sexta-feira, 23 de setembro de 2011

"Ser romântico é estar grávido de um amor que o mundo quer ver abortado" (BAR)

                            




Sobre o romântico


Na entrevista concedida a Jô Soares, em 1994, Renato Russo se diz romântico, após ter sido perguntado pelo apresentador se ele era um lírico. Jô aprecia a distinção entre ser lírico e ser romântico e esclarece: “o romantismo tem uma conotação de tragédia que o lirismo não tem”.
Uma pessoa razoavelmente instruída em Literatura, provavelmente, será capaz de reconhecer que temas como amor e morte, como fuga à ilusão amorosa, ao desencanto do real são constantes na literatura romântica. O Romantismo, como movimento estético-literário, é, tradicionalmente, estudado considerando-se três gerações através das quais se construiu a obra e o ideário romântico: 1ª geração se caracterizava pelo lirismo, subjetivismo, sonho, exagero, nacionalismo, idealização da mulher, do amor, da pátria. Nessa fase, a mulher era alçada à condição de anjo, sublimada, era considerada a virgem intocável, pura; era objeto de admiração, de veneração. O amor era o bem maior, sublime. A 2ª geração se caracterizava por um profundo sentimento de pessimismo e pelo gosto pela morte. Também a religiosidade e o naturalismo eram temas recorrentes. Embora fosse uma figura, então, alcançável, a mulher ainda era, nessa fase, pensada como fonte de uma felicidade inatingível. É sempre bom enfatizar que o amor romântico alimenta-se da alma e não do corpo. É à alma que ele se destina. "Páginas felizes são páginas em branco na história do amor romântico". O sofrimento é inevitável, já que a essência do amor romântico inclui o sofrimento. A segunda geração ficou conhecida como a geração do mal do século, visto que seus representantes derramavam sobre o papel denso sentimento de pessimismo, desilusão e melancolia. 
A 3ª geração é uma geração mais atenta aos problemas sociais, embora a crítica contemplasse uma grande dose de ironia e sátira. Nessa fase, a mulher ainda era idealizada, embora acessível.
Comuns às três fases do romantismo são a idealização, o egocentrismo, o subjetivismo, a exacerbação do sentimento ou o exagero lírico e o sublime. Convém insistir que o amor romântico é amor de desmedida, do exagero –  exagero tão bem cantado por Cazuza.
Anterior ao movimento conhecido como Romantismo (séc. XVIII), o Trovadorismo (séc. XII) serviu de modelo para o ideário romântico. Trovadores eram homens que compunham poesias melodiosas; as poesias, que eram cantadas, chamavam-se cantigas.
Uma cantiga merece destaque, para os fins que persigo neste texto: a cantiga de amor. Ela instaura uma relação de vassalagem entre o cavalheiro e a dama cujo amor aquele requestava. Essa dama era uma figura idealizada, sublimada e, portanto, inatingível. A ela se atribuía o título de senhora e o poeta trovadoresco punha seu coração a serviço dela. O poeta conservava o medo no coração e a dama rejeitava sua cantiga. Instaurava-se nessa relação a impossibilidade de realização do amor. Novamente aqui vê-se o amor como um ideal, como um desejo cuja satisfação estava fadada à impossibilidade.
Alguns estudiosos afirmam que a estética romântica se destaca pelo seu caráter atemporal, ou seja, foi um movimento que perdurou por séculos e que, ainda hoje, encontra raízes na literatura. Mas devemos lembrar que, talvez, o poema mais emblemático da rejeição dos valores românticos, com o surgimento de um movimento cultural, de caráter político, ideológico e literário, chamado de modernismo, na primeira metade do século XX, seja o poema-pílula de Oswald de Andrade, um dos grandes representantes do movimento modernista. O poema intitula-se de “Humor”:

Amor
Humor
(Oswald de Andrade)

Devemos ter em conta que o Romantismo aspirou à aliança entre amor e casamento. Melhor será dizer que o amor romântico foi, desde a sua origem, o amor-modelo para o casamento. Vejamos o que nos ensina a esse respeito a professora Isabel Osório, em seu livro O amor em palavras, o discurso amoroso em questão:

“O amor romântico, que surgiu a partir do final do século XVIII, (...) procurou unir amor e casamento. O início do amor romântico coincidiu mais ou menos com a emergência da novela, uma forma de narrativa recém-descoberta. Os ideais do amor romântico inseriram-se diretamente no pensamento que começava a surgir e vinculavam a liberdade e auto-realização. O amor sublime ainda predomina sobre o amor sexual. Embora o amor romântico abra um certo espaço à sexualidade, essa abertura não é tão grande ainda. Os ideias da virtude ainda são valorizados, só que agora virtude significa pureza somada às qualidades de caráter necessárias à mulher para o casamento”
(p. 67)
(grifo meu)

Em sendo um amor voltado para a alma, o amor romântico não encontrará na experiência sexual sua fonte de inspiração. De certo modo, parece haver um consenso entre os estudiosos que as aspirações românticas, o ardor que as anima, o ímpeto lírico tendem a arrefecer uma vez consumada a relação sexual. Uma vez correspondido, o amor romântico alcançará outra forma de ser: o amor philia (o da amizade). A euforia romântica dá lugar à afeição amistosa que, não deixando de basear-se no desejo sexual, encontrará no ser do outro um refúgio. Segundo Spinoza, essa forma de amor é “uma alegria acompanhada da ideia de uma causa exterior”. Trata-se do amor como regozijo pela própria existência do outro.
No Banquete, uma das formas como se representa o amor é o amor-eros, ou seja, o amor da falta, da carência. Eros era filho de Penúria, a Pobreza. O amante busca no objeto de amor o que lhe falta. Segundo Alain, “amar é encontrar sua riqueza fora de si”. Nesse sentido, o amor identifica-se à paixão.
Se considerarmos o fato de que a representação do amor romântico encontra na alma sua fonte de inspiração e se considerarmos o fato de que essa forma de amor busca enaltecer as virtudes do ser amado, não nos será custoso admitir que, na modernidade líquida (em nossa era), o amor romântico é lançado por terra em face da ideologia que separa sexo de amor. Este último é encarado como uma experiência confusa, indiscernível e pouco tangível. Donde se segue a insistência em que “homens fazem sexo” e “mulheres fazem amor”.
Acontece que a história nos mostra que o amor, como um bem maior, como a virtude sublime, sempre aspirou à eternidade, à superação da morte. E, quando vivenciado, levava o espírito dos amantes ao arrebatamento, ao delírio, aos eflúvios da imaginação, do sonho. Por isso, numa época em que impera o efêmero e a supervalorização dos corpos, como forma de capital, é pouco provável que uma forma de amor, inspirada nas sutilezas do espírito, no gênio lírico, resista.
Com Bauman, em seu Amor líquido, ponho fim a este texto. Atente para as preciosas palavras do autor:

“O homo sexualis não é uma condição, muito menos uma condição permanente e imutável, mas um processo, cheio de tentativas e erros, viagens explanatórias arriscadas e descobertas ocasionais, intercaladas por numerosos tropeços, arrependimentos por oportunidades perdidas e alegrias por prazeres ilusórios”.
(p. 75)

O romântico é, por definição, a encarnação da negação do mundo; filho do exagero, encontra no amor o alento para a vida que caminha para a morte inevitável.


quarta-feira, 21 de setembro de 2011

"O AMOR não basta num instante, porque aspira à eternidade" (BAR)


                          Das aparências       
                A infidelidade de nossos dias

Em Amor líquido (2004), Z. Bauman – nosso já conhecido sociólogo polonês – faz a seguinte observação no tocante à liquidez dos vínculos humanos:

“O desvanecimento das habilidades de sociabilidade é reforçado e acelerado pela tendência, inspirada no estilo de vida consumista dominante, a tratar os outros seres humanos como objetos de consumo e a julgá-los, segundo o padrão desses objetos, pelo volume de prazer que provavelmente oferecem e em termos de seu “valor monetário”. Na melhor das hipóteses, os outros são avaliados como companheiros na atividade essencialmente solitária do consumo, parceiros nas alegrias do consumo, cujas presença e participação ativa podem intensificar esses prazeres. (...) A solidariedade humana é a primeira baixa causada pelo triunfo do mercado consumidor”.
(p. 96)

O autor, como se vê, aponta-nos um caminho fértil para pensar os relacionamentos líquidos da modernidade líquida. Esse caminho é o caminho da tendência desenfreada ao consumo que se ancora na insaciabilidade dos consumidores. O consumo só é possível se os consumidores permanecerem sempre insaciados.
O comportamento consumista, caracterizado pela aquisição crescente de produtos e posterior descarte (já que para se consumir mais e mais é necessário que os produtos sejam cada vez mais descartáveis), se reflete, ou melhor, se estende às esferas dos relacionamentos afetivos. É a ideologia do consumo que rege o comportamento de homens e mulheres quando se relacionam.
Bauman lembra-nos também a tendência comum às sociedades modernas a reificar o homem, ou seja, a torná-lo objeto para o prazer imediato e interdito. Homens e mulheres são transformados, por força das condições consumistas, em objetos de consumo (bocas, nádegas, ancas, genitálias são consumidas sem despender qualquer energia anímica).
Esse consumo desenfreado de corpos deseroritiza os indivíduos. Essa deserotização (negação de Eros) consiste na tendência generalizada à vivência de relações frágeis e esvaziadas de sentimentos. O esvaziamento de alma parece estar no cerne dos relacionamentos epidérmicos.
Guido Mantega traz-nos, com bastante lucidez, uma contribuição que deve ser aqui referida. Em seu artigo Sexo e poder nas sociedades autoritárias: a face erótica da dominação, que consta do livro Sexo e Poder, o autor observa:

“Hoje, comparada com a da era puritana da Rainha Vitória, a liberdade sexual aumentou consideravelmente. Porém essa liberdade sexual deve ser entendida entre aspas, pois ela não representa a livre manifestação do princípio de prazer, mas sim uma sexualidade contaminada pelo princípio do desempenho econômico. Trata-se da “dessublimação repressiva”, onde, aparentemente, existe uma liberação do Eros, mas, na verdade, permitem-se as ações, mas não o sentimento. O indivíduo deserotizado, incapacitado de manifestar os seus sentimentos mais profundos, passa a intensificar seus “exercícios” sexuais. Para usar uma imagem pretensamente lírica, é um corpo amando sem alma
(p. 20)
(grifos meus)

Corpos amando sem alma, corpos esvaziados de sentimento, corpos deserotizados, incapazes de plenitude de ser – tudo isso representa a forma de uma sexualidade que é regida pelo “princípio do desempenho”. O princípio do desempenho torna a relação sexual uma relação entre um sujeito e um objeto, e não mais entre dois sujeitos. A suposta liberdade torna-se um condicionamento, não-consciente, a esse princípio regente. Segundo Mantega,

“[o ato sexual] tende a restringir-se a um ato individual, com pouca carga afetiva, e não consegue alcançar a qualidade de uma relação. O prazer mecanizado da sociedade de consumo (com bonecas de plástico, vibradores a pilha e outros engenhos) ilustra bem a solidão e alienação da sexualidade contemporânea”.
(p. 20)
A ideologia consumista está centrada no indivíduo e, portanto, liga-se ao individualismo. É interessante notar, nas palavras de Mantega, acima, que o esvaziamento emocional ou sentimental dos indivíduos torna seus envolvimentos seriamente empobrecidos, porque despojados de profundidade de alma.
È preciso agora compreender em que contexto sócio-cultural vivem esses homens e mulheres que se sentem atraídos por prazeres fugazes determinados pelo imperativo do desempenho.
Em Iniciação à Filosofia – Razão, Fé e Verdade, Tomás Melendo se ocupa da predominância do fazer sobre o ser. À página 32 de seu trabalho, escreve:

“[esse indivíduo moderno] no carro tem medo de ficar muito sozinho e, apressando-se, liga o rádio ou põe a mão no celular. E quanto mais veemente o vazio, maior a quantidade de ocupações nas que se refugia para não ter tempo de pensar”.

Ora, trata-se, como se vê, de indivíduos cuja vida se volta incessantemente para o exterior, é atraída pelos ruídos do exterior. São indivíduos incapazes, na maioria das vezes, de experienciar a si mesmos, de se confrontar com o seu próprio vazio. São indivíduos que simplesmente se “di-vertem”, se alienam de si em busca de prazeres fugazes provindos do exterior. Ora, o ser não está fora; está no interior. E é lá que devemos buscá-lo.
Esses indivíduos temem o sofrimento, as decepções, as frustrações e o tédio. Vivem à superfície dos envolvimentos a fim de evitá-los. Necessitam de agitações, de êxtase irrestrito para sentirem-se “plenos”, “livres”. Cuidam insuportável o vazio que os constitui, que aliás constitui o próprio humano em nós. A solidão é a experiência do vazio e esses indivíduos querem afastá-la.
À página 37, Melento faz-nos compreender como esses homens da modernidade líquida vivem imersos num universo de imagens, de simulacros, de aparências e como essa imersão afeta seu comportamento:

“Com efeito, num mundo em que os homens se vêem bombardeados por todo tipo de estímulos sensoriais, a atenção passa freneticamente de um a outro, sem que se saiba deter para tentar penetrar no sentido de algum deles. Assim, artigos ilustres de periódicos e revistas, imagens televisivas, peças publicitárias, efígies de Internet, tudo é “percorrido” por um olhar tanto mais ávido quanto menos capaz, no fundo, de acolher verdadeiramente a realidade. Deste modo, nasce o “equívoco”: “parece que se compreendeu perfeitamente tudo, que se agarrou e expressou, mas na realidade não é assim. Durante anos se vive numa concreta situação, com certas pessoas, seguros de que esse é o nosso lugar, de que as nossas amizades efetivamente o são, estando satisfeitos pelo que arrancamos à existência. Depois, talvez por causa de um incidente banal, esta ilusão “de uma vida verdadeiramente vivida” se esvaece a golpe, revelando-se na sua autêntica face – precisamente um “equívoco” – uma mentira na qual as pessoas se refugiam para livrarem-se da verdade”.


Um exemplo dessa situação são os matrimônios, cada vez mais fugazes. Imersão no mutável, no universo das aparências, a busca por prazeres imediatos e irrestritos, esvaziada de densidade sentimental são subterfúgios de que se socorrem os indivíduos da modernidade líquida para fugir ao encontro consigo mesmo.
Tais indivíduos vivem numa sociedade caracterizada pelo que Gilles Lipovetsky chama “império do efêmero”, ou seja, numa era cuja temporalidade tem curta duração. Nesse contexto, o presente é celebrado, o aqui-agora é a referência em torno da qual se situam as experiências; todo o prazer deve ser buscado nesse curto espaço de tempo. Nesse império do efêmero, predomina a lógica da moda: valorização do novo e do individual. Não há constância, não há permanência; nada se conserva, tudo muda, tudo deve passar (ou como se costuma dizer “a fila anda”).
Vale notar que as críticas de Bauman ao consumismo são orientadas no sentido de trazer à tona sua desvinculação com qualquer finalidade que transcenda a si mesmo. Ou seja, o consumo encontra finalidade em si mesmo; consome-se para consumir.
É nesse contexto sócio-cultural, governado pelo império do efêmero, no qual corpos amam sem alma, que devemos pensar a carência de fidelidade nas relações entre homens e mulheres – relações motivadas pelo imperativo do desempenho e estimuladas pelo imperativo da libido. Predomina-se o instinto fálico (símbolo do poder masculino) que se estende ao comportamento feminino.
A tão proclamada liberação sexual tornou, nas últimas décadas, homens e mulheres meros objetos de consumo sexual. Uma “igualdade” supostamente alcançada a expensas de sua objetificação.
Em outras oportunidades, insisti em que amor pressupõe fidelidade, compromisso, doação. Amar alguém é ser fiel a esse alguém, porque é ser fiel ao amor que se nutre por esse alguém. Na modernidade líquida, em que parece predominar o amor líquido (se é que possamos chamá-lo de “amor”; talvez, melhor dizer “desejo líquido”), fidelidade é incompatível com o padrão que estipula prazo de validade para as relações. Fidelidade requer permanência e, nesse contexto líquido, permanência dá lugar ao efêmero. Fidelidade requer compromisso; mas, num contexto em que predomina o aqui-agora, assumir compromisso é assumir uma grande quantidade de riscos.
Nesse tocante, Bauman tem muito a nos ensinar, quando considera a analogia entre investimentos econômicos e relacionamentos, à página 29:

“(...) Relacionamentos são investimentos como quaisquer outros, mas será que alguma vez lhe ocorreria fazer juras de lealdade às ações que acabou de adquirir? Jurar ser fiel para sempre, nos bons e nos maus momentos, na riqueza e na pobreza, “até que a morte nos separe?” Nunca olhar para os lados, onde (quem sabe?) prêmios maiores podem estar acenando?”.

Mais adiante, acrescenta:

“A primeira coisa que os bons acionistas (prestem atenção: os acionistas só detêm as ações, e é possível desfazer-se daquilo que se detém) fazem de manhã é abrir os jornais nas páginas sobre mercado de capitais para saber se é hora de manter suas ações ou desfazer-se delas. É assim também com outro tipo de ações, os relacionamentos. Só que nesse caso não existe um mercado em operação e ninguém fará por você o trabalho de ponderar as probabilidades e avaliar as chances (a menos que você contrate um especialista, da mesma forma que contrata um consultor financeiro ou um contador habilitado, embora no caso dos relacionamentos haja uma infinidade de programas de entrevistas e de “dramas da vida real” tentando ocupar esse espaço). (... ) “Estar num relacionamento” significa muita dor de cabeça, mas sobretudo uma incerteza permanente. Você nunca poderá estar plena e verdadeiramente seguro daquilo que faz – ou de ter feito a coisa certa ou no momento preciso”.

Ora, a fidelidade exige-nos um compromisso com a certeza, com a segurança. Nem o confronto com a certeza, nem a vulnerabilidade às incertezas, nem uma coisa nem outra interessará aos indivíduos ávidos de gozo egóico, de satisfação imediata, de prazeres efêmeros num incessante e renovado consumo desenfreado de corpos desejando sem alma.


"Não sei por que consumimos grande parte do tempo procurando entender os outros, quando deveríamos buscar entender a nós mesmos" (BAR)

                          
                     
                                      O essencial

Para encaminhar estas meditações a bom termo, começarei referindo uns trechos do livro Perdas e Ganhos, de Lya Luft. Aprecio as seguintes passagens e, deitando meus pensamentos sobre elas, os conduzirei por caminhos que, espero, o leitor também possa trilhar:

Tudo se complica porque trazemos nosso equipamento psíquico. Nascemos do jeito que somos: algo em nós é imutável, nossa essência tem paredes difíceis de escalar, fortes demais para admitir aberturas. Essa batalha será a de toda a nossa existência”.
(ênfase no original)

“O meu diminuto jardim me ensina diariamente que há plantas que nascem fortes, outras malformadas; algumas são atingidas por doença ou fatalidade em plena juventude; outras na velhice retorcida ainda conseguem dar flor”.


“Essa mesma condição também é a nossa, com uma diferença dramática: a gente pode pensar. Pode exercer relativa liberdade. Dentro de certos limites, podemos intervir”.
(grifo meu)

“Por isso, mais uma vez, somos responsáveis, também por nós. Somos no míninmo co-responsáveis pelo que fazemos com a bagagem que nos deram para esse trajeto entre nascer e morrer”.
(ênfase no original)

Essas lúcidas passagens se acham à página 27. Uma leitura polifônica nos permitiria ver nelas a voz sartreniana. A influência existencialista é inegável. A autora alude à nossa condição humana de seres pensantes, seres de angústia, em face da consciência da finitude da existência, de seres capazes de exercer certa liberdade, que não é total, mas cerceada por determinadas condições sociais.
Eu gostaria, contudo, de me deter apenas na opinião da autora, segundo a qual existe um núcleo duro em nós (que ela chama de essência, muito embora aqui ela divirja da posição de Sartre, para quem no homem a existência precede a essência). Talvez, ela não assuma uma essência prévia para o homem. Sartre insistiu em que o homem, ou melhor, a sua essência é resultado de suas experiências existenciais; é, pois, na existência que devemos buscar a essência humana. Talvez, não do homem enquanto gênero, mas do indivíduo.
De qualquer forma, estou de acordo com Lya. Há em nós uma essência rija, protegida por fortificações. Essa essência, quiçá, se identifique com o ser. Quiçá, resida nas profundezas daquilo que chamamos, com Freud, de o inconsciente. Essa essência constitui a base do iceberg que é o ‘eu’.
Aqueles que conseguem, ao longo da vida, desnudar a sua essência, ou melhor, parte dessa essência (supondo-se que uma grande porção dela está inconsciente, submersa) e confrontá-la com o mundo vivem autenticamente.
Há, pois, uma essência que nunca será modificada, ou completamente modificada. Mas o que entendo eu por essência? Em filosofia, a essência é uma das divisões do ser, é aquilo que faz da coisa o que ela é. A imutabilidade é atributo intrínseco à essência. Por definição, seguindo a tradição platônica, a essência é a negação da mudança, do devir. A essência é o que permanece inalterado.
Talvez, a esta altura, o leitor tenha ficado tentado a identificar a essência com a personalidade, já que, no homem, a essência é produto da existência. Primeiro existimos para então sermos (essência). No homem, o “eu sou” é “eu existo”. No entanto, a vida nos dá testemunho de que, dentro de uma mesma família, irmãos não têm a mesma personalidade. Embora criados pelos pais, comuns a ambos, cada qual tem seus traços específicos de personalidade. Um seguirá determinados valores herdados; outro dispensará alguns. Evidentemente, nossa formação não se completa na socialização primária (ou seja, no convívio com os familiares). Na verdade, nossa socialização está em aberto e se prolonga pelo resto da vida. Nunca se completa. Ela conta com a nossa participação em outras esferas sociais, donde a influência que exercem sobre nossa personalidade os amigos, os estranhos (“os outros”). Creio em que a personalidade é apenas a superfície que se põe a descoberto na vida social. O essencial em nós liga-se a uma intimidade que só conseguimos revelar num convívio muito restrito e prolongado.
Um casal apaixonado pode, eventualmente, trazer à tona a essência de cada um, mas ainda não me demovi da ideia de que é nos consultórios de psiquiatria que desnudamos a nossa essência. É lá que ela chora, que ela sangra, que ela dói.
Acho que somos grávidos de uma essência que dói. Carregamos o peso dessa dor; uma dor que nos punge sempre que nos damos conta de que somos capazes de pensar e pensar nos coloca adiante e nos lança à angústia. Estamos desamparados, como defendera Sartre? Possível. Fomos lançados à existência, sabemos que ela é finita e enquanto existimos podemos dispor dos pensamentos para buscar entendê-la. No entanto, o desamparo ainda é maior quando não se busca o autoconhecimento, quando não se conhece a essência que torna único cada um de nós.
       O eu só é possível pelo outro, que entre si compartilham o mesmo desejo: o da vida inesgotável

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

poemas





                                                                             
                                                                                 Passarinho

O amor é um passarinho
Que no Céu vive a pairar
Eu, de meu leito, o via pertinho
Levando-me no bico a dor de sonhar.

Descaía suave, cessava o santo vôo
Nos meus lábios, pousava o febril consolo
Dos olhos cerrados, uma lágrima ousada
Pendia ao ver que alheio se afastava

Voava! Na distância constelada e infinita,
Se perdia, ruflando as asas de Ouro!
Se via a mim numa dor incompreendida,

Voltava! De uma compaixão, mimoso,
Consumido. Uma Flor Azul no bico levava
E na mih’alma, jazida, a Flor deixava.

(BAR)





Verme lírico

Toda venusta mulher que a Lira inflama
Leva vaidosa um poeta preso ao sapato
Tépida! Posto que honrada levante da cama
E apaga d’alma o sonho que tem sufocado!

Livre! Leve! Lívia! Namora a vaidade
A mulher que clama e infunde canto
N’alma do poeta – verme lírico e nefando!
Que verte da terra imunda a Eternidade!

Toda bela mulher quando os densos versos
Líricos do poeta merencório, lê altiva
Mais melindroso do poeta o seio fica

Enche-se de entulho verbal anacreôntica ode
A bolsa de quinquilharias, os seios dispersos
Nua, ao deitar, a mulher o sapato remove.

(BAR)

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

"Se a morte é inevitável, a felicidade é necessária" (BAR)

                               

                           A felicidade
             Reflexões para a maturidade



      Quem quer que suponha que eu não sinta certa inquietude no momento exato em que me ponho a lançar sobre o papel minhas concatenações verbais equivoca-se redondamente. Quem quer que suponha que eu não sinto dificuldade para expressar com a devida coerência a complexidade das nebulosas de pensamentos que vão, não sem muito custo espiritual, tomando formas palpáveis e límpidas, à medida que vou dedilhando este teclado, está igualmente equivocado.
      A inquietude e a dificuldade experimentadas decorrem da seriedade com que desempenho tão laboriosa tarefa: escrever para fazer-me sentir e compreender. Uma manhã que começou ensolarada cedeu aos ventos atormentados que prenunciavam a mudança do tempo. Não tardou para que o azul do céu fosse dissipado pelo acúmulo de nuvens densas de água. Uma chuva fina caía dolorosamente como se estivesse sendo espremida pelo céu. Não sei que haja outra atmosfera favorável ao recolhimento do espírito aos espaços abertos pelas palavras. Creio ser o clima convidativo para longínquos vôos espirituais.
            Penso não errar ao dizer que todo o labor filosófico consiste em pôr em debate nossas crenças comuns, nossas opiniões correntes e quase nunca questionadas. Penso ainda não errar ao afirmar que a atividade filosófica é trabalho de reflexão sobre conceitos. Eu poderia valer-me de uma autoridade como Deleuze para assegurar a validade dessa afirmação, mas já o fiz em outra oportunidade. Por isso, ficarei satisfeito se o leitor não objetar ao axioma já referido e que exprimo nestes novos termos: a filosofia é trabalho espiritual sobre conceitos.
           Não precisamos ser especialistas em filosofia para saber que toda pergunta iniciada com o que é...? é fundante em todo empreendimento filosófico. Sabemos que Sócrates inquiria seus conterrâneos sobre o que eram muitas coisas: o que é a virtude?; o que é a liberdade?; o que é a justiça, etc. Sabemos também que a palavrinha “ser” (é) foi, ao longo da vasta história da filosofia ocidental, muito cara aos filósofos. A pergunta com “ser” é a pergunta sobre a essência mesma das coisas. No entanto, como em matéria de filosofia as respostas não são tão importantes como as perguntas, ao perguntarmos sobre o quê das coisas, estamos mais preocupados com o processo discursivo, racional de avaliação e justificação de nossas afirmações, crenças sobre o mundo.
          Acrescentaria ainda mais: a filosofia ousa questionar o óbvio. Tudo que nos é óbvio raramente é (re)pensado. É óbvio que somos livres, porque não estamos encarcerados ou mantidos em cativeiro. É óbvio que o amor é preferível ao ódio, e assim por diante.
      Então, eu gostaria de convidar o leitor a refletir comigo sobre a felicidade. Lembro aqui a lição do filósofo Daniel Dennett, segundo a qual importa aos filósofos a forma como a pergunta é feita, já que os filósofos se destacam por ser grandes perguntadores. A capacidade de perguntar é o que os notabiliza. Começo, pois, com a pergunta clássica: o que é a felicidade?
            Não nos apressemos. Não convém tentar respondê-la com declarativas simplistas, tais como a felicidade é isso ou aquilo. Desde já, quero que saiba o leitor que eu não vou me delongar nas alusões ao pensamento de filósofos sobre o tema. Não quero abarrotar a sua cabeça com meditações de outras mentes que, embora reconhecidamente dignas de referências e reverências, poderiam inibir ou tornar pouco produtivas nossas reflexões. No entanto, penso ser um bom caminho inicial a posição de Aristóteles, ao pensar a felicidade como a satisfação experimentada pelo homem em seu íntimo quando se dá conta da harmonia entre suas atividades e os objetivos a que elas visam. Para o filósofo estagirita, a felicidade depende da realização do homem enquanto homem, ou seja, a realização de suas qualidades específicas, a saber, racionalidade, linguagem e sociabilidade.
       Gostaria de que o leitor retivesse essas três qualidades e percebesse a relação intrínseca entre elas, tendo ainda em conta que a linguagem é fundante, isto é, está na base da racionalidade e da sociabilidade.
     Aristóteles permite-nos situarmo-nos num terreno discursivo mais sólido, o que significa dizer que não vamos ficar a pensar a felicidade como algo abstrato, que dependa de uma comunhão do nosso eu com o astral ou qualquer dimensão metafísica imaginável. Por outro lado, também a felicidade parece estar associada a certos estados de serenidade espiritual, ou seja, estados caracterizados por ausência de preocupações. Práticas que contribuem para esvaziar o ‘eu’ como o budismo podem contribuir para a felicidade interior, mas certamente a felicidade não se reduz à mansidão.
          Há algum tempo, o programa Globo Repórter exibiu uma reportagem sobre pessoas que preferem viver apartadas do convívio social; pessoas que optam por velejar durante meses sozinhas em mar aberto. Mas havia pessoas também que, uma vez tornadas viúvas, ficaram acometidas de depressão em decorrência da solidão. Para essas pessoas, depois de muitos anos de casamento, a vida sem o parceiro amado as tornou muito infelizes. Decerto, o amor é uma fonte abundante de felicidade. E quando penso em amor o leitor deve inferir a palavra reciprocidade.
           A reportagem nos leva a pensar que a felicidade está intimamente ligada à sociabilidade. Em outras palavras, para muitos de nós, é difícil ser feliz sem estar em relação com os outros. Não podemos negar que nós somos seres para sociabilidade. Afirmar o homem é um ser social é afirmar o óbvio. No entanto, devemos ter em conta que nascemos dotados para a sociabilidade; digamos, temos uma natureza que se inclina à vida social. Mas ainda aqui teremos de nos defrontar com alguns problemas. Tenho de forçosamente trazer à cena um pouco do pensamento de Freud, em O mal-estar na cultura. Espero que o leitor paciente, porque creio contribuir para o bom encaminhamento das reflexões feitas até aqui. Antes de referir a posição de Freud, vale atentar para os pressupostos básicos de sua reflexão sobre a condição humana. Ei-los abaixo:

a) os homens são seres dotados de impulsos que visam à satisfação; uma grande dose desses impulsos são agressivos;

b) a cultura se funda na necessidade de repressão do impulso de Eros (prazer) e de Tanatos (morte);

c) é o programa do princípio de prazer que estabelece a finalidade da vida humana.

O princípio de prazer significa que o homem busca o prazer e se esforça para afastar o desprazer. Nesse tocante, nos ensinará Freud:


“(...) Esse princípio [o de prazer] comanda o funcionamento do aparelho psíquico desde o início; não cabem dúvidas quanto à sua conveniência, e, no entanto, seu programa está em conflito com o mundo inteiro, tanto com o macrocosmo quanto com o microcosmo. Ele é absolutamente irrealizável, todas as disposições do universo o contrariam; seria possível dizer que o propósito de que o homem seja “feliz” não faz parte do plano da Criação”
(pp. 62-63)

      
       Em o futuro de uma ilusão, Freud argumenta que todo indivíduo é inimigo da cultura e que esta é resultado de um esforço por conter-lhe as paixões, muito embora pare ele, indivíduo, se volte o interesse geral.
       O que devemos ter em conta é que: a) Freud não concebe o ser humano como inatamente propenso à fraternidade e ao amor, mas como um ser dotado de uma grande propensão à agressividade e à aversão social, sempre que seus impulsos não são satisfeitos como deseja; b) ele também entende a cultura como uma organização essencialmente repressiva, que impõe limitações à satisfação dos impulsos humanos.
        No mundo de Freud, a felicidade plena é inalcançável em virtude das próprias condições culturais da existência humana. Os seres humanos desejam a permanência do estado de prazer e dele não querem mais sair. No entanto, a cultura não pode, pela sua própria constituição repressora, tornar plenamente feliz esse homem que está destinado a ser permanentemente insatisfeito. Nesse sentido, Freud lança-nos de cara contra a nossa ilusão, ao escrever em O mal-estar na cultura:


“Aquilo que em sentido estrito é chamado de felicidade surge antes da súbita satisfação de necessidades represadas em alto grau e, segundo sua natureza, é possível apenas como fenômeno episódico. Toda permanência de uma situação anelada pelo princípio do prazer fornece apenas uma sensação tépida de bem-estar; somos feitos de tal modo que apenas podemos gozar intensamente o contraste e somente muito pouco o estado. Dessa forma, nossas possibilidades de felicidade já são limitadas pela nossa constituição. Muito menores são os obstáculos para experimentar a infelicidade”
(p. 63)
(grifo meu)



         Como se vê, Freud atribui à própria constituição humana (quer psíquica, quer fisiológica, quer social) a causa das limitações de satisfação de nossa felicidade. Mas devemos deixar esse aspecto - importante, decerto – de lado, para nos atermos ao que ele afirma sobre a experiência de infelicidade.
         A experiência é, sem dúvida, um terreno seguro para fertilizar quaisquer reflexões. É razoável que nos valhamos dela para buscar a confirmação da validade de nossas crenças, para sustentar alguma verdade em nosso trabalho argumentativo. Freud defende ser a felicidade um fenômeno episódico. E devo dizer que, antes de iniciar este texto, enquanto ainda formulava alguns pensamentos sobre o tema, ocorreu-me que experienciamos uma felicidade episódica. Muitos de nós parecemos concordar com a ideia de que são raros os momentos felizes na vida e que devemos aproveitá-los intensamente. Reunir toda a família no Natal está entre esses momentos de felicidade tão cara a nós.
     Custa-me aceitar pensamentos triviais como ‘a felicidade é já estar vivo’, ‘viver já é motivo de felicidade’, já que ignoramos completamente as condições socias de existência humana. Os homens, ao longo dos tempos, buscaram muitos caminhos para a felicidade, mas acredito que certas condições básicas são necessárias à felicidade, tais como alimentação, saúde, educação, moradia e lazer. Essas condições dependem também do alicerce familiar, do amparo e amor, primeiramente, de nossos pais, mas também de nossos avós, tios, etc.
     Sabemos que não basta estar vivo para sentirmo-nos felizes. O que dirá se você estiver preocupado com a possibilidade de perder o emprego? O que dirá se você tiver um ente querido hospitalizado, padecendo de uma doença incurável? O que dirá se você  tiver experienciado o legado da traição da pessoa que você amou e a quem dedicou grande parte de sua vida? O que dirá se você estiver com o coração dolorosamente afetado pelo desprezo da pessoa com quem você compartilha uma vida conjugal? O que dirá se você estiver enfrentando a triste e difícil situação de ver um filho sucumbir ao vício de entorpecentes? Em qualquer condição referida aqui, certamente, você não estaria feliz.
        Fico tentado a trazer à cena o valor incomensurável da experiência amorosa como uma fonte de felicidade abundante. Mas vou protelar essa intenção, por ora.
      Eu não disponho de tempo nem de espaço para avaliar, com a disciplina que nos exige uma reflexão séria, se há algum sentido de verdade na afirmação freudiana sobre a existência de menos obstáculos à infelicidade. Decerto, as relações sociais são uma das causas do sofrimento (e, portanto, da infelicidade) dos seres humanos apontadas pelo próprio autor . Não podemos escapar à infelicidade e ao sofrimento; mas podemos contar com pessoas que nos ajudem a enfrentá-los.
        No prólogo de A morte da Fé,  Sam Harris põe-nos diante de nossa condição humana, aos nos lembrar:


“Não sabemos o que nos espera depois da morte, mas sabemos que vamos morrer. Obviamente, deve ser possível viver eticamente – com uma preocupação genuína pela felicidade de outros seres sencientes – sem ter a pretensão de saber coisas sobre as quais somos absolutamente ignorantes. Considere o seguinte: todas as pessoas que você já conheceu, todas as pessoas que você viu passar na rua hoje, vão morrer. Todas as que vivem bastante sofrerão a perda de amigos e parentes. Todas perderão tudo que amam neste mundo. Até que isso aconteça, por que não desejaríamos ser generosos com todas as pessoas?
(p. 263)
(grifo meu)



              É possível supor que, para Freud, essa disposição para a generosidade não se daria sem alguma retribuição satisfatória, já que os homens, ao demonstrá-la, visariam a alguma forma de benefício recompensador exterior. No entanto, deixando de lado a concepção de Freud sobre a natureza humana, o que Harris nos ensina é pertinente à reflexão que até aqui vim desenvolvendo. O autor nos lembra que o sofrimento e a infelicidade estão à nossa espreita e que afetará a todos nós, homens destinados à morte. Resta-nos, entre o nascimento e a morte, a vida; e isso, certamente, é muito, se consideramos a possibilidade de que não poderíamos estar aqui para pensar sobre isso.
      Harris nos sugere que a felicidade é um sentimento que deve ser proporcionado, possibilitado aos que conosco compartilham suas vidas. Mas, decerto, ele vai mais além: defende que a felicidade deve ser extensiva a todos os seres humanos e devemos nos esforçar para fazer os outros (mesmo os que nos são estranhos) felizes.
       Não consigo deixar de pensar na distinção entre bem-estar e felicidade. Em nosso cotidiano, experienciamos, muito frequentemente, sensações de bem-estar. Desde que não sejamos acometidos de algum aborrecimento ou enfermidade, podemos gozar de períodos longos de bem-estar (físico ou mental, ou ambos). Mas a felicidade deve habitar as zonas mais profundas e íntimas do ser. Não tem ela nada de superficial, por isso não penso a felicidade como sentimento resultante da aquisição de riqueza material. Não está no acúmulo de dinheiro e de capital (imóveis, carros, etc.).
        Não creio que possamos ser felizes em longos estados de solidão. A consciência da morte, legado de nossa condição de seres de inteligência superior, de seres racionais, leva-nos a rejeitar longos períodos de solidão. Nosso próprio nascimento inaugura as possibilidades de uma vida destinada a relacionamentos. Se encontramos um bebê abandonado por sua mãe em algum canto por onde passamos, nosso instinto para a sobrevivência e para evitar a morte de um ser inocente e indefeso nos orientará a ação. Podemos levá-lo ao primeiro hospital que encontrarmos para que lhes sejam dispensados os cuidados devidos. Ora, a solidão desse bebê o levaria à morte. Sabemos que, para ele sobreviver, deverá contar com pessoas de bom coração que o alimentem, o vistam e o acolham. Ele deverá ser destinado à adoção e, sendo adotado (caso a mãe não possa ser localizada) por uma família que lhe possibilite as condições indispensáveis ao seu desenvolvimento físico, cognitivo e emocional, ele terá grandes chances de ter experiências de felicidade.
        Se, com Freud, no que estou de acordo, a felicidade é uma experiência episódica, se só nos resta experienciar momentos de felicidade e nunca a felicidade permanente, podemos viver momentos de felicidade plena. A experiência amorosa parece prová-lo. Quando amamos, sentimo-nos plenamente felizes. E o terreno de abundante felicidade está no desejo do outro e no desejo compartilhado com o outro. É que a felicidade do amor se ancora no interior. A comunhão favorecida pelo amor é, certamente, um sentimento fértil de felicidade. Diante dela, nenhuma riqueza outra tem valor suficiente para nos contentar.
      O amor permite-nos que sejamos felizes com a felicidade do outro; ao sentir o outro feliz, também nos sentimos felizes. As outras formas de felicidade tendem a ser egoístas, porque centradas no ‘eu’ que a experiencia. Mas, no amor, a felicidade que proporciono à pessoa amada é também a minha felicidade. Quem ama, afinal, sente felicidade ao dar-se conta de que o outro é feliz.
     É claro que o amor impõe-nos, por assim dizer, um desafio à experiência de felicidade, sempre fugaz e episódica. Esse desafio consiste em reconhecer que a felicidade é um bem que deve ser partilhado e comum, ou seja, extensivo a ambos os envolvidos; uma felicidade recíproca, em suma.
    No amor, esforçamo-nos para a realização da felicidade mútua, e não individual. Certamente, podemos amar e desamar e amar quantas vezes forem necessárias para sentimo-nos felizes na felicidade do outro. Se o amor não fosse uma fonte abundante de experiências de felicidade – e de uma felicidade essencial – ele não valeria sequer uma gota de tinta da pena de nossos corações desejosos de vida.
       A felicidade está para o amor assim como a vida está para a morte: há um vínculo necessário. Uma vez vivos, morreremos; enquanto vivos, desejaremos amar para sermos plenamente felizes.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

"Se a alma humana é imortal, um crente do século XXI é tão imortal quanto o homem de neandertal" (BAR)


            
             Das gerações – enquanto existimos


A morte de um parente – como sucedera recentemente com minha avó materna – leva-nos a nos confrontar com o fato de que nossa existência é finita. Minha mãe hoje declarou-me: não importa quão dolorosa seja a morte de uma pessoa que amamos, temos de continuar a vida. Uma dolorosa verdade, sem dúvida: depois da morte, a vida deve continuar.
Assumir o ateísmo, afirmar a inexistência de qualquer divindade, de qualquer providência divina implica negar a existência da alma, como uma espécie de holograma, como uma entidade imaterial que, não obstante, é representada com contornos corpóreos (pense nos espectros representados no cinema). Assumir o ateísmo implica negar a possibilidade de uma existência a-corpórea ou espiritual depois da morte. Para os ateus, a morte é o fim da vida consciente; não há vida pós-morte; não há alma que transcenda à matéria.
É claro que a negação da vida pós-morte é baseada em evidências. Quando vemos um corpo num caixão, vemos um corpo imóvel, destituído de suas funções vitais (não há atividade cerebral, batimento cardíaco, respiração, etc.). Ninguém que morreu se manifestou a algum de nós, vivos, para nos dizer se há ou não uma vida após a morte. Mas, principalmente, há o fato de que algo como espírito (no sentido metafísico) não existe no universo materialmente organizado.
Muitos pensadores ateus insistem no fato da pluralidade de religiões ou cultos, cada qual deles com suas divindades. As três grandes religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo e islamismo) professam a crença em um único Deus, supostamente o verdadeiro. Os demais povos que não professam a crença no deus de Abraão, de Jesus Cristo ou de Maomé estariam errados. A pluralidade de religiões é, assim, mais uma evidência de que elas são criações culturais, humanas. Afinal, é razoável supor que, se o Deus de uma das três religiões monoteístas aqui referidas fosse o Deus verdadeiro, ele poderia revelar-se a todos os povos, de modo a contribuir para que todos, ao cabo, abraçassem a mesma crença (quem sabe assim pondo-se um fim às guerras ideológicas da fé?!).
Quem tiver a oportunidade de ler Uma breve história do mundo, de Geoffrey Blainey, conhecerá muito sobre a trajetória humana neste planeta, desde o aparecimento dos primeiros hominídeos nos territórios do Quênia, Tanzânia e Etiópia (na África) até o século XX. A relação humana com o sobrenatural é, como sabemos, antiquíssima. Naquela obra, podemos ler a respeito da civilização que floresceu na Mesopotâmia, em 3.700 a.C.:

“Os sacerdotes, com seus rituais, sacrifícios e orações, pediam que os ventos soprassem na direção certa trazendo e molhando o chão ressecado. Imploravam também, quando suas preces eram atendidas além da medida, que a água das enchentes baixasse. E mais: proclamavam as maravilhas do universo”.
(p. 53)

Sabe-se que muitos povos primitivos atribuíam à natureza um simbolismo mágico. A ignorância desses povos tornava-os suscetíveis à atribuição de divindade a corpos celestes. Vejamos as passagens abaixo:

“Nas tribos nômades e nos vilarejos rurais, os fenômenos meteorológicos causavam muito medo. Na Tasmânia, os aborígenes ficavam apavorados com as grandes tempestades. “A chuva forte da noite”, escreveu um observador branco em 1831, “seguida do lampejo vívido de raios e de trovoadas ensurdecedoras fez os nativos demonstrarem enorme temor”. Na noite seguinte, a visão de uma “faísca elétrica” no céu escuro provocou gritos de pavor. Talvez a simples ideia de ser atingido aumentasse o medo (...)”
(p. 41)

“Os povos nômades, que viviam sob as estrelas, e os povos já estabelecidos em lugares fixos, que viviam sob os céus sem nuvens das primeiras civilizações do Oriente Médio, tinham toda a razão em observar o céu noturno – em noites sem Lua, era um tapete maravilhoso estendido sobre eles. Seu aspecto mudava constantemente, e os padrões das alterações eram observados e comentados. No clima seco da Austrália Central, onde não existiam rios permanentes, alguns grupos aborígenes consideravam a Via Láctea um grande rio celeste. Aos olhos de muitos povos, criaturas poderosas viviam no firmamento. Para outros, um buraco escuro na Via Láctea era a casa do demônio”.
(pp. 42-43)

Também na Idade Média, muitas pessoas, inclusive sacerdotes, acreditavam poder determinar o local exato onde morava o demônio.
A crença em que forças sobrenaturais (divinas ou demoníacas) estariam atuando por detrás dos fenômenos naturais, ou melhpor, seriam responsáveis por eles, remonta aos nossos antepassados. Naqueles tempos muito remotos, os seres humanos mantinham uma relação mítica com o universo natural; foram necessários milhares de anos para que o pensamento mítico fosse abalado pelo advento do pensamento racional.
Outro interessante testemunho de nosso gênio criativo para o misticismo religioso é dado por Daniel Dennett em Quebrando o encanto – a religião como fenômeno natural. À página 109, no capítulo As raízes da religião, escreve:

“Os jivaro, do Equador, acreditam que você tem três almas, a alma verdadeira, que você tem desde o nascimento (esta volta ao seu lugar de nascimento depois da morte, e aí se transforma num demônio, que morre, por sua vez, virando uma mariposa gigante, que quando morre vira nevoeiro); a arutam, uma alma que você obtém por meio do jejum, banho em uma cachoeira e tomando um sumo alucinógeno (torna você invencível, mas tem o hábito infeliz de ir embora quando você está em dificuldade); e a musiak, a alma vingadora que foge da cabeça de uma vítima e mata seu assassino. É por isso que você tem que ficar fora do alcance da cabeça de sua vítima”.

Talvez, você se ria de uma crença tão fantástica, mas me pergunto sobre se há uma diferença fundamental entre crer numa alma que vira uma mariposa gigante e crer no Espírito Santo ou na ascensão de Cristo corporificado ao céu, ou ainda crer em que uma pequena rodela de pão ázimo e um pouco de vinho num cálice são realmente o corpo e o sangue de Cristo transformados.
O caso dos habitantes da ilha de Tana, no Pacífico, quando da chegada das forças norte-americanas, durante a Segunda Guerra Mundial, patenteia-nos quão ingênua é a crença num Messias. Os soldados americanos foram à ilha para recrutar trabalhadores que ajudassem na construção de uma pista de pouso e de uma base na ilha Efate, que era uma ilha vizinha de Tana. O retorno dos trabalhadores foi repleto de histórias sobre homens brancos e negros que possuíam riquezas inimagináveis ao povo de Tana. Os ilhéus ficaram confusos. Os que foram convertidos ao cristianismo deixaram de ir à igreja e iniciaram a construção de pistas de pouso, armazéns, capacetes, modelos de aviões esculpidos. Não tardaram a marchar com as letras USA pintadas, esculpidas ou tatuadas no peito e nas costas, professando a crença em John Frum como seu Messias (não há nenhum registro de que John Frum foi o nome de algum soldado americano).
Acompanhemos, nas palavras de Daniel Dennett, citando MotDoc (2004), o restante desse fato:

“(..) Quando o último GI norte-americano foi embora, no fim da guerra, os ilhéus previram o retorno de John Frum. O movimento continuou a florescer e, em 15 de fevereiro de 1957, uma bandeira norte-americana foi erguida na baía Enxofre para declarar a religião de John Frum. Nesse dia, todos os anos, é comemorado o Dia de John Frum. Eles acreditam que John Frum está esperando escondido no vulcão Yasur com seus guerreiros para entregar seus presentes ao povo de Tana. Durante as festividades, os anciãos marcham em uma imitação de exército, um tipo de treinamento militar misturado com danças tradicionais. Alguns levam imitações de rifles feitas de bambu e usam memorabilia do exército norte-americano, como bonés, camisetas e casacos. Eles acreditam que seus rituais anuais atrairão o deus John Frum do vulcão e entregarão sua carga de prosperidade a todos os ilhéus [MotDoc, 2004]”
(p. 111)

A visão de mundo apocalíptica, na bíblia, apontava uma destruição absoluta e iminente do mundo. No Evangelho de Marcos, disse Jesus que alguns de seus discípulos não provariam a morte antes da chegada ao poder do Reino de Deus. Aconteceu, contudo, que a geração passou e o Reino de Deus, cuja vinda era iminente, não veio (v. Ehrman, 2008).
No tocante à possibilidade de sermos nós, seres humanos, dotados de uma alma transcendente imortal, uma visão ateísta, para ser coerente, deve ater-se às evidências, todas apontam para a impossibilidade disso.
Eu aceito, sem inquietude e desespero, felizmente, o peso das evidências: nossa vida consciente sucumbirá à morte. Estou ciente de que os homens conferem à sua existência significações que lhes são caras. Acreditamos que gozamos de privilégios existenciais em comparação com as demais formas vivas, quer tenham alguma forma de inteligência desenvolvida ou não: somos amados por um deus todo-poderoso e somos dotados de uma alma que gozará da vida eterna após a morte. Mas, e se estivermos errados?
Nossos antepassados estavam errados ao endeusar estrelas? Povos primitivos atribuíam divindade ao sol. Estariam eles errados?
Recentemente, um furacão, chamado Irene, atingiu o Canadá e os Estados Unidos, matando, nesse último país, mais de dezoito pessoas.
(http://www.sidneyrezende.com/noticia/143211+furacao+irene+deixa+canada+sem+energia+eletrica).

   Assistindo a mais um dos sem-número de eventos naturais catastróficos, no Fantástico, ontem, concluí: ‘estamos diante de mais uma dentre as milhares evidências de que a natureza mostra sua força cega, indomável e soberana’. O que eu via era uma força extraordinária de uma natureza onipresente, que não dá espaço para nenhuma forma de deus todo-poderoso.
Fico pensando onde estão nossos antepassados? Seus espíritos ainda sobrevivem em algum lugar transcendente? Ou seremos só nós, homens civilizados da era moderna, os beneficiados pela imortalidade da alma? Serão os nossos deuses os vitoriosos, ao fim de nossa breve passagem pela vida?
O que sei (e sabemos todos) é que muitas gerações já passaram e as que estão vivendo também passarão. Outras mais, muito provavelmente, surgirão. É possível que as novas gerações venham a superar muitas de nossas ilusões, fantasias e crendices. É possível que essas gerações superem as formas de religiões existentes e estabeleçam outras, ou as eliminem a todas. Quem sabe essas gerações superem o a irracionalidade religiosa e alcancem um grau mais elevado de aperfeiçoamento moral e racional?
Penso ser assim a nossa existência: atravessada por gerações que se esforçam por trabalhar a relação dialética entre tradição e inovação, entre o velho e o novo, entre a conservação e a ruptura. Não podemos nos esquecer de que nós, hoje, pertencemos a uma geração de seres humanos que vivem num mundo secularizado (embora ainda marcado pela tensão entre racionalidade e fé) e, enquanto existimos, existem também as nossas visões de mundo, crenças, verdades, mas outras gerações também existirão e também produzirão e conservarão suas visões de mundo, crenças e verdades.
Se a crença na imortalidade da alma revelar-se verdadeira (um dia?), então um cristão do século XXI é tão imortal quanto o homem-de-neandertal.