quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Religião em debate


O que dizem os filósofos?
A religião em debate
Introdução

Talvez, a primeira lição que um estudante de filosofia deva aprender, tão logo ingressa numa faculdade, é que filosofar é ter o direito de pensar, de refletir. A filosofia, assim, abre-nos um espaço de liberdade para a expressão do pensamento, para a construção de discursos conflitantes e divergentes. O pensamento é a sua matéria-prima, mas não o pensamento escravizado(r) e dogmático. A filosofia promove o pensamento livre e desimpedido, pouco importa que ele apresente lacunas, seja desviante, em algum sentido. Porque a primeira lição que um estudante de filosofia deverá aprender é que até os grandes filósofos se equivocam, são passíveis de crítica, de objeções. Na realidade, a filosofia é um discurso que se abre para a crítica; ela funda um espaço de crítica renovável. A verdade é seu objetivo último, mas ainda a verdade é passível de crítica. O que me parece certo é que a filosofia, ao mesmo tempo em que enseja o debate crítico, condição esta para a sua própria subsistência, também é terminantemente infensa ao dogmatismo. A filosofia buscará lançar luzes sobre a escuridão dos discursos dogmáticos; nos demoverá do apego às nossas certezas, não suscitando, necessariamente, uma postura niilista, mas certamente retirando-nos o véu que nos impedia de ver o irracional, o ideológico, o preconceito, as opiniões sem fundamento. A filosofia buscará os fundamentos; pretende atingir o Ser, superando as aparências.
Costumo dizer, como escritor (no sentido lato da palavra) e estudioso da linguagem, que a construção de um texto tem um caráter artesanal. Escrever é uma forma de artesanato – o artesanato da escrita. Certa vez, quando ainda lecionava no ensino médio, pedi a meus alunos que escrevessem sobre as suas próprias dificuldades ao escrever. A grande maioria disse que a principal dificuldade é não ter ideias. Isso corrobora uma obviedade: todo trabalho de escrita depende de uma elaboração prévia do pensamento, de um pensamento que, com ser reflexivo, deve-se voltar sobre seus próprios produtos. O sujeito do discurso não é um sujeito adâmico; seu discurso estabelece-se sobre discursos anteriores, ao mesmo tempo em que funda um novo discurso que antecipa ou projeta tantos outros discursos potenciais e posteriores. Todo dizer se estabelece sobre um já-dito. Não há discurso original nem originário. O sujeito não é a fonte de seu discurso, lugar subjetivo donde jorram as palavras; o sujeito é construto do discurso e, como tal, é atravessado pela ideologia e situado sócio-historicamente. Tudo isso nos leva à conclusão de que o texto é um produto sócio-histórico e, na medida em que ele é trazido a lume, não pertence mais ao autor (que representa, ideologicamente, a unidade do discurso, embora o sujeito seja disperso).
Creio ter me delongado demais. Refaço, pois, o caminho discursivo. Se aceitarmos que a filosofia não deve, pelo seu discurso, não raro, hermético, afugentar os mais otimistas, tampouco inibir a expressão do pensamento que se pretenda crítico, convém que admitamos a proposta deste texto que não tem por objetivo declarar o ateísmo como o único caminho eticamente seguro para o homem pós-moderno. Seu objetivo é fazer fervilhar ideias, animar espíritos adormecidos, inquietar intelectualmente, plantar indagações, mitigar o peso dogmático que nos oprime e conforta. É preciso ter em conta que o pensamento dos três eminentes homens de conhecimento que procurarei apresentar e discutir aqui é passível de crítica, ou melhor, sofreu críticas ao longo da história. Por isso, eles não anunciarão a verdade última; pois, em filosofia, não há uma única verdade. Nietzsche negava a verdade, para ele a verdade era o ponto de vista.
Ao cabo da leitura, conscientes de que não estamos de posse de verdade alguma, deveremos nos contentar com o desconforto, com a náusea, de que nos fala Sartre. Lembre-se, leitor, de que não podemos viver comodamente no mundo; é preciso incomodá-lo e sentir-se incomodado, somente, assim, ainda valerá nosso esforço orgânico matutino e rotineiro que nos faz querer ver mais uma aurora e persistir na busca por um sentido que justifique nossa existência, que se nos apresenta em sua forma crua e contingente.
A primeira dificuldade que encontro para compor este texto é tentar não fragmentar, tampouco deformar o pensamento dos três homens que se dedicaram a compreender e criticar o fenômeno religioso, mas, ao mesmo tempo, não dar a este texto uma extensão que exorbite da paciência do leitor, de sua boa vontade em dedicar parte do seu tempo de vida à sua leitura. Pense, leitor, que, da mesma forma que lhe seja custoso concentrar-se na leitura deste texto, cujos limites não sei precisar exatamente agora, igualmente árduo é meu trabalho em construí-lo. Somos, pois, cúmplices de um mesmo sacrifício: o de lidar com a exigência da linguagem de penetração espiritual, de atenção inexorável. Com efeito, nós estamos acostumados a fazer uso da língua com vistas a atender nossas necessidades básicas e utilitárias. Valemo-nos dela como mero instrumento de comunicação. Agora, ela nos cobra uma atitude contemplativa e reflexiva. A decisão é sua, leitor. De resto, este texto seguirá o seu curso; cabe a você decidir entre trilhar os caminhos que ele lhe oferece, ou cessar o movimento de seu espírito, para se ocupar com urgências de seu cotidiano.
1. Marx: a religião como ópio do povo
Dentre os três pensadores que escolhi, para fomentar uma reflexão sobre o que a filosofia tem a nos dizer sobre a religião, está o economista e filósofo alemão Karl Marx (1818-1883). Ele nasceu no século XIX, num contexto histórico caracterizado pelo liberalismo alemão, que anunciava, ainda sob os auspícios das ideias da Revolução Francesa, a crítica ferrenha ao Estado e aos seus aliados, a saber, a Igreja e a religião – muito embora fossem elas fracos aliados.
Marx foi o precursor de um movimento de ideias filosóficas, políticas, sociais e econômicas que compunham um corpo teórico denominado, posteriormente, de marxismo. Este movimento ficou conhecido também como materialismo histórico, que se desenvolve a partir da crítica ao idealismo hegeliano, segundo o qual o Espírito absoluto era o sujeito da história. Contrariamente a Hegel, Marx dirá que são os homens concretos, em contextos sócio-históricos determinados, organizados nas esferas de produção, que fazem a história. São eles que produzem as condições de sua própria existência material e espiritual. A História não é a História da objetivação do Espírito, consoante pensara Hegel. Para Marx, consoante ensina Marilena Chauí, em O que é ideologia (2006: 47):
“A história é a história do modo real como os homens reais produzem suas condições reais de existência. É a história do modo como se reproduzem a si mesmos (pelo consumo direto ou indireto dos bens naturais ou pela procriação), como produzem e reproduzem suas relações com a natureza (pelo trabalho), do modo como produzem e reproduzem suas relações sociais (pela divisão social do trabalho e pela forma de propriedade, e que constituem as formas de relações de produção)”.
Marx rejeitou o idealismo de Hegel, mas aproveitou a forma como o pensamento deste grande filósofo se desenvolveu. Marx herda, portanto, o método dialético. Também de Hegel Marx herda a concepção do homem como ser social. Investindo seu pensamento do método dialético, Marx buscará superar o parecer social, para compreender o ser social (ou seja, o como a realidade é concretamente produzida). Aqui, nos mostrará que, o que parece ser relações justas e igualitárias, serão relações injustas e opressoras. Marx propunha conciliar a teoria e a prática. Acreditava que, sem a orientação da teoria, toda prática é cega. Seu objetivo era mobilizar a classe do proletariado à revolução e à posterior instauração do socialismo, como movimento intermediário para a consolidação do comunismo, cujo fundamento consistia na abolição plena do Estado – uma comunidade imaginária, necessariamente, exploradora, já que a serviço dos interesses das classes dominantes.
Não poderia aqui, evidentemente, pretender dissecar o pensamento de Marx, apresentando-os em suas miudezas, o que demandaria muito tempo e esforço. Para o que me interessa, basta ter em conta o conceito de alienação, na base do qual Marx desenvolverá sua crítica à religião. Antes de apresentá-lo (sempre de maneira breve e grosseira), creio ser necessário esclarecer o que se entende por materialismo histórico. A palavra materialismo evoca a ideia de matéria. Na filosofia clássica, o materialismo é a doutrina que entende ser possível reduzir a realidade à matéria. O materialismo nega a existência de entidades como alma ou espírito. Já o materialismo proposto por Marx, chamado materialismo histórico entende a história como a história da luta de classes. Esta história se desenvolve nos processos de transformação social decorrentes dos conflitos entre os interesses das classes dominantes e os das classes dominadas. Destarte, Marilena Chauí vem lançar luzes sobre o conceito, ao nos ensinar:
“A matéria social de que fala Marx é a matéria social, isto é, as relações sociais entendidas como relações de produção, ou seja, como o modo pelo qual os homens produzem e reproduzem suas condições materiais de existência e o modo como pensam e interpretam essas relações”.
(pp. 52-53)
Para Marx, a religião é uma forma de alienação decorrente de uma alienação mais profunda: a alienação do trabalhador explorado no processo de produção capitalista. É no contexto econômico que se acha a essência da alienação do homem. Os trabalhadores são expropriados dos meios de produção de seu trabalho. Eles são não-proprietários. Dispostos e setorizados na linha de produção capitalista de modo fragmentário, os trabalhadores são obrigados a desempenhar cada qual uma função; ao cabo do processo, perdem a consciência do todo que produziram. Eles não se reconhecem no produto de seu trabalho, pois que não se reconhecem como os verdadeiros produtores daquilo para cuja produção empregaram/venderam sua força de trabalho. Se tomarmos para exemplo uma indústria automobilística, podemos compreender a contradição instaurada pelo capitalismo: cada trabalhador que se ocupa da fabricação de um carro, operando com a tecnologia, é responsável por uma etapa apenas no longo processo de fabricação do automóvel. Não só eles não se reconhecerão como produtores, mas também estarão privados de se beneficiar do produto de seu trabalho, já que o salário que recebem tem o valor suficiente para que se alimentem, se vistam e continuem com o mesmo trabalho de produção de mercadorias.
Para Marx, o trabalho no capitalismo é trabalho alienado, visto que “é aquele no qual o produtor não se pode reconhecer no produto de seu trabalho porque as condições desse trabalho, suas finalidades reais ou seu valor não dependem do próprio trabalhador, mas do proprietário das condições do trabalho”. (Chauí, p. 54). É o proprietário que é dono do capital.
A religião para Marx decorre de condições socioeconômicas de alienação. A religião é a expressão apenas dessa alienação. A ideia de Deus é um produto dessa atmosfera alienante. Para Marx, a promessa da religião é ilusória, dado que ela apenas oferece a libertação imaginária, projetando a liberdade do homem para um além-mundo. Nesse sentido, a religião não se preocupa com o sofrimento do homem, com as condições socioeconômicas de exploração e injustiça em que vivem as classes menos favorecidas. É tão-só a práxis revolucionária que emancipará os homens. A afirmação “a religião é o ópio do povo” se tornou emblemática na crítica de Marx à religião, pois que ela exprime a ideia de que a religião entorpeceria a consciência humana, tornando-a conformada diante das condições de injustiça social, na esperança de alívio e felicidade numa vida transcendente.
Deus é, assim, produto de uma projeção da essência humana para fora de si, concepção essa desenvolvida anteriormente por Feuerbach, para quem o conhecimento de Deus é autoconhecimento do homem. Com vistas a tornar claro esse momento da crítica de Marx, refiro na íntegra as palavras de Urbano Zilles, em Filosofia da Religião (1991: 127):
“Na alienação religiosa, o homem projeta, segundo Marx, para fora de si, de maneira vã e inútil, seu ser essencial e perde-se na ilusão de um mundo transcendente. Aceita, pois, o conceito feuerbechiano de alienação. A religião nada mais é que a projeção do ser do homem num mundo ilusório. Com ela aliena-se a si mesmo. A religião faz o sujeito predicado, alçando Deus sobre as nuvens, em vez de dar-se conta de que o céu está sobre a terra. Enquanto Feuerbach se contentara em denunciar intelectualmente a alienação religiosa, sem indagar suas causas, Marx admite que a religião é uma ilusão, não porém, ilusão puramente falsa. É uma maneira da existência humana intrinsecamente falsa. A religião nasce, segundo Marx, da convivência social e política perturbada dos homens”.
Portanto, para Marx, a religião não passa de um epifenômeno de um fenômeno infra-estrutural econômico alienante. Acreditava que, com base na crítica intelectual, superando as condições de injustiça social e miséria, libertar-se-iam os homens da alienação religiosa. Segundo Marx, a religião forneceria um consolo aos homens numa realidade social injusta da qual eles, sob o efeito da ideologia, não se consideram seus produtores (embora o sejam). O ateísmo de Marx representa a afirmação da essência do homem, a tentativa de levar os homens à emancipação, pela consciência e pela práxis, que os conduziriam a superar as condições sociais de injustiça, geradas pelo processo de produção capitalista, assegurado por um Estado autoritário e explorador. Seu ateísmo nega a Deus e afirma o homem.
Certamente, esse recorte do pensamento de Marx é simplista, mas adequado aos propósitos deste texto. O ateísmo de Marx não está, evidentemente, isento de críticas, uma das quais é feita pelo próprio Urbano, em seu livro acima referido. O autor questiona o fato de Marx ter analisado a religião no contexto de uma sociedade capitalista do século XIX, mas não ter sequer levantado a hipótese de que a religião poderia ter uma função diferente numa sociedade socialista. Ademais, Urbano se pergunta se a religião não poderia assumir novas formas. O fato é que, ao pretender profetizar o fim da religião com a revolução do proletariado, com a instauração do que ele, Marx, chamou de “ditadura do proletariado”, o economista alemão sequer suspeitou de que a sua profecia igualmente seria uma ilusão. É fato também que nos países socialistas ainda persistem sociedade dividida em classes, com Estado e religião. Nos países em que o comunismo se instaurou, o Estado assumiu formas totalitaristas, como no socialismo da Coréia do Norte, considerado uma ditadura totalitária.
Costumo dizer que religião e política são duas matérias que inflamam os espíritos, animam paixões, incendeiam atitudes radicalistas que podem deflagrar o terror. Em contextos socialistas, igrejas e religiões foram perseguidas; na educação, se impôs o ensino ateísta, pela conservação da legislação stalinista.
Marx, certamente, fracassou em seu projeto de erradicar a religião. Para alguns críticos, o marxismo se transformou numa religião atéia, dada sua doutrina promitente e dogmática. Segundo Urbano, “os cristãos criticam o marxismo não por causa de seu humanismo, mas por causa de seu humanismo mutilado” (p. 135).
2. Nietzsche e o ateísmo niilista
Friedrich Nietzsche, insigne filósofo alemão do século XIX, ficou conhecido por sua crítica ácida ao cristianismo. Seu ateísmo se desenvolveu, a despeito do reconhecimento de suas raízes cristãs, já que Nietzsche fora filho de um pastor protestante, tendo desejado, ainda na mocidade, tornar-se um pastor também. Talvez, Nietzsche tenha sido o mais lúcido dentre os cristãos; Urbano se pergunta se Nietzsche não seria um cristão reprimido.
Para tentar sumariar a crítica que Nietzsche faz à religião, particularmente ao cristianismo, me apoiarei nos seguintes conceitos cunhados pelo filósofo alemão: o eterno retorno, super-homem e a vontade de potência. Devemos reconhecer, de imediato, que a filosofia nietzscheniana é uma filosofia de afirmação da vida e do homem.
Assim como Marx, que exprimiu seu ateísmo de modo sintético na frase “a religião é o ópio do povo”, Nietzsche também tinha a sua frase aforismática, que era “Deus está morto”. Antes, porém, de compreender o que significa essa afirmação, devemos voltar nossa atenção para a concepção que Nietzsche tinha de religião. Para ele a religião ou o cristianismo negava a vida no âmbito teórico e prático. Reconheceu que, no discurso cristão, o homem e o mundo são aviltados, a vida é desvalorizada em favor de uma vida transcendente. A religião, assim, destrói a vida.
Em Humano demasiado humano (apud. Urbano, p. 166), afirma:
“Nunca houve religião que contivesse, nem mediata, nem imediatamente, nem em dogma nem em parábola, uma verdade. Porque foi de inquietação e da necessidade que cada religião nasceu. Foi através dos erros da razão que a religião se insinuou na existência; terá talvez, ao ver-se posta em perigo pela ciência, introduzido falsamente uma teoria filosófica no seu sistema, para que ali a encontrem estabelecida mais tarde, mas trata-se de artimanha de teólogos, surgida no tempo em que uma religião duvida já de si própria”.
Nietzsche acusa o cristianismo de inaugurar uma moral de rebanho. O filósofo ataca a obra de Paulo de Tarso, a quem se atribui o papel de inaugurador histórico do cristianismo, dizendo ter sido ela produzida “com o cinismo lógico de rabino”, pois que teria deturpado a felicidade proclamada por Jesus. Ao declarar a morte de Deus, Nietzsche restitui ao homem o seu lugar de direito na vida e na história neste mundo. Os homens são os assassinos de Deus, mas não têm consciência de seu assassínio. Deus é criação da fraqueza dos homens, de sua debilidade. A morte de Deus significa a liberdade do homem. Matando a Deus, a humanidade se renova, sai das trevas da submissão e da moral de rebanho e afirma a vontade de potência. Nietzsche não afirmou não acreditar em Deus, afirmou, implicitamente “eu tenho vontade de que Deus não exista”. Deus é, assim, apenas um pesadelo, uma fuga. Não subjaz àquela expressão um estado de luto, mas um sentimento de vitória do homem.
Nietzsche assume as consequências da morte que declara. A consciência da morte de Deus, que para o filósofo surgiu do nada, significa aceitar o nada – ausência plena de sentido. Nisso reside parte de seu niilismo. O homem, reconciliado com o nada, impregnado do sentimento niilista, afirma-se como potência. A vontade de potência exprimisse como a vontade de o homem superar a si mesmo. O homem quer ser Deus, no lugar de Deus deve surgir o super-homem, o homem que valoriza a vida instintiva, que, uma vez reconhecendo a irracionalidade da moral, dos costumes, dos valores, funda seus próprios valores. O super-homem não é um homem todo-poderoso, mas um homem que experimenta a liberdade em toda a sua potência e autenticidade. É o homem livre das amarras do costumes, o homem cuja tarefa é construir seus próprios valores. Para Nietzsche, crer em Deus é agarrar-se a falsos valores, é permanecer entorpecido no estado de ignorância. Destarte, nos esclarece Urbano (p. 174):
“O homem atribui valor às coisas para dominar a vida. Assim, o mandamento cristão do amor é a afirmação dos fracos. Quando falamos em valores, falamos sob a perspectiva da vida. Os valores originam-se da necessidade da vida. Não têm significação metafísica ou religiosa. Se os valores forem projetados na religião, considerados como valores dissociados da vida, tornam-se hostis à própria vida”.
Nietzsche proclama a volta ao nada. Seu niilismo, contudo, é ativo, expressa-se pela vontade de poder. Nele, o homem quer ser, ele é resgatado pela consciência da submissão a valores absurdos. O filósofo proclama os homens a viver esta vida em toda a sua potência. O conceito de eterno retorno, que consiste em pensar o tempo de modo cíclico, de sorte que não se pode admitir uma separação entre um passado, um agora e um futuro, pois que o instante vivido neste exato momento já fora vivido em outro momento. O futuro já é passado, e o presente é tão passado quanto o futuro. O tempo é um retorno eterno. Tudo que se vive já foi vivido. É através do conceito de eterno retorno que Nietzsche tenta superar o niilismo. Segundo Urbano, trata-se de um conceito que encerra em si uma contradição, já que, ao mesmo tempo em que busca superá-lo, também o afirma cabalmente. O eterno retorno radicaliza o niilismo: não há promessa de uma vida transcendente num futuro atemporal, não há Deus que nos assegure tal portentosa felicidade.
Evidentemente, a crítica nietzschiana da religião também sofreu críticas, mas destas não me ocuparei aqui. Consideremos, finalmente, o legado de Freud.
3. Freud: a religião como neurose obsessiva
Podemos encontrar um denominador comum ao pensamento de Marx, Nietzsche e Freud, no tocante à crítica que fazem à religião e à ideia de Deus: todos três tratam-nas como fruto de uma ilusão. Todos três também se arvoram no combate crítico a toda forma de submissão a valores e aceitação de verdades eternas inquestionáveis.
Freud (1856-1839), considerado o pai da psicanálise, nasceu numa família judaica ortodoxa, mas aderiu ao ateísmo ainda na infância. Experimentou certo anti-semitismo de cristãos, o que reforçou seu desapreço pela religião. Freud entusiasmara-se com os auspícios da ciência de sua época, uma ciência que evoluía promissora, especialmente com o surgimento da teoria evolucionista de Charles Darwin, por cujas ideais foi influenciado.
O interesse de Freud não era discutir a existência ou não de Deus. Para ele, Deus não existe; essa ideia é pressuposta em toda a sua tentativa de explicar o fenômeno e o sentimento religiosos. Freud propôs um mito, pelo qual explicava a origem da religião, particularmente do judaísmo-cristianismo.
O psicanalista entenderá as experiências religiosas à semelhança das experiências nos estados de neuroses obsessivas: a ambas há em comum a compulsão por repetir certos atos. A religião significaria a renúncia às pulsões egoístas. Para Freud, Deus nasce de um sentimento de desamparo, experimentado pelo homem, já na sua infância, por consequência da perda da proteção da mãe e, principalmente, do pai. A religião substituiria a proteção paterna pela projeção de um Pai divinizado e elevado ao céu, a quem se delegaria o papel de protetor.
A ideia de Deus decorre da tentativa de o homem dominar a natureza e de defender-se contra as suas forças devastadoras e destrutivas. Assim é que os homens olham-na como um pai todo-poderoso, resgatando a condição infantil, na qual a criança se mostra desejosa do amparo do pai. Como a religião nasce no interior da cultura, afinal, é produto da cultura, e como a cultura é a expressão da necessidade humana de coibir os seus instintos agressivos que, do contrário, levariam a humanidade à ruína, numa “guerra de todos contra todos”, Deus é criado na esperança de que os homens sejam protegidos contra a irracionalidade e as ameaças da natureza.
Assim como o neurótico, o religioso se recusa a aceitar o sofrimento e a aridez da vida. Na neurose, assim como na religião, os homens fogem para um mundo infantil, em busca da proteção perdida. A religião vem preencher um vazio no homem. Embora reconheça que as religiões contribuíram para coibir a agressividade natural dos homens, questiona-as nos seguintes termos: a) por que devemos crer sem exigir provas racionais? b) Devemos crer por força da tradição, da crença de nossos antepassados? c) Devemos crer pelas provas da tradição? Ele nos responderá: a) se se nega a apresentar provas, é porque se sabe não tê-las; b) nossos antepassados acreditaram em muitas coisas, que hoje sabemos serem falsas; c) devemos questionar a procedência dessas provas.
Ao referir-se ao sentimento de dependência do homem para com o divino, escreverá Freud em O mal-estar na cultura:
“(...) não se deve simplesmente a uma sobrevivência dessas necessidades infantis, mas é permanentemente reanimado pela angústia do homem diante da preponderância do destino”.
Já Jung propunha fazer ciência a partir do divino. Em seu tempo, o teólogo alemão Eugen Drewermann, também psicoterapeuta, critica o discurso eclesiático por não alcançar o fundo da alma humana. Para ele, a Igreja não se preocupa com os problemas reais da existência humana. O trágico dessa existência é consequência da natureza pecaminosa do homem. Novamente aqui, está em foco a tendência da Igreja a aviltar a condição humana e o mundo em que os homens vivem. A teologia sobre a qual recai a crítica de Drewemann é a que reza que, para saber, primeiro é preciso crer. O conhecimento chega-nos pela Revelação cristã – revelação esta que não passa de um grande mistério, um modo de mascarar o que, na realidade, é um vazio.
Finalmente, cabe considerar por que razão a sexualidade é privada de seu caráter sacramental, de sorte que o sexo traz o selo de pecado, no Antigo Testamento. As religiões da Natureza e da fecundidade se constroem com o simbolismo masculino e feminino, os quais são destinados, pela relação sexual, a se unirem. A terra é, assim, o símbolo do feminino; e o céu, do masculino. O céu fecunda a terra. A relação sexual é, pois, sacralizada. Temendo o crescimento de tais religiões, o judaísmo, e posteriormente o cristianismo, atribuirá ao sexo o valor de pecado, considerará a sexualidade como uma via para a perdição e para o pecado. Portanto, no Antigo Testamento, o sexo é dessacralizado.
Reitere-se que, para Freud, o sentimento e a prática religiosos decorrem de uma infantilização do homem. Dirá o inventor da psicanálise: “O homem não pode permanecer criança. O infantilismo deve ser superado”. Para Freud, um indivíduo que goza de saúde mental deve escusar essa “neurose obsessiva e universal da humanidade”.
4. Que caminhos se abrem?
Ainda que a exposição do pensamento desses três pensadores, que se dedicaram, entre outras coisas, a refletir sobre a religião e a lançar sobre ela sua crítica, tenha sido muito simples, parece-me que ela nos ilumina alguns caminhos para reflexão. Esquematicamente, veja-se o que podemos colher das reflexões de cada um dos eminentes pensadores:
a) De Marx
Uma das preocupações de Marx foi estudar o que leva as pessoas a não se aperceberem das condições de injustiça e exploração em que vivem na sociedade capitalista. Marx buscou explicar o que fazia com que as pessoas continuassem a viver em tais condições. A resposta à sua indagação se achava no conceito de ideologia. Com o conceito de ideologia, Marx mostrará o porquê de os homens não serem capazes de superar tais condições, visto que a ideologia fornece um conjunto de justificações/ explicações coerentes que invertem a relação entre a ideia e o real. Destarte, na ideologia, as ideias explicam o real, e não ao contrário. A ideologia mascara o verdadeiro real, ou seja, as condições reais de existência. O que é uma condição de injustiça e exploração aparece, nos sistemas ideológicos, como condição justa e igualitária. Por exemplo, a ideologia ensina/ prescreve que o trabalhador trabalha em troca de um salário; mas mascara o fato – o que realmente acontece – de que o trabalhador vende sua força de trabalho, a qual é mais uma mercadoria, em troca de um salário, cujo valor não corresponde ao tempo de trabalho gasto para a produção de uma mercadoria, visto que desse valor é descontada a mais-valia, que é o valor de trabalho não-pago (lucro do capitalista e fonte de seu capital). No processo de produção, tanto os trabalhadores quanto o dono dos meios e das condições de produção (o capitalista), se tornam mercadoria. Nesse processo, os homens são reificados (transformados em coisas). Marx perceberá que tal processo redundará num fetichismo de mercadoria, ou seja, uma situação em que as mercadorias terão, por assim dizer, vida própria, decorrência da alienação. Sabe-se que o termo fetiche é tomado à religião e significa um objeto que tem poder místico ou mágico sobre quem o adora. No fetichismo de mercadoria, as mercadorias parecem ter vontade própria e elas medeiam as relações entre seus produtores, então também transformados em coisas (mercadorias). O valor da mercadoria, que aparece quando da compra pelo consumidor, é produzido em outro lugar e momento. Nem os consumidores nem os trabalhadores têm consciência de como esse valor é determinado; ele, assim, se torna independente tanto de uns quanto de outros.
A religião, interpretada sob a perspectiva ideológica e fetichista, deverá ser considerada, assim, uma forma de ideologia, visto que, na religião, inverte-se a relação entre o real e a ideia. Em outras palavras, entre os verdadeiros produtores e o produto. Assim, na religião, Deus (o produto, a ideia) aparece como criador e os homens (seus produtores reais), suas criaturas. Antropologicamente, a ideia de Deus e as religiões, com todas as suas entidades, rituais e símbolos, são criação humana. Os homens é que criaram deuses, e não ao contrário. Eis, então, a inversão ideológica.
Para Marx, a ideologia é, pois, uma falsa consciência, muito embora tal interpretação não seja aceita por muitos teóricos atualmente. O termo ideologia será, aliás, entendido de modo diferente, dependendo do especialista e de sua perspectiva teórica. Teóricos há que insistiram no caráter hegemônico da ideologia, a saber, no fato de ela servir para estabelecer e sustentar relações de dominação e reproduzir o status quo, que favorece aos grupos dominantes.
Marx acusava as religiões, especialmente o cristianismo, de não se preocuparem com a miséria dos homens, com os reais problemas sociais. A acusação tem fundamento, pelo menos o tinha à época. Vale lembrar que o próprio Leonardo Boff, em seu livro Igreja, Carisma e Poder, oferece um retrato das formações teológicas ao longo do tempo e reivindica uma nova teologia ( a Teologia da Libertação) que se voltasse para as causas populares, para os direitos e necessidades das classes populares. No presente momento, não posso avaliar se a Igreja está mais preocupada em conservar seu prestígio e em policiar a obediência aos seus preceitos ou em mobilizar-se no sentido de participar ativamente do processo social. Lembramos, contudo, que o nosso Estado é laico, o que significa que não pode intervir nos domínios e assuntos eclesiásticos. Igreja e Estado ocupam esferas separadas. O Estado assegura aos cidadãos o direito de professar qualquer religião e crenças. O que nos parece necessário é uma abertura maior da Igreja para a discussão de assuntos polêmicos, tais como o aborto, eutanásia e o casamento homossexual, por exemplo. Recentemente, ao saber que a Dilma estaria disposta a descriminalizar o aborto, um padre solicitou à comunidade de sua paróquia que não votassem na candidata do PT. Refiro abaixo um trecho da reportagem, colhida do site www.band.com.br/jornalismo/eleições 2010.
“Durante o sermão da missa realizada nessa terça-feira dentro da comunidade católica Canção Nova, o padre José Augusto disse aos fiéis que o país irá mudar para pior se a candidata do PT à Presidência da República, Dilma Rousseff, vencer a eleição.

“Os rumos da nação brasileira estão prestes a mudar para pior se, neste segundo turno - e eu vou falar com clareza - o PT ganhar”, disse ele. Suas falas foram registradas ao vivo pela TV e também foram parar na internet, em vídeo que já foi visto mais de 16.000 vezes na rede mundial de computadores (o vídeo foi posteriormente retirado do Youtube).

“Podem me matar, podem me prender, podem me processar, e, se tiver de ser preso serei, mas eu não posso me calar diante de um partido que está apoiando o aborto”, completou José Augusto, que também se pronunciou contra o casamento homossexual.

Ele ainda afirmou que o PT estaria tentando aprovar leis contra os meios de comunicação religiosos, que passariam a ter uma hora de programação por dia. “Ai daqueles que se filiaram aos partidos comunistas”, pregou o padre. “Quem compactua com pessoas que aderem ao aborto está excomungado”, disse também o religioso.”
Atento à repercussão do episódio, o fundador da comunidade Canção Nova, não hesitou em declarar:
“Ontem, mesmo dia do sermão, o monsenhor Jonas Abib, fundador da comunidade Canção Nova, divulgou uma nota oficial, na qual diz: "a Canção Nova mantém-se alinhada à catequese da Igreja Católica e à sua doutrina comprometida com o direito à vida e à dignidade humana".

Em outro trecho, diz que a Canção Nova "não vê cada candidato por suas bandeiras, mas os acolhe como filhos amados de Deus. Cada fiel deve votar de acordo com suas convicções e com a doutrina social da Igreja. (...) Por fim, peço em nome da Canção Nova, perdão por qualquer excesso", diz ele no comunicado.”
O trecho em que Dilma afirma sua intenção segue-se abaixo:
“Em outubro de 2007, a então ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, foi sabatinada pelo jornal Folha de S. Paulo e disse: "eu acho que tem que haver a descriminalização do aborto. Hoje, no Brasil, é um absurdo que não haja a descriminalização do aborto". O vídeo foi postado na internet por pessoas simpáticas ao PSDB e está presente em blogs de apoio à candidatura tucana.”
b) De Nietzsche
O foco da crítica de Nietzsche parece ser o aviltamento do mundo e do homem pela religião. A tradição judaico-cristã, como sabemos, entende os homens como naturalmente pecadores, pois frutos do pecado original, e o mundo um lugar de perdição, de tentação. Não é por acaso que, de acordo com a representação religiosa da realidade, o mundo ocupa a posição intermediária entre o céu e o inferno, estando os homens, nesse nível intermediário, em conflito; constantemente tentados e indecisos entre a necessidade de buscar a “salvação” pela obediência aos preceitos do céu e o medo de sucumbir ao terror do inferno. O mundo só viria, assim, agravar esse conflito, donde se segue a importância da religião (a qual “re-liga” (“re-ligação”) o homem ao céu, portanto, a Deus). Viver no mundo é viver perdido: nascemos sem saber por que e vivemos para ser salvo sem saber do quê.
Com Nietzsche, podemos trilhar um caminho que nos leva à valorização da vida instintiva, da vida neste mundo, permitindo-nos questionar a desvalorização do homem pela religião e do próprio mundo em que vive. Essa desvalorização que, a princípio, parece entrar em conflito com a ideia de um Deus que ama a humanidade, que é infinitamente benévolo, trata-se de um estratagema para conservar os religiosos num estado de desamparo, de “culpa”, única condição para que se mantenham fiéis à doutrina e às práticas religiosas. Com Nietzsche, podemos dizer que, uma vez assumindo o valor do homem, uma vez restituindo-lhe a vontade de potência, uma vez valorizando esta vida, e não uma suposta vida transcendente, a do além, as religiões e a própria ideia de Deus deixariam de ter razão de ser. Deus, que está morto, segundo Nietzsche, seria, assim, enterrado; e as religiões se esvaziariam de sua força, de seu domínio sobre a consciência coletiva.
Finalmente, com Nietzsche, aprendemos que os valores não são criação de deuses e de religiões, mas dos próprios homens; como tais, são passíveis de transmutação. A chamada “moral de rebanho”, instituída pelo cristianismo, que prega uma obediência cega e dócil, pois irrefletida, cuja origem Nietzsche localiza no apóstolo Paulo de Tarso, principal propagador do cristianismo, deverá ser substituída com o nascimento do super-homen, uma classe de homens que reconhece seu potencial e explora todas as suas possibilidades. Deus sai de cena para que o super-homem ocupe o lugar de protagonista de sua própria vida.
Talvez, pudéssemos dizer que Nietzsche se notabilizou pelo seu espírito acidamente crítico e mordaz; um espírito demolidor de fundamentos, de crenças cristalizadas e irracionais, de dogmas que escravizam. Mas, certamente, Nietzsche foi um filósofo intrigante; quiçá, terá provocado admiração e repulsa, amor e ódio. Às vezes, temos a impressão de que ele era um soberbo, até intolerante e preconceituoso. Como fosse contrário aos costumes, ficamos tentados a considerá-lo um homem imoral, defensor da desrazão dos valores e profeta da decadência da sociedade ocidental. Pouco ainda li sobre Nietzsche, portanto, não me atrevo a avaliar criticamente sua contribuição à filosofia, decerto significativa e rica. Gostaria, entretanto, de referir três trechos do livro Ecce Homo (“Eis o homem”), que constitui uma autobiografia. Lá encontramos, no capítulo Por que sou um destino,
“Tenho conhecimento do meu destino. Sei que algum dia o meu nome estará relacionado, em recordação, a algo de terrível, a uma crise como nunca ocorreu, à mais tremenda colisão das consciências, a uma sentença definitiva pronunciada contra tudo aquilo que se acreditava, exigia e santificava até então. Eu não sou um homem, sou uma dinamite. E, não obstante tudo isso, não tenho rompantes de fundador de religiões; as religiões são coisas de gentalha (...)”
“A minha verdade é espantosa, porque agora a mentira se denominou verdade. “Transmutação de todos os valores”; eis a minha fórmula para um ato de suprema determinação de si mesmo na humanidade, ato que em mim tornou carne e gênio. O meu destino exige que eu seja o primeiro homem honesto, que eu me sinta em oposição às mentiras de vários milênios”
“Sozinho, fui eu o descobridor da verdade, porque fui o primeiro a sentir como tal a mentira... O meu gênio está nas minhas narinas. Polemizo como nunca se polemizou e, entretanto, sou o contrário de um espírito negativo”.
(p. 117)
c) De Freud
Vimos que Freud estava, particularmente, interessado em buscar as origens da religião, bem como a origem do sentimento religioso. Ou seja, queria saber que força é esta que impele os homens à religião. Na obra Totem e tabu, Freud recorrerá a um mito para explicar como a religião teria surgido. Assim, para Freud, ela surge de um assassínio. O homem primitivo adorava o totem. Este era um animal comestível. Uma vez ingerida a sua carne, os homens das tribos acreditavam estar possuídos do poder do totem, que seria transmitido às gerações. Como os membros das hordas tinham de submeter-se ao poder do mais forte, sob cujo domínio mantinha as fêmeas, eles se uniram para assassinar o chefe. O crime sucedeu várias vezes, até que julgaram por bem fazer um pacto, segundo o qual deveriam passar a respeitar o totem. Também instituíram a exogamia, com vistas a evitar a luta entre eles. Para Freud, dava-se aí o início das sociedades organizadas.
Evidentemente, há muitas teorias que tentam explicar como as religiões começaram, nenhum, aliás, pode ser provada. A origem das religiões continua um mistério insolúvel. Também a explicação mítica freudiana não resistiu a críticas, já que carece de fundamentação histórica. Muitas de suas hipóteses são hoje consideradas ingênuas e, portanto, caíram por terra.
Freud não estava, evidentemente, interessado na verdade histórica. Seu ateísmo orientou suas indagações e crítica à religião. Muitos que se seguiram a Freud não viam a religião como fruto de uma ilusão, de um desamparo infantil. Discípulos como Alfred Adler e Carl Gustav Jung se distanciaram de Freud, no que toca à compreensão deste e de outros aspectos relativamente à psicanálise. Adler cuidou que Freud teria dado demasiado valor à libido reduzido tudo quanto diz respeito ao comportamento dos seres humanos a ela. Jung rejeitou seu ateísmo. Adler, por exemplo, entendia a ideia de Deus como uma busca humana pela perfeição. Portanto, simpatizava com esse desejo legitimamente humano.
Creio em que o mérito de Freud tenha sido apontar para o hiato entre a natureza e a cultura. Ter sugerido que esta é o domínio da repressão ou da necessidade de reprimir os instintos agressivos dos homens – se bem que aqui caberia discutir se os homens são naturalmente agressivos, tal como pressupunha Freud – nos abre a possibilidade para a reflexão sobre o papel da religião em termos morais e éticos, o seu papel na vida dos homens, visto ser ela produto cultural. O problema é que, não raro, ficamos com a impressão de que a Igreja e as religiões pairam sobre a realidade sócio-cultural, de que são realidades suprassociais, supraculturais, porque produto do Absoluto, do Transcendente - o que é uma ilusão.
Muito ainda se poderia dizer sobre as contribuições da filosofia para a compreensão do fenômeno religioso e sobre Deus. Certamente, embora tenha me esforçado por sistematizar de modo o mais coerente possível as ideias daqueles pensadores, o quadro apresentado está longe de ser cabal; mas o creio bastante para incitar a reflexão, para abrir aquedutos pelos quais possam escoar pensamentos que nos permitam ancorar nosso espírito para além da grossa camada de obscurantismo e ignorância de que se revestiu nossa consciência quando do contato com o universo religioso. Propiciar um espaço crítico, um ambiente para férteis meditações, desimpedidas de censuras, de pavores absurdos, do medo que escraviza e nos torna conformados, esse é o objetivo deste blog.

O lugar da ideologia

Em A Ideologia Alemã (2005: 128), deparo-me com o seguinte excerto:





“Os homens fazem sua história, quaisquer que sejam os rumos desta, na medida em que cada um busca seus fins próprios, com a consciência e a vontade do que fazem; e a história é, precisamente, o resultado dessas numerosas vontades projetadas em direções diferentes e de sua múltipla influência sobre o mundo exterior”.


Contrariamente à posição hegeliana, que entendia a História como a “História do Espírito”, Marx e Engels concebiam-na como práxis (ou seja, modo de agir no qual o agente, a ação e o resultado da ação estão interligados e são inseparáveis). Consoante ensina Marilena Chauí (2006: 23), a história é o real, e o real é:
“o movimento incessante pelo qual os homens, em condições que nem sempre foram escolhidas por eles, instauram um modo de sociabilidade e procuram fixá-lo em instituições determinadas (família, condições de trabalho, relações políticas, instituições religiosas, tipos de educação, formas de arte, transmissão de costumes, língua, etc.)”
Importa reter dois aspectos fundamentais na base dos quais minha discussão se desenvolverá: a) a identificação da História com o real e a concepção deste como movimento incessante; b) a ideia de que os homens são agentes da História e, portanto, da realidade, mas, ao mesmo tempo, seu produto. Aqui, há que perceber a contradição inerente à condição social dos homens: ser agentes e produtos da realidade que eles mesmos produzem.
Agora, é necessário retroceder o pensamento à Antiguidade Clássica, a fim de buscar entre os gregos a definição de logos. Começo, pois, salientando que o conceito de logos remete-nos à importância da linguagem na vida da polis da Grécia Antiga. Embora ladeado de interpretações variadas, de que dá testemunho Heráclito, é possível buscar na harmonia entre Razão e Linguagem (ou Discurso) sua síntese. O logos é, portanto, um discurso racional que encontrará entre os sofistas um poder persuasivo e enganador. O logos assenta no pressuposto básico comum aos primeiros filósofos, segundo o qual há correspondência entre a razão e a racionalidade do real (Marcondes, 2008). O homem, através do discurso racional, pode conhecer o real, porque este é racional.
Na filosofia de Parmênides, encontramos a identidade entre o ser e o pensar. O ser é único, imutável, contínuo. Parmênides anuncia a unidade do ser e do pensamento, representada na unidade do logos.
A tarefa de Sócrates, da qual Platão foi seguidor, foi reconciliar logos e realidade, ou seja, restituir a unidade que havia entre logos e realidade, mas que se desfizera no trabalho retórico com finalidade pecuniária dos Sofistas. Entre estes, Protágoras sintetiza bem a posição sofística, ao declarar: o homem é a medida de todas as coisas. Instaura-se, pois, a perspectiva relativista, contra a qual Platão se posicionaria.
O logos, conforme a crença da época, antes da cisão provocada pelos sofistas, representava a garantia da harmonia entre o pensamento, o discurso e as ações. O ideal virtuoso do homem grego expressava-se da seguinte forma:
“Devemos aprender a conhecer-nos a nós mesmos para não deixar que se introduza em nós esse germe mau que é a ignorância da ignorância: não saber, e crer que se sabe, é a raiz fundamental do desacordo consigo”.
(Rougue, 2007: 12)
Ignorância, para os gregos, era sinônimo de escravidão. Aquela caminhava junto do Mal, visto que a maldade devia-se à ignorância. Num estado inicial, o homem ignora que ignora; num segundo estado, sabe que ignora ou sabe não saber, situação de um filósofo (portanto, amigo do saber); num terceiro momento, jamais terminado, o homem busca a verdade pelo exercício do pensamento filosófico. É pela aporia que o homem toma consciência de sua ignorância. Ela traz a luz do saber-se ignorante à consciência.
A questão do logos deixa entrever a crença numa correspondência entre linguagem e realidade. Pelo logos se diz o ser (se atinge o imutável). Na medida em que, através do logos (discurso), é possível chegar ao ser, é preciso discutir o valor da verdade. Esta é descoberta quando se diz o ser, ou seja, se faz ver claramente o ‘uno’, ‘o todo inteiro’. Cabe, então, uma pergunta: o que é a realidade? Orientados pelo senso-comum, nos apressaríamos em dizer que a realidade é tudo que existe (as pessoas, as coisas, os fatos, etc.). É, portanto, o mundo tal como se nos apresenta aos sentidos. O problema surge quando nos perguntamos sobre a possibilidade de existir a realidade independentemente do pensamento ou da mente humana, vale dizer, não seria o real um conjunto de representações do pensamento? A realidade, para os homens, é produto de suas interpretações, já que estruturada simbolicamente.
As duas perspectivas se resumem no conflito entre um realismo ingênuo, ou seja, a concepção segundo a qual o mundo dos objetos nos é acessível mediante a percepção sensorial; e o realismo crítico, o qual não admite a existência de uma realidade objetiva independente do pensamento. Há, aqui, uma dependência entre a realidade objetiva e a realidade mental.
Uma vez que se assuma o realismo crítico, impõe-se explicar como se dá a relação entre o mundo exterior e a mente; em suma, como se constrói a realidade, pois, aqui, a realidade não existe independentemente da mente que a pense, a elabore, a construa.
Da consciência do homem comum, que se orienta no cotidiano pelo senso-comum, passa ao largo a suspeita de que a relação entre homem e realidade é, basicamente, de ordem simbólica, de sorte que o que julgamos ser realidade é, sem que desconfiemos, um sistema de significações. Falamos de realidade social, cultural, política, educacional; deveras, são muitas as realidades sobre as quais falamos, porquanto são muitos os sistemas de significações no interior dos quais nossas relações se estruturam.
Ao considerar a questão da construção do mobiliário do mundo, de uma perspectiva cognitivista, José Luiz Fiorin (2005: 72), não descuidando de suas implicações, caso em que dialogou com a tradição filosófica de Descartes a Kant, pondera:
“Se o fato de não podermos dizer o mundo em si é inevitável, isso não significa que o mundo conhecido seja simples produto de nossas atividades cognitivas. Portanto, não há motivo para alvoroço: o mundo extramental existe. Contudo (...), todos os objetos de nosso conhecimento são produzidos no discurso, embora não se achem confinados ao discurso e podem ser intersubjetivamente comunicados”.
Fiorin vai buscar no discurso o meio de explicar a relação entre a realidade extramental e a mente. Pelo uso da linguagem (discurso), os homens produzem versões públicas do mundo, ou seja, constroem a realidade intersubjetivamente nas interações situadas sócio-historicamente. Observa ainda o autor:
“A língua é, assim, uma fonte de possibilidade de trabalhar e retrabalhar as versões públicas do mundo. Uma visão praxeológica e interacionista da língua não analisa as formas per se, mas as vê emergindo como fontes de interações. Importam menos as representações como tal e mais as atividades descritivas dos locutores”.
(p. 71)
Não negando o papel das representações na construção da realidade, Fiorin alerta para a necessidade de entendê-las como processos cognitivos dinâmicos que são de natureza sociointeracional e discursiva, e não simplesmente subjetiva.
De acordo com essa perspectiva, a verdade passa a ser um critério de validação das versões públicas do mundo, negociadas pelos atores sociais em interação, num dado contexto sócio-histórico.
Quero deixar clara aqui a minha posição: não se pode, ingenuamente, defender a existência de uma realidade em si, independente da cognição humana. A realidade existe para os homens, na medida em que é estruturada nas categorias da linguagem e reconstruída por meio dos esquemas da percepção condicionados pela cultura. Para além de sua materialidade sensível, a realidade existe enquanto estruturas de significação construídas pelo entendimento, que, longe de ser algo que orbita as esferas sócio-culturais, é delas resultado. Não existe uma coisa chamada “pedra”, sem que antes lhe confiramos um investimento simbólico, tornando-a um ‘dado’ significativo para a nossa experiência e consciência. E é também claro que a realidade é reconstruída continuamente no/pelo discurso, atividade sócio-interacional realizada por atores sociais inseridos num dado contexto histórico e ideológico.
Doravante, tentarei responder à seguinte questão, que nos leva ao problema inicial que toca à contradição inerente à condição humana: como explicar que os homens, embora sejam agentes da História, não se reconheçam como tais? Como explicar que eles não se reconheçam como agentes construtores de sua própria sociedade, responsáveis pelas suas próprias formas sociais de existência? Como isso é possível? O que levam as pessoas a reafirmarem coisas do tipo “não tem jeito, o mundo é como é”, “não queira mudar o mundo”, “é assim porque é”, “é a vida, fazer o quê?”, etc.?
Esse obscurecimento da consciência das reais condições sociais em que os homens, organizados em classes, se acham e vivem, deve-se à impregnação do logos (discurso) pela ideologia – assunto do qual passarei a tratar daqui para frente.
Coube a Bakhtin situar a ideologia no domínio do discurso ou do signo. Conquanto seu ponto de partida, para a consideração do fenômeno ideológico, fosse a perspectiva marxista, segundo a qual a ideologia era entendida como “falsa consciência”, o filósofo russo rever tal concepção e propõe a distinção entre a ideologia do cotidiano e a ideologia oficial. Esta é a ideologia relativamente dominante, a qual prescreve uma visão única do mundo. Aquela, por sua vez, tem seu nascedouro nas relações casuais e na relação de proximidade que estas mantêm com as condições de produção e reprodução da vida.
De um lado, há a ideologia do cotidiano, relativamente instável; de outro lado, a ideologia oficial, relativamente estável. Há entre ambos os domínios uma relação recíproca. A relação entre a infra-estrutura e a superestrutura se dá por meio do signo. Todo signo é signo ideológico. Todo signo recebe um ponto-de-vista, que representa um lugar valorativo a partir do qual a realidade é avaliada, classificada, interpretada pelos sujeitos sociais. As palavras são, portanto, tecida de inúmeros fios ideológicos.
Em Marxismo e Filosofia da Linguagem (2006), Bakhtin e Volochínov , no primeiro capítulo, no qual se ocupam da questão da ideologia e de sua materialização nos signos, insistem na necessidade de desvincular o estudo da ideologia da perspectiva psicológica, chegando a dizer:
o estudo das ideologias não depende em nada da psicologia e não tem nenhuma necessidade dela”.
(p. 36)
(ênfase no original)
De acordo com os autores, a consciência é um fenômeno sócioideológico e, como tal, deve ser estudada em sua relação constitutiva com as palavras, pois ela é povoada por signos. A realidade da consciência, consoante os autores, é o signo. Refiro, abaixo, o trecho em que os autores nos ensinam sobre a importância da consideração da palavra no tratamento do fenômeno da consciência:
“Há uma outra propriedade da palavra que é da maior importância e que a torna o primeiro meio da consciência individual. Embora a realidade da palavra, como a de qualquer signo, resulte do consenso entre os indivíduos, uma palavra é, ao mesmo tempo, produzida pelos próprios meios do organismo individual, sem nenhum recurso a uma aparelhagem qualquer ou a alguma outra espécie de material extracorporal. Isso determinou o papel da palavra como material semiótico da vida interior, da consciência (discurso interior). Na verdade, a consciência não poderia se desenvolver se não dispusesse de um material flexível, veiculável pelo corpo. E a palavra constitui exatamente esse tipo de material”.
(p. 37)
(ênfase no original)
Cabe apresentar a definição de ideologia, segundo a perspectiva do Círculo de Bakhtin. É em Voloshinov, no texto Que é a linguagem, que a encontramos de modo explícito:
“Por ideologia, entendemos todo o conjunto dos reflexos e das interpretações da realidade social e natural que tem lugar no cérebro humano e se expressa por meio de palavras [...] ou outras formas sígnicas”.
(1998: 107)
Das considerações desenvolvidas na tentativa de patentear o lugar privilegiado da formação, consolidação e expressão da ideologia, a saber, o discurso, é possível depreender as seguintes conclusões:
a) o logos, como acreditavam os antigos gregos, não pode dizer o ser, visto que quem diz são sujeitos cujas consciências são produto socioideológico. Disso se segue que eles enunciam de um determinado lugar valorativo;
b) A ideologia é um sistema de representação/ construção de sociedade e de mundo alicerçado no discurso, ou seja, encontra origem nas interações entre os atores sociais e nelas se desenvolve, se estabiliza e se dissemina;
c) A consciência, não tendo origem natural ou transcendental, é produto socioideológico; é produzida e modelada nas trocas simbólicas realizadas por atores sociais num dado contexto sócio-histórico e ideológico.

Superando a aparência


Postulado da superação da aparência

O meu quarto é o local de aconchego para o meu espírito – um viveiro de pensamentos. Quando me ponho a compor um texto, esforço-me por adestrá-los, por amansá-los, para que eles não me saiam trepados. Eles se digladiam com vistas a conquistar o primeiro lugar na cadeia em que são dispostos, segundo a vontade de meu espírito.
É consabido que a produção de um texto escrito pressupõe a construção, no imaginário do sujeito, que se faz autor, de um leitor em potencial. Essa operação espiritual é indispensável à boa condução do discurso em termos dos objetivos pretendidos e, consequentemente, em termos do alcance interpretativo que o texto poderá ter. Costumo ensinar aos meus alunos que todo texto escrito, uma vez tendo vindo a lume, torna-se produto social e, portanto, não mais propriedade de seu autor. Uma vez posto em circulação, ou seja, uma vez publicado, o texto entra a fazer parte dos processos discursivos constitutivos da História e, portanto, está suscetível a inúmeras possibilidades de interpretação e compreensão. Os sentidos que podem ser atribuídos a eles são vários, embora nem todos sejam possíveis. Se nem todos os sentidos são possíveis, então é lícito supor que haja certo limite para eles. Como demarcá-lo é questão controversa.
Como este texto será publicado em um blog, posso produzi-lo com relativa segurança a respeito do público receptor. Meus leitores são pessoas que admiram a beleza e a vasta dimensão de minhas palavras, o que me permite adornar o laborioso trabalho de elaboração textual com torneios mais sofisticados e esteticamente mais interessantes, porque sei se tratar de leitores que não são meros depositários de informações, processadores de dados de linguagem, mas agentes reconstrutores de conhecimento. Posso, com alegria, esperar deles uma compreensão responsivo-ativa, nos termos bakhtinianos.
A concepção bakhtiniana de linguagem se estabelece sobre a relação que esta mantém com o social e com a história, de sorte que vida e linguagem se interpenetram. A relação do homem com o mundo se dá através da palavra, elemento constitutivo de sua consciência.
Receio que este texto exceda à conveniência que se espera para um gênero textual como um blog; o leitor terá, portanto, o direito de cessar a leitura neste instante, se assim o desejar; no entanto, se cuidar merecedor este texto do dispêndio de sua energia intelectual e de sua paciência, creio em que, ao cabo da tarefa, encontrará contentamento e fertilidade anímica. Minhas ideias visam a fertilizar os terrenos infecundos e secos da alma do leitor, mormente daquele que sofre pelos efeitos depredadores da depressão. Advirto-o, leitor, que não deve incorrer em leviandade ao cuidar ser eu permanentemente deprimido, tampouco um homem dado ao culto do sofrimento. Sou apenas um indivíduo para quem a vida e as relações humanas são tomados para objeto de reflexão. E refletir é operar uma cirurgia pelo espírito na realidade.
A sala de aula é o espaço em que experimento um prazer singular e excelso: o de ensinar. Não sei que haja outra atividade tão gratificante do que contribuir para a edificação do humano no outro. Em outras palavras, é realmente prazeroso tornar ato aquilo que um indivíduo (estudante) tem em potência, através da prática de leitura. Durante cinco anos, vivi, decerto, cultuando o sofrimento, ruminando minha desilusão amorosa, os traumas de um amor inconstante, caracterizado por fendas e cicatrizes que não curavam, pois que eu vivia a esgaravatá-las. Assim, ia acumulando indigesto bolo alimentar de tristeza. Enquanto me entregava à poesia como um meio de fugir ao imperativo da realidade, sempre desconfortante, que se descortinava a cada tenra manhã, ia tornando o mundo mais estranho a mim; e eu, a ele. O mundo e eu nos tornávamos intoleráveis, e, em minha alma, residia uma presença inóspita de um eu imagético misantropo.
Vários meses de terapia, motivada, especialmente, pela nova condição a que o destino me lançou (talvez, não creia em destino, mas a referida condição é, certamente, algo que me aconteceu, e não por que fui responsável), foram necessários para que me colocasse novamente na órbita da dinâmica social. Meu “eu” estava deslocado; urgia que fosse recolocado no eixo. Atualmente, embora estabelecido num eixo, deveras, instável, meu “eu” ainda permanece invertido. A dificuldade de estabelecer amizades e relacionamentos estáveis e sólidos decorre justamente de minha inclinação ao poder do intelecto ou do espírito, em detrimento do poder reificador e idiotizante dos lugares-comuns, das conversações ralas, das experiências pueris que produzem um verdadeiro engessamento da consciência e fragmentação dos potenciais individuais. Nossa subjetividade acaba tendo de ser acomodada em modelos; tudo que é desviante de modelos (de pensamento, de beleza, de modos (ou estilos) de vida, de comportamento, etc.) deve ser afastado com críticas sem qualquer base reflexiva e consistente – críticas que não passam de meras opiniões, de reprodução inadvertida de lugares-comuns.
Encontrei nos livros uma forma de preencher um vazio existencial, ou seja, aquela desagradável sensação de que sou um estrangeiro numa sociedade que, tendo vindo antes de mim, ignora completamente minhas aspirações. Busquei nos livros a chave para compreender o conteúdo ideológico que subjaz e sustenta (mantém) afirmações do tipo “a vida é assim, não queira mudar o mundo”, com as quais vivia às voltas. Decerto, não sou ingênuo a ponto de acreditar em tal idealismo romântico. O próprio poeta da música, Cazuza, reconheceu a inexorabilidade da ordem social, ao cantar “aquele garoto que ia mudar o mundo, agora assiste a tudo em cima do muro”. Não precisamos, no entanto, ficar inertes “em cima do muro”, num estado de profundo conformismo. É a ideologia, que se encarnando nos sujeitos sociais, leva à aceitação das desigualdades, das injustiças, do status quo, dado que ela os justifica, fornecendo aos membros de uma dada sociedade explicações racionais, lógicas acerca do parecer social e invertendo, assim, a relação entre as ideias e o real. Por exemplo, acreditar em que o trabalho de cada um de nós faz o Brasil crescer é mascarar o fato de que o nosso trabalho é fonte ou causa da riqueza de uns poucos. O proletariado das fábricas e da indústria trabalha para receber o suficiente para manter-se vivo e capaz de continuar a produzir para o enriquecimento do proprietário dos meios de produção. Não é o Brasil que cresce; é uns poucos privilegiados pelas condições socioeconômicas de injustiça que alcançam o “crescimento”.
A fim de evitar que a atenção do leitor se disperse, organizarei este texto em subseções; cuido que assim será menos enfadonho acompanhar o desenvolvimento das cadeias de meus pensamentos.
A questão que procurarei discutir é: como superar a aparência?


1. Aparência e Essência

O estudo filosófico-epistemológico e linguístico ensinou-me que todo e qualquer empreendimento analítico levado a efeito pelo pensamento elaborador e reflexivo deve apoiar-se na distinção e definição acurada dos conceitos empregados numa discussão. Portanto, ao pretender argumentar em favor da superação das aparências, tenho de precisar o que entendo por aparência, sem o que toda a discussão se tornará vaga e, provavelmente, difusa. Vejamos, então, como conceituar aparência. Para tanto, recorro ao trabalho de Danilo Marcondes e Hilton Japiassú, Dicionário Básico de Filosofia, em cujo verbete aparência, se lê:
“1. aquilo que é dado das coisas ao sujeito na representação [fenômeno]”
“2. Aspecto enganador ou meramente superficial das coisas”.
(p. 13)
A primeira definição deve ser entendida no domínio da gnosiologia, resultante, portanto, de uma experiência cognitiva. A segunda definição parece estar relacionada ao domínio da natureza e de como ela é apreendida em nossa experiência sensível. Esta nos permite apreender tão-só as aparências, que compreende o mundo sensível de Platão, caracterizado pela mutabilidade. Trata-se do mundo apreendido pelos sentidos, e tal apreensão não se dá sem alguma forma de deformação ou engano. Para Platão, o verdadeiro mundo era o mundo inteligível ou das ideias perfeitas, cuja existência é independente. Trata-se de um mundo invisível, ao qual o espírito, pelo método dialético, deveria elevar-se. O fato de Platão considerar a existência deste mundo das ideias independente da existência do mundo sensível e imediato faz de sua teoria um “realismo das ideias”, visto que ele atribui realidade a esse mundo invisível.
Convém cuidar para que o leitor não se enfade do preciosismo filosófico com que vou lapidando este produto bruto verbal que vai tomando forma. Aprendi que, a despeito do caráter hermético de que se revestem alguns textos filosóficos, que não faz senão afugentar o leitor mais otimista, a filosofia tem muito a nos ensinar sobre a vida, sobre nossos conflitos, nossos medos, nossos desejos, nossa angústia, nossa existência social, nossas relações com o outro e com o mundo.
Prossigo, reconhecendo que não posso pensar a aparência sem seu correlato, a saber, a essência. A essência é aquilo que há de mais fundamental na coisa, é o que faz dela o que ela é. A essência é, por definição, imutável e constitui uma das divisões do ser, fazendo dele idêntico a si mesmo. O mundo inteligível ou das ideias de Platão é, portanto, o mundo das essências.
No Dicionário Oxford de filosofia, se acha a seguinte definição de essência, decerto mais elucidativa:
“o elemento básico ou primário do ser de uma coisa; a natureza da coisa, ou aquilo sem o qual ela não poderia ser o que é. Uma coisa não pode perder sua essência sem deixar de existir (...)”.
(p. 126)
A essência é, pois, uma propriedade indispensável à definição da realidade mesma da coisa ou do ser. Convém, contudo, definir o que é propriedade. Podemos entendê-la como uma qualidade que distingue uma coisa da outra, ou mesmo uma condição do ser, caso em que afirmamos ter uma pessoa a propriedade de ocupar um espaço. A essência é, então, a natureza subjacente ao ser.
Agora, é necessário situar o conceito de essência no domínio do humano, sobre o qual recai meu interesse neste texto. Com Sartre, devemos admitir que não há uma essência humana pré-estabelecida. A famosa frase “no homem, a existência precede a essência” do filósofo francês aponta para a ideia de que nós, seres humanos, “somos aquilo que fazemos do que fazem de nós”. A essência é, portanto, resultado de nossas experiências de mundo, nas quais o Outro desempenha um papel importante.
Se nós não podemos ser definidos na base de uma essência a priori, devemos reconhecer duas implicações desse postulado: a) a realidade humana é demasiado complexa (conforme veremos) para pretender reduzi-la a um suposto “princípio essencial”; b) e somos livres para escolher o que queremos ser. Ou seja, na medida em que não podemos assumir uma essência predeterminada para o ser humano, devemos reconhecer ser ele um ser de inúmeras possibilidades. Para Sartre, a essência humana é ser livre. É claro que Sartre sabia ser essa liberdade limitada pelas condições sociais de existência; no entanto, ele advogava que o homem tem sempre a liberdade de escolher.
Uma vez admitindo a tese sartreniana, somos forçados a reconhecer que o ser humano é capaz de superar o domínio das aparências, isto é, ele pode escolher ultrapassar a névoa das aparências que obscurece sua consciência para assomar ao mundo das essências, onde reside, conforme defende Platão, a verdadeira realidade. É claro que, no domínio teórico, é discutível a concepção de verdade; no entanto, mantenho-me, para efeito de discussão, no âmbito metafísico que entende a verdade como algo objetivo e passível de ser atingido.
Para encerrar esta seção, cabe perguntar com o que identificamos o nível das aparências em nossa sociedade contemporânea, denominada por alguns estudiosos como caverna pós-moderna (referência clara ao Mito da Caverna de Platão)? Talvez, a primeira identificação que podemos fazer é com a supervalorização da beleza e da necessidade de que todos se acomodem ao padrão estabelecido. A procura desenfreada por clínicas de estética, por cirurgias recompensadoras da falta de generosidade da natureza (com enxerto de silicones nos seios, de toxina botulínica para retardar o envelhecimento da pele (vulgo botox), o banquete de bundas e corpos formosos praticamente desnudos na televisão, com o propósito de angariar a audiência e estimular os impulsos eróticos mais primitivos do telespectador, então fatigado após um dia estafante de trabalho alienante, dão testemunho da valorização excessiva da aparência.
Aqui, cabe reconhecer que o belo é resultado de uma apreciação, de um juízo que é determinado sócio-culturalmente. Não se trata de algo imanente ao objeto ou ao ser. Em certas culturas, a obesidade é sinônimo de beleza e, portanto, mulheres e homens “gordinhos” são atraentes. Se aceitarmos que nossa percepção, nossas ideias, nossos juízos de valor; enfim, todo o nosso ser-no-mundo é determinado pela cultura a que pertencemos, não podemos aceitar ser o belo uma propriedade metafísica e imanente a coisa ou ao ser em si.
Com vistas a ilustrar quanto nos envolvemos em aparência, de sorte que não nos tornamos capazes de compreender o que está além de seu domínio, cito as palavras de Meacher, referidas por Zygmunt Bauman, ao considerar a atitude precipitada de aversão do governo americano ao terrorismo:
“Falta de disposição para contemplar o que está por trás do ódio: por que uma grande quantidade de jovens são preparados para explodirem a si mesmos, por que 19 rapazes altamente instruídos estavam prontos para se destruírem e a milhares de outras pessoas no 11 de Setembro e por que a resistência [no Iraque] está crescendo apesar de alta probabilidade de os insurgentes serem mortos”.
(p. 27)
O que se verifica aí é uma total falta de ponderação. Não se supera o nível das aparências porque não se preocupa em atingir o fundo, ou seja, “o que está por trás do ódio”.
Feita essa primeira crítica, passarei à próxima seção, na qual considerarei como os filósofos pensaram o ser humano.


2. Quem é o homem?


Desde já, rechaço qualquer forma de reducionismo no tratamento filosófico-antropológico do ser humano. Enquanto Dasein (ser-no-mundo), ou seja, ser capaz de transcender, de ultrapassar, de ser existente concreto, o homem é, essencialmente, complexo, haja vista à quantidade grande de perspectivas teóricas sob as quais pode ser considerado (filosóficas, antropológicas, psicológicas, linguísticas, pedagógicas, históricas, etc.).
Não pretendo também assumir uma perspectiva única com a qual poderei pensar o homem, muito embora a abstração seja inevitável. Esposarei a ideia de que o homem se caracteriza, fundamentalmente, pela razão e pela linguagem. Atribuo a essas faculdades a propriedade de ser meios de emancipação do ser humano. É comum a ambas o pensamento – instrumento indispensável à busca pela emancipação. Emancipar-se é libertar-se do embuste, da ilusão decorrente das aparências; é desanuviar a consciência da espessa camada de obscuridade, de ignorância.
O tempo e o espaço são escassos; portanto, não poderei considerar a relação entre pensamento e linguagem. No entanto, sem embargo do reconhecimento de que minha afirmação deveria fundamentar-se numa argumentação sólida, não hesito em dizer: não há pensamento conceitual fora dos quadros da linguagem. A possibilidade de conceptualização, ou seja, de representação mental da realidade e de suas variadas feições se dá na base de um sistema simbólico fornecido pela linguagem verbal. Insisto (e não me canso de afirmá-lo) ser a linguagem um sistema de categorização da realidade, uma forma de compreensão do mundo. Ela dá forma à massa amorfa do pensamento. As palavras criam conceitos com os quais podemos pensar e compreender o mundo.
Urge reconhecer duas formas de pensamento, as quais podemos designar como: pensamento elaborador e pensamento reflexivo. A primeira é aquela pela qual produzimos o conhecimento; é o pensamento produtor de conhecimento. A segunda é a forma de pensamento que se volta sobre si mesmo, que considera o já pensado, ou seja, que toma para objeto o conteúdo elaborado pela primeira forma de pensamento. Isso é refletir – um movimento do pensamento sobre o conteúdo elaborado.
Para Kant, “pensar é conhecer através de conceitos” (Crítica da razão pura). O filósofo alemão defendia que nós não conhecemos o númeno (a coisa em si), senão o fenômeno.
Pretendo apresentar ao leitor a dimensão da complexidade do humano. Para tanto, considero, doravante, a distinção feita por Augusto Cury entre o homo intelligens e o homo interpres. Trata-se de dois aspectos da essência humana. O homo intelligens, observa o autor, é resultado do homo interpres. O domínio do homo intelligens compreende os fenômenos da nossa consciência, que são de base inconsciente. Assim, segundo o autor,
“ao contrário daquilo que até hoje a psicologia acreditou, a maioria dos pensamentos que diariamente produzimos não é produzida debaixo do controle consciente do eu, mas pelos complexos fenômenos que estão imersos no campo de energia inconsciente da alma humana.”
(p. 76)
O homo interpres é responsável pelos fenômenos de interpretação, atividade sempre passível de distorção. Na verdade, Cury chega a admitir que todo processo interpretativo é , necessariamente, distorcido.
Não me será possível aprofundar-me nesse terreno; mas é importante atentar para o fato, sustentado pelo autor, de que cada ser humano é uma espécie de capitão de um navio (mente) à deriva, cujo controle total nos escapa. Muitos pensamentos que produzimos, mormente, os que nos afligem, nos flagelam, não podem ser postos sob a responsabilidade do “eu”, porquanto não foi o “eu” quem os produziu. Devemos reconhecer que, ao lado de nosso “eu”, vive um “outro-eu” que nos é estranho.
Podemos encontrar no pensamento de Max Scheler a importância declarada do estudo do homem: “Em certo sentido todos os problemas fundamentais da filosofia podem reduzir-se à questão seguinte: que é o homem e que lugar e posição metafísica ele ocupa dentro do ser, do mundo, de Deus”.
A antropologia filosófica é a ciência que se ocupa com o estudo da essência e da estrutura ética do homem. O desenvolvimento do pensamento filosófico grego clássico se deu na base do conceito animus, a saber, a alma, entendida como parte em que residem não só as faculdades intelectuais e as virtudes (prudência, justiça, temperança), como também as paixões.
Há uma gama variada de enfoques sobre o homem ao longo da história do pensamento filosófico. Platão, por exemplo, definia o homem como alma espiritual e imortal. Para ele, era preciso libertar a alma do corpo. Aristóteles, a seu turno, entendia o homem como um composto formado de alma e corpo, semelhante a todos os outros seres do mundo. Plotino considera o noesis – conhecimento intelectivo – como propriedade exclusiva da alma. Essas três perspectivas dão testemunho de um visão cosmocêntrica do homem.
É com o cristianismo, representado no pensamento dos filósofos cristãos, como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, que o homem é pensado na sua relação com Deus. Instaura-se um domínio de reflexão teocêntrica. Para Santo Agostinho, o homem é uma paixão excepcional e é na alma que Deus se manifesta com maior nitidez. Sua filosofia abrange as seguintes características: a) é inspirada em Platão, portanto admite a dicotomia alma e corpo; b) reduz o homem à alma; c) enfatiza a autonomia do conhecimento intelectivo.
São Tomás propõe um sistema filosófico de inspiração aristotélica, mais rigoroso e sistemático. Conquanto admita a dicotomia alma e corpo, entende não ser aquela subjacente a este, ao contrário. Para ele, a alma identifica-se com o próprio ato de ser de modo direto. A alma é, igualmente, imortal.
A filosofia moderna provoca uma outra mudança de perspectiva sob a qual o homem é pensado. Instaura-se a visão antropocêntrica. Descartes, Spinoza, Hume, Freud, Comte, Marx, Heidegger, Bloch, entre outros, estão entre os pensadores que defenderam esta visão. Não houve, contudo, uma ruptura definitiva com a herança filosófica clássica dos gregos. Persistia ainda a sombra do platonismo a orientar o pensamento filosófico moderno. Coube a Kant romper com as aspirações da metafísica, propiciando, assim, as condições para se pensar sobre o homem em terrenos mais sólidos, tais como o da história, da ciência, da cultura, da fenomenologia, da psicanálise, da religião, etc.
Em Marx, por exemplo, encontramos um enfoque econômico sobre o ser humano. Em Freud, vemos o homem do ponto de vista de sua natureza instintiva. Kierkegaard, por sua vez, o compreendia na base de uma teoria que contemplava a condição existencial de angústia.
Levo a cabo este texto, unindo os fios deste tecido de palavras com os seguintes pensamentos conclusivos:
a) a superação da aparência depende do exercício do pensamento reflexivo e do convívio aturado com os livros;
b) as experiências humanas só conseguirão superar a espessura da camada das aparências quando os indivíduos procurarem explorar o magnetismo da linguagem como meio de acesso ao domínio espiritual-anímico do Outro;
c) os valores que são dirigidos para a exterioridade devem ser conduzidos para a interioridade, onde residem as faculdades da razão e da linguagem e onde se encontra a arena das paixões e o céu das virtudes;
d) uma emancipação plena depende de uma educação que resista à ideologia dominante e que, principalmente, trabalhe as diferenças e a diversidade ideológica.
e) a superação das aparências depende de que os indivíduos alcancem a autenticidade, como forma de viver sem reificar suas experiências com o outro, de alcançá-lo naquilo que ele tem de essencial: seu próprio ser.
Reconhecermo-nos no outro para restituir o que somos, sem nos tornarmos objeto de consumo e manipulação, é o que nos identifica à complexidade do humano.

Ideias

Minha alma abriga muitas ideias; eu as tenho em penca. Algumas são mais nobres; outras, mais grosseiras; outras mais são bem encorpadas; algumas outras são esquálidas. Há ideias ufanas; outras, humildes; algumas edificantes; outras destrutivas. Há ideias dolorosas; outras que, embora prazerosas, devem ser dolorosamente esculpidas.
Ideias são o que movem este complexo orgânico-corpóreo em cujo cérebro eu resido. Este centro nervoso orgânico é, contudo, demasiado pequeno em face da imensidão de minha alma e de suas ideias. Sucede, entretanto, que não é o espírito que faz a História, tal como o cria Hegel. Marx não hesitou em demolir este idealismo. A História é feita por homens concretos em suas relações nas esferas de produção. Essas relações, contudo, são caracterizadas por opressão, injustiças, alienação e desigualdades.
A vida me é uma carga muito pesada, que tenho de arrastar até que a morte, querida amiga, me liberte com a sua leveza.
Ainda que as ideias, como sejam virtuais, não resistam à inexorabilidade da facticidade (no sentido de Sartre), tendo de se conformarem a ela, precisam obedecer ao princípio de realidade, tal como definido por Freud, qual seja, a necessidade de encontrar alternativas que satisfaçam aos apelos transgressores do id, satisfazendo as exigências do superego.
No entanto, não levo muito a sério toda essa parafernália conceitual do psiquismo freudiano. Não sei que haja uma sombra de concretude. É apenas hipótese. Não há certeza. As certezas são inúteis na vida, não valem sequer o pãozinho de cada manhã. A única certeza inabalável a que os homens têm direito é a certeza de sua finitude. A morte levará o corpo à deterioração em pouco tempo, menos tempo do que ele levou para alcançar a forma adulta e plenamente desenvolvida. Isso não significa que seja longa a vida; ao contrário, sua fragilidade é surpreendente: pode findar no curto lapso que separa o deslocar de um pé da calçada à rua. Nossa alma não é capaz de apreender a vida em toda a sua extensão; nossa memória se funda no esquecimento; e a vida nos escapa a cada instante; cada novo dia é menos um dia de vida. O nascimento marca o começo de nosso esgotamento. Nossa vitalidade vai se esvaindo gota a gota; mas isto se dá quando nossa vida transcorre sem muitas tempestades e contratempos, pois que não é rara a possibilidade de que ela seja tragada num átimo.
Invejo as pessoas que estampam na face uma alegria gratuita, muito embora relute contra as paixões da alma e preze as virtudes. Não se precipite em julgar, caríssimo leitor, ser eu insatisfeito, tampouco ser-me aprazível cultuar o sofrimento e o tédio. Não condeno a alegria; persigo-a diariamente. Sucede que não me basta sua aparência; ela precisa ser consubstanciada, ter entranhas, ser transcendente. É que procuro continuamente me autotranscender. Para mim, o ser dos homens é autotranscendente. A autotranscendência define-se como se segue (Mondin, 2009: 74):
“[sua meta] é a de reencontrar a si mesmo por meio da aquisição de um ser mais verdadeiro, mais próprio e mais autêntico, realizando uma ação mais plena e mais completa das próprias possibilidades”.
Concluo, pois, que autotranscendo toda vez que escrevo, pois que, ao fazê-lo, releio-me, me re-intepreto, me decifro. Procuro, mediante a laboriosa prática da escrita, potencializar a latência de minhas ideias demasiado elevadas. É nesse instante em que minha alma alivia-se das incumbências pesadas da vida; liberta-se, ainda que por algumas horas, de suas garras opressivas.
Não me agrado das pessoas que não experienciam esse reencontro consigo mesmas, que vivem com os ouvidos voltados para a exterioridade, a fim de captar sua balbúrdia, ao invés de recolher-se ao silêncio de sua interioridade. Quão difícil é experienciar a densidade, a espessura nos relacionamentos de hoje! O que se percebe é a superficialidade das aparências, o culto à vulgaridade, a pasteurização da chanchada, agora sob a forma de programas televisivos que combinam a insignificância com o grotesco e os servem num mesmo prato ao telespectador faminto por entretenimento alienante. Um dia desses, assistindo ao programa Pânico na TV, da Rede TV, - não por vontade, mas por pachorra, que me impedia de opor-me ao comando do controle remoto, já que quem o detinha era meu pai – fiquei realmente assombrado com a baixa qualidade daquele produto televisivo. Em cena, estavam os apresentadores do programa; e sentado, numa cadeira, um homem muito gordo. Cada um daqueles arriava um pouco as calças, de modo a deixar a bunda de fora e deitava de bruços sobre o regaço do gordo. Perguntar-me-ia o leitor: com que propósito? Esta talvez não fosse a pergunta adequada, pois a bizarrice não carece de finalidade. Ocorreu, então, que, uma vez debruçado sobre as coxas do gordo, que estava sentado, um apresentador do programa levava uma forte e única palmada nas nádegas, sob o escândalo de gargalhadas de seus colegas de trabalho. Era um espetáculo bizarro de vulgaridade; um declarado atentado contra o intelecto dos telespectadores – ou contra o pouco do que ainda lhes restava. Este exemplo ilustra bem a idiotização a que é submetida a massa de (tel)espectadores, segundo Adorno. É um exemplo claro da baixa qualidade dos produtos oferecidos aos indivíduos pela Indústria Cultural.
Minha alma é um caldeirão de ideias fervilhantes. Em mim, o pensar se identifica com o ser. Pensando o ser, vou-me repensando. A linguagem e os pensamentos (ou ideias) são o maior legado que um homem pode deixar à posteridade. Esta é uma lição que todos os pais deveriam ensinar a seus filhos. Tudo o mais é efêmero, degradável. A escrita foi, sem dúvida, a maior das invenções humanas, porquanto por ela pode-se conservar vivos os filhos do espírito.
Não concordo com qualquer forma de reducionismo, por isso rechaço a crença num fisicismo. Não somos apenas um complexo físico-orgânico. Sinto-me atraído pelo dualismo cartesiano. Creio em que para além do corpo há uma alma, uma substância imaterial. Há um substrato imaterial que é envolvido pela estrutura orgânico-corpórea. Afinal, temos consciência superior – uma capacidade sensível e intelectual, graças à qual podemos analisar, sintetizar, avaliar, compreender, representar os objetos por meio de ideias, de conceitos. São várias as formas de consciência, dentre as quais se destaca a consciência reflexiva. Com esta refletimos sobre os produtos de nosso pensamento e sobre nosso eu-mesmo. A esta devemos a possibilidade de conceber o self como diferente do corpo. Não sou um corpo, sou um espírito – um ser imaterial – vivendo num corpo. Essa concepção não poderia vir de outra realidade, senão da consciência humana, que é capaz de negar sua própria condição corpórea - a única, aliás, que lhe permite viver no mundo.
A vida no mundo requer corpos, matéria. A força da gravidade atrai os corpos para o chão; esta lei nos obriga a ter os pés no chão, por isso não ficamos a flutuar pelo céu. Minhas ideias, no entanto, flutuam, alçam vôos, para anunciar a liberdade de meu espírito, em que pese à austeridade da matéria.

O ser do AMOR


A essencialidade linguística
no homem: como chegar ao ser do Amor

Este texto constitui, de certo modo, uma continuação do texto A Expansão humana pela linguagem – novas reflexões. Ser ele uma continuação não significa que irá recuperar, necessariamente, todas as ideias presentes naquele texto. Procurarei conferir a este texto um caráter didático tanto quanto possível, sem deixar de lhe dar uma roupagem lírica, bem ao gosto de minha alma romântica.

Minhas considerações se apoiarão sobre as três seguintes premissas:


1) A linguagem é constitutiva da essência dos seres humanos;
2) A linguagem permite-lhes transcender à condição de corporeidade;
3) Como forma de transcendência, a linguagem permite que o ser do homem projete-se para fora de si.


Antes de prosseguir, preciso definir os conceitos de ser, transcendência e essência. Lembro que o idealismo é uma doutrina filosófica que visa a explicar a realidade tal como a experienciamos pelos sentidos (o mundo externo) na base do mundo interior, da subjetividade ou do espírito. Há várias formas de idealismo, entre os quais lembro o de Platão, melhor denominado de realismo das ideias, já que o “mundo das ideais” de Platão identificava-se à verdadeira realidade autônoma. Assim, a cadeira em que me sento não é o real, mas uma cópia do real, que, por sua vez, identifica-se à ideia de ‘cadeira’. E o de Berkeley – bispo anglicano e filósofo (1685-1753) – cuja doutrina idealista se denominava idealismo imaterialista, o qual consiste na crença em que o mundo material só existe no domínio das ideias, quer na mente de Deus, quer na do homem. Dizia que “Ser é ser percebido”.
Deixemos as miudezas filosóficas de lado, sem nos esquecer, contudo, de precisar o que é ser, essência e transcendência, conceitos fundamentais para o desenvolvimento de minha proposta. Não obstante a verborragia que o conceito de ser veio a desencadear ao longo da história da filosofia desde os antigos gregos – conceito que ora era considerado um problema meramente linguístico e lógico (ou mesmo tratado como um falso problema), ora alçado à dimensão da cosmologia e da metafísica. Vou compreendê-lo no sentido com que foi compreendido pelos filósofos pré-socráticos.
Estes primeiros filósofos se perguntaram sobre o “ser das coisas”, ou seja, a realidade última das coisas. Assim é que, com Aristóteles, poderíamos dizer que o ser dos homens é ser um animal racional. Uma das características envolvidas na questão do ser é o da sua ocultabilidade. O ser é, portanto, uma realidade oculta, sobre a qual está a aparência. O ser, ao contrário da aparência, sempre mutável, é imutável, continua sempre sendo o que é. Parmênides identificava o ser ao uno, ao imutável, à realidade que se chega quando se ultrapassa o mundo das aparências que, por definição, é múltiplo e mutável. O ser também envolve a crença em que se pode encontrar a verdade mediante a razão. O ser, enquanto expressão geral do pensamento, é um conceito que evoca outros, como estabilidade, imutabilidade e unidade. Parmênides nos diz “o ser é, o não-ser não é”.
Essência é outro conceito para o qual não há definições categóricas. Em torno dessa questão, giram inúmeras controvérsias, decerto desnecessárias para efeito de exposição. Terei de fazer uma escolha, inevitavelmente, com todas as consequências favoráveis ou não que toda escolha acarreta. A questão da essência das coisas prende-se à pergunta o que é x. Entendida na sua relação com a existência, a essência é um “setor” ou uma “parte” da coisa. Há quem considere a essência como algo independente, tão abstrato, que deve ser tomada em si mesma e se definindo como “é o que é”. Assumirei a posição de Leibniz, para quem a essência é algo que se inclina à existência. Em Platão, a essência situa-se na dimensão da realidade supra-sensível, ou no mundo inteligível onde há as formas ou essências.
O mundo sensível, ou seja, acessível à nossa experiência imediata e ordinária, através dos sentidos, relaciona-se às sombras do real; o mundo inteligível ou das ideias (no sentido com que Platão as entendia) relaciona-se à luz. É preciso, pois, superar o mundo sensível, o qual não é senão produto de sombras, simulacros do real, para chegar à realidade mesma, que é a das essências.
Finalmente, a transcendência evoca-nos a idéia de ordem superior, que ultrapassa, que supera. Transcender é um movimento para outra natureza. O homem se caracteriza pela autotranscendência, na medida em que “ultrapassa sistematicamente a si mesmo, tudo o que é, tudo o que adquiriu, tudo o que pensa, quer e realiza” (Mondin, 2008: 264).
Em geral, nos habituamos a entender a linguagem como um instrumento de comunicação – concepção reducionista da qual já tratei em outro lugar. O que o falante comum ignora é que essa espécie de faculdade é algo indissociável dele. Aprendemos nossa língua materna com uma facilidade e rapidez espantosa e extraordinária, comparável ao desenvolvimento da capacidade de andar. Aprendemos a falar com a mesma naturalidade com que aprendemos a andar, isto é, sem qualquer tipo de aprendizagem formal, esforço contínuo. A partir daí, nossa língua materna, tão arraigada em nossa mente passa a constituirmos enquanto seres humanos: homo loquens.. Nossas relações com o mundo e com os homens só são possíveis na base de nossa língua; ela perpassa todas as esferas de atividade de que participamos. Ao considerar a consciência como uma percepção que temos de nós mesmos e do que está em nosso redor, como consciência de algo (ter consciência é ter consciência de alguma coisa), devemos considerar o papel basilar que exerce as palavras, como signos que povoam a nossa consciência, a constituem como tal, porquanto permitem o contato dela com o mundo. Nossa consciência forma-se pelo contato das palavras que a povoam, portanto, que estão interiorizadas, com as palavras que circulam na realidade exterior a ela.
Entender essa relação entre linguagem e consciência como necessariamente constitutiva leva-nos a outra questão, a saber, a da relação entre linguagem e cognição. Não importa aqui discutir qual delas determina a outra, ou se há algum tipo de determinação. O fato é que existe uma intrínseca relação entre linguagem e cognição e creio não incorrer em erro ao dizer que a linguagem dá substância à cognição; ou ainda, a potencializa.
O signo linguístico é uma entidade que se compõe da união entre uma sequência sonora /kaza/ (casa) e o significado (registrado no dicionário). Sua importância sui generis reside em que, por definição, todo signo é signo de alguma coisa; um signo está no lugar de alguma coisa. Logo, para que falemos sobre “casa”, não precisamos estar diante de uma “casa” para saber o que significa ou que é uma casa. Imagine se quiséssemos falar sobre baleia e tivéssemos que trazer à audiência este animal, para que o público soubesse o que ele é. E pode-se ir mais além: quão impraticável seria ter de falar sobre todas as baleias. Isso pode parecer óbvio, mas disso o falante comum sequer tem consciência. O mundo chega a nós, “decomposto”, através dos signos de nossa língua; podemos, inclusive, através da linguagem, com o auxílio da imaginação, construir universos ou “mundos” que não tem existência objetiva, muito embora existam psiquicamente ou no imaginário.
Considerarei a alma como a essência humana. Entendo alma tanto no sentido psicológico (psique) quanto no sentido místico, ou seja, um princípio imaterial que anima o corpo. É na alma que reside a razão, a sensibilidade, as emoções, o desejo, a vontade, as paixões, as virtudes. Considero a alma humana como seu fundamento porque não podemos reduzi-la ao seu correspondente material chamado cérebro, se quisermos explicar sua natureza peculiar. Ao produzir pensamentos, ao investir-se de linguagem, a alma permite ao homem libertar-se de uma relação imediata com o meio; com a linguagem, a alma concede ao homem a possibilidade de evadir-se, expandir-se e dar passeios longínquos através de seus pensamentos, mesmo que o corpo permaneça parado. Alma é a única realidade de cuja extinção não temos certeza. O corpo, certamente, morre, torna-se inanimado. A morte do corpo é um fato físico-biológico; mas a morte ou não da alma é um mistério.
Assumo a perspectiva metafísica, ou seja, elevo meu pensamento para o domínio supra-sensível para meditar sobre a realidade em si. Atingir a realidade em si, com o concurso da linguagem, é, para mim, o único meio de experienciar um Amor desinfetado das imagens, das aparências, nas quais, não raro, está envolvido. Decerto, se trata de uma perspectiva idealista, que nega completamente a contingência da existência, quer do mundo, quer dos seres que nele habitam. No entanto, creio ser um caminho liricamente mais seguro pelo qual se pode trazer a poesia e a filosofia para o domínio da vida imediata.
Numa sociedade, claramente, individualista e hedonista, os relacionamentos entre homens e mulheres flutuam na dimensão das aparências, e sucumbem à tendência da vida líquida para incessante mudança, oscilação, flutuação, inconstância. É a alma, sede da linguagem, que deve ser o caminho para que o Amor, seja, verdadeiramente, o sentimento com aspiração à comunhão, à unidade.
Isso, contudo, só é possível, se os indivíduos tomarem o pensamento, em cuja base reside a linguagem, como possibilidade de produzir um magnetismo entre dois seres, e não entre duas coisas.


DESALINHAMENTOS....

Fico sentado, à mesa, observando o movimento habitual das pessoas; algumas conversam enquanto almoçam; uns grupos vão, outros vêm. É a hora do almoço e, embora eu esteja diante da realidade imediata e cotidiana, que minha consciência não pode alienar, em minha alma bailam ideias encimadas. Ocorreu-me, pois, uma questão: Será possível existir uma alma que está predestinada à nossa? Será possível um Amor ser destinado a cada um de nós pelas mãos de Deus? Será que, aos que pacientam e desejam ardorosamente experienciar um Amor que escape aos modelos socialmente estabelecidos, Deus não concederia o privilégio de experienciar esta forma de Amor sublimado?
Sinto-me infantil, tolo. Como é possível à alma, embora encerrada no corpo, ter pretensões tão elevadas? Como é possível que a alma crie e sinta muito além do que é conveniente ao princípio da materialidade? Como a alma pode, a despeito da morte ser um fato inexorável, idear uma vida além-túmulo, independentemente de ela existir ou não? Os animais não são capazes de tal liberdade. Em mim, sinto que a alma tem saudade de um mundo essencial, de uma realidade da qual ela não queria ter saído. Um lugar onde se pode experienciar toda a abundância do Amor imaculado, desenvenenado de toda sorte de vícios que a alma, enquanto encarnada, carreia.
Felizmente, a linguagem nos permite sonhar... E quem não sonha no/com o Amor, vive acordado num eterno pesadelo, procurando saídas em espaços cujas portas estão fechadas; pois que as palavras estão cada vez mais ralas e vazias; às vezes, esqueléticas na boca daqueles que não alcançam à essência do Amor.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Fiel a mim mesmo


Fiel a mim mesmo

Não escrevo para ser lido, mas para ser recitado, declamado, entoado. Quem supuser que é suficiente debruçar-se sobre meus textos, lançando olhares dispersos e superficiais sobre suas linhas, para chegar à compreensão ou, ao menos, a uma interpretação razoável, será forçado a interromper a leitura, em certo momento. Escrever é um ato de doação de mim mesmo; sou eu mesmo que me derramo; é minha alma que se despe, que exibe a sua nudez virginal. O leitor que me lê deverá também doar-se, pois só assim conseguirá atingir o substrato de algum sentido, entre os muitos sentidos possíveis.
Os mais religiosos deverão lê-los com as dedicação e concentração de quem se abandona a orações; deverão deter-se num estado de contemplação; deverão manter-se absortos. Meus textos requerem um silêncio imperturbável, quase sacro, porque convocam o espírito do leitor a partilhar de minha agonia verbal. O leitor fiel aos meus textos sofre comigo o meu sofrimento, que é belo e intenso, porque bebe da fidelidade de minhas palavras.
Não escrevo para entreter-me; não faço deste espaço um picadeiro para o meu espírito; há um peso sobre minhas palavras, uma vida que pesa ofegante. Escrevo para solucionar um problema; é a um problema que se deve a urgência da escrita. Escrevo para resistir-me, resistir à vida, superá-la na complexidade da sintaxe, inundá-la na profundidade da semântica.
Escrever e viver são meus sacrifícios; não há divórcio entre eles; vida e palavra se imiscuem, se enredam, compondo o oceano do meu ser. Ler-me é insuficiente; é necessário deitar seu coração sobre esta página; abandonar os pré-conceitos, os pré-juízos, as pré-concepções e lugares-comuns. Sinta-me com a nudez de sua alma; deixa que meus sacrifícios a absorva completamente. Os leitores que me são fiéis tornam-se meus cúmplices, as testemunhas de minha paixão.
Minhas palavras não oferecem fuga, não oferecem conforto, porque nos defrontam com o incognoscível, com o absurdo, com a angústia; andam de mãos dadas com a contingência; interpelam a Vida, ao passo que exalam o AMOR. Tornam-no o seu deus e o veneram; e não se cansam, mesmo quando contrariadas, ignoradas, incompreendidas.
Sou o que escrevo e escrevendo vou-me sendo, permanecendo, eternizando-me, doando-me, reinterpretando-me, para tornar-me fiel a mim mesmo. Em mim, o feminino sobrepõe-se ao masculino; a feminilidade está em minha alma; minha alma é feminina, porque doce, porque gera, porque doa, porque na fragilidade se fortifica, se regenera, se revigora. Minha alma é feminina porque é como um ventre, que dá à luz, que anima a vida. É feminina porque é forte, porque ama, clama, canta e suporta a dor. É feminina porque tornou a sensibilidade o seu altar, onde haverá de erigir seu AMOR e com ele viver, num dia, toda a eternidade.

Amor


Um breve olhar sobre o AMOR

As férias de fim de ano, em geral, não são muito vantajosas para mim, porque não me agrado das agitações exteriores; prefiro, ao contrário, a calmaria dos espíritos habituados a elucubrações. Disso se segue que fico mais tempo em casa, na companhia do tédio, que pesa e sufoca. Preciso voltar ao trabalho e às atividades do doutorado. Parece que, enquanto não passa o carnaval, o ano fica a engatinhar, se arrasta.
A televisão não oferece nada que nos entretenha e estimule; o calor não cessa e causa mal-estar. Agora, fico alguns minutos selecionando, mentalmente, as palavras adequadas que levarão este texto a bom termo. Às vezes, é melhor deixar a vida seguir seu curso e que o tempo se encarregue de levá-la adiante, já que, quando colocamos a vida sob exame intelectivo, ela parece estancar, fica represada. É um mau hábito que tenho: querer esquadrinhá-la, repensá-la, considerá-la em minúcias.
Para compor este texto, ouço a canção Coração Vagabundo, entoada por Caetano Veloso:


Meu coração não se cansa
De ter esperança
De um dia ser tudo o que quer
Meu coração de criança
Não é só a lembrança
De um vulto feliz de mulher
Que passou por meus sonhos sem dizer adeus
E fez dos olhos meus
Um chorar mais sem fim
Meu coração vagabundo
Quer guardar o mundo
Em mim
Meu coração vagabundo
Quer guardar o mundo
Em mim

Gosto dessa canção. E o leitor tem um coração vagabundo, desses que se entregam ao primeiro farfalhar do que se supunha ser o AMOR? Acho que meu coração ainda vive a vagabundear por aí... Vive de lembranças... de sonhos. Ele pode não querer guardar o mundo, mas certamente quer cingir o AMOR em si. Mas o amor de hoje é tão frágil, tão quebradiço; num instante, ele se desfaz.
Se a maturidade contem-me as lágrimas, enxuga-me a tristeza, faz-me concentrar meus pensamentos no que realmente me dignificará, eu desconheço os meios eficazes para esquecê-lo instantaneamente. Porque isso não sucede assim. Não deixamos de amar como trocamos de roupa. Uma experiência amorosa, por mais breve que seja, por mais precipitada e impetuosa que tenha sido, não se vira como uma página de livro. Algo se concentra em nosso espírito: um amargo, um dissabor, uma alegria tímida, a esperança agonizante, um desatino, a ingenuidade, a indiferença, um querer reprimido, o medo, a saudade. Algo em nós permanece e o que nos resta é aceitar o fluxo do tempo, que não para, embora pareça arrastar-se.
A única coisa que muda, quando acreditamos – certamente, por ingenuidade – que nossos projetos são incólumes às nossas frustrações amorosas, é o grau de descontentamento pela amputação amorosa prematura. Decerto, sinto que meu amor foi amputado. Certamente, os mais experientes dirão que desamores, desilusões amorosas são recorrentes na vida de qualquer pessoa; mas elas doem mais quando sabemos não ter havido qualquer desencontro ou contenda.
Eu levo o AMOR muito a sério. Amar é fazer do ser de um participante do ser de outro. Quando AMAMOS realmente, as duas existências deságuam uma na outra. Esse desaguar de nossas vivências, de nossas histórias de vida nos modifica de algum modo. De certo modo, não somos a mesma pessoa de antes. Por isso, a sabedoria popular nos diz que “cada experiência, um aprendizado”. Ocorre que esse ditame, em matéria de experiência amorosa, é ineficaz, pelo menos para mim. Pois, transcorrido certo tempo, meu coração não hesitará em derramar-se outra vez. Simplesmente, porque ele é inocente, ingênuo e não foi educado para antever os caminhos incertos que poderá percorrer. No fim das contas, é a tal vulnerabilidade do AMOR, a que já me referi. Amar é estar vulnerável; nada de vestir a couraça do orgulho e retrair-se. Coração revigorado para alçar novos e longínquos vôos! Mas não se pode arrepender-se por não ter arriscado, tentado; o AMOR não floresce todos os dias; demora algumas longas estações para nos acarinhar e acalentar com a sua graça.
E, como dizia um poeta, “o amor correspondido é uma graça inefável”.