato entre a consciência do sujeito – consciência cuja realidade é o signo – e o mundo exterior à mente, que também é constituído de palavras. A consciência é construída discursivamente, ou seja, pela inter-ação com o outro pela palavra.
Outrossim, na discussão sobre a ideologia, devemos reconhecer que o meio social envolve por completo o indivíduo. O sujeito tem natureza sócio-histórica e é função das forças sociais. O indivíduo se torna sujeito em virtude da interpelação ideológica, que o impele a tomar uma posição determinada.
Bakhtin ensina que, no nível da ideologia do cotidiano, as atividades mentais e a consciência ainda não ganharam um revestimento ideológico nítido. É somente no estrato da ideologia oficial que os conteúdos ideológicos ganham mais densidade e concretude, já que terão passado por todas as etapas de objetivação social, penetrando no eficiente sistema ideológico especializado e formalizado da arte, da moral, da religião, do direito, da ciência, da escola, da literatura, etc. À medida que as interações, no nível do cotidiano, se reiteram, reproduzindo padrões, vão-se integrando no sistema ideológico que se vem formando num determinado grupo social; assim, nos estratos superiores da ideologia do cotidiano, se consolidam as enunciações, as representações, que, então, se integram completamente ao sistema ideológico social.
Esperamos que fique elucidada a idéia de que o modo como os homens pensam, os conteúdos de sua fala refletem o modo como representam a sua relação com as suas reais condições de existência. Nossas opiniões, concepções, crenças sobre o real, sobre as relações sociais são produzidas nas práticas sociais, são produtos do meio sócio-cultural e ideológico em que nos situamos. Nosso ser é modelado pelo sistema social. Em suma, convém atentar para as palavras de Valdemir Miotello, que, em Bakhtin – conceitos-chave (2005: 176), escreve:


“(...) a ideologia é o sistema sempre atual de representações de sociedade e de mundo construído a partir das referências constituídas nas interações e nas trocas simbólicas desenvolvidas por determinados grupos sociais organizados. É então que se poderá falar do modo de pensar e de ser de um determinado indivíduo, ou de determinado grupo social organizado, de sua linha ideológica, pois que ele vai apresentar um núcleo central relativamente sólido e durável de sua orientação social, resultado de interações sociais ininterruptas, em que a todo momento se destrói e se reconstrói os significados do mundo e dos sujeitos”.


Para efeito de discussão, basta, de início, reter que as ideologias são produzidas nas práticas sociais, por homens sócio-historicamente situados. As idéias que nos ocorrem, as perspectivas que assumimos nas práticas discursivas não derivam de espaços transcendentes, “imaginários”, não brotam em nossa consciência, como a água emana de uma fonte. Não somos a origem do que dizemos: o sujeito não é a origem do seu discurso – tem apenas a ilusão de sê-lo;  ele é uma espécie de estação dos discursos; nas práticas discursivas, estamos constantemente reproduzindo outras práticas discursivas, adotando idéias, opiniões, argumentos, perspectivas veiculadas por outros discursos circulantes. A forma como representamos discursivamente a realidade é resultado do modo como nos relacionamos com essa realidade.
Um conceito que não pode ser ignorado, na consideração da ideologia, é o de alienação. A alienação torna possível o fenômeno ideológico. Consiste a alienação no fato de os homens não se reconhecerem como agentes sociais da história, como agentes produtores de suas próprias condições de existência. Ao contrário, alienados, eles se consideram produzidos por tais condições, eles se reconhecem como meros produtos da realidade, e não mais como produtores dela. A alienação inverte a relação entre realidade e produtor, de sorte que o produtor (homem) se torna o produto da realidade, a qual, por sua vez, torna-se uma entidade supra-individual que o domina, que o oprime, que o controla e esmaga. Os homens, alienados, atribuem a origem da vida social a causas “superiores”, sobre as quais eles não têm controle, tais como “deuses”, “natureza”, “razão”, “Estado”, “destino”, etc.
A título de ilustração de perspectivas ideológicas, assumir que o papel de mãe é um dom natural de toda mulher é assumir uma posição ideológica, ou seja, uma perspectiva afinada com os interesses das classes dominantes, uma vez que oculta o fato de que ser mãe é um papel determinado socialmente, e não um “dom natural”. Tampouco é uma posição a que toda mulher está predestinada. De certo modo, “ser mãe” não deixa de ser uma imposição social, já que existem expectativas sociais que acabam por “forçar” as mulheres a assumir a posição de “mãe”. Considere-se ainda dois temas tabu na sociedade, a saber, a virgindade das meninas e a homossexualidade. Tomemo-los no âmbito da família pequeno-burguesa e reconheçamos, de imediato, que, não obstante a verborragia institucional que acarretam, a valorização da virgindade das meninas e a repressão ao homossexualismo, quer entre os meninos, quer entre as meninas, têm razões que permanecem sob o véu ideológico e que, portanto, são ocultadas. Na família pequeno-burguesa, é necessário conservar a autoridade paterna e a domesticidade materna como forças para retardar o ingresso dos jovens no mercado de trabalho, os quais serão úteis quando se tornarem arrimos econômicos, garantindo, assim, a unidade familiar. Por um lado, a defesa da virgindade está em consonância com a necessidade de evitar o fracionamento do capital: evita-se, assim, a constituição de novas famílias e a partilha do patrimônio acumulado decorrente da nova condição. Por outro lado, a repressão ao homossexualismo está afinada com o fato de que, nas relações homossexuais, não há reprodução e, portanto, não há vínculos familiares, que permitirão a reprodução do capital, pela geração de novos indivíduos para a inserção no processo de produção capitalista.
Se a ideologia mostrasse, por exemplo, que a repressão sexual e a conservação da virgindade estão ligadas à necessidade de conservar a energia vital para o trabalho, já que a atividade sexual diminui a rentabilidade e produtividade do trabalho alienado, ela se esfacelaria, não seria mais ideologia. Isso se deve ao fato de que a ideologia é, necessariamente, um sistema coerente e racional lacunar. Em outras palavras, o discurso ideológico é, por excelência, um discurso repleto de silenciamentos, de vazios, de lacunas. A ideologia é, assim, coerente “não apesar das lacunas, mas por causa ou graças às lacunas” (Chauí, 1980: 130).
Conquanto não nos seja possível discorrer sobre esta questão neste texto, esperamos que a reflexão que desenvolvemos até aqui faça erigir a tese de que uma educação que se pretende transformadora tem de propiciar condições para a problematização das visões de mundo, das perspectivas ideológicas assumidas discursivamente e incorporadas pelos aprendizes de modo quase inconsciente. O trabalho com a prática de leitura deve atuar no nível da estrutura ideológica do texto, patenteando aos alunos as lacunas, os silenciamentos, as posições ideológicas assumidas pelo sujeito – sujeito que se apresenta no discurso de formas várias.  Durante a prática pedagógica, o professor deve-se esforçar por levar os alunos a se aperceberem do aparelhamento ideológico de que se serve a sociedade com vistas à conservação do status quo, pela imposição de padrões, de modelos de comportamento, atitudes, crenças, etc.

quinta-feira, 3 de março de 2011

O outro escondido em nós

             

Freud e a condição humana
  Quem é o homem?



     Gostaria de principiar este texto, convidando o leitor a pensar no quanto, nós, seres humanos, somos esquisitos, estranhos e absurdos. Quantas pessoas conhecemos que se mostram insatisfeitas com tudo? Quantas pessoas conhecemos que vacilam entre ação e omissão? Quantas pessoas não conseguem explicar os seus sentimentos? Quantas pessoas não sabem o que desejam? Veja-se o que nos ensina o psiquiatra Fábio Herrmann. O trecho foi colhido de um artigo que se acha no livro da série primeiros passos, da companhia círculo do livro.

“(...) os homens divertem-se demais com os próprios pensamentos. São os únicos bichos, ao que se sabe, tão estúpidos que podem ficar imaginando e esquecer-se de comer; e, o que é pior, quando pequeninos e famintos, parece que conseguem ficar sonhando que estão a comer e contentar-se algum tempo com isso (...)”.
(pp. 53-54)


Quando preguei meus olhos nesse excerto, dei-me conta, com estúpida satisfação, de que eu me identifico com os homens que se distraem com seus próprios pensamentos e se esquecem de se alimentar. Se, por um lado, a razão e o intelecto conferem-nos uma posição especial na filogenia das espécies; por outro lado, parece que nos tornam seres bem estúpidos, na medida em que oferecem aos nossos impulsos primários substitutos de espécie vária, enganando-nos a nós mesmos por alguns instantes.
Reza a psicanálise que os homens se negam a reconhecerem-se como agentes responsáveis pela criação do mundo. Esse mundo domesticado, fabricado, transformado incessantemente, produto do desejo humano, gera irritabilidade nos próprios homens, justamente no momento em que se dão conta de que esse mundo corresponde bem ao seu desejo. Estranho? Freud explica.
A psicanálise ensina-nos que os homens não sabem bem o que desejam, que eles não desejam realmente o que querem. Nosso verdadeiro desejo, como se verá, permanece inconsciente, conquanto se manifeste sob outras formas à vida psíquica. Convém atentar para as palavras de Fábio Herrmann a seguir:

“(...) O mundo edificado por nossa cultura humanizou-se tanto, no sentido de ser tão fabricado, que sua sombra, o lado desconhecido do desejo humano, acabou por aparecer mais do que devia. O real começou a ficar um tanto duvidoso, e o homem a ver-se, a malgrado seu, cada vez mais absurdo para si mesmo.”

A psicanálise se ocupará com o estudo do inconsciente, visando a contribuir para que o homem, apercebendo-se do absurdo que o constitui essencialmente, reconcilie-se com esse absurdo e consigo mesmo. Uma leitura rápida em qualquer texto que trate de psicanálise nos levará à compreensão de que a consciência humana é determinada por impulsos inconscientes, ou seja, a vida consciente é determinada pela vida inconsciente. Agimos motivados por forças que não dominamos e das quais não estamos conscientes.
A essa altura, convém referir as três fontes de sofrimento humano, segundo Freud. Leia-se o seguinte nesse tocante, em O mal-estar na cultura (2010):

“O sofrimento ameaça três lados: a partir do próprio corpo, que, destinado à ruína e à dissolução, também não pode prescindir da dor e do medo como sinais de alarme; a partir do mundo externo, que pode se abater sobre nós com forças superiores, implacáveis e destrutivas, e, por fim, das relações com os outros seres humanos”
(pp. 63-64)

Em suma, o sofrimento humano advém de três fontes: da fragilidade do corpo; da força destrutiva e inexorável da natureza; e dos conflitos das relações sociais.


O animal humano

A razão, a linguagem e a cultura são instâncias do universo humano responsáveis por atribuir aos homens um lugar de destaque na cadeia evolutiva. Diferenciamo-nos, fundamentalmente, das demais espécies animais porque somos capazes de falar, de fazer cultura, de pensar, de ter consciência da morte, de ter, enfim, autoconsciência.
Um ser humano, ao nascer, já encontra um mundo fabricado que veio antes dele, cabendo a ele adaptar-se a esse mundo para poder sobreviver. A despeito da especialidade do ser humano, todo bebê, ao nascer, é frágil e vulnerável. Ele não consegue prover sozinho sua própria alimentação, não é capaz de se defender contra os perigos do mundo real; ao contrário, a maioria dos animais é auto-suficiente ao nascer. O animal é dotado de instintos, mas não o homem: este tem impulsos, reflexos, necessidades, reunidos sob o rótulo de pulsões. Para sobreviver, os seres humanos precisam passar por vários  processos de aprendizagem ao longo da vida. Os animais já estão condicionados geneticamente para procriar na época adequada, para buscar seu alimento, etc. O homem tem impulso para sobrevivência, é potencialmente capaz de sucção (reflexo necessário para ingerir o leite materno), necessita de alimentação, etc, mas para satisfazer às suas necessidades de sobrevivência terá de aprendê-lo.
Os homens aprendem a sobreviver em contato com as normas e regras de sua sociedade que, através de processos formativos educacionais, vai “lapidando” a criança, adaptando-a ao meio social complexo, já então construído antes de seu nascimento. Os homens, pela aprendizagem, que é um processo pelo qual se modifica o comportamento na experiência, ajustam-se à estrutura de sua sociedade. Convém dizer que o animal, como orangotangos e chipanzés, por exemplo, também podem aprender, mas são menos capazes para tanto, porque lhes falta a capacidade de raciocínio, própria da espécie humana. Também, aqui, há que reconhecer o papel da linguagem, no processo de adaptação da criança à sua sociedade. Nesse tocante, dá-nos a saber a psicóloga Maria Luiza Teles, no livro da mesma série:

“(...) se a criança usa uma palavra ligada ao sexo, em nossa cultura, ela é reprovada com uma cara fechada, uma bofetada, palavras de repressão ou mesmo um castigo. Ela aprende, então, três coisas: que a palavra não deve ser dita; que, se for dita, será considerada uma agressão; e, ainda, que o sentido implícito, sexo, não é algo bem aceito em sua sociedade”.
(p. 21)

Conquanto a humanidade se orgulhe de faculdades como a razão e o pensamento, dever-se-á notar que a psicanálise ensina que a consciência não pode tudo e que ela representa uma pequena parte da estrutura psíquica humana. Freud, aliás, ensinou que o “eu” não é “senhor de sua própria casa”. Foram três os golpes sofridos por nosso narcisismo:

1) Copérnico provou que a Terra não era o centro do universo, abalando a crença antropocêntrica, segundo a qual os homens são o centro do mundo;

2) Darwin mostrou que os homens descendem dos primatas e os reduziu, assim, apenas a um estágio da cadeia evolutiva das espécies, e não seres especiais criados por um Deus para dominar a natureza;

3) Freud mostra que o eu não é o senhor de sua vida psíquica e que a consciência é uma pequena parte do complexo mental.

No que toca ao abalo 3), é interessante notar que há pensamentos que não são de responsabilidade do ego (eu). Muitos pensamentos escapam ao seu controle.




O inconsciente

Do que se ocupa a psicanálise? Em geral, percebemos uma preocupação constante dos psicanalistas com os sonhos; de fato, os sonhos constituem um meio importante para se chegar à compreensão de outra realidade. Essa outra realidade, que é o objeto de estudo da psicanálise, chama-se inconsciente. O inconsciente só é acessível através de um método de interpretação psicanalítico desenvolvido por Freud. Esse método consiste em levar o paciente a fazer associações entre palavras ou lembranças. O psicanalista diz ao paciente uma palavra e pede que este diga a primeira palavra que lhe vem à mente. Em geral, o paciente reage às palavras, deixando de pronunciar a que lhe vem à mente, censurando-a por algum instante. Circunstâncias há em que o paciente fica muito agitado e fala muito, quando da associação das palavras. Por esse método, busca-se compreender a vida inconsciente do paciente.
Antes de discorrer sobre o inconsciente, cabe notar que as experiências e lembranças que podem ser trazidas à consciência em algum momento se dizem pré-conscientes. O inconsciente abriga, assim, os estados mentais que não podem ser recuperados, a saber, trazidos à consciência em circunstâncias normais.
O que é o inconsciente? É uma hipótese teórica e não uma coisa localizada no fundo de nossa cabeça. É um sistema lógico que, em tese, opera em nossa mente. Esse sistema explicaria os motivos que nos impelem a agir e reagir de tal ou qual modo. O inconsciente constitui-se, assim, de forças que impulsionam a vida mental. Essas forças ou pulsões dizem respeito a necessidades básicas do organismo humano, tais como fome, sexo, curiosidade, etc. O inconsciente apresenta uma lógica diferente: nele cifra-se o que, pela interpretação psicanalítica, busca-se decifrar. Essa interpretação visa a explicar o processo que deu origem a uma ideia ou ação.
Um conceito importante para a compreensão do inconsciente é a repressão. Experiências ou pensamentos que se mostram incompatíveis com os padrões sociais tendem a ser reprimidos, ou seja, afastados da consciência. O eu foge a eles. Trata-se de um mecanismo de defesa mediante o qual uma pessoa busca evitar conflitos interiores.
As pulsões do inconsciente estão, assim, reprimidas, visto que a sua manifestação, em geral, são contrárias às normas de boa educação e da civilização. Por exemplo, um desejo forte de pintar a sala com fezes, comum entre as crianças, se realizado, causaria espanto e punição social. Assim, tal desejo precisa ser disfarçado (sublimado) e censurado, para que não chegue à consciência.
No tocante aos sonhos, Freud, ao tentar compreendê-los, assumiu o pressuposto de que eles fazem sentido, embora esse sentido nos esteja velado. O procedimento adotado pelo pai da psicanálise era o seguinte: considerando várias partes de um sonho, levava o sonhador a associar ideias e lembranças. Assim, pôde concluir que os sonhos dizem respeito a acontecimentos do dia anterior e, ao mesmo tempo, estão relacionados a comportamentos de nossa primeira infância. Os sonhos são formas de linguagem simbólicas, materializados em imagens. Para Freud, todo sonho é uma tentativa de realização do desejo. É somente pela interpretação das palavras, dos sonhos, das lembranças e gestos do paciente que se tem acesso à sua vida inconsciente.
Deve-se ficar claro que, ao contrário do que acredita o senso-comum, Freud, embora tenha dado especial destaque à sexualidade, conceito que foi por ele ampliado, na explicação dos fenômenos psíquicos, é errôneo dizer que ele procurou explicá-los, por uma espécie de reducionismo, pelo papel do sexo na vida dos homens.  A sexualidade, portanto, passou a recobrir toda forma de prazer que envolve o corpo. Ensinou que os bebês encontram prazer, primeiramente, nos estímulos orais (fase oral) e, posteriormente, nos estímulos anais (fase anal). Também coube a ele advogar que o menino sente desejo sexual pela mãe (complexo de Édipo), ao mesmo tempo em que teme a castração pelo pai.
O que Freud defendeu foi que as repressões encontram origem na primeira infância (até os cinco anos) e são, basicamente, de natureza sexual. Vou desenvolver esses pensamentos na seção seguinte.




O aparelho psíquico

A estrutura de nossa mente se organiza em três instâncias: o ego, o id e o superego. O ego é o “eu”, portanto, a consciência. É a sede de quase todas as funções mentais. É o ego o responsável pelo contato com a realidade exterior. É ele também responsável pelos atos mentais, tais como perceber, pensar, julgar, etc. O ego é submetido aos desejos do id e à censura do superego. Sua realidade fundamental é a angústia, já que, não podendo manifestar os desejos do id, que o tornariam imoral e destrutivo, e não podendo submeter-se totalmente ao superego, sob pena de enlouquecer, precisa adequar-se à realidade do mundo (o ego se guia pelo princípio de realidade), para não ser aniquilado. O ego, portanto, busca objetos que satisfaça o id, sem transgredir as imposições do superego.
O que são o id e o superego? O id é um substrato inteiramente inconsciente, dele provêm as pulsões. É a instância original da psique; ao nascer, segundo Freud, o indivíduo é todo id, que é reorganizado à medida que esse indivíduo é submetido aos processos formativos de sua sociedade. O id é constituído de pulsões, que são os impulsos e desejos inconscientes. A mente humana se estrutura de tal modo que busca evitar o desprazer; nossa vida psíquica é regida pelo princípio de prazer: buscamos experimentar o prazer constantemente. O id é a energia que impulsiona a busca pelo prazer. As pulsões são de natureza sexual e elas são designadas pelo nome libido. O id é um reservatório da libido. A sexualidade não se restringe, assim, ao ato sexual, mas compreende todos os desejos que exigem satisfação e podem ser satisfeitos em qualquer parte de nosso corpo.
O superego, a seu turno, é uma espécie de juiz social; é a voz da censura e da repressão interiorizada na psique por força dos processos formativos impingidos pela sociedade. Particularmente, o superego representa a repressão sexual. O superego é consciência moral e se manifesta por meio de interdições e proibições que dada cultura impõe ao indivíduo. O superego forma-se entre os 6 e 7 anos e o início da puberdade. Embora aja como uma consciência moral, o superego é fundamentalmente inconsciente.
A psicanálise reza que muitas doenças psíquicas e distúrbios de comportamento estão em nossa sexualidade na tenra infância. Freud apontou três fases da sexualidade infantil. Essas fases estão relacionadas ao desenvolvimento do id entre os primeiros meses de vida e os 5 ou 6 anos. A primeira fase é a fase oral. Nessa fase, o desejo e o prazer estão na boca e na ingestão de alimentos, e o seio materno é objeto de prazer (ou um de seus substitutos, a saber, a chupeta, a mamadeira ou o dedo). A segunda fase é a fase anal, na qual a criança sente prazer na excreção e na retenção das fezes. Nessa fase, os objetos de prazer e o desejo estão ligados ao órgão genital masculino, ou seja, ao falo. O menino e a menina só reconhecem o falo, nessa fase. A mãe torna-se o objeto de prazer do menino; e o pai, o da menina.
É na terceira fase que surge um fenômeno que determina toda a vida psíquica, a saber, o complexo de Édipo (suponho que o leitor conheça a tragédia de Édipo). O complexo de Édipo é o desejo incestuoso da criança pelo pai ou pela mãe. Esse desejo é que determinará a totalidade de sua vida psíquica, a saúde dela depende do modo como atravessamos essa fase que, em geral, é conflituoso. O complexo de Édipo acarreta o surgimento de outro complexo, denominado de complexo de castração. Esse complexo explica o temor da criança de perder o falo ( e cabe lembrar que as meninas imaginam que também o possuem) como punição pelo desejo incestuoso pelos progenitores.
Gostaria de volver, antes de encerrar, à angústia do ego. O ego cumpre um papel importante na vida psíquica, visto que a ele cabe recalcar os desejos demasiado fortes do id, satisfazendo ao imperativo do superego. O recalcamento é, pois, uma repressão forte imposta pelo ego ao id, evitando que as pulsões deste cheguem à consciência. No entanto, cabe ao ego também satisfazer o id, sob pena de viver um profundo e constante desprazer. Nossa vida consciente normal e saudável é resultado dessa dupla função do ego, desse equilíbrio produzido por ele, quando busca interditar os desejos arrebatadores do id e, ao mesmo tempo, limitar o poder do superego. O inconsciente oferece à consciência formas compensatórias de experimentar o prazer. O substituto oferecido pelo inconsciente satisfaz o id e o superego. Constituem substitutos a chupeta, o dedo, tintas, pintura, uma pessoa amada no lugar da mãe ou do pai, além dos sonhos, lapsos, atos falhos, etc. Através deles, realizam-se os desejos inconscientes de natureza sexual. O sonho, o ato falho e os lapsos de memória indicam que nossa existência não se dá ao acaso, nossa vida é determinada (daí o determinismo assumido por Freud, segundo o qual todo evento tem uma causa) pela natureza da libido. Em nossa vida psíquica, os objetos e as pessoas se revestem de sentido afetivo-sexual, são alvo de nossa adoração ou ódio, ou são objeto de nosso temor, sem que o saibamos.
Ao mencionar o papel dos substitutos para a satisfação do id, descurei de observar que o recurso pelo qual o inconsciente oferece alternativas à satisfação do id e do superego, dá-se o nome de sublimação. Na sublimação, os desejos inconscientes são satisfeitos, pois que transformados em outra coisa valorizada positivamente: obras de arte, ciência, religião, filosofia, ações éticas, etc.
As palavras de Marilena Chauí põem termo a este texto e nos lembram que a consciência é frágil, mas, porque dotada de vontade e razão, decide aceitar ou abalar as opiniões e ideias estabelecidas:

“A consciência é frágil, mas é ela que decide e aceita correr o risco da angústia e o risco de desvendar e decifrar o inconsciente. Aceita e decide enfrentar a angústia para chegar ao conhecimento de que somos um caniço pensante”.


terça-feira, 1 de março de 2011

O ensino de língua portuguesa numa orientação funcionalista


O ensino de língua materna tem como objetivo precípuo (senão único) desenvolver a competência comunicativa dos falantes; no entanto, esse objetivo não pode ser atingido sem o reconhecimento de que todos os falantes nativos, independentemente de seu grau de escolaridade, de sua classe social, da origem cultural, de suas experiência de mundo, de sua idade, sexo, etnia, etc., sabem a sua língua materna, ou seja, possuem uma competência nessa língua. Por competência lingüística, portanto, entende-se o conhecimento intuitivo e implícito das regras gramaticais pelas quais os falantes nativos são capazes de produzir e interpretar sentenças em sua língua materna. Evidentemente, é uma definição simplista ademais, já que o conhecimento lingüístico é, decerto, muito mais complexo; todavia, mantenho-a com estar de acordo com a proposição chomskyana (1965). Fique claro que o conhecimento lingüístico do falante nativo consiste não só num conhecimento operacional (“capacidade de produção de sentenças gramaticais”), mas também num conhecimento avaliativo, por que julga certas construções como aceitáveis (isto é, produzidas de acordo com as regras da gramática1 de sua língua nativa) e rejeitam outras.

1. Veja-se no texto seguinte uma discussão sobre os conceitos de gramática.


A competência comunicativa consiste não só na capacidade de o falante codificar e decodificar as expressões lingüísticas, como também na capacidade de utilizar essas expressões de modo adequado aos fins comunicativos, nas mais diversas situações de interação. Destarte, não basta ao falante o conhecimento (implícito) das regras de sua língua para que ele seja bem-sucedido nas várias situações comunicativas, ele precisa utilizar suas produções lingüísticas de sorte, que possa participar do evento comunicativo. Em suma, dispensando-se pormenores, a competência comunicativa é a capacidade de o falante utilizar sua língua adequadamente para fins comunicativos. Com ser a língua um instrumento de comunicação fundamental na vida dos homens, cujo uso reflete, inclusive, a estratificação social, justo é que o ensino de língua portuguesa leve em conta o domínio da norma padrão como um dos meios possíveis para que o falante seja bem-sucedido interacionalmente e não o único meio  possível.
Intentando cumprir o objetivo do ensino de língua materna, proposto no limiar deste texto, será necessário ter em conta que não se poderá privar os aprendizes da apropriação de formas e usos lingüísticos prestigiosos sócio-culturalmente e, tampouco, não se poderá ensinar a língua dita padrão, especialmente em sua modalidade escrita, em detrimento de variedades não-padrão da língua falada ( e também escrita – muito embora, tradicionalmente, associe-se a idéia de língua padrão à de língua escrita, ignorando o fato de que há textos escritos vazados em variedades não-padrão, bem como há textos falados vazados em variedades padrão). O professor, concordante com a proposição aqui apresentada, esforçar-se-á por permitir aos alunos o acesso ao maior número de variedades lingüísticas possível, bem como a utilização adequada delas nas diversas situações de interação, atendendo às diversas demandas sócio-comunicativas.
Reitere-se que a escola tem por objetivo permitir o acesso dos aprendizes à norma padrão, mas, consoante propõem estudiosos como Sírio Possenti, Marcos Bagno, entre outros, não mais ensinará um padrão de língua ideal, fazendo abstração de outras variedades. Em primeiro lugar, o professor terá de reconhecer que muitas formas e usos prescritos pelas gramáticas normativas são arcaicos, portanto, não encontram repercussão no uso atual da língua. Em segundo lugar, não poderá valorizar a variedade padrão em detrimento das variedades não-padrão. Também não poderá ignorar o fato de os pontos de vista dos gramáticos serem, muita vez, conflitantes, isto é, as interpretações sobre as construções que devem ser recobertas pela norma padrão, muita vez, são divergentes.
A competência textual diz respeito à capacidade de o usuário da língua distinguir um texto coerente de um aglomerado de frase, bem como à capacidade de ele operar sobre o material lingüístico, na produção dos seus textos, realizando operações de paráfrase, resumo, ou reconhecendo a completude ou incompletude deles, ou ainda atribuindo-lhes um título adequado, a partir do qual os produz.
Há que reconhecer outrossim outras capacidades que intervêm no uso que os falantes nativos fazem de sua língua. Citem-se as seguintes:

a) a capacidade epistêmica: capacidade pela qual o usuário constrói, conserva e explora uma base de conhecimento estruturado, podendo derivar conhecimento das expressões lingüísticas, arquivar adequadamente esse conhecimento e lançar mão dele quando da interpretação de expressões lingüísticas ulteriores;
b) a capacidade lógica: valendo-se de princípios lógicos, ou seja, do raciocínio, o falante é capaz de extrair parcelas de conhecimentos de outras parcelas de conhecimento que mantém em sua memória;
c) a capacidade perceptual: o usuário se vale de suas percepções para derivar conhecimento; o conhecimento adquirido pela aplicação de sua capacidade perceptual é empregado para interpretar as expressões lingüísticas;
d) a capacidade social: diz respeito ao saber sócio-culturalmente transmitido graças ao qual o falante usa sua língua de acordo com as normas sócio-comunicativas vigentes. Ou seja, o falante sabe o que dizer e como dizer, numa determinada situação de interação.




  Tais capacidades se inter-relacionam, do que decorre a produção de um output, que pode ser importante para que as demais capacidades possam atuar.
Reconheça-se, contudo, que, a fim de levar a efeito o objetivo fundamental do ensino de língua portuguesa a falantes nativos – a saber, desenvolver a competência comunicativa desses falantes -, o professor deverá ter em conta uma outra concepção de língua, ou seja, não poderá entender apenas a língua como um sistema de signos desvinculado da realidade sócio-cultural e histórica dos seus falantes e também como “algo” estranho a eles (a saber, como uma realidade que desconhecem, que lhes é tão “misteriosa” e que deve ser “aprendida” mediante prática de exercitação contínua e exaustiva no ensino formal). O professor deve, portanto, ter em conta que a língua é um produto sócio-cultural, que varia ao longo da história de uma sociedade, que acompanha e se adapta às condições materiais e espirituais de vida dessa sociedade, que serve, entre outras funções, à função comunicativa, ou seja, permite aos membros de uma sociedade a comunicação entre si, etc. A rigor, numa perspectiva funcionalista, o professor deve entender a língua como lugar de interação, atividade social de negociação de significados, mediante a produção de textos, na qual se envolvem interactantes situados social e culturalmente. Ademais, o professor deve considerar a língua como uma propriedade cognitiva, como um conhecimento “inscrito” na mente humana e, mais propriamente, deve encarar a linguagem como uma faculdade da mente que permite aos seres humanos interpretar e estruturar a realidade do mundo, tornando-a ‘dado’ de consciência. Assim é que cada língua refletiria, a priori, uma dada visão de mundo, ou seja, deixaria entrever uma codificação (ou “recorte”) peculiar do mundo relativamente a um determinado grupo sócio-cultural. Assim também é correto dizer que o estudo das línguas pode contribuir para se entender melhor como se estrutura e funciona a mente humana. Disso se segue uma fascinante discussão sobre a inter-relação entre pensamento e linguagem, da qual não me ocuparei aqui, muito embora, como desperte bastante interesse nos estudiosos da linguagem (filósofos, gramáticos e lingüistas) há séculos, deve-se tê-la sempre em conta. Dessa questão tem-se ocupado especialmente a lingüística cognitiva.
Do exposto desse último parágrafo, depreende-se que deve estar consciente o professor de português da variação lingüística, a saber, deve ter em conta a pluralidade e diversidade inerente às línguas. Sabe-se, há muito, que o português constitui um “balaio de variedades lingüísticas”; não existe, pois, uma só língua portuguesa no Brasil. No Brasil, falam-se muitas variedades de língua portuguesa, e não há razões empíricas para a hierarquização dessas variedades, segundo parâmetros avaliativos de espécie alguma: certas formas e usos lingüísticos são considerados “ruins” ou “errados”, em virtude de uma avaliação de ordem social (e ideológica); a sociedade é que, servindo-se de parâmetros de ordem diversa (e não-lingüística!), classificam certas expressões lingüísticas como “certas” ou “cultas” e outras como “erradas”, “ruins” ou “incultas”. É consabido que, especialmente na realidade sócio-cultural brasileira, há uma relação intrínseca entre usos lingüísticos e inserção social: os usos lingüísticos desprestigiados e condenados relacionam-se às classes menos favorecidas economicamente; e os usos prestigiosos constituem marcas das classes mais prestigiosas, isto é, dominantes. Nesse tocante, diz-se, comumente, que a língua é um fator de estratificação social.
No tocante ao conceito de variação lingüística, convém ao professor familiarizar-se com as noções de registro e de dialeto.  Luiz Carlos Travaglia, em seu livro Gramática e Interação: uma proposta para o ensino de gramática (2003), reserva um capítulo em que nos apresenta uma lição sobre variação lingüística. À página 42, refere os dois tipos de variedades lingüísticas, a saber, os dialetos e os registros. Os dialetos são variedades da língua que se definem nas dimensões territorial, geográfico (ou regional) e social (nesse caso, chamam-se socioletos) e se dão em função dos usuários da língua. Os registros, a seu turno, são variedades que ocorrem em função do uso que se faz da língua, de tal sorte que a variação depende do receptor, da mensagem e da situação. Assim é que, ao se referir ao falar nordestino em face ao falar sulista, por exemplo, consideram-se, pois, dois dialetos diferentes. Da mesma sorte, quando se observa o comportamento verbal de uma determinada classe social, em contraste com o comportamento verbal de outra classe social, leva-se em conta a existência de dois dialetos sociais ou socioletos. A variação aqui ocorre em função da esfera sócio-cultural ocupada pelos usuários da língua. A gíria, por exemplo, que se define como um uso da língua próprio de um grupo social – uso por que esse grupo social se identifica e por que se “protege” da influência de outros grupos – constitui um tipo de dialeto social. No âmbito social, a variação pode dar-se em função de parâmetros como idade, sexo e função dos usuários da língua.
No tocante aos registros, importa considerar três tipos de registros: grau de formalismo, modo e sintonia. O grau de formalismo diz respeito à adequação do emprego das expressões lingüísticas às diferentes situações de interação, para atender às necessidades sócio-comunicativas esperadas. Há, pois, no grau de formalismo, uma escala de formalidade que se estende do registro familiar ao registro oratório, na modalidade oral, e do registro pessoal ao hiperformal, na modalidade escrita. A variação de modo diz respeito à oposição entre língua falada e língua escrita, de tal sorte que esta é entendida como um sistema específico, diferente do sistema da língua falada. A sitonia é um tipo de registro que orienta o uso para o ajustamento ou reformulação dos textos produzidos pelo falante, em virtude de ter em conta conhecimentos prévios sobre o seu interlocutor. Esses conhecimentos relacionam-se ao status social do interlocutor, o qual determina a seleção e o emprego dos recursos lingüísticos (não se fala com um garçom da mesma forma como se fala com um médico, por exemplo); à tecnicidade dos conhecimentos do interlocutor acerca de um determinado assunto (o professor de língua falará sobre um determinado assunto de modo diferente, caso esteja em uma conferência perante especialistas ou esteja em presença dos pais de seus alunos, etc.); à cortesia, que diz respeito à dignidade do interlocutor ou ao formalismo exigido pela situação. Por exemplo, num enterro, espera-se que alguém diga algo como (1), mas não como (2) e (3):

(1) Meus sentimentos pelo falecimento de seu marido.
(2) Meus sentimentos por seu marido ter batido as botas.
(3) Então, quer dizer que o velho abotoou o paletó de madeira?

Finalmente, cumpre mencionar a variação na dimensão da norma, que se refere ao uso lingüístico em consonância com um padrão de linguagem de prestígio. Nesse tocante, ao nos comunicarmos, tendemos a apreciar de modo positivo ou negativo as produções lingüísticas de nosso interlocutor. Consoante ensina Travaglia (2003:57), “usamos uma determinada variedade lingüística porque a julgamos apropriada para falar com aquele(s) ouvinte(s) em particular”. Essa variedade pode ser social, geográfica ou um registro técnico, cortês, etc.
Claro está que a exposição apresentada aqui do conceito de variação lingüística e de suas variedades é bastante sucinta; conveniente, contudo, para efeito de nossa proposição. Cumpre dizer, por fim, que o conceito de dialeto difere do conceito de registro, na medida em que este se refere à suposta influência do interlocutor na seleção e no uso dos recursos lingüísticos adequados a satisfazer às necessidades sócio-comunicativas em uma determinada situação, e aquele se refere ao uso da língua pelo falante, numa esfera geográfica, regional ou social. Os termos registro e variedade são empregados, normalmente, para denotar o mesmo conceito; variedade, muita vez, vale por dialeto. Comumente lê-se “dialeto regional”, “dialeto social” em face de “variedade regional” ou “variedade social”, etc.
Em que pese à confluência terminológica, convém ter em conta o seguinte conceito de variedade, colhido da obra Sociolingüística: uma introdução crítica (2002: 177):
“ sistema de expressão lingüística que pode ser identificado pelo cruzamento de variáveis lingüísticas (fonéticas, morfológicas, sintáticas, etc.) e de variáveis sociais (idade, sexo, região de origem, grau de escolarização, etc.)”.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

O não-dito

                               
        Entre guerra e paz: o não-dito


Em meio à euforia e contentamento, os acontecimentos violentos que envolveram  incursão policial e militar no chamado Complexo do Alemão (Rio de Janeiro), no ano passado, fizeram eclodir uma série de informações e discursos. Estes últimos trouxeram à tona palavras como terror, terrorismo, guerra, entre outras. Aquelas, propaladas pelos meios de comunicação, especialmente televisivos, se nos apresentavam desconectadas e fragmentadas. Eu fiquei à deriva em meio à sua enxurrada, sem ter certeza, afinal, do que era fato ou irrealidade. É provável que pessoas mais distraídas ou não experimentadas nas estratégias discursivas sequer tenham percebido o largo uso de construções linguísticas formadas com o verbo no futuro do pretérito composto (lembra? Teria dito, teria falado....). A função discursiva deste uso reside em que, através dele, o locutor não se compromete com a veracidade ou validade do que comunica; é como se ele colocasse o dito na boca de outros (“ouvi dizer...”). É uma estratégia que serve para isentar o locutor da responsabilidade pelo que diz.
Os discursos tiveram uma importância inegável, muito embora reconhecível apenas por profissionais que trabalham com a linguagem. Sabe-se que todo discurso (re)constrói o real; não o espelha. Assim é que os discursos propalados pela mídia, mormente nos dias em que se deu o conflito, exerceram, a par das forças policiais e militares, o seu poder na construção ideológica da realidade. Vale notar, de passagem, que o discurso das autoridades, sobretudo das que comandavam a tropa das polícias civil e militar, instaurou duas esferas ideológicas, necessariamente, antagônicas no imaginário social: a do Bem, representada pelas forças policiais e militares; e a do Mal, cujos representantes eram os traficantes. O modelo de mundo aí criado se espelha no modelo de mundo das histórias de super-heróis, nas quais o herói (o Bem) duela com o vilão (o mal). O herói é dotada das maiores virtudes; é todo-poderoso e incorruptível; o vilão, ao contrário, é repleto de vícios, corruptível e, embora também muito poderoso, está fadado ao fracasso. No final, o Bem sempre vence.
O discurso também exerceu uma função especial na construção de uma imagem positiva da polícia, na medida em que reforçou o apoio popular às incursões feitas no morro. O que se pretendia mostrar é que, dessa vez, o povo estava de mãos dadas com a polícia. Até cartas de agradecimento e incentivo foram encaminhadas a repórteres para que seu conteúdo fosse lido ao vivo, embora também incluíssem uma boa dose de receio do abandono. Instaurou-se, por força do discurso, uma atmosfera amistosa, em que se reiteravam valores como união, parceria, apoio e co-participação popular.
Não obstante, não tardaram em surgir algumas denúncias de abuso de poder policial. Isso já foi suficiente para se instaurar outra atmosfera, certamente sombria, densa, pois que repleta de dúvidas e desconfiança. Será possível? – nos perguntamos. As denúncias estão sendo apuradas, é claro. Vamos aguardar... Há quem desconfie de que os moradores estariam sendo forçados por traficantes que ainda estariam no morro, imperceptíveis, a detratar a polícia.
É claro que não nos seria surpresa alguma, caso tais denúncias reflitam a verdade; afinal, não rareiam os casos em que a polícia abusa do exercício do seu poder, extorquindo, e agredindo cidadãos pertencentes às classes sociais menos favorecidas.


O não-dito

Alguns especialistas eram convocados a apresentar sua perspectiva sobre o acontecimento, que foi considerado um “marco histórico” na política de segurança pública da cidade do Rio de Janeiro. Nada melhor do que ouvir o que tem a dizer, por exemplo, um sociólogo, num momento em que a população, “satisfeita”, mas acuada, e a mídia, alardeando a vitória do Estado, comemoravam a reconquista de território. “Finalmente, o Estado se impôs, depois de trinta anos de descaso!”. O sociólogo, não contaminado pelo sentimento de euforia, apresentou uma visão mais ampla: insistiu na necessidade de reforma da polícia, de investimento em educação, moradia, saúde, que beneficie aquela comunidade.  Decerto, há muito que ser feito e o sentimento de euforia pelo “dever cumprido” não pode ofuscar uma visão mais abrangente que sinalize os caminhos futuros que deverão ser percorridos.
Falou-se muito em paz. Todos querem paz, mas não há paz sem guerra. A guerra está em potência: inscrita nas armas, na força militar, na necessidade de poder; está pulsante no desejo de liberdade e é alimentada pela ignorância crassa, que é funda, visceral e, ao que me parece, irremediável. Basta que tenhamos um mínimo de consciência histórica para nos apercebermos de que a trajetória humana, mormente do homem civilizado, neste planeta, se deu através de inúmeras guerras e conflitos. Fazer guerra é intrínseco à condição humana. Todo o processo civilizatório por que passaram os homens através dos séculos – processo esse que é infindável – foi marcado por guerras, conflitos, massacres, genocídios, morte. A motivação é vária: econômica, religiosa, étnica, social, etc. Em geral, existem duas causas recorrentes em toda guerra: a necessidade de poder e de conquista de território. Elas estão intimamente ligadas: conquistar território significa estabelecer domínio e poder. A História Humana é a história das construções de grandes impérios, símbolos do poder absoluto. Lembre-se, talvez o mais famoso, o Império Romano (31a.C – 475 d.C.). Quanto às guerras, escusa elencá-las, pois que são muitas, algumas das quais ainda persistem, como a do Afeganistão e a da Palestina. No tocante a esta última, algumas palavras são necessárias.
Durante muitos séculos, a Palestina foi ocupada por uma maioria muçulmana; a minoria era constituída por cristãos e judeus. No final do século XIX, entretanto, ocorreu um grande fluxo migratório de judeus para aquela região, devido à perseguição russa. A par dessa causa, havia também entre eles o desejo de constituir um Estado nacional judeu. Em 1917, período em que sucedia a Primeira Guerra Mundial, o governo britânico declarou seu apóio à instituição de um Estado nacional judeu, desde que a população árabe não fosse prejudicada. Para garantir que o intento judaico lograsse êxito, a Grã-Bretanha passou a administrar a região, sob a supervisão da Liga das Nações. A situação se agravou quando Hitler assumiu o poder: a perseguição aos judeus, então intensificada, e o holocausto acarretaram o aumento da imigração dessa população da Europa.  
Em 1947, a Assembléia Geral das Nações Unidas consentiu que a Palestina fosse dividida em dois Estados: um árabe; e o outro, judeu.  Essa separação daria a Jerusalém um grande poder internacional. Evidentemente, os árabes ficaram insatisfeitos e não hesitaram em recusar tal plano. Com a retirada das forças britânicas da região, em 1948, David Ben Guiron (então chefe de governo de Israel) proclamou o Estado de Israel, fato a que se seguiu uma guerra entre judeus e árabes palestinos.
Inúmeros acordos de paz foram feitos e desfeitos; a situação de conflito ainda persiste em nossos tempos. Como se vê, a paz é um ideal desejado, mas ela só pode ser alcançada, se satisfeitas certas condições. E estas, se satisfeitas, devem beneficiar uma e outra parte. Não sucedendo isso, o conflito deverá continuar. A paz é como uma senhora idosa, muito esbelta e desejada, que sempre nos escapa, em virtude de nossa cegueira. Paz é uma ideia e pertence ao domínio do espírito, não da experiência. Quando muito, o que notamos, neste último domínio, é apenas a sua sombra, porque a guerra está corporificada, encarnada na agressividade humana que, segundo Freud, tem raízes em nosso aparelho psíquico.  Só nos preocupamos com a paz nos estados de conflito, de revoltas, de guerrilhas e de guerras.
Já que mencionei a perspectiva freudiana, vale referir aqui três personagens históricas que ficaram famosas por seus excessos de agressividade. A primeira delas foi Nero, que, tomado de um sentimento megalomaníaco, incendiou Roma, enquanto entoava em versos o seu feito aterrador. Posteriormente, chegou a perseguir os cristãos e os judeus, acusando-os de incendiários. Não nos esqueçamos, contudo, de que, antes de incendiar a cidade, ele matara a sua mãe. E para poder casar-se com Popéia, também assassinou a própria mulher. O caso de Cláudio I, imperador de Roma entre 41 a 54 d.C., vale ser notado por nos causar pasmo, em virtude de sua estupidez. Cláudio mandou matar a sua esposa, porque estava insatisfeito com o comportamento dela, que era muito impetuoso e escandaloso, para casar-se com Agripina, mãe de Nero, que, muito grata, o envenenou.
A terceira personagem é o rei da Inglaterra Henrique VIII, que ficara famoso por sua vida conjugal, muito embora tenha contribuído para o desenvolvimento político e econômico da Inglaterra no século XV. O rei era casado com Catarina de Aragão, com quem desejava ter um herdeiro do sexo masculino. Como isso não fosse possível, ele pediu ao papa a anulação do casamento. O papa não a consentiu, porque estava subordinado ao imperador Carlos V; este, por sua vez, era sobrinho de Catarina. Insatisfeito, Henrique VIII rompeu relações com Roma, tornando a Igreja inglesa uma Igreja Nacional Anglicana. Posteriormente, divorciou-se e se casou com Ana Bolena. Desconfiado de que esta o estava traindo, Henrique VIII mandou matá-la. Casou-se com uma terceira, a qual lhe deu um herdeiro do sexo masculino, mas tão-logo ela morreu. Casou-se com uma quarta, mas dela divorciou-se logo, pois que se apaixonara por uma quinta, com quem se casou. Infelizmente, esta foi decapitada, porque o rei também suspeitava de sua infidelidade. Por fim, casou-se com a sexta mulher que, felizmente, sobreviveu a ele.
O caso do rei da Inglaterra é, certamente, tragicômico; não obstante, é bastante revelador da agressividade humana que quase  sempre é contaminada por grande dose de paixão. Crimes passionais datam de muito tempo, como se vê; e certamente são agravados pelo sentimento de poder.
Finalmente, considere-se o caso de As Cruzadas. Elas foram movimentos militares de inspiração cristã, que visaram a permitir a peregrinação à Terra Santa, que fora proibida pelos muçulmanos. As Cruzadas culminaram com a conquista de territórios e contribuíram muito para o desenvolvimento do comércio com o Oriente. Não tardou a instituição de um Estado a partir dos territórios da Prússia Oriental e do Báltico.

A recorrência de palavras como guerra, terror e terrorismo, nos noticiários e jornais, como representações da realidade são dotadas de sentido ideológico, já porque não captam o mundo tal como ele é (nesse caso, elas não refletem a realidade mesma), senão expressam o modo como as pessoas se relacionam com as suas reais condições de existência, já porque o efeito ideológico apela para a manutenção da ordem, sem a qual não há possibilidade de vida social.  Oportunas aqui são as palavras de Bauman (2008):

“(...) as coisas estão em ordem se você não precisa se preocupar com a ordem das coisas; as coisas estão em ordem se você não pensar, ou não sentir a necessidade de pensar, na ordem como um problema muito menos como uma tarefa. E uma vez que você começa a pensar na ordem, isso é sinal de que algo em algum lugar está fora de ordem, de que as coisas estão escapando de suas mãos, e por isso você deve tomar alguma atitude para colocá-las na linha de novo”.

(p. 44)


Os incêndios provocados em carros e ônibus pelos criminosos desestabilizaram a ordem. A mobilização das autoridades estaduais, federais e militares se deu com a finalidade de restaurar a ordem, que é indispensável ao controle. Sem controle, não há vida social. A ideologia, encarnada na subjetividade, se nutre do ânimo e do sentimento de medo provocado pelos ataques para estimular a atuação do Estado, ao mesmo tempo em que reafirma o poder dele, que se cuidava arrefecido.
A paz, em face da monstruosidade realística da guerra, são apenas fumaças que saem de suas explosões; breves momentos entre uma explosão e outra. Não é possível, se nos dispusermos a ler um pouco sobre a História da humanidade, esperar que chegará o dia em que os homens não mais guerrearão; talvez, a paz possa estar ao alcance de outra espécie de seres que venham a habitar este planeta, caso a espécie humana venha a extinguir-se. Enquanto houver homem, a guerra será sempre uma realidade em potência.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Indústria Cultural

            Aspectos (de)formativos da indústria cultural 
                                   revisitando a questão




Para compor este texto, foi necessário, obviamente, um estudo prévio, que demandou leitura bem variada e aturada de livros e artigos. À medida que lia, tomava notas de passagens dos textos, dava-lhes meus próprios contornos, estabelecendo, tanto quanto possível, as devidas relações entre elas. O esforço empreendido em organizá-las de acordo com um princípio de coerência semântico-discursiva não me livrou de experimentar um caos intelectual, quando me dei conta de que não mais reconhecia as conexões entre elas.
A essa dificuldade acrescente-se a própria complexidade nas quais estavam implicadas as questões. Impõe-se, então, reconhecer uma tarefa em cuja realização deverei empregar todo o vigor de meu espírito: tornar este texto inteligível ao leitor não iniciado.
Começarei, pois, parafraseando Kant: “despertei de meu sono encantado”, quando comecei a estudar sobre o conceito de indústria cultural e a compreender os processos de subsunção e dominação dos indivíduos mediante a transformação de bens culturais em mercadorias destinadas ao consumo de massas. Contudo, cuido ser importante que não me apresse, pois que não só poderei tropeçar nas palavras, como também confundi-lo, leitor.
Antes de fazer incursão no terreno do que se tem entendido por Indústria Cultural, conceito que remonta aos filósofos da Escola de Frankfurt Adorno e Horkheimer, convém situá-lo no interior da sociedade pós-moderna do capitalismo avançado.


1. Contexto sócio-histórico

A decadência das imagens e representações de inspiração religiosa e divina representa a dissolução do que restava de uma era pré-capitalista. As transformações históricas subsequentes – sociais, políticas e econômicas – que ocorreram desde o fim do século XIX e que se tornaram mais intensas a partir do século XX, mormente na Europa Ocidental, expressaram-se em termos de industrialização, urbanização e uma profunda reorganização da sociedade. Essas transformações carrearam novas formas de dominação social, dando ao conceito de ideologia novos contornos.
Urge, ter em conta, portanto, para a adequada compreensão dos mecanismos opressores e reificadores da indústria cultural, o contexto da pós-modernidade caracterizado pela saturação de imagens, pela influência massificadora dos simulacros nas condições de vida e de trabalho dos indivíduos (valores, práticas sócio-culturais). Essa sociedade, imersa em simulacros, em imagens que acabam por corresponder à totalidade do real é chamada por Guy Debord, filósofo e diretor de cinema, sociedade do espetáculo. Espetáculo, aqui, deve ser entendido como aparência. A sociedade do espetáculo é a afirmação de toda a vida humana como simples aparência. É, em síntese, a transformação da experiência humana em aparência.
A carência espiritual, decorrente do declínio das imagens divinas, veio a ser suprida com as imagens fornecidas pela industrialização e pela comercialização e pelo consumo de produtos numa escala mundial. A força de produção das imagens exerce influência nos processos formativos das pessoas. O que aparece e está em destaque esgota a totalidade do real.
Na sociedade do espetáculo, contrariamente ao que propunha Descartes, o juízo é mantido em suspenso quase permanentemente e este estado é reforçado pelo esquematismo da indústria cultural, o qual é responsável por impingir aos indivíduos um verdadeiro adestramento espiritual, fazendo-os acreditar que as ideias que possuem são inerentes à sua verdadeira consciência. Os indivíduos, então consumidores, permanecem entorpecidos, estado do qual só saem, caso se sintam impressionados.
Os indivíduos são induzidos ao consumo dos produtos culturais disponibilizados pela indústria cultural com a promessa de felicidade de que eles se revestem. O consumo de tais produtos sinaliza para o tipo de inserção social do indivíduo, cujo sucesso depende de sua identificação com os valores e produtos que se transformam em mercadorias.




1.2. Indústria cultural: sua atuação e dominância

Ignorando a problemática conceitual resultante da aproximação dos vocábulos indústria e cultura, para a composição do termo “indústria cultural”, é lícito considerá-lo como expressão do caráter industrial e padronizado da produção cultural, que se intensificou com o desenvolvimento da indústria e com a racionalização das técnicas de divulgação e distribuição de seus produtos, os quais foram destituídos de seu valor humano, resultado de trabalho espiritual e criativo, para destinarem-se ao consumo de massas carreando em si uma finalidade de dominação ideológica.
Os produtos culturais fabricados e seriados em processos industriais, disponibilizados pela indústria cultural, sucumbem aos interesses ideológicos, os quais se expressam por meio de um discurso que exalta e reitera o desejo pelo novo e pelo progresso, desejo que é criado nos indivíduos. A dinâmica que engendra a produção e comercialização dos bens culturais mascara, por força da ideologia, a verdadeira e mais antiga motivação do mercado: a obtenção de lucro.
Como bem observam Adorno & Hokheimer (1985: 95), a cultura, ao servir à comercialização, perde sua aura. As produções artísticas são destituídas de seu caráter transcendente e de sua função crítica e contra-hegemônica para tornarem-se meras mercadorias de consumo. As pessoas, por sua vez, consomem passivamente, ou seja, embotada sua consciência crítica, não precisam despender energia psíquica em tão prazerosa atividade. A indústria cultura promove a banalização e vulgarização da cultura e torna a consciência dos homens-consumidores infantilizada e regredida. A violência ideológica aí consiste em subestimar a capacidade espiritual e de compreensão dos indivíduos e de subjugar sua consciência. A semiformação fomentada pela indústria cultural é responsável pelo conformismo, o qual se expressa, consoante ensina Marcondes (2008: 53):

“[em] comportamento de dependência social e moral consistindo para um indivíduo em adotar de modo mais ou menos mecânico ou inconsciente sem exame ou espírito crítico, as opiniões, as normas, os modelos, os costumes e usos de seu meio social ou do grupo com o qual se identifica; aceitação do status quo”.

A indústria cultural atua no sentido de produzir uma regressão de consciências, de sorte que os indivíduos, impedidos de se auto-diferenciar, compõe juntos uma massa homogênea.  Os procedimentos empregados pela indústria cultural servem para iludir, manipular, fazendo da aparência a verdade. Dá-se um empobrecimento da produção cultural.


1.2. O poder ideológico

O conceito de ideologia é um desses conceitos para os quais há inúmeras definições, de acordo com o autor e sua perspectiva teórica. Limito-me, aqui, a considerá-lo como forma de representação do aparecer social de tal modo, que esse parecer se torna a realidade social. A ideologia, portanto, mascara ou oculta a realidade, invertendo a relação entre ela e as ideias: nos processos ideológicos, o real não justifica as ideias; ao contrário, são as ideias que justificam o real. Esta concepção de ideologia como forma de ocultamento da realidade social remonta à Marilena Chauí (2006).  Creio ser esta concepção adequada à discussão que ora desenvolverei.
A ideologia está a serviço da hegemonia. Sua função é deformar e manter o status quo, legitimando as condições de injustiça e opressão sociais. Conquanto a ideologia são se confunda com indústria cultural, é inegável a relação intrínseca entre elas. Parte inerente dos mecanismos de dominação e manipulação da indústria cultural, a ideologia estabelece padrões de comportamento que visam ao conformismo.  Os homens passam a acreditar que as ideias, então adquiridas, sejam suas próprias ideias.
A ação ideológica torna-se ainda mais perniciosa quando da observação do fato de que ela se traveste de um pseudo-liberalismo alicerçado na liberdade e na autonomia individuais, de sorte a impedir aos homens a livre expressão de sua individualidade e de sua singularidade.  Não há, portanto, espaço para subjetividades, as quais são convertidas numa organização totalitária de modos de pensar, agir e sentir.
A ideologia produz uma falsa consciência e padroniza a expressão do pensamento. A falsa consciência impede a autonomia intelectual.


2. A função da estandardização e da racionalização

A estandardização consiste no processo pelo qual os bens culturais são padronizados quando de sua fabricação e colocados em larga escala para a satisfação de massas de consumidores. Trata-se da produção em série do modelo fordista aplicado à cultura. O que se verifica, nesse processo, é a incansável repetição de padrões.
A estandardização da cultura, então transformada em cultura de massa, leva os indivíduos a se comportarem segundo certos padrões e esquemas, os quais são responsáveis por: a) imobilizar suas capacidades de autonomia de expressão; b) levá-los a identificar-se com as formas heterônomas que os homogeneízam.
A racionalização, a seu turno, encarada na perspectiva da teoria crítica da Escola de Frankfurt, pode ser entendida como

“a justificação de certas práticas de dominação como necessárias ao progresso e ao desenvolvimento social, ocultando, entretanto, os verdadeiros interesses da classe dominante”.
(Marcondes, 2006: 234)

A racionalização também pode ser entendida como uma técnica aplicada a um processo de produção a fim de torná-lo menos dispendioso e mais eficaz.
A aplicação da técnica e da ciência ao campo da comunicação fez com que elas deixassem de ser forças produtivas para tornarem-se instrumentos de poder e de dominação. Seu poder consiste em alienar e massificar os indivíduos das sociedades industriais e altamente administradas.
A razão instrumental, na medida em que fomenta processos de produção destinados a um fim (pois é isso que pressupõe), torna as relações entre homem e natureza e dos homens entre si, basicamente, instrumental, pragmática e utilitária.
Contra esse esvaziamento espiritual e emocional das relações humanas, Habermas propõe a substituição da razão instrumental pela razão comunicativa, através da qual se poderia alcançar a revolução das relações humanas na dimensão cultural, a qual compreende arte, emoções, mitos, tradições, etc.


3. Considerações finais

A complexidade da questão levar-me-ia muito mais longe, o que não seria conveniente, dados os modestos propósitos desta exposição.  Muitos problemas ficaram em aberto, tais como o papel da mídia (televisão, rádio e cinema, especialmente) no processo de embotamento e de regressão das consciências, visto ter ela um poder, claramente, intensivo e manipulador; a realização efetiva da democracia, a qual não parece possível se não inclui as condições culturais; a liberdade relativamente ao impedimento de autonomia individual perpetrado pela ação da indústria cultural, etc.
A sociedade de que sou membro está lá fora, operante e gigante. E eu estou aqui dentro, no microcosmo de meu quarto, em frente ao computador, após ter estado durante grande parte do tempo envolto aos livros – estas janelas que me abrem o mundo, que me traz à consciência as formas perniciosas de opressão, alienação e massificação sociais, cujo agravamento se atribui, em grande medida, à indústria cultural. Estou eu aqui inquieto, mas consciente desta existência frenética, acelerada e fugaz, que se escorre na liquidez do tempo moderno.