segunda-feira, 6 de setembro de 2010

poema - Catarse



Catarse

No inverno, vou aposentar-me do mundo
Saldar-me-á Deus as dívidas à Morte
Rogar-Lhe-ei apenas os benefícios do túmulo
E a certeza de ventura à minha prole

E neste dia, quando mais um leito ocupado
A gênese de minha carne então vencida
As raízes de plátanos terão evolado
A Dor visceral de minha alma enternecida

E a terra merencória de soluços repleta
Semeadora de cadáveres, necrófago ventre
Devora plácida toda carne fria que recende

A podridão protoplásmica que dantes era
O solar adorado dos progênitos do carbono
Necrópole da ventura. Da alma o abandono.
(BAR)

A prisão da fé



Cárcere do Nono Mandamento

Esta gravidez as entranhas me esturrica
O coração é pulsante de anseio venenoso
O gosto cítrico que me sabe mais acre fica
Quando o cálice de ingênuo pecado bebo brioso

Altivo! Metido na mais entorpecida dignidade
A mão pecaminosa à folha do destino é astúcia
E em contentamento rasura a divina fatalidade
Que a teu viver causa coragem! Ao meu seio, angústia!

Madona minha! Senhora deste sonhar profano!
No coração, a última gota enquanto entorno
Sorri-me a esperança deste querer-bem ufano!

Porque dantes de humildade a alma queimava,
No entanto, estas lanças verbais o dilaceramento
D’alma, do corpo legam-me por Mandamento.
(BAR)

Este poema fora escrito no momento em que folheava uma revista destinada ao público feminino em que se estampavam fotos de ninfas da publicidade


Mulheres de Páginas


Ah! Mulheres! Paisagens!
De formas belas folheadas
Aos olhos, nas páginas, atadas
Ah! Porcelanas! Miragens!

Belas! Atraentes! Estampadas!
Ânsia de meu brio – Ilusões!
Semi-nuas! Ardentes! Aparatadas!
Flores de mil estações!

Modeladas formas: A Perfeição!
Dos versos fartos: Ostentação!
Obras de mármore do Adorador!

Lindas Borboletas: Contempladas!
Voam cintilantes no Verão!
Corpos vaidosos de Esplendor!


(BAR)

Numa de minhas aulas de literatura, ainda quando era universitário, aprendi o sentido machista implicitado na história da cinderela.

Feminista


Por que haverei de esperar
Que na torre de um castelo
Um príncipe venha me salvar?

Por que a ele toda honra
Que, com um beijo, me desperta
De um torpor degradante?

E por que amor não havendo
Consinto que o homem me furte a pureza?

Quiçá, a bruxa de tão má se torne anjo
Pois me quisera privar da triste herança
Que me aprisiona nos braços da macheza.
(BAR)

Cupido




Cupido


Pudera de um querubim desinibido
Uma flecha transpassar-me o coração
E lá ficar a cintilar como um vaga-lume
Que ousou iluminar uma floresta negra.
E ficou preso nos ramos da paixão
Pudera um querubim o amor banido
Lembrar ao homem insulado alheio a emoções
De jovens femininos ingênuos corações,
Que nunca no leito escavado viu adormecer
A mulher dos sonhos por quem jura morrer
Pudera nos dias de um vazio mórbido
Pousar-me n’alma o doce olor de um beijo esquecido.


(BAR)

sábado, 4 de setembro de 2010

Este texto data de um tempo remoto, quando a consciência da descartabilidade das relações se me aflorou


              

                

  A mercadoligização dos relacionamentos



Este texto constitui uma versão reduzida e revisada de um texto que escrevi há tempo e que pode revelar, no modo extravagante como o tema foi abordado, certa ingenuidade minha em termos da percepção das relações entre homens e mulheres em nossa sociedade. Talvez, meu espírito tenha feito vôos muito altos; no entanto, por acreditar que, de algum modo, o texto possa propiciar ao leitor algum momento de reflexão, cuidei conveniente divulgá-lo.

Tudo começou quando assisti pela televisão uma reportagem sobre uma espécie de contrato de namoro, que consiste num acordo judicial estabelecido pelos parceiros, com vistas a obter privilégios de alguma espécie quando do rompimento da relação. Isso é um sintoma da liquedez dos vínculos humanos de que já tratei alhures, ou seja, é preciso ter garantias em face de sua fragilidade. Contratos desse tipo, comuns na relação conjugal (contrato nupcial), invadem a esfera das relações de namoro, o que indica uma verdadeira burocratização do amor.

É consabido que o sexo, assim como o dinheiro, é instrumento de poder, na sociedade. Tudo, no capitalismo, torna-se mercadoria: inclusive o amor. O amor, enquanto mercadoria, vale por outra coisa, o sexo. Uma vez não obtendo a mercadoria pretendida – sexo – um homem poderá, segundo a lógica do capital, procurar outra pessoa que torne possível a troca (“há outras que estão dispostas a negociar”).

A traição não é mais um sinal de ruptura com a cumplicidade; mas uma tendência. A norma, muita vez, é trair; o anormal, pelo menos entre os mais jovens, é quem não trai. A traição é ensejada pela ideologia do “mercado livre” e da “oferta e procura”. Ora, quando uma empresa enfrenta uma crise econômica, seus investidores não passam a investir seu capital em outra? Assim também, como veremos numa reportagem da revista O Globo, os namorados ou os cônjuges podem investir em outras mulheres/ homens, caso o mercado não lhe seja favorável. Tendo em vista essa ideia, também as empresas, para atrair investidores, reestruturam-se, modernizam-se, investindo em tecnologia, renovando o quadro de funcionários, despedindo e contratando pessoas especializadas para atuar em determinados setores, etc. Em certos relacionamentos conjugais ou pré-conjugais, sucede o mesmo: as chamadas “crises do casamento”, ou as “desavenças da Primavera”, acarretam a procura por outros “mercados” ou “negociadores”; e não escasseiam homens e mulheres que concordam com a ideia, segundo a qual a “traição” só é justificável quando um dos parceiros não satisfaz sexualmente o outro ou não atende aos caprichos do outro. A traição não se justifica! Se os dois indivíduos concordam (pois o casamento é uma aliança, um acordo por vontade recíproca) em unir-se pelos laços matrimonias, então é porque desejam em comum dedicar suas vidas um ao outro. Oh! Inocência romântica, a minha! O mesmo se diz do namoro: nessa relação, deve haver liame afetivo e emocional entre os parceiros, o qual é resultado de uma disposição (psíquica) humana a viver junto do outro; portanto, para suprimir sua solidão social. Ensina-nos Cury (2006:50):



“Podemos conviver com milhares de animais sem jamais termos problemas de relacionamento. Mas, por melhor que seja a relação com um ser humano, sempre haverá frustrações importantes. Apesar disso, não conseguimos deixar de viver em sociedade. Não somos seres sociais pelo instinto que promove a sobrevivência biológica, como acontece com os outros animais, mas por sobrevivência psíquica”.




Os homens têm necessidade psíquica de viver em sociedade. A fidelidade é frágil diante da ditadura dos corpos e de seus atrativos explorados e incrementados pelo mercado. A fidelidade não resiste à neurose social pela fabricação de beleza artificial, pela exploração dos instintos mais primitivos. A fidelidade não se acha no domínio da relação físico-corpórea, ou seja, ela não se sustenta neste domínio, os corpos tendem ou são estimulados à promiscuidade; e quando o espírito é obtuso e estreito, portanto, facilmente seduzido e manipulado, ele será escravo da libido. O amor não está na efemeridade do orgasmo. Conclui-se que a fidelidade depende de uma aliança anímica. A fidelidade é condição indispensável e necessária ao envolvimento emocional, à sustentabilidade do vínculo afetivo não de corpos, mas de almas, de seres psicologicamente complexos. A fidelidade deve habitar a alma humana; pois só a fidelidade credita o amor. Disso se segue que sem fidelidade não há amor.

No momento em que o amor se torna uma mercadoria que vale por outra, que é o sexo, aquela mercadoria “perde” seu valor de mercado, pois, muitas vezes, os negociadores cedem às pressões de um mercado maior que não investe no amor, mas no sexo. O sexo, à semelhança do dólar, torna-se a “moeda” universal que compra o prazer, pois o “prazer” é o verdadeiro bem de consumo do homem. O mercado do amor aufere lucros exorbitantes no Dia dos Namorados, ocasião em que os shoppings estão repletos de gente e em que os “pombinhos” vão às compras. Não quero com isso sugerir que não concorde com a ida ao shopping no Dia dos Namorados, mas apenas chamo a atenção para o fato de que o mercado se aproveita de ocasiões como esta em que se celebram a harmonia, o “amor”, para atender às necessidades econômicas.

O sexo é uma fonte de prazer natural; mas, no momento em que ele se torna domínio de sistemas teóricos especializados, de discursos especializados, acaba por ser controlados pelas instituições, entre as quais o mercado. A teorização do sexo implica maior quantidade de práticas sexuais; quanto mais se compreende as formas de existência da sexualidade mais domínio sobre ela pode-se ter e mais estimulada ela será.

Uma vez não tendo valor no mercado de trocas, das emoções, o amor torna-se uma moeda desvalorizada, pois já não vale mais para obter o prazer, que assume várias formas, entre as quais a sexual, que é a forma natural e instintiva, segundo a psicanálise freudiana. Ou seja, para gozar do prazer sexual, não se precisa mais “experimentar” ou “falar de amor”; basta que se detenha algum atrativo econômico.

Viver intensamente e fielmente nossa sexualidade é um meio de liberdade; a liberdade não se confunde com promiscuidade. Se tomarmos o caso do mercado pornográfico, o que observamos é que é o dinheiro que intermedeia a negociação: o corpo é o “bem-privado” que é vendido para a obtenção de um valor monetário determinado. A “mão-de-obra” aqui é a capacidade de fazer sexo. É essa capacidade, a rigor, que é vendida; afinal, não basta que o corpo seja atraente, tenha atributos exigidos pelo mercado, se o homem ou a mulher não podem, por alguma patologia, praticar o ato sexual. Ora, um homem impotente sexualmente não tem valor de mercado, muito embora sobressaiam seus músculos e formas apreciáveis. Nesse mercado, o corpo não pertence mais ao indivíduo, que deve mantê-lo segundo os padrões estéticos exigidos pelo mercado; o corpo pertence a esse mercado pornográfico. E ouvimos certas mulheres de filmes pornográficos se proclamarem “atrizes”!

Deve-se distinguir, pois, claramente, entre os dois domínios em que o sexo se torna mercadoria e, consequentemente, em que o Amor se desvaloriza, do ponto de vista de seu valor de mercado: o domínio das relações descartáveis ou epidérmicas entre indivíduos que não se valem do dinheiro para obtenção do prazer (exceto, no caso em que o homem recorre a prostíbulos); e o domínio social em que o sexo vale por dinheiro, numa relação claramente mercantil.

Tanto num quanto noutro domínio, as relações tornam-se esvaziadas emocionalmente. Veja-se, a título de ilustração, como uma formação ideológica procura justificar a traição que é, implicitamente, tomada como consequência de uma relação convencional e antiquada. Aqui está a expressão do pensamento de uma ex-garota de programa, em entrevista na revista O Globo.

“A mulher que se transforma em garota de programa para seu companheiro com certeza vai estar um grande passo para ele não pensar em traição. Os homens querem novidades sexuais, justamente o que não têm dentro de casa. Se a esposa oferece isso, ele não vai precisar de outras mulheres – avalia a moça, com a experiência de quem trabalhou três anos atendendo a uma média de cinco clientes por dia”.

Respiremos, leitor, porque seu pasmo é também o meu. O que dizer disso? É claro que essa forma de perceber e de entender os relacionamentos entre homens e mulheres é reflexo das condições sócio-culturais e econômicas em que ela viveu.

Vejamos o que está explícito e o que está implícito:


Está explícito:


a) a ideia de que, para que não haja traição, é preciso “requintar” a relação sexual; é preciso que a esposa vista a personagem da “prostituta” ou da “frentista do prazer” que realiza o egoísmo pervertido do parceiro;

b) o desejo dos homens de requintar a relação sexual e a crença em que a ‘casa’ não é lugar para extravagâncias sexuais, ou melhor, o ambiente doméstico é o lugar do sexo comum, do sexo convencional que todo casamento, também convencional, requer;


O que está implícito:


a) é reforçado, tacitamente, um estereótipo de mulher-esposa, que deve cumprir as tarefas domésticas, cuidar dos filhos (quando os tem) e satisfazer a libido do marido numa experiência sexual comum e padrão (vulgarmente chamada de ‘papai-e-mamãe’);

b) Constroem-se e opõem-se duas imagens referentes à mulher: a esposa, dona de casa zelosa, comportada e sexualmente antiquada; e a “garota de programa” (ou mesmo a da “tiazinha/feiticeira”), que representa o libertino e a possibilidade do requinte, da satisfação das fantasias.


Há, então, o pressuposto de que a esposa tem de encenar uma personagem “erótica” e “lasciva”, fazendo quebrar a “casca grossa da rotina”, como condição necessária para que os seus maridos não venham a traí-las. Ora, acreditar em que a única forma de evitar a traição do homem seja a de satisfazer sua vontade lasciva significa minar valores como diálogo, respeito, cumplicidade, amor – que devem primar em qualquer relacionamento.

A sugestão da ex-garota de programa é não só um produto ideológico, como também ineficaz, porquanto, afinal, não é encenando eroticamente, vestindo a personagem da prostituta, que o receio e a desconfiança da esposa se esvaecerão. A “novidade”, inevitavelmente, tornar-se-á, num lapso de tempo curto, “repetição”, o que demandará novas formas de requinte sexual (na sociedade líquida, o imperativo é a busca pelo novo). Note-se bem, leitor: estamos diante de um exemplo claro da insaciabilidade do homem moderno. No domínio do sexo, considerando-se o oferecimento pelo mercado de produtos destinados a estimular cada vez mais as práticas sexuais e a aumentar sua ‘qualidade’, interessa a esse mercado que os consumidores permaneçam num estado de insatisfação, para que continuem a consumir mais produtos destinados ao sexo.

Devemos a Augusto Cury o termo ditadura da beleza, com o qual ele interpreta a neurose coletiva pela busca contínua por um padrão de beleza, que é estabelecido pela televisão, pela moda e pela publicidade e que é reforçado nas experiências cotidianas do homem comum. É necessário obter e conservar a beleza para continuar a participar dos meios sociais de consumo. Essa forma de sociedade produz indivíduos narcísicos e carentes de profundidade psicológica.

Notemos como o mercado, considerado agora em sua vertente editorial, determina padrões e reforça estereótipos, contribuindo para aumentar a distância sócio-subjetivo-emocional entre homens e mulheres. Sabemos que as revistas produzidas e publicadas destinam-se às exigências de um determinado público; na realidade, os agentes da moda e da publicidade e toda a indústria editorial captam os modos sócio-culturais de existência e as tendências, aproveitam-se das novas descobertas tecnológicas e científicas, reconhecem e trabalham as ideologias predominantes e empacotam tudo isso na forma de um produto (a revista), destinando-o ao consumidor. Tome-se para exemplo a revista Marie Claire. Nela, se oferecem matérias sobre culinária, moda, decoração, beleza, alimentação, etc. e são sugeridas “receitas para conquistar o homem dos sonhos” (sem mencionar os “testes de fidelidade”); e, aos homens, o mercado editorial oferece revistas com apelo pornográfico e erótico, mantidas por mulheres que visam ao enriquecimento, ao status social e publicitário e que, na sociedade do espetáculo, desejam permanecer sob as luzes dos holofotes da mídia.

Outros dois estereótipos são construídos aqui: de um lado, a mulher moderna, que precisa cuidar da casa, cumprir seus encargos profissionais, sem deixar de estar bonita e atraente aos seus maridos ou companheiros; de outro lado, o homem moderno, que não escapando à onda da beleza a qualquer custo, tem de ser sexualmente satisfeito por essa mulher “multifacetada” e “dinâmica”, que tem de ser versátil para assumir várias “personagens” (a mãe dedicada, a dona-de-casa exemplar, a mulher dos desejos primaveris do marido, a profissional de sucesso que luta por seu espaço, num mercado predominantemente ocupado por homens, e que devem resistir à competição predatória do capitalismo, etc.), mas que tem também de acordar “feliz” por ter ao seu alcance “as páginas amigas” que a conhecem verdadeiramente e que “foram feitas para ela”, das quais só bastará seguir as “fórmulas” para se tornar uma “mulher moderna”.

Há, arraigada em nossa sociedade, uma ideologia segundo a qual sexo e amor são coisas diferentes. Uma música de Rita Lee expressa bem essa separação. Segundo essa ideologia, as mulheres “fazem amor”; os homens “fazem sexo”. O fazer amor pressupõe maior profundidade afetiva e emocional, desejo de perenidade na relação, expectativa de prolongamento e reiteração do prazer. O fazer sexo é meramente circunstancial e atende a necessidades instintivas imediatas; não há espaço para compromisso; a efemeridade é o que o sustenta; as emoções são apenas reflexos de estímulos orgânicos. Igualmente sintomático dessa separação das esferas sexuais em que se situam homens e mulheres é o modo como tanto uns quanto outros se referem à experiência sexual. Os homens se vangloriam do número de mulheres com quem tiveram relação sexual e referem-se a essas experiências com o vulgo comer (“Cara, comi uma mulher!...”). As mulheres, a seu turno, ou “vão para cama”, ou “dão para ele”.

A educação dos pais exerce um papel fundamental no modo de condução da sexualidade de seus filhos. Mais do que ensinar os jovens a ministrar métodos contraceptivos, devem-se transmitir valores tais como “respeito”, “amor”, “cumplicidade”, “fidelidade”, etc. na vivência de sua sexualidade. Nos espaços sociais frequentados, especialmente pelos mais jovens, bocas se unem sem haver aliança, corpos são consumidos sem que haja referenciais prévios (nome, o que faz, o que gosta...). Tais formas de relações imediatas e instantâneas são esvaziadas emocionalmente; não há sequer sombra de amor.

Quando os pais não intervêm nessa esfera de comportamento dos filhos, educando-os, acabam por formar adultos que não estão habituados ao sofrimento, às decepções, às desilusões que cercam toda relação interpessoal; em outras palavras, formam-se pessoas incapazes de lidar com a tristeza, a decepção, a ilusão, forjando um mundo fantasioso, em que tudo pode ser consumido, no qual, havendo inúmeras possibilidades de obter prazer, novas formas de prazer instantâneo devem ser buscadas. Não lhes é ensinada a necessidade de assumirem responsabilidade, tampouco se lhes traz à consciência a ideia de que, ao fazerem escolhas, serão responsáveis por si mesmos e pelos outros, porque, como nos ensina Sartre, minha escolha envolve toda a humanidade; cada escolha que eu faço implica que eu assuma a responsabilidade por ela, bem como pelos outros. Existir, na concepção sartreniana, é não só “estar condenado a ser livre”, mas ter de assumir, por sua liberdade incondicional, a responsabilidade por si mesmo e por todos os outros homens. A verdade desta lição existencialista se sustenta quando observamos as situações em que, não satisfeitos com o comportamento de outrem, questionamos: “E se todos agissem assim?”, “o que aconteceria se todos agissem como você?”.

Em entrevista ao Jornal Folha Dirigida, o professor e sociólogo Nelson Mello e Souza, também vice-chanceler da universidade Estácio de Sá, avalia, entre outras coisas, a inserção dos jovens no mercado de trabalho. Suas palavras, num tom de denúncia, trazem-nos à consciência as condições sócio-culturais, econômicas e ideológicas em que vivem os homens das sociedades modernas industrializadas:



“(...) Atualmente, não se respeita mais o professor. Houve um processo de decadência. E essa decadência passa pela falta de posicionamento do jovem moderno na vida. Será que pensa estar imune à crise? Será que pensa em ter os pais para sempre? Será que pensa estar livre de sofrer? Pensa que é só surfar, sair com as meninas à noite e se divertir na boate? Será que a vida é isto? Não é isto, infelizmente, talvez, mas não é isto. A vida é muita melancolia, muito drama, muita decepção; e nós temos que nos preparar para isso. A pessoa tem que estar preparada desde cedo para enfrentar as dificuldades da vida”.



Acrescenta:


“As pessoas só pensam no hoje, em ganhar dinheiro hoje. Quanto ao resto é só jogar fumaça no ar, arrebentando a atmosfera toda e plantando soja mesmo que acabe com o solo para a agricultura do país. Eles desconhecem que vão embora, deixando para os filhos e para os netos um mundo em polvorosa. Isso não interessa para eles, não é de interesse do empresário. É um egoísmo transcendental, um deslocamento do ego, o homem passa a ocupar um lugar que nunca ocupou no mundo. Um lugar de absorção total, onde só existe o ego e mais nada. Não existe o outro, o outro é coisa, é objeto manipulado pela esperteza. A esperteza é que manipula o outro. Quanto mais esperta a pessoa é, mais sucesso terá na vida. Esses são os valores transmitidos. O amor está contaminado e fica muito difícil ter relações humanas saudáveis num mundo envenenado por valores completamente distorcidos”.




Essa “contaminação do amor” e a conseqüente dificuldade de experienciar relacionamentos “saudáveis” decorrem justamente dessa “ação segregadora e objetificante” do mercado. As palavras do professor Souza, impregnadas de uma veia cáustica, levam-nos à compreensão do esvaziamento emocional das relações entre homens e mulheres e do esgotamento da consciência crítica nos jovens – consciência esta que é cada vez mais embotada, regredida pelos mecanismos reificadores do mercado.

É preciso, então, reconhecer, considerando-se as condições da cultura pós-moderna, que sexo escusa amor. No entanto, acredito que o amor, quando encarado como sentimento entre os parceiros de uma relação erótica, deve envolver a relação sexual. O amor sem sexo é como um membro amputado; o sexo sem amor viciado.

Que dirá do sexo um romântico como eu, então? É com as seguintes palavras a respeito do sexo que ponho termo a este texto.

O sexo não se resolve num ato; deve ser uma relação anímico-carnal, durante a qual o alvoroço de corpos deixa ver o embaraço de sentimentos de amor dantes inconfessáveis; de uma relação em que o incitamento das ancas e a confusão de bocas deixam ver a irmanação de sentimentos de benquerença nunca dantes conciliáveis. O sexo não é senão uma experiência de sublime adoração e comunhão dos corpos e espíritos humanos. Há, no sexo, assim creio, mais do que uma acomodação de corpos, um roçar afoito pela harmonia perfeita num espaço que repele a unidade; no sexo, há a comunhão das almas, o entrelaçamento dos desejos mais íntimos da alma; enfim, a busca ininterrupta pela superação dos limites físicos da corporeidade.

A penetração do falo e o acolhimento passivo da vagina não é senão o anseio humano por comunicar fisicamente as delícias inconfessáveis que impregnam o o coração e o imaginário. Comunica-se, pelo sexo, mais do que um fluido corporal, um deleite físico, senão a dimensão sentimental imensurável que navega pelas veias, quando o batimento cardíaco se acelera e os corpos se estremecem, e que, ao final, não encontra sua síntese no orgasmo, pois que o prazer é sempre passível de ser revivido.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Vassalagem amorosa




O Vassalo


Se prostrado a teus pés de anjo me deixo estar
E minha alma em refolhos te exalta assim
Se sou por isso mendigo de amor. Tem pena de mim!
Que não conheço outro jeito de amar!

Se ris da devoção deste amor promitente
E se profanas a santidade destes pálidos versos
Não sabes quanto Amor há em meus amplexos
Nem quanta ternura guardo n’alma fremente


Não conheces um querer que é bendito
Nem pousaste os lábios em boca tão cálida
Onde a ternura desabrocha como a crisálida

Nas noites quando de paixão consumido
O pensamento vai-te ao encalço em ardor
Não conheces as feições santas do Amor!


(BAR)

domingo, 25 de julho de 2010

A caverna pós-moderna


Inconstância






         Numa perspectiva fenomenológica, todo fato humano é significativo. Uma vez eliminada sua significação, esvaece-se sua natureza de fato humano. A emoção compreende a totalidade do Dasein (“o ser-aí”, “o ser-no-mundo”). Emoção é o todo da consciência. A emoção é a realidade humana assumindo-se a si mesma e projetando-se para o mundo. Ela não existe enquanto fenômeno corporal, pois o corpo é incapaz de conferir sentido. A emoção é significação da consciência.


           A realidade humana é o eu, que assume seu próprio ser, ao compreender a si mesmo. Essa compreensão não se dá, evidentemente, in absentia, mas na relação com o outro. O Dasein é o ser-no-mundo, ou seja, o modo como cada um de nós existe no mundo. O Dasein constrói sua própria significação existindo no mundo. Como realidade humana, o Dasein é “ser com”. Os homens são seres de “relação com”.
É inegável que a emoção desempenha um papel fundamental nas formas de relacionamento humano. Nossas relações com o Outro se estabelecem na base da emoção. Do latim emovere (‘movimento’ ‘fora’), emoção é o movimento de nossa alma para o exterior. É o que nos move para o mundo, motivando-nos a nos relacionar uns com os outros. Como ensina Cury, a emoção é caracterizada por um conflito inerente: se, por um lado, ela é a grande responsável por nossa força vital, pela vontade de viver, tornando nossas experiências fonte de prazer e satisfação; por outro lado, também traz muitas complicações, acentua nossa suscetibilidade a decepções, a frustrações, etc. A vida humana não seria possível, no entanto, sem emoção.
         Doravante, encaminharei meu discurso na direção adequada à satisfação dos objetivos a que viso. Paciente, leitor, pois iniciarei um novo tópico. Não lhe será custoso, entretanto, estabelecer a relação de sentido entre ele e a porção precedente. Como não tardará em notar, as considerações precedentes sobre o conceito de Dasein do existencialismo de Heidegger, bem como sobre a emoção, tal como pensada numa perspectiva fenomenológica, que remonta a Husserl, serão responsáveis por orientar a construção de representações que se assentam no pressuposto de que manter relação é o que define a essência do homem. Há duas implicações nesse pressuposto:



1º) como ensinou Sartre, no homem “a existência precede a essência”. Primeiramente, o homem existe, para, então, ser;

2º) Como não haja uma essência pré-definida ou dada a priori, existir, que é ‘manter relação com’ (ao existir, levamos em conta o outro, essa é a condição do Dasein), passa a constituir uma propriedade fundamental da definição do humano.

            Não tenho medo de morrer. A certeza da morte não me impede de viver com relativa serenidade (já que estamos constantemente vulneráveis a conturbações de espírito, a inconstâncias de humor). Muita vez, a ideia da morte sorri-me; aguardo-a como quem espera para fazer uma viagem, sem, contudo, ansiar por ela.
Vivo, não apesar da inevitabilidade da morte, mas justamente por causa de seu caráter factual inevitável. Afinal, seria tedioso e inquietante viver eternamente. A ideia de eternidade só é atraente em dois sentidos: se acreditamos na indestrutibilidade da vida (ou seja, na sua perpetuidade na condição espiritual ou incorpórea); ou se nutrimos na alma a esperança de experienciar o Amor pleno, que se deseja sentir, quando duas almas muito afins se encontram. Em suma, a ideia de eternidade só me é atraente e compensadora, caso se confirme a crença na possibilidade da vida além-túmulo ou na perenidade do Amor que transcende, ou seja, que resiste ao desencarne.


         Minha angústia – se é que posso chamar, assim, o sentimento que me inunda toda a alma, sempre que tomo consciência de minha impotência em face da fatalidade à qual está destinado meu coração – não decorre da consciência de minha finitude, mas do fato de ter de adiar, mais uma vez, a minha felicidade (a felicidade de amar). É curioso como a felicidade é um sentimento projetado para o futuro. A felicidade é um desejo de prazer inalcançável no presente. E se concordamos com a posição de Freud, deveremos reconhecer que nossa própria constituição psíquica impede-nos de experienciar o prazer permanentemente. A felicidade é o que buscamos, embora se nos escape.
Talvez, se esteja perguntando, leitor, se sou feliz, e eu lhe diria, sem hesitar, que sou feliz, muito feliz. Mas minha felicidade não impede minha tristeza; convive bem com ela. Minha tristeza, tão familiar e, não raro, tão inapreensível, nasceu comigo. Não estou na vida de passagem. Sinto-me convocado a me pronunciar, a me posicionar em face da minha realidade, que é o Dasein – a realidade humana. Sou um indivíduo que vive apreendendo-se a si mesmo; vivo na consciência de mim mesmo.
      Definitivamente, sinto-me deslocado; viver em nosso tempo (controversamente, chamado de “pós-moderno”) me é desconfortante, pois que me movo contrariamente a tudo quanto é condicionante: ao imperativo dos padrões, dos modismos, do conformismo generalizado, dos lugares-comuns, das opiniões cristalizadas e inquestionáveis, do anestesiamento da consciência, do consumismo que afasta as pessoas de valores mais humanamente significativos e elevados, etc.; sou permanência numa vida líquida, consoante ensina Bauman: “uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante”. Viver numa sociedade líquido-moderna é viver numa sociedade

em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, de formas de agir”.
(p. 7)



         As pessoas buscam ludibriar a morte, em vão, é claro. Buscam obsessivamente conservar a juventude. Certas mulheres, especialmente, produtos da publicidade, escravas da vaidade fútil, por força da ditadura da beleza (de que nos fala Cury), querem retardar a deterioração do corpo, inevitável, submetendo-se a sessões de lipoaspiração, a cirurgias para colocação de próteses de silicone, tentando, assim, preencher seu vazio existencial pela supressão do que julga ser uma falha da natureza (por exemplo, a carência de seios volumosos ou de glúteos firmes e vistosos).


       O culto ao corpo, a supervalorização das aparências, associados ao fenômeno de saturação das imagens, as quais esgotam a totalidade do real, sustentam a crença, entre alguns estudiosos, em que a vida na sociedade pós-moderna, também chamada “sociedade do espetáculo”, é semelhante à vida na Caverna de Platão, ou seja, uma vida imersa em simulacros numa grande caverna pós-moderna.
     A supervalorização da beleza, da exterioridade físico-corpórea consubstancia a valorização do efêmero, do descartável. Nessas condições, tudo que dura é cansativo; a permanência não passa de delírio de uma idade primaveril e romântica da existência humana, delírio que deve ser substituído por possibilidades, aparentemente, mais substanciais de integração. Há uma necessidade insaciável e incessante de busca por experimentar prazeres cada vez mais intensos, tão intensos quanto fugazes. Fugacidade parece definir bem o nosso tempo: tempo prometedor de felicidade imediata, de caminhos sempre abertos a novas experiências sem substância, mas sempre passíveis de renovação. Tempo em que a memória é suprimida, em que o esquecimento leva ao conformismo. Tempo em que a violência e a injustiça não entram na conta da revolta; são aceitas e justificadas. Tempo em que a História, como diz Bueno (2002:27), “[é] uma coleção de imagens sem espessura e densidade”.


     Atento à liquidez dos relacionamentos na pós-modernidade, Bauman nota a tendência a transformarem-se “relações”, “parcerias”, formas de existir que pressupõem certo engajamento, compromisso, em mera “rede” na qual as pessoas estão conectadas umas com as outras, como nos ciberespaços da internet. Ao contrário das relações reais, certamente mais pesadas e conflituosas, as relações virtuais ou conexões podem ser rompidas antes mesmo que se tornem fonte de insatisfação. Tais formas de relações surgem como resultantes das condições líquidas de existência no cenário da sociedade pós-moderna e atendem às necessidades de uma época caracterizada pela velocidade e pela identificação do presente a tudo que existe.
Diferentemente do que sucede com os relacionamentos convencionais ou “reais”, a facilidade com que entramos e saímos de “relacionamentos virtuais” é surpreendente. Os relacionamentos virtuais podem ser, sem muito custo, cindidos antes que suas raízes mergulhem no terreno denso das emoções. Bauman (2004) cita uma declaração de um jovem de 28 anos da Universidade de Bath (Reino Unido), que nos dá uma idéia clara da fragilidade dos laços humanos na modernidade líquida. Transcrevo-a conforme se segue:

“Sempre se pode apertar a tecla de deletar.”
(p. 13)

     A opção pelas redes dá-se no momento em que as relações convencionais, as quais requerem dedicação, atenção, confiança e fidelidade, entre outras qualidades que garantam a sua sobrevivência, tornam-se insustentáveis, por flutuarem na carência de sua solidez.
O que se assiste é a uma extensão do padrão das relações virtuais ou “conexões” às formas convencionais de relacionamentos, consoante nos patenteia Bauman:



“(...) as relações virtuais (rebatizadas de “conexões”) estabelecem o padrão que orienta os outros relacionamentos. Isso não traz felicidade aos homens e mulheres que se rendem a essa pressão; dificilmente se poderia imaginá-los mais felizes agora do que quando se envolviam nas relações pré-virtuais. Ganha-se de um lado, perde-se de outro”.
(p. 13)

      Cabe perguntar se há, realmente, ganho na escolha por experienciar relacionamentos descartáveis, esvaziados de envolvimento emocional, meramente casuais. O suposto ganho decorre do equívoco de entender ser mais vantajoso manter-se protegido contra as inevitáveis complicações, porquanto, afinal, relacionamentos assemelham-se a investimentos, cujo sucesso depende da consideração das probabilidades e das flutuações do mercado. Assim,

““Estar num relacionamento” significa muita dor de cabeça, mas sobretudo uma incerteza permanente. Você nunca poderá estar plena e verdadeiramente seguro daquilo que faz – ou de ter feito a coisa certa ou no momento preciso”.
(p. 29)


     As relações interpessoais, com o advento da internet e de seus ciberespaços de relacionamentos, ganharam nova dimensão - consequência dos processos de globalização-, caracterizada, especialmente, pela compressão do tempo-espaço. É pertinente reiterar um pensamento meu que já permeou outros textos que escrevi e que caracteriza bem o efeito da internet sobre o mundo: a internet empacota o mundo. É inegável que se encurtou a grande distância que, antes, mantinham isolados povos, culturas, por um lado; e dificultava o relacionamento entre indivíduos, por outro. Há quem defenda vivermos numa grande “aldeia global” na qual se teria reduzido o planeta. A interpretação é controversa, especialmente se consideramos que o conceito de “aldeia”, que pressupõe um conjunto em que todos os indivíduos se conhecem, atuam cooperativamente e participam das decisões da vida de sua comunidade, não parece recobrir a ideia de sociedade moderna.
      É com a mesma velocidade com que surgem que deixam de existir tais formas de relacionamentos líquidos. A debilidade e a liquidez lhes são características intrínsecas. A impossibilidade de sua permanência inscreve-se na forma como são iniciados, ou seja, surgem tão repentinamente como podem vir a desfazer-se. Não há certeza em sua constância. Mantêm-se na esfera da fluidez, não abrangendo a esfera da solidez.
     A sensação de integração, de maior proximidade, em que os espaços virtuais de relacionamentos nos fazem crer não é senão uma ilusão. É sempre bom lembrar que estes espaços instauram oportunidades de relacionamentos cujos agentes não são indivíduos de carne e osso, mas imagens (fotos) digitais. Acrescente-se ainda que o encurtamento da distância, propiciado pelas novas condições de existência instauradas pela globalização, de que a internet é sua melhor expressão, não se alcança sem o aumento de uma sensação maior de insegurança, quer em termos morais e cívicos, quer em termos subjetivo-afetivos. 


     Diante da possibilidade de mascarar a verdadeira identidade, cria-se uma atmosfera impregnada de medo, de receio, de desconfiança, que torna ainda mais inviável a possibilidade de experienciar relacionamentos mais autênticos, estáveis e seguros.
Os relacionamentos virtuais têm a (des)vantagem de não enredar o indivíduo no universo de emoções típico dos relacionamentos convencionais, (des)vantagem esta garantida pela manutenção da distância real entre os interlocutores. Ademais, - e nisso me parece residir, certamente, uma desvantagem -, fica a sensação de se viver numa vacuidade experiencial, onde não há constância, estabilidade, segurança e confiança.
A fim de que tenhamos uma clara noção de quão ilusória é a crença numa maior integridade, em termos qualitativos e experienciais, basta ter em conta casos de interlocutores que mantêm em sua página de Orkut cerca de 300 a 900 fotos, ou imagens de “amigos”, dos quais, muita vez, dez ou pouco mais de vinte podem participar efetivamente de suas experiências “reais” de vida.


       Chats como “msn” e sites de relacionamentos como “Orkut” patenteiam uma mudança radical das formas de ser das relações humanas e de experienciá-las. Imediatismo e superficialidade parecem ser os princípios que as governam. Há, pelo menos, 20 anos, o rompimento de relacionamentos exigia, no mínimo, meia dúzia de palavras, ainda que fossem ofensivas. A ruptura dos relacionamentos virtuais dispensa o esforço despendido na produção de palavras, realizando-se com um simples clique num botão de mouse, caso em que uma foto componente do álbum de imagens de seus amigos é excluída. No entanto, a exclusão da imagem é apenas o fenômeno, ou seja, o que é percebido imediatamente por nossa consciência; a essa exclusão subjaz a castração da fertilidade que poderia ser proporcionada pela experiência com o outro. Castra-se a vitalidade de experiências que poderiam ser frutíferas, mas que foram “deletadas” muito antes de aparecerem os primeiros ramos. Acontece que as experiências de vida do para-si, ou os relacionamentos do eu com o outro, não podem ser, simplesmente, “deletadas”, por mais singelos que tenham sido. “Deletar”, na situação de relacionamentos virtuais, passa a ser uma forma tão artificial de esquecer, de ignorar, que não deixa de representar o atestado de óbito da emoção, cada vez mais ameaçada por qualquer forma de perturbação. Ao deletar, reduzimos a complexidade do outro ao ‘nada’ de dados e informações de computador.



         A contradição salta aos olhos: por um lado, propomo-nos a negociar as esferas da vida privada e da vida pública, assumimos a responsabilidade pelas conseqüências da exposição maior de nossas vidas que, outrora, pertenciam apenas ao domínio familiar ou social mais restrito; por outro lado, conscientes dos riscos de quase irrestrita exposição, valemo-nos de recursos limitadores (haja vistas à possibilidade, propiciada no Orkut, de manter fotos ou recados de seus membros restritos ao acesso do conjunto de “amigos”). A contradição a que me refiro decorre da incompatibilidade entre o desejo de liberdade, a cuja satisfação, cada vez mais premente, somos condicionados, e o reconhecimento de insegurança crescente. Na modernidade líquida, o desejo de liberdade, legitimado pela ideologia moderna, caminha junto com o medo decorrente do sentimento de insegurança.
Estou consciente de que, talvez, minhas reflexões sejam motivadas por um ideal incompatível com as condições em que se dão as interações virtuais. Não pretendo argumentar em favor da necessidade que se instaurem relacionamentos que ganhem em qualidade e se pautem por uma busca por solidez emocional, necessária para nos manter mais confiantes nas relações com o Outro, tão fundamentais ao Dasein.
Não tenho intenção de propor qualquer alternativa; mas tão só de compartilhar com o leitor a compreensão de um aspecto inegável da chamada crise do homem pós-moderno (minha crise também) que, navegante num mundo cada vez mais interconectado, sente-se perdido pela falta de referenciais, de “âncoras”, que o mantenham num estado de segurança constante numa vida que se escorre num vácuo completo.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Receita de amor




Receita do envolvimento
A busca pelo Amor


Gosto do romance, dos gracejos, dos dizeres insinuantes; às vezes, despidos. Sou timidamente audaz; às vezes, expansivo. Quase sempre me lanço a um precipício. Alguns suicídios líricos. Quase nunca vou ao centro; prefiro a periferia; às vezes, ando em círculo. Entre elogios e gracejos, uma poesia lírica. E, depois, mais um suicídio.
Como o fracasso vive a espreitar-me, em matéria de pretensão amorosa, pensei em algumas diretrizes que, uma vez seguidas (imagino, não tenho certeza) podem contribuir para a obtenção do êxito em tão complicada tarefa. Vejamos então:
Exageros, arrebatamentos, exaltações, desvarios devem ser evitados. São perigosos. Podem causar ilusões congestivas e miragens indigestas. Causam inquietude e insegurança. Nunca vá direto, prefira uma aproximação tangencial. Peneire os sentimentos, para que fiquem mais leves. Densidade deve ser evitada. Pesa. Seja doce, mas não cause enjôo e, acima de tudo, previna-se contra a diabetes do envolvimento. Ela é fatal. Opte sempre pelas palavras mais sóbrias. Nada de metáforas, pelo amor de Deus! Sinestesias, metonímias e todo tipo de transgressão figurativa de linguagem devem ser evitados. Hipérboles, nem pensar! Evite-as a todo custo! Corte o excesso!
O segredo é manter a saúde do envolvimento. Não se exaspere; comedimento é a palavra-chave. Mantenha-se em equilíbrio com o Todo Cósmico. Talvez, uma ou duas sessões de ioga sejam convenientes. Mas nada de entorpecimento. Não é necessário isolar-se, para meditar, num templo budista. Algumas orações podem ajudar. Para ganhar mais confiança. Persistência caminha junto da coragem. E a fé dá um empurrãozinho. Não desista antes do infortúnio, mas lembre-se: tenha-o sempre em conta. Não o descarte. Pois na vida ele é sempre uma realidade em potência. O otimismo é sempre bem-vindo. Mas, cuidado! Não extrapole os limites da semântica, confundido-o com prepotência. Cultive a modéstia.
Mantenha-se sempre numa posição que lhe permita antever ostensivas indesejadas. Defenda-se, mas não seja retranqueiro. Não recue, mas também não pressione. Fique alerta a qualquer sinal triunfante.
Tenha sempre próxima à cabeceira da cama uma antologia de Vinícius e um fenergan. Só para garantir uma noite funda e agradável de sonho, caso, a despeito de sua perseverança, só lhe reste o silêncio.

Considerações finais...

O envolvimento deve ser assim: galanteado, mas também estrategicamente conduzido. Finezas, agrados são importantes. Mas o mais importante são a transparência e a autenticidade. Nada de parecer. Já vivemos na sociedade dos simulacros, das aparências. A boa condução do galanteio depende de uma postura autêntica, desinfetada de clichês, lugares-comuns, torneios agastados, frases de efeito vazias. Nada de trivialidades. Não à estupidez! Nada de aspereza. Seja sutil. Doçura e gentileza são necessários. E, é claro, uma grande embriaguez de inteligência!