quarta-feira, 26 de janeiro de 2011


O lugar da ideologia

Em A Ideologia Alemã (2005: 128), deparo-me com o seguinte excerto:





“Os homens fazem sua história, quaisquer que sejam os rumos desta, na medida em que cada um busca seus fins próprios, com a consciência e a vontade do que fazem; e a história é, precisamente, o resultado dessas numerosas vontades projetadas em direções diferentes e de sua múltipla influência sobre o mundo exterior”.


Contrariamente à posição hegeliana, que entendia a História como a “História do Espírito”, Marx e Engels concebiam-na como práxis (ou seja, modo de agir no qual o agente, a ação e o resultado da ação estão interligados e são inseparáveis). Consoante ensina Marilena Chauí (2006: 23), a história é o real, e o real é:
“o movimento incessante pelo qual os homens, em condições que nem sempre foram escolhidas por eles, instauram um modo de sociabilidade e procuram fixá-lo em instituições determinadas (família, condições de trabalho, relações políticas, instituições religiosas, tipos de educação, formas de arte, transmissão de costumes, língua, etc.)”
Importa reter dois aspectos fundamentais na base dos quais minha discussão se desenvolverá: a) a identificação da História com o real e a concepção deste como movimento incessante; b) a ideia de que os homens são agentes da História e, portanto, da realidade, mas, ao mesmo tempo, seu produto. Aqui, há que perceber a contradição inerente à condição social dos homens: ser agentes e produtos da realidade que eles mesmos produzem.
Agora, é necessário retroceder o pensamento à Antiguidade Clássica, a fim de buscar entre os gregos a definição de logos. Começo, pois, salientando que o conceito de logos remete-nos à importância da linguagem na vida da polis da Grécia Antiga. Embora ladeado de interpretações variadas, de que dá testemunho Heráclito, é possível buscar na harmonia entre Razão e Linguagem (ou Discurso) sua síntese. O logos é, portanto, um discurso racional que encontrará entre os sofistas um poder persuasivo e enganador. O logos assenta no pressuposto básico comum aos primeiros filósofos, segundo o qual há correspondência entre a razão e a racionalidade do real (Marcondes, 2008). O homem, através do discurso racional, pode conhecer o real, porque este é racional.
Na filosofia de Parmênides, encontramos a identidade entre o ser e o pensar. O ser é único, imutável, contínuo. Parmênides anuncia a unidade do ser e do pensamento, representada na unidade do logos.
A tarefa de Sócrates, da qual Platão foi seguidor, foi reconciliar logos e realidade, ou seja, restituir a unidade que havia entre logos e realidade, mas que se desfizera no trabalho retórico com finalidade pecuniária dos Sofistas. Entre estes, Protágoras sintetiza bem a posição sofística, ao declarar: o homem é a medida de todas as coisas. Instaura-se, pois, a perspectiva relativista, contra a qual Platão se posicionaria.
O logos, conforme a crença da época, antes da cisão provocada pelos sofistas, representava a garantia da harmonia entre o pensamento, o discurso e as ações. O ideal virtuoso do homem grego expressava-se da seguinte forma:
“Devemos aprender a conhecer-nos a nós mesmos para não deixar que se introduza em nós esse germe mau que é a ignorância da ignorância: não saber, e crer que se sabe, é a raiz fundamental do desacordo consigo”.
(Rougue, 2007: 12)
Ignorância, para os gregos, era sinônimo de escravidão. Aquela caminhava junto do Mal, visto que a maldade devia-se à ignorância. Num estado inicial, o homem ignora que ignora; num segundo estado, sabe que ignora ou sabe não saber, situação de um filósofo (portanto, amigo do saber); num terceiro momento, jamais terminado, o homem busca a verdade pelo exercício do pensamento filosófico. É pela aporia que o homem toma consciência de sua ignorância. Ela traz a luz do saber-se ignorante à consciência.
A questão do logos deixa entrever a crença numa correspondência entre linguagem e realidade. Pelo logos se diz o ser (se atinge o imutável). Na medida em que, através do logos (discurso), é possível chegar ao ser, é preciso discutir o valor da verdade. Esta é descoberta quando se diz o ser, ou seja, se faz ver claramente o ‘uno’, ‘o todo inteiro’. Cabe, então, uma pergunta: o que é a realidade? Orientados pelo senso-comum, nos apressaríamos em dizer que a realidade é tudo que existe (as pessoas, as coisas, os fatos, etc.). É, portanto, o mundo tal como se nos apresenta aos sentidos. O problema surge quando nos perguntamos sobre a possibilidade de existir a realidade independentemente do pensamento ou da mente humana, vale dizer, não seria o real um conjunto de representações do pensamento? A realidade, para os homens, é produto de suas interpretações, já que estruturada simbolicamente.
As duas perspectivas se resumem no conflito entre um realismo ingênuo, ou seja, a concepção segundo a qual o mundo dos objetos nos é acessível mediante a percepção sensorial; e o realismo crítico, o qual não admite a existência de uma realidade objetiva independente do pensamento. Há, aqui, uma dependência entre a realidade objetiva e a realidade mental.
Uma vez que se assuma o realismo crítico, impõe-se explicar como se dá a relação entre o mundo exterior e a mente; em suma, como se constrói a realidade, pois, aqui, a realidade não existe independentemente da mente que a pense, a elabore, a construa.
Da consciência do homem comum, que se orienta no cotidiano pelo senso-comum, passa ao largo a suspeita de que a relação entre homem e realidade é, basicamente, de ordem simbólica, de sorte que o que julgamos ser realidade é, sem que desconfiemos, um sistema de significações. Falamos de realidade social, cultural, política, educacional; deveras, são muitas as realidades sobre as quais falamos, porquanto são muitos os sistemas de significações no interior dos quais nossas relações se estruturam.
Ao considerar a questão da construção do mobiliário do mundo, de uma perspectiva cognitivista, José Luiz Fiorin (2005: 72), não descuidando de suas implicações, caso em que dialogou com a tradição filosófica de Descartes a Kant, pondera:
“Se o fato de não podermos dizer o mundo em si é inevitável, isso não significa que o mundo conhecido seja simples produto de nossas atividades cognitivas. Portanto, não há motivo para alvoroço: o mundo extramental existe. Contudo (...), todos os objetos de nosso conhecimento são produzidos no discurso, embora não se achem confinados ao discurso e podem ser intersubjetivamente comunicados”.
Fiorin vai buscar no discurso o meio de explicar a relação entre a realidade extramental e a mente. Pelo uso da linguagem (discurso), os homens produzem versões públicas do mundo, ou seja, constroem a realidade intersubjetivamente nas interações situadas sócio-historicamente. Observa ainda o autor:
“A língua é, assim, uma fonte de possibilidade de trabalhar e retrabalhar as versões públicas do mundo. Uma visão praxeológica e interacionista da língua não analisa as formas per se, mas as vê emergindo como fontes de interações. Importam menos as representações como tal e mais as atividades descritivas dos locutores”.
(p. 71)
Não negando o papel das representações na construção da realidade, Fiorin alerta para a necessidade de entendê-las como processos cognitivos dinâmicos que são de natureza sociointeracional e discursiva, e não simplesmente subjetiva.
De acordo com essa perspectiva, a verdade passa a ser um critério de validação das versões públicas do mundo, negociadas pelos atores sociais em interação, num dado contexto sócio-histórico.
Quero deixar clara aqui a minha posição: não se pode, ingenuamente, defender a existência de uma realidade em si, independente da cognição humana. A realidade existe para os homens, na medida em que é estruturada nas categorias da linguagem e reconstruída por meio dos esquemas da percepção condicionados pela cultura. Para além de sua materialidade sensível, a realidade existe enquanto estruturas de significação construídas pelo entendimento, que, longe de ser algo que orbita as esferas sócio-culturais, é delas resultado. Não existe uma coisa chamada “pedra”, sem que antes lhe confiramos um investimento simbólico, tornando-a um ‘dado’ significativo para a nossa experiência e consciência. E é também claro que a realidade é reconstruída continuamente no/pelo discurso, atividade sócio-interacional realizada por atores sociais inseridos num dado contexto histórico e ideológico.
Doravante, tentarei responder à seguinte questão, que nos leva ao problema inicial que toca à contradição inerente à condição humana: como explicar que os homens, embora sejam agentes da História, não se reconheçam como tais? Como explicar que eles não se reconheçam como agentes construtores de sua própria sociedade, responsáveis pelas suas próprias formas sociais de existência? Como isso é possível? O que levam as pessoas a reafirmarem coisas do tipo “não tem jeito, o mundo é como é”, “não queira mudar o mundo”, “é assim porque é”, “é a vida, fazer o quê?”, etc.?
Esse obscurecimento da consciência das reais condições sociais em que os homens, organizados em classes, se acham e vivem, deve-se à impregnação do logos (discurso) pela ideologia – assunto do qual passarei a tratar daqui para frente.
Coube a Bakhtin situar a ideologia no domínio do discurso ou do signo. Conquanto seu ponto de partida, para a consideração do fenômeno ideológico, fosse a perspectiva marxista, segundo a qual a ideologia era entendida como “falsa consciência”, o filósofo russo rever tal concepção e propõe a distinção entre a ideologia do cotidiano e a ideologia oficial. Esta é a ideologia relativamente dominante, a qual prescreve uma visão única do mundo. Aquela, por sua vez, tem seu nascedouro nas relações casuais e na relação de proximidade que estas mantêm com as condições de produção e reprodução da vida.
De um lado, há a ideologia do cotidiano, relativamente instável; de outro lado, a ideologia oficial, relativamente estável. Há entre ambos os domínios uma relação recíproca. A relação entre a infra-estrutura e a superestrutura se dá por meio do signo. Todo signo é signo ideológico. Todo signo recebe um ponto-de-vista, que representa um lugar valorativo a partir do qual a realidade é avaliada, classificada, interpretada pelos sujeitos sociais. As palavras são, portanto, tecida de inúmeros fios ideológicos.
Em Marxismo e Filosofia da Linguagem (2006), Bakhtin e Volochínov , no primeiro capítulo, no qual se ocupam da questão da ideologia e de sua materialização nos signos, insistem na necessidade de desvincular o estudo da ideologia da perspectiva psicológica, chegando a dizer:
o estudo das ideologias não depende em nada da psicologia e não tem nenhuma necessidade dela”.
(p. 36)
(ênfase no original)
De acordo com os autores, a consciência é um fenômeno sócioideológico e, como tal, deve ser estudada em sua relação constitutiva com as palavras, pois ela é povoada por signos. A realidade da consciência, consoante os autores, é o signo. Refiro, abaixo, o trecho em que os autores nos ensinam sobre a importância da consideração da palavra no tratamento do fenômeno da consciência:
“Há uma outra propriedade da palavra que é da maior importância e que a torna o primeiro meio da consciência individual. Embora a realidade da palavra, como a de qualquer signo, resulte do consenso entre os indivíduos, uma palavra é, ao mesmo tempo, produzida pelos próprios meios do organismo individual, sem nenhum recurso a uma aparelhagem qualquer ou a alguma outra espécie de material extracorporal. Isso determinou o papel da palavra como material semiótico da vida interior, da consciência (discurso interior). Na verdade, a consciência não poderia se desenvolver se não dispusesse de um material flexível, veiculável pelo corpo. E a palavra constitui exatamente esse tipo de material”.
(p. 37)
(ênfase no original)
Cabe apresentar a definição de ideologia, segundo a perspectiva do Círculo de Bakhtin. É em Voloshinov, no texto Que é a linguagem, que a encontramos de modo explícito:
“Por ideologia, entendemos todo o conjunto dos reflexos e das interpretações da realidade social e natural que tem lugar no cérebro humano e se expressa por meio de palavras [...] ou outras formas sígnicas”.
(1998: 107)
Das considerações desenvolvidas na tentativa de patentear o lugar privilegiado da formação, consolidação e expressão da ideologia, a saber, o discurso, é possível depreender as seguintes conclusões:
a) o logos, como acreditavam os antigos gregos, não pode dizer o ser, visto que quem diz são sujeitos cujas consciências são produto socioideológico. Disso se segue que eles enunciam de um determinado lugar valorativo;
b) A ideologia é um sistema de representação/ construção de sociedade e de mundo alicerçado no discurso, ou seja, encontra origem nas interações entre os atores sociais e nelas se desenvolve, se estabiliza e se dissemina;
c) A consciência, não tendo origem natural ou transcendental, é produto socioideológico; é produzida e modelada nas trocas simbólicas realizadas por atores sociais num dado contexto sócio-histórico e ideológico.

Superando a aparência


Postulado da superação da aparência

O meu quarto é o local de aconchego para o meu espírito – um viveiro de pensamentos. Quando me ponho a compor um texto, esforço-me por adestrá-los, por amansá-los, para que eles não me saiam trepados. Eles se digladiam com vistas a conquistar o primeiro lugar na cadeia em que são dispostos, segundo a vontade de meu espírito.
É consabido que a produção de um texto escrito pressupõe a construção, no imaginário do sujeito, que se faz autor, de um leitor em potencial. Essa operação espiritual é indispensável à boa condução do discurso em termos dos objetivos pretendidos e, consequentemente, em termos do alcance interpretativo que o texto poderá ter. Costumo ensinar aos meus alunos que todo texto escrito, uma vez tendo vindo a lume, torna-se produto social e, portanto, não mais propriedade de seu autor. Uma vez posto em circulação, ou seja, uma vez publicado, o texto entra a fazer parte dos processos discursivos constitutivos da História e, portanto, está suscetível a inúmeras possibilidades de interpretação e compreensão. Os sentidos que podem ser atribuídos a eles são vários, embora nem todos sejam possíveis. Se nem todos os sentidos são possíveis, então é lícito supor que haja certo limite para eles. Como demarcá-lo é questão controversa.
Como este texto será publicado em um blog, posso produzi-lo com relativa segurança a respeito do público receptor. Meus leitores são pessoas que admiram a beleza e a vasta dimensão de minhas palavras, o que me permite adornar o laborioso trabalho de elaboração textual com torneios mais sofisticados e esteticamente mais interessantes, porque sei se tratar de leitores que não são meros depositários de informações, processadores de dados de linguagem, mas agentes reconstrutores de conhecimento. Posso, com alegria, esperar deles uma compreensão responsivo-ativa, nos termos bakhtinianos.
A concepção bakhtiniana de linguagem se estabelece sobre a relação que esta mantém com o social e com a história, de sorte que vida e linguagem se interpenetram. A relação do homem com o mundo se dá através da palavra, elemento constitutivo de sua consciência.
Receio que este texto exceda à conveniência que se espera para um gênero textual como um blog; o leitor terá, portanto, o direito de cessar a leitura neste instante, se assim o desejar; no entanto, se cuidar merecedor este texto do dispêndio de sua energia intelectual e de sua paciência, creio em que, ao cabo da tarefa, encontrará contentamento e fertilidade anímica. Minhas ideias visam a fertilizar os terrenos infecundos e secos da alma do leitor, mormente daquele que sofre pelos efeitos depredadores da depressão. Advirto-o, leitor, que não deve incorrer em leviandade ao cuidar ser eu permanentemente deprimido, tampouco um homem dado ao culto do sofrimento. Sou apenas um indivíduo para quem a vida e as relações humanas são tomados para objeto de reflexão. E refletir é operar uma cirurgia pelo espírito na realidade.
A sala de aula é o espaço em que experimento um prazer singular e excelso: o de ensinar. Não sei que haja outra atividade tão gratificante do que contribuir para a edificação do humano no outro. Em outras palavras, é realmente prazeroso tornar ato aquilo que um indivíduo (estudante) tem em potência, através da prática de leitura. Durante cinco anos, vivi, decerto, cultuando o sofrimento, ruminando minha desilusão amorosa, os traumas de um amor inconstante, caracterizado por fendas e cicatrizes que não curavam, pois que eu vivia a esgaravatá-las. Assim, ia acumulando indigesto bolo alimentar de tristeza. Enquanto me entregava à poesia como um meio de fugir ao imperativo da realidade, sempre desconfortante, que se descortinava a cada tenra manhã, ia tornando o mundo mais estranho a mim; e eu, a ele. O mundo e eu nos tornávamos intoleráveis, e, em minha alma, residia uma presença inóspita de um eu imagético misantropo.
Vários meses de terapia, motivada, especialmente, pela nova condição a que o destino me lançou (talvez, não creia em destino, mas a referida condição é, certamente, algo que me aconteceu, e não por que fui responsável), foram necessários para que me colocasse novamente na órbita da dinâmica social. Meu “eu” estava deslocado; urgia que fosse recolocado no eixo. Atualmente, embora estabelecido num eixo, deveras, instável, meu “eu” ainda permanece invertido. A dificuldade de estabelecer amizades e relacionamentos estáveis e sólidos decorre justamente de minha inclinação ao poder do intelecto ou do espírito, em detrimento do poder reificador e idiotizante dos lugares-comuns, das conversações ralas, das experiências pueris que produzem um verdadeiro engessamento da consciência e fragmentação dos potenciais individuais. Nossa subjetividade acaba tendo de ser acomodada em modelos; tudo que é desviante de modelos (de pensamento, de beleza, de modos (ou estilos) de vida, de comportamento, etc.) deve ser afastado com críticas sem qualquer base reflexiva e consistente – críticas que não passam de meras opiniões, de reprodução inadvertida de lugares-comuns.
Encontrei nos livros uma forma de preencher um vazio existencial, ou seja, aquela desagradável sensação de que sou um estrangeiro numa sociedade que, tendo vindo antes de mim, ignora completamente minhas aspirações. Busquei nos livros a chave para compreender o conteúdo ideológico que subjaz e sustenta (mantém) afirmações do tipo “a vida é assim, não queira mudar o mundo”, com as quais vivia às voltas. Decerto, não sou ingênuo a ponto de acreditar em tal idealismo romântico. O próprio poeta da música, Cazuza, reconheceu a inexorabilidade da ordem social, ao cantar “aquele garoto que ia mudar o mundo, agora assiste a tudo em cima do muro”. Não precisamos, no entanto, ficar inertes “em cima do muro”, num estado de profundo conformismo. É a ideologia, que se encarnando nos sujeitos sociais, leva à aceitação das desigualdades, das injustiças, do status quo, dado que ela os justifica, fornecendo aos membros de uma dada sociedade explicações racionais, lógicas acerca do parecer social e invertendo, assim, a relação entre as ideias e o real. Por exemplo, acreditar em que o trabalho de cada um de nós faz o Brasil crescer é mascarar o fato de que o nosso trabalho é fonte ou causa da riqueza de uns poucos. O proletariado das fábricas e da indústria trabalha para receber o suficiente para manter-se vivo e capaz de continuar a produzir para o enriquecimento do proprietário dos meios de produção. Não é o Brasil que cresce; é uns poucos privilegiados pelas condições socioeconômicas de injustiça que alcançam o “crescimento”.
A fim de evitar que a atenção do leitor se disperse, organizarei este texto em subseções; cuido que assim será menos enfadonho acompanhar o desenvolvimento das cadeias de meus pensamentos.
A questão que procurarei discutir é: como superar a aparência?


1. Aparência e Essência

O estudo filosófico-epistemológico e linguístico ensinou-me que todo e qualquer empreendimento analítico levado a efeito pelo pensamento elaborador e reflexivo deve apoiar-se na distinção e definição acurada dos conceitos empregados numa discussão. Portanto, ao pretender argumentar em favor da superação das aparências, tenho de precisar o que entendo por aparência, sem o que toda a discussão se tornará vaga e, provavelmente, difusa. Vejamos, então, como conceituar aparência. Para tanto, recorro ao trabalho de Danilo Marcondes e Hilton Japiassú, Dicionário Básico de Filosofia, em cujo verbete aparência, se lê:
“1. aquilo que é dado das coisas ao sujeito na representação [fenômeno]”
“2. Aspecto enganador ou meramente superficial das coisas”.
(p. 13)
A primeira definição deve ser entendida no domínio da gnosiologia, resultante, portanto, de uma experiência cognitiva. A segunda definição parece estar relacionada ao domínio da natureza e de como ela é apreendida em nossa experiência sensível. Esta nos permite apreender tão-só as aparências, que compreende o mundo sensível de Platão, caracterizado pela mutabilidade. Trata-se do mundo apreendido pelos sentidos, e tal apreensão não se dá sem alguma forma de deformação ou engano. Para Platão, o verdadeiro mundo era o mundo inteligível ou das ideias perfeitas, cuja existência é independente. Trata-se de um mundo invisível, ao qual o espírito, pelo método dialético, deveria elevar-se. O fato de Platão considerar a existência deste mundo das ideias independente da existência do mundo sensível e imediato faz de sua teoria um “realismo das ideias”, visto que ele atribui realidade a esse mundo invisível.
Convém cuidar para que o leitor não se enfade do preciosismo filosófico com que vou lapidando este produto bruto verbal que vai tomando forma. Aprendi que, a despeito do caráter hermético de que se revestem alguns textos filosóficos, que não faz senão afugentar o leitor mais otimista, a filosofia tem muito a nos ensinar sobre a vida, sobre nossos conflitos, nossos medos, nossos desejos, nossa angústia, nossa existência social, nossas relações com o outro e com o mundo.
Prossigo, reconhecendo que não posso pensar a aparência sem seu correlato, a saber, a essência. A essência é aquilo que há de mais fundamental na coisa, é o que faz dela o que ela é. A essência é, por definição, imutável e constitui uma das divisões do ser, fazendo dele idêntico a si mesmo. O mundo inteligível ou das ideias de Platão é, portanto, o mundo das essências.
No Dicionário Oxford de filosofia, se acha a seguinte definição de essência, decerto mais elucidativa:
“o elemento básico ou primário do ser de uma coisa; a natureza da coisa, ou aquilo sem o qual ela não poderia ser o que é. Uma coisa não pode perder sua essência sem deixar de existir (...)”.
(p. 126)
A essência é, pois, uma propriedade indispensável à definição da realidade mesma da coisa ou do ser. Convém, contudo, definir o que é propriedade. Podemos entendê-la como uma qualidade que distingue uma coisa da outra, ou mesmo uma condição do ser, caso em que afirmamos ter uma pessoa a propriedade de ocupar um espaço. A essência é, então, a natureza subjacente ao ser.
Agora, é necessário situar o conceito de essência no domínio do humano, sobre o qual recai meu interesse neste texto. Com Sartre, devemos admitir que não há uma essência humana pré-estabelecida. A famosa frase “no homem, a existência precede a essência” do filósofo francês aponta para a ideia de que nós, seres humanos, “somos aquilo que fazemos do que fazem de nós”. A essência é, portanto, resultado de nossas experiências de mundo, nas quais o Outro desempenha um papel importante.
Se nós não podemos ser definidos na base de uma essência a priori, devemos reconhecer duas implicações desse postulado: a) a realidade humana é demasiado complexa (conforme veremos) para pretender reduzi-la a um suposto “princípio essencial”; b) e somos livres para escolher o que queremos ser. Ou seja, na medida em que não podemos assumir uma essência predeterminada para o ser humano, devemos reconhecer ser ele um ser de inúmeras possibilidades. Para Sartre, a essência humana é ser livre. É claro que Sartre sabia ser essa liberdade limitada pelas condições sociais de existência; no entanto, ele advogava que o homem tem sempre a liberdade de escolher.
Uma vez admitindo a tese sartreniana, somos forçados a reconhecer que o ser humano é capaz de superar o domínio das aparências, isto é, ele pode escolher ultrapassar a névoa das aparências que obscurece sua consciência para assomar ao mundo das essências, onde reside, conforme defende Platão, a verdadeira realidade. É claro que, no domínio teórico, é discutível a concepção de verdade; no entanto, mantenho-me, para efeito de discussão, no âmbito metafísico que entende a verdade como algo objetivo e passível de ser atingido.
Para encerrar esta seção, cabe perguntar com o que identificamos o nível das aparências em nossa sociedade contemporânea, denominada por alguns estudiosos como caverna pós-moderna (referência clara ao Mito da Caverna de Platão)? Talvez, a primeira identificação que podemos fazer é com a supervalorização da beleza e da necessidade de que todos se acomodem ao padrão estabelecido. A procura desenfreada por clínicas de estética, por cirurgias recompensadoras da falta de generosidade da natureza (com enxerto de silicones nos seios, de toxina botulínica para retardar o envelhecimento da pele (vulgo botox), o banquete de bundas e corpos formosos praticamente desnudos na televisão, com o propósito de angariar a audiência e estimular os impulsos eróticos mais primitivos do telespectador, então fatigado após um dia estafante de trabalho alienante, dão testemunho da valorização excessiva da aparência.
Aqui, cabe reconhecer que o belo é resultado de uma apreciação, de um juízo que é determinado sócio-culturalmente. Não se trata de algo imanente ao objeto ou ao ser. Em certas culturas, a obesidade é sinônimo de beleza e, portanto, mulheres e homens “gordinhos” são atraentes. Se aceitarmos que nossa percepção, nossas ideias, nossos juízos de valor; enfim, todo o nosso ser-no-mundo é determinado pela cultura a que pertencemos, não podemos aceitar ser o belo uma propriedade metafísica e imanente a coisa ou ao ser em si.
Com vistas a ilustrar quanto nos envolvemos em aparência, de sorte que não nos tornamos capazes de compreender o que está além de seu domínio, cito as palavras de Meacher, referidas por Zygmunt Bauman, ao considerar a atitude precipitada de aversão do governo americano ao terrorismo:
“Falta de disposição para contemplar o que está por trás do ódio: por que uma grande quantidade de jovens são preparados para explodirem a si mesmos, por que 19 rapazes altamente instruídos estavam prontos para se destruírem e a milhares de outras pessoas no 11 de Setembro e por que a resistência [no Iraque] está crescendo apesar de alta probabilidade de os insurgentes serem mortos”.
(p. 27)
O que se verifica aí é uma total falta de ponderação. Não se supera o nível das aparências porque não se preocupa em atingir o fundo, ou seja, “o que está por trás do ódio”.
Feita essa primeira crítica, passarei à próxima seção, na qual considerarei como os filósofos pensaram o ser humano.


2. Quem é o homem?


Desde já, rechaço qualquer forma de reducionismo no tratamento filosófico-antropológico do ser humano. Enquanto Dasein (ser-no-mundo), ou seja, ser capaz de transcender, de ultrapassar, de ser existente concreto, o homem é, essencialmente, complexo, haja vista à quantidade grande de perspectivas teóricas sob as quais pode ser considerado (filosóficas, antropológicas, psicológicas, linguísticas, pedagógicas, históricas, etc.).
Não pretendo também assumir uma perspectiva única com a qual poderei pensar o homem, muito embora a abstração seja inevitável. Esposarei a ideia de que o homem se caracteriza, fundamentalmente, pela razão e pela linguagem. Atribuo a essas faculdades a propriedade de ser meios de emancipação do ser humano. É comum a ambas o pensamento – instrumento indispensável à busca pela emancipação. Emancipar-se é libertar-se do embuste, da ilusão decorrente das aparências; é desanuviar a consciência da espessa camada de obscuridade, de ignorância.
O tempo e o espaço são escassos; portanto, não poderei considerar a relação entre pensamento e linguagem. No entanto, sem embargo do reconhecimento de que minha afirmação deveria fundamentar-se numa argumentação sólida, não hesito em dizer: não há pensamento conceitual fora dos quadros da linguagem. A possibilidade de conceptualização, ou seja, de representação mental da realidade e de suas variadas feições se dá na base de um sistema simbólico fornecido pela linguagem verbal. Insisto (e não me canso de afirmá-lo) ser a linguagem um sistema de categorização da realidade, uma forma de compreensão do mundo. Ela dá forma à massa amorfa do pensamento. As palavras criam conceitos com os quais podemos pensar e compreender o mundo.
Urge reconhecer duas formas de pensamento, as quais podemos designar como: pensamento elaborador e pensamento reflexivo. A primeira é aquela pela qual produzimos o conhecimento; é o pensamento produtor de conhecimento. A segunda é a forma de pensamento que se volta sobre si mesmo, que considera o já pensado, ou seja, que toma para objeto o conteúdo elaborado pela primeira forma de pensamento. Isso é refletir – um movimento do pensamento sobre o conteúdo elaborado.
Para Kant, “pensar é conhecer através de conceitos” (Crítica da razão pura). O filósofo alemão defendia que nós não conhecemos o númeno (a coisa em si), senão o fenômeno.
Pretendo apresentar ao leitor a dimensão da complexidade do humano. Para tanto, considero, doravante, a distinção feita por Augusto Cury entre o homo intelligens e o homo interpres. Trata-se de dois aspectos da essência humana. O homo intelligens, observa o autor, é resultado do homo interpres. O domínio do homo intelligens compreende os fenômenos da nossa consciência, que são de base inconsciente. Assim, segundo o autor,
“ao contrário daquilo que até hoje a psicologia acreditou, a maioria dos pensamentos que diariamente produzimos não é produzida debaixo do controle consciente do eu, mas pelos complexos fenômenos que estão imersos no campo de energia inconsciente da alma humana.”
(p. 76)
O homo interpres é responsável pelos fenômenos de interpretação, atividade sempre passível de distorção. Na verdade, Cury chega a admitir que todo processo interpretativo é , necessariamente, distorcido.
Não me será possível aprofundar-me nesse terreno; mas é importante atentar para o fato, sustentado pelo autor, de que cada ser humano é uma espécie de capitão de um navio (mente) à deriva, cujo controle total nos escapa. Muitos pensamentos que produzimos, mormente, os que nos afligem, nos flagelam, não podem ser postos sob a responsabilidade do “eu”, porquanto não foi o “eu” quem os produziu. Devemos reconhecer que, ao lado de nosso “eu”, vive um “outro-eu” que nos é estranho.
Podemos encontrar no pensamento de Max Scheler a importância declarada do estudo do homem: “Em certo sentido todos os problemas fundamentais da filosofia podem reduzir-se à questão seguinte: que é o homem e que lugar e posição metafísica ele ocupa dentro do ser, do mundo, de Deus”.
A antropologia filosófica é a ciência que se ocupa com o estudo da essência e da estrutura ética do homem. O desenvolvimento do pensamento filosófico grego clássico se deu na base do conceito animus, a saber, a alma, entendida como parte em que residem não só as faculdades intelectuais e as virtudes (prudência, justiça, temperança), como também as paixões.
Há uma gama variada de enfoques sobre o homem ao longo da história do pensamento filosófico. Platão, por exemplo, definia o homem como alma espiritual e imortal. Para ele, era preciso libertar a alma do corpo. Aristóteles, a seu turno, entendia o homem como um composto formado de alma e corpo, semelhante a todos os outros seres do mundo. Plotino considera o noesis – conhecimento intelectivo – como propriedade exclusiva da alma. Essas três perspectivas dão testemunho de um visão cosmocêntrica do homem.
É com o cristianismo, representado no pensamento dos filósofos cristãos, como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, que o homem é pensado na sua relação com Deus. Instaura-se um domínio de reflexão teocêntrica. Para Santo Agostinho, o homem é uma paixão excepcional e é na alma que Deus se manifesta com maior nitidez. Sua filosofia abrange as seguintes características: a) é inspirada em Platão, portanto admite a dicotomia alma e corpo; b) reduz o homem à alma; c) enfatiza a autonomia do conhecimento intelectivo.
São Tomás propõe um sistema filosófico de inspiração aristotélica, mais rigoroso e sistemático. Conquanto admita a dicotomia alma e corpo, entende não ser aquela subjacente a este, ao contrário. Para ele, a alma identifica-se com o próprio ato de ser de modo direto. A alma é, igualmente, imortal.
A filosofia moderna provoca uma outra mudança de perspectiva sob a qual o homem é pensado. Instaura-se a visão antropocêntrica. Descartes, Spinoza, Hume, Freud, Comte, Marx, Heidegger, Bloch, entre outros, estão entre os pensadores que defenderam esta visão. Não houve, contudo, uma ruptura definitiva com a herança filosófica clássica dos gregos. Persistia ainda a sombra do platonismo a orientar o pensamento filosófico moderno. Coube a Kant romper com as aspirações da metafísica, propiciando, assim, as condições para se pensar sobre o homem em terrenos mais sólidos, tais como o da história, da ciência, da cultura, da fenomenologia, da psicanálise, da religião, etc.
Em Marx, por exemplo, encontramos um enfoque econômico sobre o ser humano. Em Freud, vemos o homem do ponto de vista de sua natureza instintiva. Kierkegaard, por sua vez, o compreendia na base de uma teoria que contemplava a condição existencial de angústia.
Levo a cabo este texto, unindo os fios deste tecido de palavras com os seguintes pensamentos conclusivos:
a) a superação da aparência depende do exercício do pensamento reflexivo e do convívio aturado com os livros;
b) as experiências humanas só conseguirão superar a espessura da camada das aparências quando os indivíduos procurarem explorar o magnetismo da linguagem como meio de acesso ao domínio espiritual-anímico do Outro;
c) os valores que são dirigidos para a exterioridade devem ser conduzidos para a interioridade, onde residem as faculdades da razão e da linguagem e onde se encontra a arena das paixões e o céu das virtudes;
d) uma emancipação plena depende de uma educação que resista à ideologia dominante e que, principalmente, trabalhe as diferenças e a diversidade ideológica.
e) a superação das aparências depende de que os indivíduos alcancem a autenticidade, como forma de viver sem reificar suas experiências com o outro, de alcançá-lo naquilo que ele tem de essencial: seu próprio ser.
Reconhecermo-nos no outro para restituir o que somos, sem nos tornarmos objeto de consumo e manipulação, é o que nos identifica à complexidade do humano.

Ideias

Minha alma abriga muitas ideias; eu as tenho em penca. Algumas são mais nobres; outras, mais grosseiras; outras mais são bem encorpadas; algumas outras são esquálidas. Há ideias ufanas; outras, humildes; algumas edificantes; outras destrutivas. Há ideias dolorosas; outras que, embora prazerosas, devem ser dolorosamente esculpidas.
Ideias são o que movem este complexo orgânico-corpóreo em cujo cérebro eu resido. Este centro nervoso orgânico é, contudo, demasiado pequeno em face da imensidão de minha alma e de suas ideias. Sucede, entretanto, que não é o espírito que faz a História, tal como o cria Hegel. Marx não hesitou em demolir este idealismo. A História é feita por homens concretos em suas relações nas esferas de produção. Essas relações, contudo, são caracterizadas por opressão, injustiças, alienação e desigualdades.
A vida me é uma carga muito pesada, que tenho de arrastar até que a morte, querida amiga, me liberte com a sua leveza.
Ainda que as ideias, como sejam virtuais, não resistam à inexorabilidade da facticidade (no sentido de Sartre), tendo de se conformarem a ela, precisam obedecer ao princípio de realidade, tal como definido por Freud, qual seja, a necessidade de encontrar alternativas que satisfaçam aos apelos transgressores do id, satisfazendo as exigências do superego.
No entanto, não levo muito a sério toda essa parafernália conceitual do psiquismo freudiano. Não sei que haja uma sombra de concretude. É apenas hipótese. Não há certeza. As certezas são inúteis na vida, não valem sequer o pãozinho de cada manhã. A única certeza inabalável a que os homens têm direito é a certeza de sua finitude. A morte levará o corpo à deterioração em pouco tempo, menos tempo do que ele levou para alcançar a forma adulta e plenamente desenvolvida. Isso não significa que seja longa a vida; ao contrário, sua fragilidade é surpreendente: pode findar no curto lapso que separa o deslocar de um pé da calçada à rua. Nossa alma não é capaz de apreender a vida em toda a sua extensão; nossa memória se funda no esquecimento; e a vida nos escapa a cada instante; cada novo dia é menos um dia de vida. O nascimento marca o começo de nosso esgotamento. Nossa vitalidade vai se esvaindo gota a gota; mas isto se dá quando nossa vida transcorre sem muitas tempestades e contratempos, pois que não é rara a possibilidade de que ela seja tragada num átimo.
Invejo as pessoas que estampam na face uma alegria gratuita, muito embora relute contra as paixões da alma e preze as virtudes. Não se precipite em julgar, caríssimo leitor, ser eu insatisfeito, tampouco ser-me aprazível cultuar o sofrimento e o tédio. Não condeno a alegria; persigo-a diariamente. Sucede que não me basta sua aparência; ela precisa ser consubstanciada, ter entranhas, ser transcendente. É que procuro continuamente me autotranscender. Para mim, o ser dos homens é autotranscendente. A autotranscendência define-se como se segue (Mondin, 2009: 74):
“[sua meta] é a de reencontrar a si mesmo por meio da aquisição de um ser mais verdadeiro, mais próprio e mais autêntico, realizando uma ação mais plena e mais completa das próprias possibilidades”.
Concluo, pois, que autotranscendo toda vez que escrevo, pois que, ao fazê-lo, releio-me, me re-intepreto, me decifro. Procuro, mediante a laboriosa prática da escrita, potencializar a latência de minhas ideias demasiado elevadas. É nesse instante em que minha alma alivia-se das incumbências pesadas da vida; liberta-se, ainda que por algumas horas, de suas garras opressivas.
Não me agrado das pessoas que não experienciam esse reencontro consigo mesmas, que vivem com os ouvidos voltados para a exterioridade, a fim de captar sua balbúrdia, ao invés de recolher-se ao silêncio de sua interioridade. Quão difícil é experienciar a densidade, a espessura nos relacionamentos de hoje! O que se percebe é a superficialidade das aparências, o culto à vulgaridade, a pasteurização da chanchada, agora sob a forma de programas televisivos que combinam a insignificância com o grotesco e os servem num mesmo prato ao telespectador faminto por entretenimento alienante. Um dia desses, assistindo ao programa Pânico na TV, da Rede TV, - não por vontade, mas por pachorra, que me impedia de opor-me ao comando do controle remoto, já que quem o detinha era meu pai – fiquei realmente assombrado com a baixa qualidade daquele produto televisivo. Em cena, estavam os apresentadores do programa; e sentado, numa cadeira, um homem muito gordo. Cada um daqueles arriava um pouco as calças, de modo a deixar a bunda de fora e deitava de bruços sobre o regaço do gordo. Perguntar-me-ia o leitor: com que propósito? Esta talvez não fosse a pergunta adequada, pois a bizarrice não carece de finalidade. Ocorreu, então, que, uma vez debruçado sobre as coxas do gordo, que estava sentado, um apresentador do programa levava uma forte e única palmada nas nádegas, sob o escândalo de gargalhadas de seus colegas de trabalho. Era um espetáculo bizarro de vulgaridade; um declarado atentado contra o intelecto dos telespectadores – ou contra o pouco do que ainda lhes restava. Este exemplo ilustra bem a idiotização a que é submetida a massa de (tel)espectadores, segundo Adorno. É um exemplo claro da baixa qualidade dos produtos oferecidos aos indivíduos pela Indústria Cultural.
Minha alma é um caldeirão de ideias fervilhantes. Em mim, o pensar se identifica com o ser. Pensando o ser, vou-me repensando. A linguagem e os pensamentos (ou ideias) são o maior legado que um homem pode deixar à posteridade. Esta é uma lição que todos os pais deveriam ensinar a seus filhos. Tudo o mais é efêmero, degradável. A escrita foi, sem dúvida, a maior das invenções humanas, porquanto por ela pode-se conservar vivos os filhos do espírito.
Não concordo com qualquer forma de reducionismo, por isso rechaço a crença num fisicismo. Não somos apenas um complexo físico-orgânico. Sinto-me atraído pelo dualismo cartesiano. Creio em que para além do corpo há uma alma, uma substância imaterial. Há um substrato imaterial que é envolvido pela estrutura orgânico-corpórea. Afinal, temos consciência superior – uma capacidade sensível e intelectual, graças à qual podemos analisar, sintetizar, avaliar, compreender, representar os objetos por meio de ideias, de conceitos. São várias as formas de consciência, dentre as quais se destaca a consciência reflexiva. Com esta refletimos sobre os produtos de nosso pensamento e sobre nosso eu-mesmo. A esta devemos a possibilidade de conceber o self como diferente do corpo. Não sou um corpo, sou um espírito – um ser imaterial – vivendo num corpo. Essa concepção não poderia vir de outra realidade, senão da consciência humana, que é capaz de negar sua própria condição corpórea - a única, aliás, que lhe permite viver no mundo.
A vida no mundo requer corpos, matéria. A força da gravidade atrai os corpos para o chão; esta lei nos obriga a ter os pés no chão, por isso não ficamos a flutuar pelo céu. Minhas ideias, no entanto, flutuam, alçam vôos, para anunciar a liberdade de meu espírito, em que pese à austeridade da matéria.

O ser do AMOR


A essencialidade linguística
no homem: como chegar ao ser do Amor

Este texto constitui, de certo modo, uma continuação do texto A Expansão humana pela linguagem – novas reflexões. Ser ele uma continuação não significa que irá recuperar, necessariamente, todas as ideias presentes naquele texto. Procurarei conferir a este texto um caráter didático tanto quanto possível, sem deixar de lhe dar uma roupagem lírica, bem ao gosto de minha alma romântica.

Minhas considerações se apoiarão sobre as três seguintes premissas:


1) A linguagem é constitutiva da essência dos seres humanos;
2) A linguagem permite-lhes transcender à condição de corporeidade;
3) Como forma de transcendência, a linguagem permite que o ser do homem projete-se para fora de si.


Antes de prosseguir, preciso definir os conceitos de ser, transcendência e essência. Lembro que o idealismo é uma doutrina filosófica que visa a explicar a realidade tal como a experienciamos pelos sentidos (o mundo externo) na base do mundo interior, da subjetividade ou do espírito. Há várias formas de idealismo, entre os quais lembro o de Platão, melhor denominado de realismo das ideias, já que o “mundo das ideais” de Platão identificava-se à verdadeira realidade autônoma. Assim, a cadeira em que me sento não é o real, mas uma cópia do real, que, por sua vez, identifica-se à ideia de ‘cadeira’. E o de Berkeley – bispo anglicano e filósofo (1685-1753) – cuja doutrina idealista se denominava idealismo imaterialista, o qual consiste na crença em que o mundo material só existe no domínio das ideias, quer na mente de Deus, quer na do homem. Dizia que “Ser é ser percebido”.
Deixemos as miudezas filosóficas de lado, sem nos esquecer, contudo, de precisar o que é ser, essência e transcendência, conceitos fundamentais para o desenvolvimento de minha proposta. Não obstante a verborragia que o conceito de ser veio a desencadear ao longo da história da filosofia desde os antigos gregos – conceito que ora era considerado um problema meramente linguístico e lógico (ou mesmo tratado como um falso problema), ora alçado à dimensão da cosmologia e da metafísica. Vou compreendê-lo no sentido com que foi compreendido pelos filósofos pré-socráticos.
Estes primeiros filósofos se perguntaram sobre o “ser das coisas”, ou seja, a realidade última das coisas. Assim é que, com Aristóteles, poderíamos dizer que o ser dos homens é ser um animal racional. Uma das características envolvidas na questão do ser é o da sua ocultabilidade. O ser é, portanto, uma realidade oculta, sobre a qual está a aparência. O ser, ao contrário da aparência, sempre mutável, é imutável, continua sempre sendo o que é. Parmênides identificava o ser ao uno, ao imutável, à realidade que se chega quando se ultrapassa o mundo das aparências que, por definição, é múltiplo e mutável. O ser também envolve a crença em que se pode encontrar a verdade mediante a razão. O ser, enquanto expressão geral do pensamento, é um conceito que evoca outros, como estabilidade, imutabilidade e unidade. Parmênides nos diz “o ser é, o não-ser não é”.
Essência é outro conceito para o qual não há definições categóricas. Em torno dessa questão, giram inúmeras controvérsias, decerto desnecessárias para efeito de exposição. Terei de fazer uma escolha, inevitavelmente, com todas as consequências favoráveis ou não que toda escolha acarreta. A questão da essência das coisas prende-se à pergunta o que é x. Entendida na sua relação com a existência, a essência é um “setor” ou uma “parte” da coisa. Há quem considere a essência como algo independente, tão abstrato, que deve ser tomada em si mesma e se definindo como “é o que é”. Assumirei a posição de Leibniz, para quem a essência é algo que se inclina à existência. Em Platão, a essência situa-se na dimensão da realidade supra-sensível, ou no mundo inteligível onde há as formas ou essências.
O mundo sensível, ou seja, acessível à nossa experiência imediata e ordinária, através dos sentidos, relaciona-se às sombras do real; o mundo inteligível ou das ideias (no sentido com que Platão as entendia) relaciona-se à luz. É preciso, pois, superar o mundo sensível, o qual não é senão produto de sombras, simulacros do real, para chegar à realidade mesma, que é a das essências.
Finalmente, a transcendência evoca-nos a idéia de ordem superior, que ultrapassa, que supera. Transcender é um movimento para outra natureza. O homem se caracteriza pela autotranscendência, na medida em que “ultrapassa sistematicamente a si mesmo, tudo o que é, tudo o que adquiriu, tudo o que pensa, quer e realiza” (Mondin, 2008: 264).
Em geral, nos habituamos a entender a linguagem como um instrumento de comunicação – concepção reducionista da qual já tratei em outro lugar. O que o falante comum ignora é que essa espécie de faculdade é algo indissociável dele. Aprendemos nossa língua materna com uma facilidade e rapidez espantosa e extraordinária, comparável ao desenvolvimento da capacidade de andar. Aprendemos a falar com a mesma naturalidade com que aprendemos a andar, isto é, sem qualquer tipo de aprendizagem formal, esforço contínuo. A partir daí, nossa língua materna, tão arraigada em nossa mente passa a constituirmos enquanto seres humanos: homo loquens.. Nossas relações com o mundo e com os homens só são possíveis na base de nossa língua; ela perpassa todas as esferas de atividade de que participamos. Ao considerar a consciência como uma percepção que temos de nós mesmos e do que está em nosso redor, como consciência de algo (ter consciência é ter consciência de alguma coisa), devemos considerar o papel basilar que exerce as palavras, como signos que povoam a nossa consciência, a constituem como tal, porquanto permitem o contato dela com o mundo. Nossa consciência forma-se pelo contato das palavras que a povoam, portanto, que estão interiorizadas, com as palavras que circulam na realidade exterior a ela.
Entender essa relação entre linguagem e consciência como necessariamente constitutiva leva-nos a outra questão, a saber, a da relação entre linguagem e cognição. Não importa aqui discutir qual delas determina a outra, ou se há algum tipo de determinação. O fato é que existe uma intrínseca relação entre linguagem e cognição e creio não incorrer em erro ao dizer que a linguagem dá substância à cognição; ou ainda, a potencializa.
O signo linguístico é uma entidade que se compõe da união entre uma sequência sonora /kaza/ (casa) e o significado (registrado no dicionário). Sua importância sui generis reside em que, por definição, todo signo é signo de alguma coisa; um signo está no lugar de alguma coisa. Logo, para que falemos sobre “casa”, não precisamos estar diante de uma “casa” para saber o que significa ou que é uma casa. Imagine se quiséssemos falar sobre baleia e tivéssemos que trazer à audiência este animal, para que o público soubesse o que ele é. E pode-se ir mais além: quão impraticável seria ter de falar sobre todas as baleias. Isso pode parecer óbvio, mas disso o falante comum sequer tem consciência. O mundo chega a nós, “decomposto”, através dos signos de nossa língua; podemos, inclusive, através da linguagem, com o auxílio da imaginação, construir universos ou “mundos” que não tem existência objetiva, muito embora existam psiquicamente ou no imaginário.
Considerarei a alma como a essência humana. Entendo alma tanto no sentido psicológico (psique) quanto no sentido místico, ou seja, um princípio imaterial que anima o corpo. É na alma que reside a razão, a sensibilidade, as emoções, o desejo, a vontade, as paixões, as virtudes. Considero a alma humana como seu fundamento porque não podemos reduzi-la ao seu correspondente material chamado cérebro, se quisermos explicar sua natureza peculiar. Ao produzir pensamentos, ao investir-se de linguagem, a alma permite ao homem libertar-se de uma relação imediata com o meio; com a linguagem, a alma concede ao homem a possibilidade de evadir-se, expandir-se e dar passeios longínquos através de seus pensamentos, mesmo que o corpo permaneça parado. Alma é a única realidade de cuja extinção não temos certeza. O corpo, certamente, morre, torna-se inanimado. A morte do corpo é um fato físico-biológico; mas a morte ou não da alma é um mistério.
Assumo a perspectiva metafísica, ou seja, elevo meu pensamento para o domínio supra-sensível para meditar sobre a realidade em si. Atingir a realidade em si, com o concurso da linguagem, é, para mim, o único meio de experienciar um Amor desinfetado das imagens, das aparências, nas quais, não raro, está envolvido. Decerto, se trata de uma perspectiva idealista, que nega completamente a contingência da existência, quer do mundo, quer dos seres que nele habitam. No entanto, creio ser um caminho liricamente mais seguro pelo qual se pode trazer a poesia e a filosofia para o domínio da vida imediata.
Numa sociedade, claramente, individualista e hedonista, os relacionamentos entre homens e mulheres flutuam na dimensão das aparências, e sucumbem à tendência da vida líquida para incessante mudança, oscilação, flutuação, inconstância. É a alma, sede da linguagem, que deve ser o caminho para que o Amor, seja, verdadeiramente, o sentimento com aspiração à comunhão, à unidade.
Isso, contudo, só é possível, se os indivíduos tomarem o pensamento, em cuja base reside a linguagem, como possibilidade de produzir um magnetismo entre dois seres, e não entre duas coisas.


DESALINHAMENTOS....

Fico sentado, à mesa, observando o movimento habitual das pessoas; algumas conversam enquanto almoçam; uns grupos vão, outros vêm. É a hora do almoço e, embora eu esteja diante da realidade imediata e cotidiana, que minha consciência não pode alienar, em minha alma bailam ideias encimadas. Ocorreu-me, pois, uma questão: Será possível existir uma alma que está predestinada à nossa? Será possível um Amor ser destinado a cada um de nós pelas mãos de Deus? Será que, aos que pacientam e desejam ardorosamente experienciar um Amor que escape aos modelos socialmente estabelecidos, Deus não concederia o privilégio de experienciar esta forma de Amor sublimado?
Sinto-me infantil, tolo. Como é possível à alma, embora encerrada no corpo, ter pretensões tão elevadas? Como é possível que a alma crie e sinta muito além do que é conveniente ao princípio da materialidade? Como a alma pode, a despeito da morte ser um fato inexorável, idear uma vida além-túmulo, independentemente de ela existir ou não? Os animais não são capazes de tal liberdade. Em mim, sinto que a alma tem saudade de um mundo essencial, de uma realidade da qual ela não queria ter saído. Um lugar onde se pode experienciar toda a abundância do Amor imaculado, desenvenenado de toda sorte de vícios que a alma, enquanto encarnada, carreia.
Felizmente, a linguagem nos permite sonhar... E quem não sonha no/com o Amor, vive acordado num eterno pesadelo, procurando saídas em espaços cujas portas estão fechadas; pois que as palavras estão cada vez mais ralas e vazias; às vezes, esqueléticas na boca daqueles que não alcançam à essência do Amor.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Fiel a mim mesmo


Fiel a mim mesmo

Não escrevo para ser lido, mas para ser recitado, declamado, entoado. Quem supuser que é suficiente debruçar-se sobre meus textos, lançando olhares dispersos e superficiais sobre suas linhas, para chegar à compreensão ou, ao menos, a uma interpretação razoável, será forçado a interromper a leitura, em certo momento. Escrever é um ato de doação de mim mesmo; sou eu mesmo que me derramo; é minha alma que se despe, que exibe a sua nudez virginal. O leitor que me lê deverá também doar-se, pois só assim conseguirá atingir o substrato de algum sentido, entre os muitos sentidos possíveis.
Os mais religiosos deverão lê-los com as dedicação e concentração de quem se abandona a orações; deverão deter-se num estado de contemplação; deverão manter-se absortos. Meus textos requerem um silêncio imperturbável, quase sacro, porque convocam o espírito do leitor a partilhar de minha agonia verbal. O leitor fiel aos meus textos sofre comigo o meu sofrimento, que é belo e intenso, porque bebe da fidelidade de minhas palavras.
Não escrevo para entreter-me; não faço deste espaço um picadeiro para o meu espírito; há um peso sobre minhas palavras, uma vida que pesa ofegante. Escrevo para solucionar um problema; é a um problema que se deve a urgência da escrita. Escrevo para resistir-me, resistir à vida, superá-la na complexidade da sintaxe, inundá-la na profundidade da semântica.
Escrever e viver são meus sacrifícios; não há divórcio entre eles; vida e palavra se imiscuem, se enredam, compondo o oceano do meu ser. Ler-me é insuficiente; é necessário deitar seu coração sobre esta página; abandonar os pré-conceitos, os pré-juízos, as pré-concepções e lugares-comuns. Sinta-me com a nudez de sua alma; deixa que meus sacrifícios a absorva completamente. Os leitores que me são fiéis tornam-se meus cúmplices, as testemunhas de minha paixão.
Minhas palavras não oferecem fuga, não oferecem conforto, porque nos defrontam com o incognoscível, com o absurdo, com a angústia; andam de mãos dadas com a contingência; interpelam a Vida, ao passo que exalam o AMOR. Tornam-no o seu deus e o veneram; e não se cansam, mesmo quando contrariadas, ignoradas, incompreendidas.
Sou o que escrevo e escrevendo vou-me sendo, permanecendo, eternizando-me, doando-me, reinterpretando-me, para tornar-me fiel a mim mesmo. Em mim, o feminino sobrepõe-se ao masculino; a feminilidade está em minha alma; minha alma é feminina, porque doce, porque gera, porque doa, porque na fragilidade se fortifica, se regenera, se revigora. Minha alma é feminina porque é como um ventre, que dá à luz, que anima a vida. É feminina porque é forte, porque ama, clama, canta e suporta a dor. É feminina porque tornou a sensibilidade o seu altar, onde haverá de erigir seu AMOR e com ele viver, num dia, toda a eternidade.

Amor


Um breve olhar sobre o AMOR

As férias de fim de ano, em geral, não são muito vantajosas para mim, porque não me agrado das agitações exteriores; prefiro, ao contrário, a calmaria dos espíritos habituados a elucubrações. Disso se segue que fico mais tempo em casa, na companhia do tédio, que pesa e sufoca. Preciso voltar ao trabalho e às atividades do doutorado. Parece que, enquanto não passa o carnaval, o ano fica a engatinhar, se arrasta.
A televisão não oferece nada que nos entretenha e estimule; o calor não cessa e causa mal-estar. Agora, fico alguns minutos selecionando, mentalmente, as palavras adequadas que levarão este texto a bom termo. Às vezes, é melhor deixar a vida seguir seu curso e que o tempo se encarregue de levá-la adiante, já que, quando colocamos a vida sob exame intelectivo, ela parece estancar, fica represada. É um mau hábito que tenho: querer esquadrinhá-la, repensá-la, considerá-la em minúcias.
Para compor este texto, ouço a canção Coração Vagabundo, entoada por Caetano Veloso:


Meu coração não se cansa
De ter esperança
De um dia ser tudo o que quer
Meu coração de criança
Não é só a lembrança
De um vulto feliz de mulher
Que passou por meus sonhos sem dizer adeus
E fez dos olhos meus
Um chorar mais sem fim
Meu coração vagabundo
Quer guardar o mundo
Em mim
Meu coração vagabundo
Quer guardar o mundo
Em mim

Gosto dessa canção. E o leitor tem um coração vagabundo, desses que se entregam ao primeiro farfalhar do que se supunha ser o AMOR? Acho que meu coração ainda vive a vagabundear por aí... Vive de lembranças... de sonhos. Ele pode não querer guardar o mundo, mas certamente quer cingir o AMOR em si. Mas o amor de hoje é tão frágil, tão quebradiço; num instante, ele se desfaz.
Se a maturidade contem-me as lágrimas, enxuga-me a tristeza, faz-me concentrar meus pensamentos no que realmente me dignificará, eu desconheço os meios eficazes para esquecê-lo instantaneamente. Porque isso não sucede assim. Não deixamos de amar como trocamos de roupa. Uma experiência amorosa, por mais breve que seja, por mais precipitada e impetuosa que tenha sido, não se vira como uma página de livro. Algo se concentra em nosso espírito: um amargo, um dissabor, uma alegria tímida, a esperança agonizante, um desatino, a ingenuidade, a indiferença, um querer reprimido, o medo, a saudade. Algo em nós permanece e o que nos resta é aceitar o fluxo do tempo, que não para, embora pareça arrastar-se.
A única coisa que muda, quando acreditamos – certamente, por ingenuidade – que nossos projetos são incólumes às nossas frustrações amorosas, é o grau de descontentamento pela amputação amorosa prematura. Decerto, sinto que meu amor foi amputado. Certamente, os mais experientes dirão que desamores, desilusões amorosas são recorrentes na vida de qualquer pessoa; mas elas doem mais quando sabemos não ter havido qualquer desencontro ou contenda.
Eu levo o AMOR muito a sério. Amar é fazer do ser de um participante do ser de outro. Quando AMAMOS realmente, as duas existências deságuam uma na outra. Esse desaguar de nossas vivências, de nossas histórias de vida nos modifica de algum modo. De certo modo, não somos a mesma pessoa de antes. Por isso, a sabedoria popular nos diz que “cada experiência, um aprendizado”. Ocorre que esse ditame, em matéria de experiência amorosa, é ineficaz, pelo menos para mim. Pois, transcorrido certo tempo, meu coração não hesitará em derramar-se outra vez. Simplesmente, porque ele é inocente, ingênuo e não foi educado para antever os caminhos incertos que poderá percorrer. No fim das contas, é a tal vulnerabilidade do AMOR, a que já me referi. Amar é estar vulnerável; nada de vestir a couraça do orgulho e retrair-se. Coração revigorado para alçar novos e longínquos vôos! Mas não se pode arrepender-se por não ter arriscado, tentado; o AMOR não floresce todos os dias; demora algumas longas estações para nos acarinhar e acalentar com a sua graça.
E, como dizia um poeta, “o amor correspondido é uma graça inefável”.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Fotografia


Fotografia

Ao cabo de um dia inexpressivo, a noite, madrasta traiçoeira, visita-me sombria. Ao romper desta noite, ocorreu-me que jamais tive sobre a prateleira do quarto um porta-retrato com uma fotografia em que se estampasse uma imagem de mim junto a uma imagem de amor encarnado. Nunca experimentei a sensação – provavelmente, aprazível - de deter-se a olhar um encontro prazenteiro e congelado naquele pedaço de papel fotográfico, que aprisiona os bons momentos de nossas vidas, para que eles não se esvaiam na memória e também para que eles sejam sinais à posteridade de que houve vida em nossos corpos. A fotografia, à semelhança de um museu, eterniza a nossa existência, embora nem nosso corpo nem nossa alma permaneçam; somos apenas impressões de vida; resquícios de um estado de existência; imagens fixadas e inanimadas, abandonadas a um tempo que não voltará... Na fotografia, nosso corpo está amalgamado com o tempo; nesse pedaço de papel, finalmente, tornamo-nos capazes de nos unir ao tempo de tal modo, que compomos com ele uma só unidade, morta, mas inseparável e eternamente feliz, desde que a natureza não se encarregue de pulverizar o papel, reduzindo-o a migalhas de impressões de vida... Sucedendo isso, reunir-se-ia a fotografia – impressão de felicidade congelada – a todas as outras matérias do mundo, num laço de comunhão fraterna, porquanto "tudo quanto é matéria torna-se pó"...
Só não se tornam pó a indiferença, o desamor, a frigidez, a leviandade humanas; a intolerância, o racismo, o sexismo, a ignorância crassa. Todos esses sentimentos ou atitudes, irmanados, alocam-se no corpo de algumas pessoas, ao longo da vida; e deles se tornam hospedeiras... Não me é possível dizer que, após transpassar os portões da morte, um ser humano hospedeiro possa expurgá-los; cuido que assim deve ser; afinal, não haveria razão para crer em que, casando-se com a morte (casamento inevitável e, de fato, legítimo, pois o padre é Deus), o infeliz tivesse de experimentar o dissabor de suas relações afetivas novamente... Espera-se, penso eu, que, no enlace com a morte, viva-se, finalmente, a comunhão pura e perfeita do amor; pura, porque não estaria eivada de egoísmo (não haveria mais o “ego”), de indiferença, de mágoa, de lubricidade, etc. ; perfeita, porque traria o selo de Deus, que não discrimina os homens rotulando-os de teístas e ateus, de fiéis e hereges.
O álbum de fotografia! Ah! É um baú de ilusões... Sim, mas de ilusões verdadeiras... Afinal, os acontecimentos que povoam cada pedaço de papel que ali se acha foram factuais, muito embora, ao deter-nos na observação das imagens, se nos afigure que podemos revivê-los, submergindo naqueles “mundos” congelados e tornando-nos mais uma personagem das “cenas” de nossas vidas, das quais fomos, muita vez, os protagonistas. Algumas outras vezes, delegamos esse papel a uma tia esclerosada, a cujos desejos não nos poderíamos obstar, sob pena de viver sob murmúrios de reprovação ou de imprecação; outras vezes, tivemos de ceder aos caprichos de um tio beberrão e mal-amado que, após ter enviuvado, já não distingue mais os espécimes de pessoas que revisitam sua cama. É... Felizmente, o leitor nunca teve um tio assim, não é? Mas ele existe; vive quiçá na mais politizada e decorosa família brasileira, ostentando um sorriso brejeiro, enquanto, com uma das mãos, segura uma caneca de cerveja, obtida em Beer Feast, a custo de alguns arranhões e hematomas, ao lado de uma dessas “turbinadas” que pousam em qualquer aeroporto, ainda que “o controlador de vôo” seja tão incompetente quanto arcaico. Talvez, ele conserve uma foto assim, relegada ao acervo de suas fanfarrices. Não se deve, jamais, aceitar uma foto dessas, sob pena de macular a morada cândida dos acontecimentos perfectizados, que, com inestimável esmero, se conservou...
Ah! Como é bom ostentar na estante de casa uma foto de um encontro amoroso, de um beijo selado perante um bando de desconfiados e de agourentos, que, às ocultas, maldiziam a união... Ah! Como é bom, ante o retrato, desatar a chorar, de sorte que as lágrimas que nos caem dos olhos deitem sobre o papel como pequenos flocos cristalinos de dor, em cuja composição entra uma grande dose de saudade diluída numa densa dose de mágoa... Quando se abandona a um pranto convulso, sente-se o diafragma comprimir, ao que se seguem espasmos dolorosos da alma, que, debalde, conquanto com notável perseverança, procura se libertar da prisão corporal e alçar vôo catártico aos Céus das virtudes divinas. Nessas horas, o ar – ópio dos pulmões – nos escapa; a escuridão que nos assalta os olhos faz-nos entregar-nos ao travesseiro, já embebido em lágrimas.
Ah! Não tenho uma fotografia assim... Estou imune a essa experiência desgostosa, por isso me lancina impiedosa tristeza fotografada em minha alma.