sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Indústria Cultural

            Aspectos (de)formativos da indústria cultural 
                                   revisitando a questão




Para compor este texto, foi necessário, obviamente, um estudo prévio, que demandou leitura bem variada e aturada de livros e artigos. À medida que lia, tomava notas de passagens dos textos, dava-lhes meus próprios contornos, estabelecendo, tanto quanto possível, as devidas relações entre elas. O esforço empreendido em organizá-las de acordo com um princípio de coerência semântico-discursiva não me livrou de experimentar um caos intelectual, quando me dei conta de que não mais reconhecia as conexões entre elas.
A essa dificuldade acrescente-se a própria complexidade nas quais estavam implicadas as questões. Impõe-se, então, reconhecer uma tarefa em cuja realização deverei empregar todo o vigor de meu espírito: tornar este texto inteligível ao leitor não iniciado.
Começarei, pois, parafraseando Kant: “despertei de meu sono encantado”, quando comecei a estudar sobre o conceito de indústria cultural e a compreender os processos de subsunção e dominação dos indivíduos mediante a transformação de bens culturais em mercadorias destinadas ao consumo de massas. Contudo, cuido ser importante que não me apresse, pois que não só poderei tropeçar nas palavras, como também confundi-lo, leitor.
Antes de fazer incursão no terreno do que se tem entendido por Indústria Cultural, conceito que remonta aos filósofos da Escola de Frankfurt Adorno e Horkheimer, convém situá-lo no interior da sociedade pós-moderna do capitalismo avançado.


1. Contexto sócio-histórico

A decadência das imagens e representações de inspiração religiosa e divina representa a dissolução do que restava de uma era pré-capitalista. As transformações históricas subsequentes – sociais, políticas e econômicas – que ocorreram desde o fim do século XIX e que se tornaram mais intensas a partir do século XX, mormente na Europa Ocidental, expressaram-se em termos de industrialização, urbanização e uma profunda reorganização da sociedade. Essas transformações carrearam novas formas de dominação social, dando ao conceito de ideologia novos contornos.
Urge, ter em conta, portanto, para a adequada compreensão dos mecanismos opressores e reificadores da indústria cultural, o contexto da pós-modernidade caracterizado pela saturação de imagens, pela influência massificadora dos simulacros nas condições de vida e de trabalho dos indivíduos (valores, práticas sócio-culturais). Essa sociedade, imersa em simulacros, em imagens que acabam por corresponder à totalidade do real é chamada por Guy Debord, filósofo e diretor de cinema, sociedade do espetáculo. Espetáculo, aqui, deve ser entendido como aparência. A sociedade do espetáculo é a afirmação de toda a vida humana como simples aparência. É, em síntese, a transformação da experiência humana em aparência.
A carência espiritual, decorrente do declínio das imagens divinas, veio a ser suprida com as imagens fornecidas pela industrialização e pela comercialização e pelo consumo de produtos numa escala mundial. A força de produção das imagens exerce influência nos processos formativos das pessoas. O que aparece e está em destaque esgota a totalidade do real.
Na sociedade do espetáculo, contrariamente ao que propunha Descartes, o juízo é mantido em suspenso quase permanentemente e este estado é reforçado pelo esquematismo da indústria cultural, o qual é responsável por impingir aos indivíduos um verdadeiro adestramento espiritual, fazendo-os acreditar que as ideias que possuem são inerentes à sua verdadeira consciência. Os indivíduos, então consumidores, permanecem entorpecidos, estado do qual só saem, caso se sintam impressionados.
Os indivíduos são induzidos ao consumo dos produtos culturais disponibilizados pela indústria cultural com a promessa de felicidade de que eles se revestem. O consumo de tais produtos sinaliza para o tipo de inserção social do indivíduo, cujo sucesso depende de sua identificação com os valores e produtos que se transformam em mercadorias.




1.2. Indústria cultural: sua atuação e dominância

Ignorando a problemática conceitual resultante da aproximação dos vocábulos indústria e cultura, para a composição do termo “indústria cultural”, é lícito considerá-lo como expressão do caráter industrial e padronizado da produção cultural, que se intensificou com o desenvolvimento da indústria e com a racionalização das técnicas de divulgação e distribuição de seus produtos, os quais foram destituídos de seu valor humano, resultado de trabalho espiritual e criativo, para destinarem-se ao consumo de massas carreando em si uma finalidade de dominação ideológica.
Os produtos culturais fabricados e seriados em processos industriais, disponibilizados pela indústria cultural, sucumbem aos interesses ideológicos, os quais se expressam por meio de um discurso que exalta e reitera o desejo pelo novo e pelo progresso, desejo que é criado nos indivíduos. A dinâmica que engendra a produção e comercialização dos bens culturais mascara, por força da ideologia, a verdadeira e mais antiga motivação do mercado: a obtenção de lucro.
Como bem observam Adorno & Hokheimer (1985: 95), a cultura, ao servir à comercialização, perde sua aura. As produções artísticas são destituídas de seu caráter transcendente e de sua função crítica e contra-hegemônica para tornarem-se meras mercadorias de consumo. As pessoas, por sua vez, consomem passivamente, ou seja, embotada sua consciência crítica, não precisam despender energia psíquica em tão prazerosa atividade. A indústria cultura promove a banalização e vulgarização da cultura e torna a consciência dos homens-consumidores infantilizada e regredida. A violência ideológica aí consiste em subestimar a capacidade espiritual e de compreensão dos indivíduos e de subjugar sua consciência. A semiformação fomentada pela indústria cultural é responsável pelo conformismo, o qual se expressa, consoante ensina Marcondes (2008: 53):

“[em] comportamento de dependência social e moral consistindo para um indivíduo em adotar de modo mais ou menos mecânico ou inconsciente sem exame ou espírito crítico, as opiniões, as normas, os modelos, os costumes e usos de seu meio social ou do grupo com o qual se identifica; aceitação do status quo”.

A indústria cultural atua no sentido de produzir uma regressão de consciências, de sorte que os indivíduos, impedidos de se auto-diferenciar, compõe juntos uma massa homogênea.  Os procedimentos empregados pela indústria cultural servem para iludir, manipular, fazendo da aparência a verdade. Dá-se um empobrecimento da produção cultural.


1.2. O poder ideológico

O conceito de ideologia é um desses conceitos para os quais há inúmeras definições, de acordo com o autor e sua perspectiva teórica. Limito-me, aqui, a considerá-lo como forma de representação do aparecer social de tal modo, que esse parecer se torna a realidade social. A ideologia, portanto, mascara ou oculta a realidade, invertendo a relação entre ela e as ideias: nos processos ideológicos, o real não justifica as ideias; ao contrário, são as ideias que justificam o real. Esta concepção de ideologia como forma de ocultamento da realidade social remonta à Marilena Chauí (2006).  Creio ser esta concepção adequada à discussão que ora desenvolverei.
A ideologia está a serviço da hegemonia. Sua função é deformar e manter o status quo, legitimando as condições de injustiça e opressão sociais. Conquanto a ideologia são se confunda com indústria cultural, é inegável a relação intrínseca entre elas. Parte inerente dos mecanismos de dominação e manipulação da indústria cultural, a ideologia estabelece padrões de comportamento que visam ao conformismo.  Os homens passam a acreditar que as ideias, então adquiridas, sejam suas próprias ideias.
A ação ideológica torna-se ainda mais perniciosa quando da observação do fato de que ela se traveste de um pseudo-liberalismo alicerçado na liberdade e na autonomia individuais, de sorte a impedir aos homens a livre expressão de sua individualidade e de sua singularidade.  Não há, portanto, espaço para subjetividades, as quais são convertidas numa organização totalitária de modos de pensar, agir e sentir.
A ideologia produz uma falsa consciência e padroniza a expressão do pensamento. A falsa consciência impede a autonomia intelectual.


2. A função da estandardização e da racionalização

A estandardização consiste no processo pelo qual os bens culturais são padronizados quando de sua fabricação e colocados em larga escala para a satisfação de massas de consumidores. Trata-se da produção em série do modelo fordista aplicado à cultura. O que se verifica, nesse processo, é a incansável repetição de padrões.
A estandardização da cultura, então transformada em cultura de massa, leva os indivíduos a se comportarem segundo certos padrões e esquemas, os quais são responsáveis por: a) imobilizar suas capacidades de autonomia de expressão; b) levá-los a identificar-se com as formas heterônomas que os homogeneízam.
A racionalização, a seu turno, encarada na perspectiva da teoria crítica da Escola de Frankfurt, pode ser entendida como

“a justificação de certas práticas de dominação como necessárias ao progresso e ao desenvolvimento social, ocultando, entretanto, os verdadeiros interesses da classe dominante”.
(Marcondes, 2006: 234)

A racionalização também pode ser entendida como uma técnica aplicada a um processo de produção a fim de torná-lo menos dispendioso e mais eficaz.
A aplicação da técnica e da ciência ao campo da comunicação fez com que elas deixassem de ser forças produtivas para tornarem-se instrumentos de poder e de dominação. Seu poder consiste em alienar e massificar os indivíduos das sociedades industriais e altamente administradas.
A razão instrumental, na medida em que fomenta processos de produção destinados a um fim (pois é isso que pressupõe), torna as relações entre homem e natureza e dos homens entre si, basicamente, instrumental, pragmática e utilitária.
Contra esse esvaziamento espiritual e emocional das relações humanas, Habermas propõe a substituição da razão instrumental pela razão comunicativa, através da qual se poderia alcançar a revolução das relações humanas na dimensão cultural, a qual compreende arte, emoções, mitos, tradições, etc.


3. Considerações finais

A complexidade da questão levar-me-ia muito mais longe, o que não seria conveniente, dados os modestos propósitos desta exposição.  Muitos problemas ficaram em aberto, tais como o papel da mídia (televisão, rádio e cinema, especialmente) no processo de embotamento e de regressão das consciências, visto ter ela um poder, claramente, intensivo e manipulador; a realização efetiva da democracia, a qual não parece possível se não inclui as condições culturais; a liberdade relativamente ao impedimento de autonomia individual perpetrado pela ação da indústria cultural, etc.
A sociedade de que sou membro está lá fora, operante e gigante. E eu estou aqui dentro, no microcosmo de meu quarto, em frente ao computador, após ter estado durante grande parte do tempo envolto aos livros – estas janelas que me abrem o mundo, que me traz à consciência as formas perniciosas de opressão, alienação e massificação sociais, cujo agravamento se atribui, em grande medida, à indústria cultural. Estou eu aqui inquieto, mas consciente desta existência frenética, acelerada e fugaz, que se escorre na liquidez do tempo moderno.


2 comentários:

  1. A sociedade de que sou membro está lá fora, operante e gigante. E eu estou aqui dentro, no microcosmo de meu quarto, em frente ao computador...IMPOTENTE DIANTE DELA.

    É isso, querido Bruno, vivendo um triste momento que representa um dos milhões de magnitude infinita que acontecem por aí.Se der uma chegadinha no Desassossego vai entender...

    Sabe o que seus textos fazem por mim e comigo? Caem como respostas contundentes a perguntas que eu não quero formular.

    beijos.
    Pode mudar de nome...acharei você assim mesmo...rs

    ResponderExcluir
  2. Quando saímos da universidade alguns conceitos deixamos de lado... Mas o nosso córtex cerebral guarda muita coisa e esse texto me fez lembrar da leitura de um livro da Bárbara Freitag que desenvolvi um trabalho sobre Industria Cultural e a Semi-educação... Só que devo tê-lo emprestado e não me devolveram... Lembrei da Escola de Frankfurt que faz critica sobre a industria cultural, que reifica o homem transformando-o em mero objeto de consumo. E que muitas vezes a escola, que segundo Althusser, como aparelho ideológico de estado contribui para vender essa ideologia reproduzindo a lógica do capitalismo... Mas ao mesmo tempo pode ser contra-hegemônica segundo Gramsci, libertando os alunos do discurso ideológicos do senso comum. Sem se falar nos meios de comunicação de massa que é uma poderosa arma ideológica de castração de consciência. Enfim, você me fez relembrar um pouco da Sociologia e Filosofia da educação que fundamentaram tão bem a minha Pedagogia. Adorei o texto Bruno! Sempre perfeito em suas colocações! Bjusss

    ResponderExcluir