

Homo faber
1. A condição
humana: a mundanidade do mundo
Se ainda me resta alguma convicção com base na qual meu
pensamento pode tonificar-se a ponto de aspirar a alguma “verdade”,
transcorridos quinze anos desde os meus primeiros contatos com a filosofia,
essa convicção se expressa na seguinte fórmula enunciativa: o exercício do pensamento filosófico pôs-me
na abertura para a experiência da radical insignificância da existência e da
ausência de sentido e finalidade últimos do mundo. Tal experiência
possibilitada pela dedicação ao exercício do pensamento filosófico toca a orla
de uma espécie de Iluminação, embora ela não guarde nenhuma equivalência com a
Iluminação búdica. Se uso a palavra ‘Iluminação’ para designar a transformação
em meu modo de ser, sentir e pensar, operada pela filosofia, é com o único fito
de assinalar a monumentalidade de tal acontecimento. Mas o que apenas se
aproxima de uma Iluminação não retém de seu correlato budista nenhum caráter
místico, ascético ou transcendente. A experiência de iluminação, que me tornou
possível o exercício da filosofia, talvez mereça ser codificada de outra
maneira. Lucidez é a palavra mais
adequada para caracterizar tal experiência de transfiguração, de quebra, de
ruptura de um modo de ser e viver que, antes do encontro com a filosofia,
permanecia quase inteiramente submetido à vigência do senso comum.
A experiência da radical insignificância da existência
atravessou-me como um punhal, desde os meus incipientes contatos com o
pensamento de Schopenhauer. Depois de atingida certa maturidade filosófica, meu
encontro com o pensamento de Cioran não fez senão intensificar tal experiência;
tornou-a mais aguda, mais visceral, possibilitando verbalizá-la como uma
certeza que até então era apenas dotada de uma espessura carnal e fisiológica.
Convém aqui dar voz a ela pela pena de Cioran: “O fato de que existo prova que o mundo não tem sentido. Pois de que
modo posso encontrar sentido nos tormentos de uma pessoa infinitamente
dramática e infeliz, para quem tudo se reduz, em última instância, ao Nada e
para quem a lei deste mundo é o sofrimento?”[1].
(o Nada, nesse passo de Cioran, quer dizer: ‘a nulidade radical do ser’; esse
Nada é expressão da mais elevada negatividade niilista, muito embora o niilismo
e o Nada não se reduzam a esse único sentido; é o que procurarei mostrar em
minha pesquisa de doutoramento). Noutro excerto, questiona Cioran: “E que
importância pode ter o fato de eu me atormentar, sofrer ou pensar?”, ao que
acrescenta: “Estou convencido de que não sou absolutamente nada no universo” e
“o mundo não merece nosso sacrifício por uma ideia ou por uma crença”.[2]
O leitor de nossas sociedades de consumo, escravo que é da ditadura da felicidade,
pode demonstrar-se indisposto para com a verdade pretendida por esses
enunciados cioranianos. A leitura quiçá corrente e aceitável desses textos é
que eles expressam um pessimismo profundamente corrosivo, o tormento de alguém
para quem a existência é uma vertiginosa queda num mundo que é cárcere. De
fato, elementos gnósticos perpassam o pensamento de Cioran; e uma tal leitura é
autorizada por seus textos. Mas ela não é a única leitura possível. Parece-me
que Cioran quer-se fazer ouvir como um arauto da Lucidez, como aquele
mensageiro que pretende libertar os seres humanos da escravidão dos ídolos e
ilusões que não só dão sustentação a sua existência, mas em nome dos quais eles
rivalizam, proclamam guerras, causam sofrimento e morte. Na condição de escravos
de seus ídolos e ilusões, os seres humanos, em sua maioria esmagadora, vivem a
vida como sonâmbulos, num empedernido e contínuo autoengano, o qual,
impedindo-os de perceber a miséria de sua condição humana, retroalimenta suas
vaidades e os leva a superestimar a si mesmos e tudo que fazem.
Conquanto este texto não verse sobre o niilismo cioraniano
nem tome a insignificância radical da existência como tema central, a insignificância radical da existência
forma a contextura teórica, um pré-construído, o espaço do interdiscurso, do
já-dito que condiciona a possibilidade de produção deste texto. O que tenciono,
na realidade, é fazer uma abordagem filosófica e/ou existencialista do
trabalho. Ainda que não estejam fora do escopo deste texto considerações sobre
a constituição histórica do trabalho como uma atividade fundamental da condição
humana, tenho em vista, sobretudo, à luz da abordagem filosófica e existencialista
que desenvolverei, mostrar como o trabalho põe à luz do dia a insignificância
radical da existência. Uma reflexão criteriosa, filosoficamente fundamentada,
sobre a nossa precária condição como homo
faber, tornando-nos sensíveis para a insignificância radical da existência
humana, para a ausência de sentido último do mundo, se afirma como um convite
para o deixar-nos atravessar pela experiência radical da Lucidez, que nos põe
na abertura para nossas possibilidades de ser mais autênticas.
É imperioso não perdermos de vista dois fatos importantes
relacionados às condições históricas do atual estágio de desenvolvimento do
capitalismo, se o que pretendemos é discutir a questão do trabalho e a condição
do homo faber. O primeiro fato diz
respeito ao reconhecimento de que, uma criança que nasça em uma sociedade
organizada segundo o modo de produção capitalista terá de lidar, inevitavelmente,
na fase adulta, com uma realidade esmagadoramente indecente: o 1% mais rico tem mais recursos que os 99%
restante do mundo. A diferença entre os modos de viver dos ricos e dos
pobres é reconhecida imediatamente quando sabemos que quem ganha pouco compra
roupas para os filhos, paga aluguel, gasta uma grande parte de sua renda com
comida e transporte e gera, assim, demanda e dinâmica econômica mais intensa.
Por outro lado, o rico acumula capital, quando compra belas e luxuosas casas,
fazendas, iates. Em geral, as pessoas não entendem o que é ser bilionário. De
fato, trata-se de uma condição estranha à maioria esmagadora da humanidade. A
maior parte dos rendimentos de um bilionário é reaplicada e sua fortuna se
transforma, avolumando-se como uma bola de neve. Apenas uma pequena parte de
sua riqueza é destinada ao consumo ou mesmo ao luxo. Ao ser reaplicado, seu
rendimento chega a proporções tais, que os super-ricos não sabem bem o que
fazer com o seu dinheiro.
O capitalismo atual é organizado pelo poder das grandes
redes de corporações financeiras, responsáveis diretas pelo controle de mais da
metade da riqueza mundial. Esse poder econômico produz um cenário catastrófico
de desigualdades sociais: apenas 1% da
população mundial tem mais recursos que os 99% de homo sapiens. Ao trabalhador comum, que se sente impotente em face
de um sistema econômico injusto que o esmaga, não resta senão a constatação de
que o poder mundial realmente existente está, em grande parte, nas mãos de
gigantes corporações que ninguém elege e sobre as quais cada vez menos controle
têm as autoridades políticas. O controle político sobre essas grandes
corporações que controlam milhares de empresas é deveras mínimo.
O segundo
fato diz respeito ao reconhecimento de que a exploração do homem pelo homem em
nome do capital atingiu, no atual estágio do neoliberalismo e da globalização,
a forma, talvez mais perversa, que consiste na exclusão de grande parte de homo sapiens em nome da sagrada lógica
do mercado. Uma ínfima parcela da sociedade deve continuar a mostrar-se
empregável, isto é, útil à economia de mercado. Útil significa ser quase sempre
rentável, ou seja, lucrativo e explorável para o Capital. Àqueles que não são
mais empregáveis resta o desemprego, a consequência de uma lógica que, operando
em escala mundial, supõe a supressão do que chamamos trabalho.
“Um desempregado, hoje, não é mais objeto de
uma marginalização provisória, ocasional, que atinge apenas alguns setores;
agora, ele está às voltas com uma implosão geral, com um fenômeno comparável a
tempestades (...), que não visam a ninguém em particular, mas aos quais ninguém
pode resistir. Ele é objeto de uma lógica planetária que supõe a supressão
daquilo que chamamos trabalho; vale dizer, empregos”. (Forrester, 1997, p. 11).
As subseções que se seguirão compõem a contextura teórica à
luz da qual a condição do homo faber
será discutida.
1.2.
A vida como esforço e luta: bios e suas duas acepções
Em
As dores do mundo (2014, p. 33-34), Schopenhauer chama-nos a atenção para o
aspecto árido da vida como uma tarefa que temos de cumprir à força de trabalho:
“A vida não se
apresenta de modo algum como um mimo que nos é dado gozar, mas antes como um
dever, uma tarefa que tem de se cumprir à força de trabalho; daí resulta, tanto
nas grandes como nas pequenas coisas, uma miséria geral, um trabalho sem
descanso, uma consciência sem tréguas, um combate sem fim, uma atividade
imposta com uma tensão extrema de todas as forças do corpo e do espírito.
Milhões de homens, reunidos em nações, concorrem para o bem público,
procedendo, assim, cada indivíduo em seu próprio interesse, caem, porém,
milhares de vítimas para a salvação comum. Umas vezes são preconceitos
insensatos, outras, uma política sutil que excita os povos à guerra; urge que o
suor e o sangue da grande massa corram em abundância para levar a bom fim as
fantasias de alguns, ou para expiar as suas faltas. Em tempo de paz, a
indústria e o comércio prosperam, as invenções prosperam maravilhas, os navios
sulcam os mares e transportam coisas deliciosas de todas as partes do mundo, as
ondas tragam milhares de homens. Tudo está em movimento, outros procedem, o
tumulto é indescritível.”
A vida, em sua constituição histórica,
se faz como combate sem fim, ainda que o homem, em sua ambição prometeica,
busque, na história, uma felicidade impossível. Em consonância com
Schopenhauer, Cioran (2011b, p. 118) se pergunta: “A história não seria, em
última instância, o resultado de nosso medo do tédio, desse medo que sempre nos
fará amar o sabor e a novidade do desastre, e preferir qualquer desgraça à
estagnação?” Para o homem, a vida como tarefa é um encargo que se leva a efeito
enquanto produção histórica. A historicização da vida como tarefa significa não
só que os homens precisam produzir as condições materiais de sua própria
existência, como também que os homens, produzindo historicamente o mundo,
experiencia a vida como o intervalo de tempo entre o nascimento e a morte.
Nessa acepção, a vida designa uma trajetória linear plena de eventos mundanos
“que no fim podem ser narrados como uma estória e estabelecer uma biografia”
(Arendt, 2010, p. 120). A bios, na
história, se torna práxis. Segundo
Arendt (ibid.),
“É somente dentro
do mundo humano que o movimento cíclico da natureza se manifesta como
crescimento e declínio. Estes, como nascimento e morte, não são ocorrências
naturais propriamente ditas; não têm lugar no ciclo incessante e incansável no
qual volteia perpetuamente todo o lar da natureza”.
A
vida, em sua constituição histórica, consiste no trabalho de edificação de
mundo, de um mundo humano (histórico) cuja realidade e confiabilidade
baseiam-se no fato de que “estamos rodeados de coisas mais permanentes que a
atividade por meio da qual foram produzidas, e potencialmente ainda mais
permanentes que as vidas de seus autores” (Ibid., p. 118). Aqui já vemos despontar
a insignificância de nossa existência como seres biológicos efêmeros que
produzem um mundo de coisas que precisa ser mais durável do que seus próprios
produtores. Será necessário, entretanto, um pouco mais de vagar e
sistematicidade na discussão das questões que se impõem à nossa reflexão nesta
subseção. O que pretendo é fazer ver duas acepções sob as quais podemos tomar a
palavra ‘vida’: vida in natura e vida
como práxis. Ao fazer tal distinção, não pretendo levar a crer que se trata de
formas de vida inteiramente distintas. A distinção, no entanto, é didaticamente
proveitosa, porque servirá: 1) para mostrar a complexidade do fenômeno que
chamamos de ‘vida’; 2) para mostrar que o trabalho é uma atividade que
corresponde ao processo biológico do corpo humano, que o trabalho medeia a
relação entre o homem e a natureza; 3) para mostrar que o homo faber é tanto um organismo biológico quanto um produtor
histórico de ‘mundo’, e que esse mundo é um mundo histórico. Veremos que o
trabalho é uma atividade fundamental na produção desse mundo histórico. Mas,
antes de tornar inteligível a distinção referida entre vida in natura e vida como
práxis, devemos fazer uma distinção preliminar, extremamente importante
para o bom encaminhamento de nossa discussão. Trata-se da distinção entre trabalho, obra e o produto da obra.
Erich Fromm, em O conceito marxista do homem, nota que o trabalho constitui um
elemento central na teoria de Marx. Embora ainda tenhamos a oportunidade de
compreender como Marx pensou o trabalho, vale aqui referir a compreensão marxiana
de trabalho pela pena de Fromm:
“O trabalho é o
fator que medeia entre o homem e a natureza; é o esforço do homem para regular
seu metabolismo com a natureza. O trabalho é a expressão da vida humana e
através dele se altera a relação do homem com a natureza; por isso, através do
trabalho, o homem transforma-se a si mesmo” (Fromm, 1962, p. 26).
Note-se,
desde já, que Fromm, recuperando a visão marxiana de trabalho, sublinha o fato
de que é a vida humana, na sua relação metabólica com a natureza, que se
expressa pelo trabalho. Trabalho não é uma atividade de produção de mercadorias,
não é uma atividade em que cumprimos compulsoriamente tarefas sob exigências contratuais
estabelecidas entre empregado e empregador. O trabalho é, num primeiro sentido
elementar, uma atividade que altera a relação do homem com a natureza e uma
atividade por meio da qual o homem transforma a si mesmo. Por conseguinte, o
trabalho é uma atividade fundamental na transformação da bios in natura em bios como práxis. Hanna Arendt, em A condição Humana, entende o trabalho,
na esteira de Marx, como uma atividade intimamente ligada ao processo vital, o
qual envolve crescimento espontâneo, metabolismo, reprodução e consequente
declínio:
“O
trabalho é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano,
cujos crescimento espontâneo, metabolismo e resultante declínio estão ligados
às necessidades vitais produzidas e fornecidas ao processo vital pelo trabalho.
A condição humana do trabalho é a própria vida.” (Arendt, 2010, p. 8).
Para o senso comum
de nossa sociedade (e com senso comum quero
dizer o modo de viver orientado/pautado pelo conjunto de crenças,
representações, saberes práticos, opiniões, valores aceitos pelos membros de um
grupo ou sociedade e presumidamente partilhados por todo ser racional)[3],
trabalho não é mais do que um esforço penoso indispensável para a garantia da
subsistência, o que não deixa de ser verdadeiro historicamente. Não há na
língua grega uma palavra para designar ‘trabalho’. Os gregos usam ergon, para designar ‘obra’ ou ponos, para designar esforço penoso e
doloroso. A palavra “trabalho” deriva do latim tripalium, um instrumento
de três estacas destinado a prender bois e cavalos difíceis de ferrar.
Trata-se, portanto, de um instrumento de tortura. A outra palavra latina
empregada para designar trabalho é labor,
que corresponde ao grego ponos, e que
significa, portanto, ‘pena’, ‘fadiga’, ‘cansaço’. Mesmo aqueles que vivem
divorciados do pensamento, afastados do exercício filosófico sabem, como lembra
Schopenhauer, que a vida é uma tarefa que temos de desempenhar laboriosamente.
Sponville, em seu A vida Humana
(2007, p. 57), observa: “Depois há o trabalho, que cansa, alimenta, que pede e
permite o repouso". Todos sabemos que o ingresso na vida adulta significa
carregar o ônus de uma inquestionável verdade: trabalhe para sobreviver ou pereça. Decerto, quando pensamos em
trabalho, tendemos a vê-lo como um meio que assegura a sobrevivência do
indivíduo; mas não é só isso que ele faz. O trabalho também assegura a
sobrevivência da espécie.
Segundo Arendt
(ibid.), a obra recobre a esfera da não naturalidade da existência humana. Isso
significa dizer que o produto da obra é um mundo artificial de coisas
fabricadas pela atividade humana, “nitidamente diferente de qualquer ambiente
natural” (ibid., p. 8). Ainda segundo a filósofa, “a obra e o seu produto, o
artefato humano, conferem uma medida de permanência e durabilidade à futilidade
da vida mortal e ao caráter efêmero do tempo humano” (ibid., p. 10). A obra, portanto,
é a atividade de construção do mundo comum - mundo comum “que
adentramos ao nascer e que deixamos para trás quando morremos” (p. 67). Esse
mundo comum preexiste à nossa chegada e subsistirá à nossa breve permanência
nele. O mundo comum é o que temos em comum não só com os indivíduos que
convivem diretamente conosco (nossos amigos, familiares), mas também com
aqueles desconhecidos que viveram antes de nós e que chegarão depois de nossa
morte. Esse mundo comum, convém insistir, não é produto natural, não existia antes do surgimento do animal humano. Arendt diz que “a condição humana da obra
é a mundanidade” (p. 8). Toda existência humana é condicionada. Por condição, devemos entender tudo aquilo
que estabelece relação com a existência humana. O co-pertencimento entre
condição humana e mundanidade evidencia a precariedade ontológica da
existência humana: a existência humana só é possível na dependência de uma rede
de amparos construída culturalmente no curso de uma vida constituída historicamente.
É
preciso ter em conta o fato de que os produtos da obra não se confundem com os
produtos do trabalho. Os produtos da obra garantem a permanência e a
durabilidade sem as quais o mundo humano absolutamente não seria possível. O
trabalho produz bens de consumo, graças aos quais os indivíduos humanos
asseguram a sua sobrevivência. Essas coisas destinadas ao consumo são exigidas
por nossos corpos e produzidas pelo trabalho deles. Elas não têm estabilidade
própria. Como sejam destinadas ao consumo incessante, as coisas produzidas pelo
trabalho aparecem e desaparecem num mundo de coisas, algumas das quais são
destinadas não ao consumo, mas ao uso, e produzem hábito e costume.
Ainda que
constituam juntos o que Arendt chama “a textura das relações humanas”, a ação,
o discurso e o pensamento não chegam a produzir nem a gerar coisa alguma. Para
Arendt, “eles são tão fúteis quanto a vida” (p. 117). Os produtos da ação, do
discurso e do pensamento são por si só destituídos da tangibilidade, da
concretude de que são dotadas as outras coisas. Para Arendt, tais produtos “são
ainda menos duráveis e mais fúteis que o que produzimos para o consumo”.
(ibid.). Tudo que é produzido pela ação, pelo discurso e pelo pensamento só têm
significado, espessura ontológica na relação de dependência com a pluralidade
humana. Sem a presença constante de outros seres humanos que possam ver e ouvir
os produtos da ação, do discurso e do pensamento deixam de existir, carecem
totalmente de realidade. Para que se transformem em coisas (feitos, fatos,
eventos) do mundo, para que venham a constituir a mundanidade do mundo, é
necessário que a ação, o discurso (linguagem) e o pensamento sejam reificados,
isto é, transformados em “coisas”, por exemplo, em recital de poesia, na página
escrita ou no livro impresso, na pintura ou na escultura, em algum tipo de
registro material, documento ou monumento. Segundo Arendt,
“Todo o mundo factual dos assuntos
humanos depende, para a sua realidade e existência contínua, em primeiro lugar
da presença de outros que tenham visto e ouvido e que se lembrem; e, em segundo
lugar, da transformação do tangível na tangibilidade das coisas” (p. 117).
Quando
filósofos como Cioran, entre tantos outros ao longo da história do pensamento,
insistem em afirmar a insignificância
radical da existência, não estão a ignorar que a obra humana, que o mundo
historicamente constituído pelo homem seja resultado de um esforço humano por
dotar de significado esse mundo e suas produções. O adjetivo radical na expressão “insignificância
radical” não pode ser negligenciado na exata compreensão dessa expressão.
“Radical” diz-se daquilo que pertence à raiz. Falar em “insignificância radical
da existência” é admitir que, num nível mais profundo, mais elementar, a
existência carece de qualquer significado. Ora, a produção de significado é um
processo de semiotização do mundo, é dependente de complexos processos
sociocognitivos e linguísticos; portanto, é uma atividade humana,
historicamente condicionada. A
insignificância radical da existência, a fim de que não se torne um clichê, leva
em conta o fato inegável de que o homem apareceu no mundo como produto de um
processo evolutivo que, dando origem à vida por meio de ramificações, levou ao
surgimento de outras formas vivas que se distinguem pela maneira particular de
ganhar a vida. O modus operandi desse
processo, chamado de seleção natural,
é irracional e sem finalidade.
Há,
segundo Arendt, um segundo fim a que atende o trabalho. Além de garantir os
recursos necessários à subsistência, o trabalho atende à necessidade humana de
proteger e preservar o mundo humano (o mundo da cultura, da história) contra os
processos naturais de crescimento e declínio que ameaçam a durabilidade desse
mundo humano e de sua serventia. Mediante
o trabalho, portanto, o corpo humano trava uma luta diária e incessante “para
manter limpo o mundo e evitar-lhe o declínio” (p. 124). O fardo dessa luta é
que ela exige “a implacável repetição”. (ibid.).
A
atividade da obra se distingue, fundamentalmente, do trabalho, porquanto a
atividade da obra termina quando o objeto está pronto para integrar o mundo
comum das coisas; ao contrário, a atividade do trabalho (labor) “move-se sempre
no mesmo círculo prescrito pelo processo biológico do organismo vivo, e o fim
de suas “fadigas e penas” só advém com a morte desse organismo” (p. 121).
A vida como práxis é, portanto, a vida
constituída historicamente pela atividade da obra e de seus produtos
significativos que tornam a vida uma “trajetória linear plena de eventos
mundanos que no fim podem ser narrados como uma estória e estabelecer uma
biografia” (p. 120).
Vista de uma perspectiva estritamente
biológica, ou seja, considerada in natura,
bios ou a vida é um fenômeno complexo
do qual faz parte uma série de processos tais como desenvolvimento, crescimento,
movimento, reprodução e respostas a estímulos. Para os propósitos desta
exposição, importa considerar o que nos ensina Arendt acerca da vida:
“A vida é um
processo que em toda parte consome a durabilidade, desgasta-a e a faz
desaparecer, até que finalmente a matéria morta, resultado de processos vitais
pequenos singulares e cíclicos, retorna ao gigantesco círculo global da
natureza, onde não existe começo nem fim
e onde todas as coisas naturais volteiam em imutável e infindável
repetição”. (p. 119).
Fazendo eco a Freud
que, ao descrever um dos significados de seu conceito de pulsão de morte, confirma uma verdade biologicamente assentada, devemos
admitir que o sentido (direção) da vida é o retorno ao estado de equilíbrio
perfeito, que se alcança com a morte. O sentido da vida é a morte. Mas viver é
lutar - como ficará claro ao examinarmos mais de perto a compreensão arendtiana
de vida - contra as tendências intrínsecas à própria vida que a arrastam para o
estado de equilíbrio total com o ambiente externo, estado este que caracteriza
a morte.
A “vida como
processo cíclico” é um contínuo desfazimento, um processo devorador da
durabilidade de seus produtos, os quais, no entanto, desgastados, retornam ao
ciclo eterno da natureza, “onde todas as coisas naturais volteiam em imutável e
infindável repetição”. É o que nos ensina também Lucrécio, quando, em seu poema
Da Natureza[4],
escreve: “(...) a natureza faz voltar todos os corpos aos seus elementos, mas
nada aniquila inteiramente (...). Nada, portanto, volta ao nada; tudo volta,
pela destruição, aos elementos da matéria”. Segue-se daí que, segundo Arendt,
nascimento e morte só existem, propriamente, para o mundo constituído pelo
homem. A natureza impõe a todas as coisas um movimento cíclico, ao longo do
qual os seres orgânicos e inorgânicos aparecem e desaparecem, mas ao
desaparecer retornam ao seio do gigantesco ciclo da natureza. A natureza
desconhece o nascimento e a morte. Nascimento e morte pressupõem a existência
de um mundo dotado de relativas durabilidade e permanência, de um mundo que
existia antes do aparecimento do indivíduo e que permanecerá após o seu
desaparecimento. Esse mundo é o mundo histórico, constituído pela atividade
humana. É nesse mundo histórico constituído pelas práticas culturais, sociais e
econômicas, todas elas mediadas e estruturadas pela linguagem, que processos
naturais podem ser caracterizados como crescimento e declínio. No gigantesco e
implacável ciclo natural no qual os organismos surgem e retornam, sob nova
forma, a esse ciclo, não há nascimento e morte. Consoante lembra Arendt,
“somente quando consideramos os produtos da natureza – determinada árvore ou
determinado cachorro – como coisas individuais, retirando-os, com isso, do seu
ambiente “natural” e colocando-os em nosso mundo, é que começam a crescer e a
declinar”. (p. 120). Não há dúvida de que a natureza se manifesta na existência
humana através do movimento circular de nossas funções corporais; todavia, sua presença
só é sentida no mundo constituído pelo homem na medida em que ameaça
sobrepujá-lo e destruí-lo.
Todas as atividades
humanas incitadas pela necessidade de resistir ao processo biológico no homem e
ao processo de crescimento e declínio inerente ao devir do mundo estão
inevitavelmente vinculadas aos ciclos recorrentes da natureza. Destarte, “(...)
o trabalho e o consumo são apenas dois estágios do ciclo sempre-recorrente da
vida biológica”. (p. 122). O ciclo sempre recorrente da vida biológica é sustentado
pelo consumo, e a atividade que provê os meios de consumo é o trabalho. Tudo
que o trabalho produz atende a necessidade de alimentar o processo da vida
humana, e o consumo, mantendo o processo vital, produz, ou melhor, reproduz
nova “força de trabalho” de que necessita o corpo para o seu posterior
sustento. É consabido que trabalhar e consumir são atividades tão intimamente
ligadas que chegam a constituir um único movimento, o qual, tendo terminado,
logo deverá recomeçar. Consoante assinala Arendt, “a necessidade de subsistir
comanda tanto o trabalho quanto o consumo, e o trabalho, quando incorpora,
“reúne” e “mistura-se”, corporalmente às coisas fornecidas pela natureza,
realiza ativamente aquilo que o corpo faz mais intimamente quando consome seu alimento”
(p. 123). Os dois processos, portanto, devoram a matéria de que se apossam, a
destroem, e o “produto” resultante do trabalho é sempre pouco durável.
Antes de me deter
um pouco mais no desenvolvimento da discussão sobre o aspecto biológico do
viver, convém aqui enfatizar que a realidade, tal como experienciada pelo
homem, é garantida, por um lado, por um
contexto mundano do qual fazem parte seres cognitiva e sensorialmente
constituídos de modo semelhante a mim; por outro lado, pela atividade de meus
cinco sentidos. O sensus communis,
desde Tomás de Aquino, é o que me assegura a sensação de realidade. A
realidade, portanto, é garantida por uma tríplice relação: 1) os cinco
sentidos, inteiramente distintos uns dos outros, e um mesmo objeto em comum; 2)
membros da mesma espécie têm em comum o contexto mundano que dota cada objeto
singular de seu significado; 3) todos os outros seres sensorial e
cognitivamente dotados, embora percebam o objeto a partir de perspectivas
distintas, estão de acordo acerca de sua identidade. Como sejam os filósofos os
tipos humanos que mais frequentemente suspendem (époche) o senso comum, Aristóteles considerava que o modo de vida
destes é uma bio xenikos, ou seja, um
modo de vida de um estrangeiro. Estranhamento e alheamento são experiências
prototípicas que atravessam o modo de vida filosófico. Não obstante, todas as
experiências de ruptura com o senso comum não chegam a ser perigosas, “(...)
porque o ego pensante se afirma apenas temporariamente. Qualquer pensador, não
importa quão importante seja, permanece “um homem como você e eu” (Platão)”
(Arendt, 2018, p. 70). Isso significa dizer que jamais abandonamos
completamente o senso comum, já que ele é indispensável para a nossa
coexistência e sobrevivência no mundo comum.
1.3.
Os organismos como máquinas de sobrevivência
Situando
ainda nossas considerações na esteira da concepção de vida como vita naturalis, passemos, então, a ver o
animal humano não mais como ser histórico produtor de um mundo mantido suspenso
numa teia de significados. Olhemos para ele da perspectiva da evolução;
tomemo-lo como um ser biológico, um organismo que compartilha com todos os
seres vivos que habitam ou já habitaram o planeta um ancestral comum, muito
semelhante a uma bactéria. Esse organismo teria surgido há cerca de 3,8 bilhões
de anos. A partir dele, teriam evoluído, por uma série de ramificações, todas
as formas de vida. Destarte, o homem, a lesma e a ameba e todos os demais
organismos vivos teriam surgido por meio de um mesmo processo iniciado há 3,8
bilhões de anos.
Em
seu O Gene egoísta (2007, p. 104),
Dawkins define a evolução como “processo pelo qual alguns genes se tornam mais
numerosos e outros menos no pool de
genes”. O pool gênico é, por
hipótese, o meio ambiente a longo prazo do gene. Os genes “bons” são
selecionados cegamente como aqueles que conseguiram sobreviver no pool gênico. O gene é um replicador de longa duração. Ele
existe sob a forma de muitas cópias de si mesmo. O gene é a unidade básica da
seleção natural. Sua imortalidade potencial o torna o candidato mais
qualificado para ser a unidade da seleção natural. Os genes bem-sucedidos devem
seu sucesso, em parte, ao fato de terem sorte, mas também ao fato de que
dispõem do que é preciso para produzir boas máquinas de sobrevivência, ou seja,
indivíduos ou corpos. Nós, seres humanos, somos, considerando esse nível de
análise, máquinas de sobrevivência. Somos máquinas de sobrevivência tanto
quanto o são os animais, as plantas, as bactérias e os vírus. Consoante observa
Dawkins, “o indivíduo [é] uma máquina de sobrevivência constituída por uma
confederação efêmera de genes de longa duração” (ibid., p. 102).
A
competição pela sobrevivência se dá, primordialmente, pois, entre os genes e
seus alelos no pool gênico (a sopa
primordial). Todo gene que se comporta de modo a maximizar as chances de
sobrevivência no pool gênico, à custa
dos seus alelos, tenderá a sobreviver. O egoísmo, portanto, parece ser um dos
atributos gerais de um gene “bom”, ou seja, bem-sucedido. Outra qualidade geral
que deve ter um gene bem-sucedido é a capacidade para adiar a morte de suas
máquinas de sobrevivência, pelo menos até o período da reprodução delas.
Os
genes são praticamente imortais, ao passo que nós, as máquinas de
sobrevivência, programadas cegamente para preservar as moléculas egoístas
conhecidas como genes, podemos esperar viver por algumas décadas. Comparada ao
tempo de expectativa de vida de um gene, a nossa expectativa de vida é ínfima.
Um gene pode ter uma expectativa de vida que chega a milhares ou milhões de
anos. Espero esteja iluminada uma das camadas de significado da expressão
“insignificância radical da existência”. Obviamente, tendemos a estremecer, a
reagir pavorosamente à ideia de que nossa existência é tão insignificante
quanto à de uma ameba. Todos tenderiam a concordar que a vida de um ser humano
é mais significativa e tem mais importância que a de uma ameba; mas esse
significado e importância tem em sua base um mundo histórico que lhe serve de
lastro e a justifica. Numa escala evolutiva, situada entre as demais formas de
vida, a vida humana é tão irrelevante quanto qualquer outra. Vale insistir
neste ponto: sempre que levantamos a
questão sobre o significado da vida não podemos perder de vista o fato de que o
significado é uma produção humana; a validade da questão supõe a existência de
um mundo histórico. Os processos naturais carecem de qualquer significado ou
finalidade.
Os
genes ou replicadores são, portanto, a unidade da evolução. Consoante ensina
Dawkins,
“Eles estão dentro do leitor e de mim.
Eles nos criaram, o nosso corpo e a nossa mente, e a preservação deles é a
razão última de nossa existência. Percorreram um longo caminho, esses
replicadores (...) e nós somos suas máquinas de sobrevivência”. (p. 66).
Definido
como qualquer porção de material cromossômico que potencialmente dura um número
suficiente de gerações, um gene é um replicador que produz cópias dotadas de um
longevidade que ultrapassa muito o tempo de vida das máquinas de sobrevivência.
Como ensina Dawkins (ibid., p. 132), “os genes são mestres programadores, e
suas programações visam à própria sobrevivência”. As prioridades das máquinas de sobrevivência
são, obviamente, a sobrevivência individual e a reprodução. Por isso, os
animais não medem esforços para encontrar e capturar alimento, para evitar que
sejam feridos ou devorados, para se proteger contra acidentes ou das condições
climáticas desfavoráveis; também se esforçam para encontrar membros do sexo
oposto para o acasalamento e para legar aos seus descendentes vantagens
semelhantes àquelas que eles próprios têm.
Os
seres vivos se caracterizam pela proficiência que consiste na capacidade de
escapar à morte ou de propagar seus genes por meio da reprodução. Não é coisa
fácil escapar à morte. Abandonado a si mesmo, quando morre, o corpo tende a
regressar a um estado de equilíbrio com seu ambiente. Se medirmos a
temperatura, a acidez, a porcentagem de água ou o nível de eletricidade de um
corpo, verificaremos que diferem significativamente das medidas correspondentes
ao meio ambiente ao seu redor. Uma vez que nosso corpo costuma ser mais quente
que o ambiente, em climas frios, o organismo tem de se esforçar para manter
essa diferença de temperatura. Quando morrermos, o esforço cessará, e a
diferença de temperatura começará a desaparecer até que o corpo acaba por ter a
temperatura igual à do ambiente externo. Novamente, nos deparamos aqui com a
ideia de vida como esforço: um esforço contínuo de resistência às tendências
intrínsecas à própria vida de restituição do estado inorgânico, que é o estado
de equilíbrio perfeito que caracteriza a morte. Como bem notou Freud, a vida é
perturbação, a saber, alteração das condições originárias de equilíbrio
perfeito que caracterizam o estado inorgânico. Malgrado o fato de nem todos os
animais se esforçarem tanto para evitar o equilíbrio com a temperatura
ambiente, todos os animais fazem algum esforço para manter as condições mínimas
necessárias à sua sobrevivência. Numa região seca, animais e plantas lutam para
conservar o conteúdo fluido de suas células, isto é, lutam contra a tendência
natural de a água dentro deles fluir para o mundo exterior. Quando os
organismos não conseguem evitar que a água dentro deles flua para fora de si,
eles morrem. Viver é, portanto, esforçar-se sempre, continuamente para frear as
forças que tendem a arrastar o organismo para o estado de equilíbrio perfeito
com o meio circundante – estado este que é o da morte.
Talvez
o efeito mais nocivo da tendência humana de dotar sua vida de significado seja
a persistência da crença, tão arraigada na consciência do homem das religiões
monoteístas, de que nós somos a coroa da evolução. No entanto, as evidências
asseguram a convicção de que não somos nem criaturas de um Deus pessoal e
criador, nem o ápice de um processo evolutivo que teria produzido o mundo de
modo finalístico e com a consciência de nossa chegada. Darwin nos mostrou que o
homem não é mais evoluído do que qualquer outro ser vivo. O que existe são
organismos mais complexos e menos complexos. A própria inteligência ou razão
não é uma qualidade exclusiva do animal humano. Outras espécies de animais,
como golfinhos, aves e nossos primos, os chimpanzés, demonstram uma admirável
inteligência. Considerar nossos cães e gatos seres irracionais é não só ser
muito presunçoso, como ignorar que a racionalidade difere entre algumas
espécies em termos de graus. Decerto, o homem é um organismo mais complexo que
a lesma; a lesma, por sua vez, é mais complexa que uma ameba; mas uns são tão
evoluídos quanto os outros.
O
chimpanzé e o homem compartilham cerca de 99,5% da sua história evolutiva. Como
nos ensina Dawkins,
“(...) não existe nenhum fundamento
objetivo que justifique considerar que uma espécie está acima da outra. O
chimpanzé e o homem, a lagartixa e o fungo, todos nós evoluímos durante cerca
de 3 bilhões de anos por um processo conhecido como seleção natural. Em cada uma das espécies, alguns indivíduos deixam
atrás de si um número maior de descendentes sobreviventes do que outros, de tal
forma que os traços hereditários (os genes) daqueles que alcançaram maior êxito
reprodutivo se tornam mais numerosos na geração seguinte. A seleção natural é
isto: reprodução diferencial, não aleatória dos genes. Foi a seleção natural
que nos formou (...)”. (ibid., p. 27, grifo meu).
Foi
a seleção natural que nos deu origem, e a seleção natural é um processo cego,
inconsciente que Darwin formulou para explicar a existência de tudo que existe
na natureza e para dar conta da forma, aparentemente, premeditada de todos os
seres vivos. A seleção natural não tem nenhum propósito; sequer tem uma mente,
nem a capacidade de imaginação. A seleção natural não planeja com vistas ao
futuro – “se é que se pode dizer que ela desempenha o papel de relojoeiro da
natureza, é o papel de um relojoeiro cego” (Dawkins, 2001, p. 24).
1.4.
A história como mundo histórico
A
instituição do mundo histórico é, em última instância, instituição de um mundo
de significados, de um magma de significações imaginárias que, materializadas
em práticas sociais, culturais e econômicas concretas constituem,
conjuntamente, as condições históricas da existência humana. Sem o concurso das
práticas simbólicas, não haveria mundo histórico. Por história, entendo, por um lado, o mundo histórico, ou a totalidade dos modos de ser e das criações
humanas ou a totalidade da vida espiritual e das práticas culturais. Por outro
lado, história é também a totalidade das atividades sociais, culturais,
ideológicas, econômicas, jurídicas, políticas, bélicas que, através do tempo e
de sucessivas gerações, são responsáveis pela criação, transformação e
destruição de mundos, todos eles edificados pelos autores humanos. O mundo
histórico se contrapõe à natureza, que é a totalidade do que existe
independentemente da atividade humana e que, por isso, não pode ser considerado
produto da atividade humana. É verdade que tal distinção não se faz tão rigorosamente
assim, sobretudo se considerarmos os avanços da engenharia genética e da
bioengenharia. Mas tal diferença será mantida a fim de que, em consonância com
o que se expôs anteriormente, não estorvemos nossa compreensão da condição
humana como estar lançado no mundo numa inescapável interação com processos
naturais e sócio-históricos.
A
primeira evidência a que não podemos esquivar, não importa o que tenham pensado
autores cristãos, iluministas e idealistas ao longo dos séculos, é que a
dinâmica da história não está voltada para o bem-estar do homem. Não só não
estamos justificados em pensar que as culturas que se sobressaem na história
sejam necessariamente as melhores para o homo
sapiens, como também não há prova
alguma de que o desenvolvimento da história leva ao aprimoramento do bem-estar
humano. Segundo Harari (2018, p. 329), “como a evolução, a história não
considera a felicidade de organismos individuais. E os indivíduos humanos, por
sua vez, costumam ser ignorantes e fracos demais para influenciar o curso da
história em benefício próprio”. Ainda, segundo Harari, “(...) as escolhas da história
não são feitas em prol dos humanos”. Na verdade, falta-nos uma medida objetiva
que nos permita determinar os supostos benefícios da história. É fartamente
reconhecido que culturas diferentes definem o que é o bem de modo diferente, e
carecemos de um critério objetivo pelo qual podemos julgá-las.
Não
estamos também racionalmente autorizados a entender a história de modo
determinista. Isso se deve ao fato de a história não poder ser prevista. A
história é caótica. A história é um sistema caótico de nível 2. Ela é
constituída de inúmeras forças em ação e interação tão complexas, que variações
mínimas na intensidade de tais forças e na maneira como elas se articulam e
interagem produzem resultados gigantescamente distintos. Os sistemas caóticos
de nível 2 se caracterizam pela possibilidade de reagir a previsões a respeito
deles e nunca podem ser previstos com precisão. Por exemplo, mesmo que um
programa de computador previsse com exatidão que ocorreria uma revolução no
curso de um ano no Brasil, e o presidente do Brasil tomasse conhecimento dessa
previsão, ele, provavelmente, reagiria reduzindo impostos de imediato,
reforçando a segurança nacional; enfim, reagiria tomando medidas preventivas a
fim de evitá-la. É sempre possível que as medidas políticas adotadas surtam
efeito e que a revolução prevista não aconteça. Harari lança mão de uma imagem
bastante apropriada a fim de ilustrar o caráter de imprevisibilidade da
dinâmica histórica.
“Cada
ponto da história é um cruzamento. Uma única estrada percorrida leva do passado
ao presente, mas uma série de caminhos se bifurca em direção ao futuro. Alguns
desses caminhos são mais largos, mais planos e mais bem sinalizados, e, por
isso, há uma chance maior de que sejam seguidos. Mas, às vezes, a história – ou
as pessoas que fazem a história – dá voltas inesperadas”. (Ibid., p. 320-321).
Se
é possível falar em lei que governa o curso histórico, só há uma, que é
implacável: o que parece inevitável quando o consideramos em retrospectiva
nunca foi óbvio na época em que se deu. Embora forças geográficas, biológicas e
econômicas criem restrições à dinâmica dos processos históricos, essas
restrições jamais impedem que haja desdobramentos inesperados. Não há,
portanto, qualquer lei determinista a governar o curso da história. Muitos veem
o determinismo como um fenômeno atraente, porquanto ele é consonante com o fato
de que nosso mundo e nossas crenças são produzidos historicamente. Mas do fato
de que sejam historicamente produzidos não se segue que sejam inalteráveis, que sejam resultado de
leis universais e necessárias que atuam no curso da história. Ainda que o senso
comum nos faça crer no contrário, não é natural nem é necessário que vivamos em
Estados-nação, que organizemos nossa economia segundo princípios capitalistas,
que vivamos em sociedades estratificadas, que acreditemos em direitos humanos.
Para referir o que nos ensina Harari, “reconhecer que a história não é
determinista é reconhecer que não passa de uma coincidência o fato de que a
maioria das pessoas, hoje em dia, acredita em nacionalismo, capitalismo e
direitos humanos”. (ibid., p. 324).
Parece razoável, portanto, tendo em
vista o exposto, admitir que a história não tem finalidade alguma, que ela é desprovida de qualquer sentido de
progresso. Que a história não possa ser estudada e explicada em termos
deterministas, dado o fato de que é difícil prever com segurança que direção
tomarão as forças históricas em conflito, qual o curso de acontecimentos se
produzirá no jogo agonístico de tais forças parece irrefutável. No entanto,
como podemos explicar que certas crenças ou sistemas de crenças perdurem ou
reapareçam ao longo da história, mesmo quando indivíduos que a eles aderiam morrem?
Um número cada vez maior de estudiosos buscam explicar esse fato pela abordagem
memética, cujo pressuposto básico é que a transmissão cultural é análoga à
transmissão genética. Análogo ao termo “gene”, a forma meme (que lembra o grego mimese,
mímesis, que significa ‘imitação’) é o termo adotado para designar uma unidade
de transmissão cultural ou unidade de transmissão. Assim como os genes são
transmitidos de um corpo para outro através de espermatozoides ou óvulos, os
memes também se propagam de um cérebro para outro através de um processo de
imitação. Segundo essa abordagem, as culturas são vistas como um tipo de
infecção ou parasita mental, e os humanos seriam seus hospedeiros
involuntários. Tais como vírus, os parasitas mentais se multiplicam na mente
das pessoas e se disseminam de um hospedeiro para outro, às vezes
enfraquecendo-os e até mesmo os matando.
“O humano morre,
mas a ideia se espalha. Segundo essa abordagem, as culturas não são
conspirações de algumas pessoas para tirar vantagem de outras (...). Ao
contrário, as culturas são parasitas mentais que surgem acidentalmente e,
depois, tiram vantagem de todas as pessoas infectadas por elas”. (Harari,
ibid., p. 327).
A abordagem memética esteia-se na
suposição de que, assim como a evolução biológica opera segundo a replicação de
unidades de informação orgânica, chamadas genes, os sistemas culturais
baseiam-se na replicação de unidades de informação cultural, chamadas “memes”.
As culturas bem-sucedidas seriam aquelas que se sobressaem na reprodução de
seus memes, independentemente dos prejuízos ou benefícios acarretados aos seus
hospedeiros.
Nas duas próximas subseções, com as
quais termino esta primeira parte de minha discussão sobre a condição
existencial do homo faber, serão
abordadas duas experiências fundamentais da condição humana, caras ao
existencialismo, mas estranhas ao homem imerso na cotidianidade mediana. A
primeira dessas experiências é a da angústia; vou considerá-la a partir do que
nos tem a dizer Heidegger sobre ela. A segunda experiência é a do absurdo e ela
será considerada a partir de Sartre, em seu romance A Náusea. A escolha por
considerá-las num texto que trata do tema “trabalho” justifica-se porque venho
considerando a atividade do trabalho a partir de um horizonte de reflexões
sobre a insignificância radical da existência e porque acredito que essas
experiências nos jogam na mais íntima e perturbadora abertura para a
insignificância da existência humana.
1.5.
O ser-aí como ser-no-mundo e a experiência da angústia
Antes
de nos concentrar no tratamento da questão da angústia a partir de Heidegger,
serão necessárias algumas considerações prévias acerca do modo de ser cotidiano
do indivíduo humano. Como o uso do termo “ser-aí” demandaria o compromisso com
alguns esclarecimentos que excederiam os limites desta discussão, usarei
simplesmente, para fins didáticos, a expressão “indivíduo humano” ou, quando
necessário, “o homem”. Os conceitos de Heidegger que aproveitam para as nossas
considerações serão devidamente esclarecidos.
Começo,
pois, notando que Heidegger ensina ser o homem um existente. Existindo, o homem
descerra o campo totalizante dentro do qual todos os entes se manifestam. Esse
campo de mostração de tudo que é Heideeger chama mundo. “Mundo” não é, no entanto, a soma totalizante das coisas do
real, mas o horizonte ontológico a partir do qual tudo que é, incluindo o
homem, se manifesta. O mundo se dá juntamente com os entes, muito embora seja ontologicamente
anterior a eles, ou seja, o mundo é a condição de possibilidade de aparecimento
dos entes. Nesse sentido, o mundo é um elemento transcendental, mas, ao mesmo
tempo, o mundo é transcendente, porque está sempre além da soma dos entes que
nele aparecem. Existir é Ek-sistir
(já estar fora). Ek-sistir, para Heidegger, é liberar o campo de mostração de
tudo que é. Há uma relação de co-pertencimento entre o mundo e o homem. O homem
é ser-no-mundo, o que significa dizer
que o homem está numa relação de familiaridade com o mundo, a saber, com o
horizonte de mostração da totalidade dos entes. O mundo nunca é estranho ao
homem, porque é no mundo que ele encontrará o solo a partir do qual realizará
suas possibilidades de ser. Portanto, originariamente, o homem não é coisa
alguma, mas é sempre um poder-ser-no-mundo. No mundo, o homem encontra o campo
que delimita o seu poder-ser e as possibilidades de ser que estruturam a sua
existência.
Dispostas
assim, em linhas gerais, essas considerações iniciais são bastantes para
pavimentar o solo no qual as questões que, deveras, interessam deverão vir a
lume. Porquanto o homem é ser-no-mundo, ele é também ser-com-outros. O mundo,
para o homem, é também mundo compartilhado. Ser-com-outros é uma determinação
do próprio ser-no-mundo que é o homem. Os entes com os quais o homem se
relaciona enquanto ser-com-os-outros são sempre outros indivíduos humanos. Com
esses outros indivíduos humanos, o homem não se ocupa, mas se preocupa. A preocupação pertence ao ser
mesmo do homem e revela que a convivência funda-se, antes de tudo e na maioria
das vezes, numa ocupação comum.
Do
ponto de vista ontológico, diz Heidegger, “nas ocupações com o mundo
circundante, os outros nos vêm ao encontro naquilo que são” e “eles são o que
empreendem” (Heidegger, 2012, p. 183). O problema aqui sinalizado por Heidegger
e que será objeto de sua análise é que a convivência com os outros dissolve o
indivíduo humano no modo de ser desses outros. Imerso no mundo da cotidianidade
mediana, o homem é capturado pela ditadura do impessoal. “assim nos divertimos
e entretemos como impessoalmente se faz” (p. 184). O impessoal, que é um
existencial, ou seja, o modo próprio e originário de ser do homem como
ser-no-mundo, determina o modo de ser da cotidianidade. Assim, escreve
Heidegger: “O impessoal é um existencial, enquanto fenômeno originário,
pertence à constituição positiva do [homem]”. (p. 186). Sob o domínio da
ditadura do impessoal, “todo mundo é outro e ninguém é si mesmo” (p. 185). O
impessoal é uma condição ontológica do homem; diz respeito estruturalmente ao
seu modo de ser. Por isso, o impessoal é um fenômeno a-histórico, muito embora
sua vigência caracterize de modo paradigmático o modo de ser do homem em nossas
sociedades de massa. Ocorre que ser-no-mundo quer dizer também ser um projeto.
A essência projetiva do poder ser e o impessoal estão tensionalmente
relacionados na dinâmica existencial do homem. Como pondera Casanova (2006, p.
111):
“Na medida em que o ser-aí é um ente
marcado pelo poder-ser e em que ele já sempre experimenta o seu poder-ser a
partir de um modo possível de existir, o seu projeto existencial é inicialmente
marcado por uma radical absorção nos caminhos pavimentados pelo mundo fático”.
O
poder-ser, que é a essência da existência humana, supõe em si intrinsecamente a
nulidade do homem, porquanto o homem não existe por força de uma decisão ou de
um Deus; ele é, desde a origem, lançado à existência. A existência do homem não
é necessária, isto é, está em seu poder-ser deixar de ser, não ser. O homem é
atravessado estruturalmente por uma incompletude radical, já que, sendo
poder-ser, está existencialmente projetado para possibilidades sempre além da
sua efetivação na realidade. Enquanto existe, persiste um ainda não sendo,
negatividade indissociável de seu modo de ser mais próprio. Só pode suprimir
seu poder ser e a incompletude que lhe é inerente, com a morte, que é seu
poder-ser extremo, em que é lançado no nada absoluto.
Heidegger
se interessa por determinar quais os caracteres existenciais da abertura do
homem quando ele se detém no modo de ser do impessoal. Recorda Heidegger que,
na maior parte das vezes, o homem sucumbe ao impessoal e por ele se deixa
dominar. A cotidianidade põe a descoberto um modo de ser originário do homem. É
pela análise desse modo de ser originário que se chega ao fenômeno de
estar-lançado, inerente ao homem. Uma das estruturas do modo de ser do
impessoal é o que Heidegger chama falação.
A expressão não comporta sentido pejorativo. A fala, na maior parte das vezes,
se pronuncia e já sempre se pronunciou. É linguagem. A fala que se pronuncia é
comunicação. Como falação, a fala perdeu ou jamais alcançou a referência
ontológica primária daquilo sobre o que se fala; na falação, contenta-se em
repetir e passar adiante a fala. As coisas, portanto, são como são, porque é
assim que delas impessoalmente se fala. Repetindo e passando adiante a fala,
produz-se a falta de solidez. Essa falta de solidez constitui a falação. Nas
palavras de Heidegger, “a falação é a possibilidade de compreender tudo sem se
ter apropriado previamente da coisa”. (p. 232). A falação é um fechamento,
porque abstém-se de retornar à base e ao fundamento referencial. É dessa
maneira que aprendemos e conhecemos muitas coisas. É dessa maneira que não
poucas coisas jamais conseguem ultrapassar uma tal compreensão mediana. A
falação constitui o modo de ser da compreensão desenraizada.
Ao
prescrever a disposição e determinar o quê e como se vê, o impessoal, por meio
do falação, leva o homem a romper com as remissões ontológicas primordiais com
o mundo. Nisso consiste o modo de ser desenraizado do homem que se limita a
repetir no discurso aquilo que é expresso. Como ensina Casanova (ibid., p. 69),
“Na medida em que o discurso
comunicado não traz o ouvinte para um questionamento próprio do ente sobre o
qual se discute e toda atenção se volta exclusivamente para o ente expresso
discursivamente, não se cunha em momento algum na comunicação um acesso ao que
esse ente é”.
Ainda
que eu não possa estar de acordo com
Heidegger em sua suposição de que o discurso possa nos permitir o acesso ao que
o ente é, ao que o mundo é (porque não há uma relação especular entre linguagem
e mundo, assim penso), ao submeter o ser das coisas ao modo determinante como
delas se fala, qualquer questionamento do discurso corrente, já expresso e
retomado exaustivamente na comunicação cotidiana, ou é considerado inapropriado
ou sem sentido. O falação (ou falatório) tende a proibir a vigência de um
discurso que vise a questionar o ser do ente e a apropriar-se originariamente
do ente em questão.
Cumpre
ainda dizer algumas palavras sobre como Heidegger aborda nossa experiência ordinária
do tempo. A consideração desse problema nos conduzirá para a compreensão do
morrer como um modo de ser do homem. A morte, para Heidegger, não deve ser
pensada como um fato do mundo, um dado, mas como um fenômeno existencial num
sentido privilegiado.
Nossa
experiência ordinária do tempo é aquela do tempo nivelado, do tempo contado, do
tempo público. Experienciamos o tempo como uma infinita sequência de agoras. O
homem preocupado, ocupado existindo sob o modo da inautencidade, foge à sua
finitude; organiza a sua vida em conformidade com o tempo cronológico, com o
tempo do mundo: tempo com que contamos para ordenar nossas atividades diárias,
nossa rotina. Absorvido no que o ocupa, o homem toma o tempo como sucessão de
“agoras”. Para Heidegger, no entanto, o tempo se inscreve na existencialidade
do homem, ou seja, na sua estrutura, e só lhe é verdadeiramente acessível
quando ele se compreende como mortal, que antecipa seu fim como possibilidade
extrema de seu ser. Heidegger pensa o ser no horizonte do tempo, ou seja,
investiga seu sentido temporal na analítica existencial que desvela a finitude
do homem. A finitude é o modo de ser temporal do ente humano que se finitiza na
assunção da possibilidade insuperável de sua morte. Morrer é um modo de ser do homem. A morte é
relação-com-a-morte. Enquanto existe, o homem é um poder-ser numa relação
necessária com o fim. O homem, enquanto ser-para-a-morte, está certo de que
está destinado à morte, muito embora comumente, subjugado pelo impessoal, diz:
“morre-se, é certo, mas, por enquanto ainda tenho tempo”.
Quando
Heidegger fala em “antecipação da morte”, ele quer nos fazer ver que a morte é
uma possibilidade de cada instante, pois o tempo não é, originariamente, um
fluxo linear no qual se desenrolam os acontecimentos. O tempo originário é o
princípio ontológico da existencialidade. O tempo descerra a unidade do homem
sob o primado do futuro como um dos momentos ekstáticos do homem como
poder-ser. O futuro é o poder-ser que exprime notoriamente a diferença entre o
homem e os demais entes que são exclusivamente dados: o homem está sempre
projetado para as suas possibilidades de ser.
Por
fim, o que Heidegger chama de decadência
define a existência enquanto tal. A decadência é um existencial do homem e
consiste no fato de o indivíduo humano estar sempre empenhado no mundo das
ocupações e das preocupações. Encontrando-se jogado nessa situação de risco,
pode ele perder-se de si mesmo e se deixar ser tutelado pelos outros. O
indivíduo humano é decadente, porque seu poder-ser cai sob o domínio do
impessoal no qual se estabelece a sua existência inautêntica. O impessoal, na
vigência da decadência, é um modo de ser do homem que o faz ser “os outros”.
Podemos,
doravante, nos ocupar com o que significa dizer, acompanhando o entendimento de
Heidegger, ser a angústia a disposição de humor fundamental do homem.
Principio,
pois, por esclarecer o significado da expressão heideggeriana ente na totalidade. Em seu Nietzsche (2014), Heidegger nos dar a
saber o seguinte:
“Usamos essa expressão a fim de
denominar inicialmente tudo o que não é pura e simplesmente nada; a natureza, o
inanimado e o vivente, a história, suas produções, seus configuradores e
promotores, Deus, deuses e semideuses. Também denominamos ente o que vem a ser,
o que surge e perece”. (Heidegger, 2014, p. 192).
A
expressão ente na totalidade recobre
também a aparência, a semblância, a ilusão
e o falso, visto que, “se não fossem entes não poderiam iludir nem nos
deixar perplexos”. O fato de a expressão “ente na totalidade” ser
extensionalmente geral e pouco precisa pode causar mais estorvo do que favorecer
a inteligibilidade. Seja como for, retenhamos a ideia de que “ente na
totalidade” recobre tudo que tem algum sentido de realidade, de existência para
o homem. Mesmo o nada, no sentido de “não-ser”,
segundo Heidegger, pertence ao ente na totalidade, “na medida em que sem
esse ente tampouco haveria um nada”. (ibid.). Esclarecido o significado da
expressão “ente na totalidade”, passemos a considerar, sem mais delongas, a
questão da angústia.
No texto O
que é metafísica de 1929, Heidegger diz que a angústia é sempre angústia
diante de, é sempre angústia por, mas falta-lhe um objeto determinado. A
angústia, diferentemente do medo, jamais é angústia por isto ou aquilo. Na
angústia, o ente na totalidade, em sua indiferença, nos oprime. A angústia, dirá Heidegger, manifesta o nada. Na angústia, nossa
relação de familiaridade com o mundo é rompida radicalmente: “a angústia põe em
fuga o ente na totalidade; e nada há em que se apoiar” (Heidegger, 1929, p.
39). A angústia, portanto, esfacela a rede de amparos que dava sustentação à
nossa existência. Heidegger, nesse texto de 1929, aborda a angústia na sua
relação com o nada. O nada se revela na angústia, mas o que é o nada? O nada
não é objeto; o nada não é um ente; o nada não acontece nem em si mesmo nem ao
lado do ente. Não se trata de pensar a angústia como apreensão do nada, como se
o nada fosse uma coisa. Não obstante, o nada se manifesta no ser angustiado.
Como é possível a manifestação do nada, sem que o nada seja um ente? Segundo
Heidegger, na angústia, pomo-nos diante do nada juntamente com o ente na
totalidade. O nada nos visita, mas não como negação do ente na totalidade, isto
é, o nada não é o “não-ser”, mas nos visita “juntamente com a fuga do ente em
sua totalidade” (p. 40). Essa fuga do ente na totalidade deve ser compreendida
como perda de mundo. A nadificação do nada não é nem destruição do ente nem se
origina de uma negação. O nada nadifica na medida em que revela o ente em sua
plena estranheza para nós. O ente na totalidade é experienciado como o
absolutamente outro em face do nada. A angústia, como uma noite clara, torna
possível a originária abertura do ente enquanto tal: o fato de que o ente “é” –
e não nada. Segundo Heidegger, “a essência do nada originariamente nadificante
consiste em conduzir primeiramente o ser-aí [o homem] diante do ente enquanto
tal”. (p. 41). É o nada que possibilita a revelação do ente enquanto tal ao
homem. O nada pertence originariamente à essência do homem. Ser e nada se
co-pertencem, porque o ser mesmo é finito em sua manifestação no ente e porque
o ser mesmo somente se manifesta na transcendência do homem suspenso dentro do
nada. Somente porque o nada está manifesto nas raízes do homem pode sobrevir em
cada indivíduo humano a absoluta estranheza do ente na totalidade. Para
Heidegger, sem a originária revelação do nada, não é possível a singularização
nem a liberdade para o homem. Quando o homem está suspenso dentro do nada, ele
se assume como transcendência, como um estar além do ente na totalidade.
Não
obstante o co-pertencimento entre o nada e o ser, Heidegger adverte:
“(...) o nada nos é primeiramente e o
mais das vezes dissimulado em sua originariedade. Pelo fato de nos perdermos,
de determinada maneira, absolutamente junto ao ente, quanto mais nos voltamos
para o ente em nossas ocupações, tanto menos nós o deixamos enquanto tal, e
tanto mais nos afastamos do nada. E tanto mais seguramente nos jogamos na
pública superfície do ser-aí”. (p. 41).
O
excerto acima permite-nos então dizer que o pôr-se diante do nada não é uma
experiência familiar ao modo de ser do homem comum, porque o homem comum, na
maior parte das vezes, está numa relação de familiaridade com o ente na
totalidade, vive ocupado com os entes intramudanos, vive absorvido no mundo do
impessoal, sob a tutela dos outros. O modo de ser da cotidianidade mediana
impossibilita a experiência de angústia que, para Heidegger, “é o sim à
insistência para realizar o supremo
apelo, o único que atinge a essência do homem” (Heidegger, 1943, p. 49). Heidegger advoga que somente o homem, em meio
a todos os demais entes, “experimenta, chamado pela voz do ser, a maravilha de
todas as maravilhas: que o ente é” (ibid.). No entanto, a possibilidade de
realizar a experiência do mistério do ser só se abre pela angústia essencial,
que é espanto em face do abismo. A angústia é uma disposição de humor
fundamental, porque apela ao homem em sua essência para que ele aprenda a
experimentar o ser no nada. Ora, o ser não é passível de representação, nem se
produz objetivamente tal como o ente. O ser não é uma qualidade ou região do
ente. Jamais o ente é sem o ser, mas o ser nunca se manifesta sem o ente. O
homem, na maioria das vezes, é incapaz de fazer a experiência do ser, porque
vive junto ao ente, vive ocupado com os entes intramundanos e preocupado com os
demais indivíduos humanos na ocupação comum.
Na angústia, o indivíduo humano é
afastado de sua cotidianidade mediana, da facticidade e da impessoalidade.
Rompe-se, pois, a familiaridade com os entes intramundanos, os quais se
manifestam em sua mais absoluta irrelevância e insignificância. Tomado pela
angústia, o indivíduo humano transcende o nível ôntico da realidade (o nível
dos entes imediatamente dados) e se detém no seu poder ser si mesmo, suspenso
no co-pertencimento entre ser e nada. Em suma, na angústia, as relações entre o
homem e o ente desvelam o homem como ser-no-mundo. Na angústia, dá-se a
abertura do mundo enquanto mundo. O homem se angustia com o mundo enquanto tal,
com a sua condição de ser-no-mundo, já não mais circunscrita à vigência dos
referenciais fáticos da cotidianidade que orientavam a sua existência, no mais
das vezes, inautêntica. Na angústia, o homem assume seu poder-ser mais próprio,
singularizando-se. Essa singularização de seu poder ser angustia o homem diante
da liberdade e responsabilidade de ser si mesmo como ser-no-mundo. Na
disposição fundamental da angústia, o mundo é destituído de qualquer
significação e o homem põe-se na abertura do nada. Veja-se o que nos diz, nesse
tocante, Abdala:
“A indeterminação do diante de quê da angústia é, isto sim, a
irrelevância originária de todos os entes intramundanos, aberta no
ser-em-o-mundo como tal, quer dizer, o ser-aí se angustia com o mundo enquanto
tal, na revelação do nada”. (Abdala, 2017, p. 149).
A angústia, tal como a pensa
Heidegger, é uma experiência profundamente perturbadora, ainda que tenha um
sentido de liberação para. Ela nada tem que ver com aflição ou ansiedade, ou
mesmo medo, pavor. Ela não é um tipo de patologia psicanalítica, pelo menos não
no pensamento de Heidegger. Embora não seja uma experiência comum, creio que
alguns de nós já tenhamos sido atravessados por ela ao menos uma vez na vida.
Confesso que já fui tomado dessa angústia algumas vezes, sobretudo a caminho de
casa no metrô, quando me dou conta de estar em meio a um amontoado de
existências sem sentido que surgiram no mundo sem razão e desaparecerão para
sempre na escura noite do nada. Penso que essa experiência que tive algumas
vezes e que me põe na abertura para a revelação do nada é bem descrita pela Náusea
de Roquentin, em Sartre. É o que veremos na próxima subseção.
1.6.
A experiência do absurdo: a Náusea
O
romance A Náusea, publicado em 1938,
narra à guisa de um diário, as vivências comuns do protagonista Roquentin que,
sendo profunda e abruptamente atormentado pela descoberta da ausência de
sentido da existência, precisa lidar com as consequências dessa perturbadora
experiência.
Quero propor uma interpretação da
experiência da Náusea como um tipo de iluminação, o que não significa mascarar
seu caráter perturbador e angustiante. A questão premente é: o que significa a
Náusea (escrito assim mesmo com inicial maiúscula)? Para tentar responder
satisfatoriamente a esta questão, precisamos acompanhar algumas passagens do texto
que me parecem importantes. Um trecho que pode passar despercebido pelo leitor
e que, no entanto, ajuda-nos a esclarecer o significado da experiência da
Náusea, é o seguinte:
“A existência não é algo que se deixe
conceber de longe: tem que nos invadir bruscamente, tem que se deter sobre nós,
pesar intensamente sobre nosso coração como um grande animal imóvel (...)”.
(Sartre, 2016, p. 177).
O trecho supracitado afirma que a
existência não é algo que se põe como objeto de conhecimento e também que
devemos nos deixar invadir por ela... Como lembra o narrador, “o mundo das
explicações e das razões não é o da existência” (p. 174). Isso é já afirmar sua
absurdidade, a impossibilidade de explicá-la racionalmente. Ou seja, a
existência resiste às nossas tentativas de apreendê-la por meio das categorias
da finalidade e da razão. No entanto, o absurdo não se desvela depois de uma
série de arrazoados filosóficos desenvolvidos por um intelectual em algum
gabinete. No tocante à experiência da Náusea, o narrador diz que “(...) no
próprio âmago desse êxtase, algo de novo, acabava de surgir; eu compreendia a
Náusea, possuía-a” (p. 176). Mas essa compreensão e posterior revelação que
terá, quando chega ao estágio máximo de sua iluminação e diz “a náusea sou eu”,
só foram possíveis porque Roquentin sentiu pesar sobre si a existência, foi
tomado profundamente por ela. A partir daí, o que se tornou verbalizável para
ele? O que a Náusea lhe revelou? Primeiro, “o essencial é a contingência”,
logo “a existência não é uma necessidade”. (ibid.). A contingência não é uma
ilusão, é o absoluto: a gratuidade perfeita. Eis o absurdo: a absoluta gratuidade e
contingência da existência. Nenhum ser necessário pode explicar a
existência (Deus não existe). Tudo é gratuito: esse jardim, essa pedra, e eu
mesmo. Tomado pela Náusea, Roquentin conclui: “existir é simplesmente estar
aqui; os entes aparecem, deixam que os encontremos, mas nunca podemos
deduzi-los”. Por isso, “todo ente nasce sem razão, se prolonga por
fraqueza e morre por acaso” (p. 180). Tudo é da ordem da superfície: o
mundo inteiramente nu se mostra e sufoca, e sequer nos é dado perguntar de onde
surgiu, como é possível um mundo em vez de nada. Assim, “o mundo estava
presente em toda parte” e “antes dele não houvera nada”. (p. 181). A Náusea
desvela a absurdidade absoluta da existência: “Demais: era a única relação que
podia estabelecer entre aquelas árvores, aquelas, aquelas grades, aquelas
pedras”. (p. 172). Demais significa: tudo que existe é supérfluo, é da ordem da
superfície, da gratuidade; a existência carece de razão de ser, de fundamento.
Tudo é feito da cepa do Absurdo.
“Éramos um
amontoado de entes incômodos, estorvados por nós mesmos, não tínhamos a menor
razão de estar ali, nem uns nem outros, cada ente confuso, vagamente inquieto,
se sentia demais em relação aos outros”. (ibid.).
A
Náusea não é uma experiência de ordem psicológica: mas de ordem fisiológica,
orgânica, como diz o narrador, “quando ocorre que nos apercebemos disso,
sentimos o estômago embrulhado, e tudo se põe a flutuar” (p. 176). Ao desvelar
o absurdo, a Náusea implode os esteios que davam sustentação e consistência à
existência. A existência se superficializa, carece de profundidade: tudo que
existe é da ordem da banalidade, da superfície: “tudo estava pleno, tudo em ato
(...) tudo, até o mais imperceptível estremecimento, era feito com existência”.
(p. 178); “mesmo quando olhava para as coisas estava muito longe de sonhar que
essas existiam: apareciam-me como um cenário, tomava-as nas mãos (...) mas tudo
isso corria na superfície” (p. 171). A Náusea, na medida em que desvela o
caráter radicalmente absurdo da existência, nos põe diante do Absurdo e
convida-nos a nos questionar sobre nossa azáfama cotidiana, nossas urgências,
nossas inquietações mesquinhas diárias. Uma espécie de iluminação se alcança
quando somos atravessados pela experiência da Náusea e descobrimos que tudo que
fazemos, que pensamos a nosso respeito não tem valor algum, que toda a vida é
sem sentido, que o universo nos é totalmente indiferente à nossa breve passagem
pelo mundo : “E todos esses entes que se azafamavam em torno da árvore não
vinham de parte alguma. De repente existiam e a seguir, bruscamente, já não
existiam: a existência não tem memória; não conserva nada dos desaparecidos –
sequer uma recordação” (ibid.). Para onde vamos com tanta pressa, se a
existência carece de todo sentido e nosso único destino inevitável é o túmulo?
Também
para Sartre (como era para Heidegger), o nada não é puro não-ser. Roquentin diz
“para imaginar o nada era preciso estar já ali, em pleno mundo, vivo e de olhos
abertos” e ainda “o nada era apenas uma ideia em minha cabeça, uma ideia
existente flutuante naquela imensidão: esse nada não veio antes da existência,
era uma existência como outra qualquer e surgida depois de muitas outras” (p.
181). Por isso, segundo o narrador, “se me tivessem perguntado o que era a
existência teria respondido de boa-fé que não era nada, apena suma forma vazia
que vinha se juntar às coisas exteriormente, sem modificar em nada a sua
natureza” (ibid.).
A
Náusea, na medida em que desvela o Absurdo, põe a nu subitamente a existência:
“E depois foi isto: de repente, ali estava, claro como o dia, a existência
subitamente se revelava”. (p. 171). A existência deixa de ser uma categoria
abstrata e se torna “a própria massa de coisas (...) a raiz, as grades do
jardim, o banco, a relva rala do gramado, tudo se desvanecera: a diversidade
das coisas, sua individualidade era apenas uma aparência, um verniz”. (ibid.).
Como bem ensina Bornheim (1971, p. 20), “a náusea nadifica, dilui o significado
do real”. O homem (ou o para-si) é o ser pelo qual o nada vem ao mundo. A
Náusea evidencia que o Absurdo tem um caráter totalizante, absoluto, ou seja,
“nada lhe pode escapar” (ibid., p. 21).
Quando
Sartre fala de gratuidade da existência
humana, quer ele assinalar sua absurdidade radical, ou seja, quer ele
afirmar ser a existência desprovida de qualquer sentido. A contingência é o
absoluto, a gratuidade perfeita: eu, você, leitor, e tudo que existe estamos no
mundo sem razão, sem necessidade, e poderíamos nunca ter estado/ existido. Se,
para Sartre, o absurdo recobre a absoluta contingência e gratuidade da
existência, desveladas pela experiência da Náusea, Camus chama absurdo ao divórcio entre o desejo
humano de logicizar, de explicar racionalmente o mundo, de lhe conferir sentido
e a realidade cruel, ilógica dos acontecimentos, ou ainda, absurdo é, para
Camus, o divórcio entre a opacidade indiferente do universo e o desejo humano de
sentido, clareza e felicidade.
2. O
trabalho: alguns apontamentos históricos
O mundo comum é também, em parte, o
mundo do trabalho. Segundo Pieper (2007, p. 8), “o mundo do trabalho é o mundo
da utilização, da serventia a fins, do rendimento, do exercício de funções”. O
mundo do trabalho é também o mundo da necessidade e do modo de satisfazê-la; é
o mundo organizado em torno do objetivo de produzir o que é útil à vida comum.
“É preciso afirmar
rigorosamente que esse mundo do trabalho cotidiano pertence essencialmente ao
mundo do homem, que justamente nesse mundo do trabalho são realizados os
fundamentos de sua existência física, sem os quais nenhum homem pode existir.”
(p. 10).
Advogando
que “filosofar consiste em uma ação na qual o mundo do trabalho é
ultrapassado”, Pieper não pretende depreciar esse mundo “a partir de algum
suposto ponto de vista superior da filosofia” (ibid., p. 10). A ressalva do
autor inscreve sua fala numa formação discursiva em que, com o advento da
modernidade, uma série de vozes atribuem ao trabalho o estatuto de expressão
livre da iniciativa humana. Na modernidade, o trabalho passou a ser visto como
meio para formar e aperfeiçoar o homem. Voltaire, por exemplo, recomendava a
todos que se dedicassem a um trabalho com vistas a contribuir para o próprio
sustento e para o bem-estar da humanidade. Baudelaire escreveu: “Para curar
tudo, a miséria, doença e a melancolia, só não pode faltar absolutamente o
gosto ao trabalho”. Os modernos estavam convencidos de que o trabalho, deveras,
elimina três grandes males: o tédio, o vício e a necessidade.
Os
antigos – e aqui me refiro aos filósofos gregos e romanos – consideravam
dotadas de natureza servil as ocupações que fornecessem o necessário para a
manutenção da vida. No pensamento grego,
predominava uma avaliação negativa do trabalho. Platão, por exemplo, excluiu as
artes mecânicas do governo do estado. Aristóteles definia como servil todo
trabalho, porque ele oprime o intelecto. Cícero e Sêneca, por seu turno,
exaltavam o ócio como sendo superior ao trabalho. Essa desvalorização do
trabalho entre os antigos têm várias razões, duas das quais se destacam: exaltação da vida contemplativa e a dureza do trabalho que era uma atividade
própria dos escravos. Na sociedade grega, onde viveu Aristóteles, vigorava
o modo de produção escravagista. Nessa organização econômica, o trabalho era
desvalorizado como atividade inferior, se comparada à ação livre do cidadão,
isto é, dos proprietários (de terra, do artesanato e do comércio). Para os
gregos e romanos, eram livres os homens dispensados da ocupação com as
atividades destinadas a prover os recursos necessários à sobrevivência. Somente
estes podem dispor do ócio indispensável ao cuidado com a vida pública.
No pensamento patrístico e
escolástico, ao trabalho se atribuiu um valor soteriológico: ele era
considerado um meio de purificação e salvação, o que não impedia que fosse
considerado também uma atividade ignóbil e servil. Mas foi o protestantismo,
decerto, que mais exaltou o valor do trabalho, considerando-o como expressão do
pertencimento dos eleitos ao Reino de Deus. O protestantismo, o capitalismo,
com o qual a ética do primeiro está bem afinada, e o liberalismo não podiam
conservar a imagem do homem livre como homem desocupado, porque fizeram o
direito de propriedade repousar sobre o trabalho: o trabalho de Deus, fazendo o
mundo (protestantismo); o trabalho do homem, instituindo a legimitidade da
propriedade dos meios de produção, isto é, das condições materiais do trabalho
(capitalismo/liberalismo).
2.1.
O regime de propriedade da terra na Grécia antiga e em Roma
A
Atenas do século VI a.C é marcada pela transição da cidade aristocrática para a
cidade escravista. A propriedade da terra é inalienável, o que levou à
reclassificação dos cidadãos pelo critério da riqueza. Tal fato destruiu
gradativamente os privilégios da aristocracia tradicional. A exploração da
terra em Atenas baseava-se na oposição entre politai (cidadão) e os grupos sociais dependentes (incluindo nestes
os escravos). A propriedade do demos
ou das áreas territoriais habitadas por grupos de famílias camponesas era
explorada basicamente pelo trabalho escravo, completado pelo trabalho livre,
representado pelo produtor imediato, o camponês sem terras (os peletais).
O
desenvolvimento da agricultura mercantil, articulado com a circulação da moeda
a partir do século VII a.C., estimulou as atividades artesanais e comerciais da
cidade. Assim, a agricultura, o artesanato e o comércio formaram um todo
homogêneo, que constituía a matriz econômica de Atenas.
Tanto
na Grécia do período democrático quanto na Roma Imperial, ser escravo significava
ser um homem que é propriedade jurídica de outro homem. Como propriedade, o
escravo era obrigado a trabalhar para o seu dono, produzindo riqueza e
prestando-lhe serviços gerais. Na condição de produtor de riqueza, o escravo
trabalhava no campo, nas minas, no artesanato. Como prestador de serviços
gerais, trabalhava nas atividades domésticas, na fiscalização da produção, como
criado de legionários, como preceptor, como escritor, como médico, como agente
de negócios. Do ponto de vista econômico, o escravo era o realizador do trabalho, aquele que produz
direto, mas na condição de propriedade de outro homem. O escravo era também
meio de produção, era propriedade móvel, que podia ser vendida. A parte que lhe
cabia do produto de seu trabalho correspondia ao mínimo vital, o suficiente
para reproduzir sua força de trabalho. Dessa condição estavam excluídos os
escravos que prestavam serviços gerais. É importante deixar claro que, na
Antiguidade, a instituição da escravidão não visava à obtenção do lucro pela
exploração da mão-de-obra; a escravidão servia ao desejo de excluir o trabalho
das condições da vida do homem. Como ensina Arendt (2010, p. 104), “tudo o que
os homens tinham em comum com as outras formas de vida animal não eram
consideradas humanas”. Não é que Aristóteles negasse a capacidade dos escravos
para serem humanos; na verdade, ele rejeitava o emprego da palavra homem para designar membros da espécie
humana que estivessem sujeitos totalmente à necessidade.
2.2. A vida boa ou a vida
contemplativa
Lembrando a concepção aristotélica de
“vida boa”, afirma Arendt (ibid., p. 44):
“Era “boa”
exatamente porque tendo dominado as necessidades do mero viver, tendo se
libertado do trabalho e da obra e superado o anseio inato de sobrevivência
comum a todas as criaturas vivas, deixava de ser limitada ao processo biológico
da vida”.
A
vida boa era não apenas melhor, mas também livre das ocupações e mais nobre que
a vida ordinária. Ela possuía uma qualidade radicalmente diferente: a vida boa
ou a vida feliz é a vida contemplativa, aquele modo de vida que consiste no
exercício da parte divina em nós – o intelecto. É o exercício da atividade
reflexiva que aproxima o homem de Deus, cuja atividade essencial é a
contemplação. Assim, segundo Arendt, “a noção grega de divino está intimamente
relacionada com (...) a supremacia do theorein (do contemplar) sobre o fazer”.
(Arendt, 2018, p. 150). Todos os pensadores gregos estavam convencidos de que a
filosofia tornava os mortais, ou seja, os homens, capazes de avizinhar-se com
as coisas imortais, de modo que “a atividade de filosofar transforma-os em
criaturas semelhantes a deuses, “deuses mortais””. (ibid., p. 149). Embora fossem do mesmo gênero que os homens,
os deuses eram imortais e gozavam do privilégio de viver livres das necessidades
a que está submetida a vida dos mortais (os homens). Como estejam livres das
ocupações que caracterizam a vida humana, os deuses “podiam se dedicar à
observação, olhando do alto do Olimpo as coisas humanas que, para eles, não
eram mais do que um espetáculo a serviço de sua distração”. (ibid., p. 150).
Aristóteles,
seguindo de perto seu mestre, considerava o intelecto algo divino. Não é de
surpreender que a vida que se harmonizasse com o intelecto fosse também
considerada divina. A vida boa ou a vida feliz só poderia ser o modo de vida
dedicado à atividade da parte mais elevada da alma: o intelecto. Para
Aristóteles, a felicidade consistia numa atividade da alma, na mais excelsa
atividade que é a contemplação. A contemplação ou a vida contemplativa, estando
voltada para os bens de que se ocupa o intelecto e sendo o intelecto o que há
de mais superior em nós, é o modo de vida mais elevado. Em Ética a Nicômaco, nota Aristóteles: “(...) a filosofia ou a busca
da sabedoria encerra prazeres maravilhosos devido à sua pureza e permanência”
(Aristóteles, 2013, p. 307). Além de ser certa espécie de atividade da alma, a
felicidade tinha de ser dotada da qualidade de permanência e da
autossuficiência, ou não poderia ser considerada como tal. A atividade contemplativa
gozava do privilégio de possuir tais qualidades. A vida contemplativa possui,
no mais alto grau, a qualidade da autossuficiência e os prazeres resultantes
dela são duradouros. O homem sábio, embora não prescinda das necessidades de
subsistência, pode, tendo adequadamente satisfeitas, dedicar-se à contemplação
sozinho, “e quanto mais o fizer mais sábio será” (ibid., p. 307). A atividade
contemplativa é a única atividade amada por ela mesma, “uma vez que não produz
resultado algum além do próprio ato especulativo, enquanto no caso das
atividades práticas procuramos assegurar alguma vantagem, maior ou menor, que
transcende a própria ação” (ibid.).
Levo
a termo esta segunda parte de minha dissertação, referindo dois passos de
Arendt, dada a sua pertinência com tudo que se expôs até aqui. O primeiro deles
lembra-nos que todos são capazes de superar o senso comum: “(...) a perda do
senso comum não é nem o direito nem a virtude dos “pensadores profissionais”
(...); ocorre a todo aquele que pensa em algo; ocorre apenas com mais
frequência entre os pensadores profissionais”. (ibid., p. 70). O segundo trecho
reforça o elevado valor da vida filosófica para os antigos gregos. O modo de
vida filosófico, desde a Antiguidade, sempre foi considerado contrastante e
superior ao modo de vida do homem comum:
“Retirar-se da “bestialidade da
multidão”, para ficar na companhia dos “muito poucos” e também no estar-só
absoluto do Um tem sido a principal característica da vida do filósofo, desde
que Parmênides e Platão, descobriram que, para aqueles “muito poucos”, os sophoi, a “vida do pensamento”, que não
conhece nem dor nem alegria, é a mais divina, e que o nous, o próprio pensamento, é “o rei da terra e do céu”. (ibid., p.
64).
3. Marx e a questão do trabalho
3.2.
A concepção materialista do homem
É
conhecida do leitor de Marx a passagem que se acha em Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, na qual Marx observa que os
homens fazem a sua própria história, mas não a fazem nas condições que
livremente escolheram. Os indivíduos não são nem absolutamente livres, como
pensavam, aliás, os idealistas, nem determinantemente coagidos pelas condições
exteriores. A vida dos indivíduos depende de sua atividade, muito embora essa
atividade seja condicionada por circunstâncias que independem deles.
O
materialismo histórico, sendo o nome
dado à teoria exposta desde 1845, formando o fio condutor de toda a obra de
Marx, não é uma filosofia da história, mas uma crítica dos fundamentos de todas
as filosofias da história precedentes. A história
não é um produto exterior aos indivíduos, mas o resultado da atividade, da vida
deles, ainda que seja também uma força temporal que move as sociedades. A
experiência que os indivíduos têm do processo histórico leva-os a conceber os
resultados de suas próprias ações como a manifestação de uma potência exterior,
que os transcende, porquanto aquilo que se realiza efetivamente não são os
desejos de uns e de outros, mas uma combinação mais ou menos contingente de
ações moleculares das grandes massas.
O
materialismo histórico esteia-se na concepção do homem como um ser natural e
tem como objetivo central compreender o pensamento a partir da vida, como uma
manifestação do processo de viver. Assim, o Estado, as forças produtivas, as
categorias que Marx usa são igualmente explicadas por sua origem na prática
histórica dos indivíduos. Históricas são as formas concretas da vida social
humana e dessa história ou é por força da história que surgem novas formas de
pensar que permitirão explicar mais ampla e objetivamente a realidade. História, portanto, à luz do
materialismo histórico, recobre a sucessão de gerações que, vindo uma após
outra, explora os materiais, os capitais, as forças produtivas legadas pelas
gerações precedentes. Para Marx, a história é a história do modo real como
homens reais produzem as condições reais de sua existência. É também a história
do modo como se reproduzem a si mesmos (pelo consumo de bens naturais e pela
procriação), como produzem e reproduzem
suas relações com a natureza (pelo trabalho), e do modo como produzem e
reproduzem suas relações sociais (pela divisão do trabalho e pela forma de
propriedade, que constituem as formas das relações de produção). A história
recobre também o modo como os homens interpretam todas essas relações, seja numa
interpretação imaginária, como na interpretação ideológica, seja por meio do
conhecimento da história que produziu tais relações. O materialismo de Marx se
ocupa do homem e da história partindo do homem real e das condições econômicas
e sociais em que ele tem de viver. O materialismo histórico baseia-se na
proposição segundo a qual a maneira como os homens produzem determina seu
pensamento, suas ideias e seus desejos.
Vale
reiterar: o materialismo histórico baseia-se na concepção do homem como ser
natural. Destarte, a organização corporal, as relações naturais são as bases
naturais da historiografia. As bases naturais condicionam, durante tempo muito
longo, a vida material e, por isso, todo o edifício econômico e político se
eleva acima delas. Por exemplo, o cultivo de arroz ou do trigo dará origem a
duas civilizações diferentes.
Antes
de qualquer coisa, é preciso viver. O materialismo de Marx toma como ponto de
partida os indivíduos vivos. Marx sustenta que a primeira condição de toda
história, ou seja, de toda existência humana, é que os homens tenham as
condições de viver para conseguirem “fazer a história” (como vimos, produzir o
mundo histórico, a sua obra). Ora, acrescenta Marx, para viver, é preciso,
antes de mais nada, comer, beber, vestir-se e morar. É claro que Marx não
ignorava que viver compreende outras muitas experiências, tais como amar, fazer
sexo, ter filhos, educá-los, etc. No entanto, ele é categórico ao assumir que o
primeiro ato histórico é a criação dos meios para satisfazer as necessidades de
subsistência. Aqui Marx confirma a concepção que o senso comum tem do trabalho
como meio indispensável para “se ganhar a vida”, muito embora, como souberam
ver muitos pensadores ao longo da história, a vida valha muito pouco ou não
valha o tamanho esforço que fazem os homens para sustentá-la. Seja como for,
para Marx, os homens trabalham para produzir suas condições materiais de
existência.
É,
portanto, à luz do conceito de produção,
que Marx pensará o trabalho como uma atividade exclusivamente humana. Os homens
produzem e isso, na visão de Marx, os distingue dos outros animais. Os animais
se relacionam com seu ambiente natural executando uma série de ações, como
caçar, raspar a terra, construir ninhos, etc. Mas somente o homem modifica a
natureza pelo trabalho. O trabalho é um ato que ocorre entre o homem e a
natureza. O homem emprega as forças de que é dotado seu corpo para modificar os
materiais, dando-lhes uma forma útil à vida. Pelo trabalho, o homem se
relaciona dialeticamente com a natureza, na medida em que, modificando-a, ele
modifica a si mesmo e desenvolve suas próprias faculdades. O resultado que se
segue da atividade do trabalho preexiste idealmente na imaginação do
trabalhador. O trabalhador, ao dar forma à matéria natural, realiza aí sua
própria meta e tem consciência de que ela determina seu modo de ação. O que o
trabalhador realiza por meio do trabalho é a sua obra. E essa obra se
identifica com a produção. Toda produção, portanto, supõe:
1)
uma atividade de transformação da natureza;
2)
uma atividade na qual o homem se transforma a s i mesmo;
3)
uma atividade dirigida por uma finalidade consciente;
4)
uma atividade na qual o homem manifesta a sua potência.
A
relação do homem com a natureza nunca é uma relação imediata. A produção medeia
a relação entre o homem e a natureza. Ao converter as coisas exteriores em
órgãos de sua própria atividade, os homens já não mais se limitam à obtenção de
meios de subsistência (como o faziam os nossos ancestrais caçadores-coletores),
mas produzem indiretamente a sua vida material. A produção é sempre uma
reprodução, uma vez que ela deve reproduzir não somente a existência física dos
indivíduos, mas também os meios de existência e os meios de trabalho.
Vimos
que Arendt define o trabalho como aquilo que é submetido a um ciclo, o que se
repete incansavelmente – afinal, quando o trabalho termina, é preciso
recomeçar... recomeçar a preparar a comida, a semear o cereal, etc. A obra, ao
contrário - segundo Arendt, do trabalho, tem um fim: o processo extingue-se
quando a obra está acabada e esta obra é durável. Embora Arendt tenha razão, a
oposição não deve ser absolutizada, porque é preciso reconhecer que as obras
também são perecíveis e estão sujeitas à lei da natureza. É preciso conservar
os produtos fabricados, reproduzi-los, substituir as peças. O trabalho, por seu
turno, tem duração, pois deixa a sua marca na natureza, modela as paisagens. Os
indivíduos são e existem segundo o modo como produzem. O que eles são coincide
com o modo como produzem e com o que produzem. Portanto, o que os indivíduos
são depende das condições materiais de sua produção.
Quando
Marx insiste em distinguir os homens dos animais a partir do fato de que aqueles
produzem suas condições de existência, ele quer dizer que apenas os homens
fazem história, entram na história, porque, ao produzirem suas condições de
existência, eles modificam, por meio da produção, suas relações com a natureza.
O trabalho humano não se contenta em reproduzir as condições da vida,
evidentemente. O trabalho também transforma tanto a natureza como o próprio
homem. A natureza humana, segundo Marx, não é imutável, pelo menos não o é em
suas manifestações. O trabalho desenvolve as faculdades que, sem o concurso dele,
ficariam enterradas na natureza, no reino da não liberdade, diria Hegel. Marx
estava interessado não no trabalho como processo físico, biológico, mas como
manifestação da subjetividade humana. Na medida em que o trabalho é a
manifestação da subjetividade humana, ele se torna uma atividade propriamente
humana. É justamente porque o trabalho é uma atividade finalisticamente
orientada e não uma atividade instintiva que reduzir o operário a simples peça
de um processo de produção que ele, operário, nunca domina pode ser designado
pelo termo alienação. O trabalho
alienado, ou a alienação como característica própria do trabalho no modo de
produção capitalista é justamente a cisão entre o trabalhador e o trabalho.
Essa cisão se exprime como separação e oposição entre o trabalho, de um lado; o
capital e a propriedade fundiária, de outro. Neste texto, não poderei ocupar-me
da alienação como conceito marxiano, tampouco poderia desenvolver, dados os
propósitos fixados, a discussão de outros fenômenos investigados por Marx, tais
como a mais-valia e a conversão da
mercadoria em capital. A abordagem destes e de outros temas tratados por Marx
deverá ser postergada para outra oportunidade.
Como
minha preocupação tenha sido a de investigar a condição do homem enquanto homo faber, será ainda proveitoso
examinar como Marx pensou a relação entre trabalho e sociabilidade. Antes,
porém, de fazê-lo, gostaria de tecer algumas considerações acerca de um ente
universalmente desejado, valorizado, estimado, amado, pelo qual os homo sapiens vivem e em nome do qual
sacrificam tudo, inclusive suas vidas: o dinheiro. As considerações que farei
acerca da realidade do dinheiro se afinam com a teoria construcionista crítica
nas ciências humanas, à luz da qual a realidade social e suas instituições,
incluindo o dinheiro, têm o caráter de ficção simbólica, são constructos
humanos, produzidos pela atividade humana condicionada sócio-historicamente.
Pensando o dinheiro, portanto, como um constructo social e psicológico, como um
artefato humano, pretendo, então, novamente, enfatizar a insignificância
radical da existência humana. Não se segue daí que eu esteja sugerindo que ter
dinheiro não é importante, ou que o dinheiro não torna as pessoas felizes, não
é isso absolutamente. Acontece que o dinheiro é uma criação humana, e só vale
para nós, os animais humanos, que são seus criadores. O dinheiro não vale nada
para um animal não humano, nem para a pedra, ou o mar, nem para as estrelas no
firmamento, nem para as bilhões de
galáxias existentes no Universo, etc. A realidade social é constructo, porquanto ela é sempre obra, é sempre criação humana; e
todas as instituições sociais são constructos, são criações humanas. O dinheiro
também é uma criação humana, um constructo, é o que pretendo fazer ver. Isso
deveria ser um fato óbvio, mas não o é; e quando o é, não produz espanto,
inquietação intelectual com as consequências que seguem dessa obviedade.
3.3.
O dinheiro como constructo social
Consoante
ensina Marx, o dinheiro incorpora em si mesmo a forma universal da riqueza. Já
vemos operar aí um processo simbólico: o dinheiro é símbolo, é signo de algo.
Uma vez que ele não é mais simplesmente meio de troca, mas representa o próprio conteúdo da riqueza, o dinheiro é tanto a
forma e o conteúdo da riqueza como representante universal da riqueza. Em suma,
o dinheiro assume a forma da riqueza, por excelência. Como isso é possível? A
mim me parece espantoso como é possível que, ao dar a outro homo sapiens uma cédula de 20 reais, ou
seja, um pedaço de papel colorido, em cuja superfície se estampa um número, o
nome de um banco, a assinatura do presidente desse banco e do Ministro da
Fazenda, eu obtenha outras coisas para meu uso ou consumo (acesso a metrô,
ônibus, refrigerante, salgado, etc.). Isso é possível devido a um sistema de
crenças, a um sistema de confiança. O vendedor aceita a nota de 20 reais porque
tanto ele quanto eu acreditamos no Banco Central, em seu presidente, no
Ministro da Fazenda, instâncias estas que nos garantem o valor e a
funcionalidade dessa nota de 20 reais.
Os
caçadores-coletores não tinham dinheiro. Cada bando de homens caçava, coletava
e produzia quase tudo de que necessitava. Ainda que alguns se especializassem
em diferentes tarefas, os bens e serviços eram compartilhados numa economia
baseada em favores e obrigações. Depois do início da Revolução Agrícola, as
condições eram quase as mesmas. Uma economia baseada em favores e obrigações
encontra dificuldades ou deixa de funcionar quando é grande o número de
estranhos que tentam cooperar. Como garantir que, ao cuidar de um estranho,
seremos retribuídos por isso? O escambo só é possível e eficiente quando se
troca um número limitado de produtos, mas é ineficiente numa economia complexa.
O escambo é ineficiente, não só porque é difícil calcular, por exemplo, quantas
maçãs equivalem a um par de sapatos, ou a dois quilos de trigo, mas porque,
numa troca, é necessário que os envolvidos queiram obter aquilo que o outro
tenha a oferecer. Se um sapateiro não gosta de maçãs, não serei bem-sucedido ao
oferecer em troca de seus serviços as minhas maçãs, ou ainda, se o que o
sapateiro, no momento em que necessito de seus serviços, quer é um divórcio,
minhas maçãs não lhe serão úteis. Quem sabe um fazendeiro pudesse conseguir que
eu trocasse minhas maçãs com um advogado que goste de maçãs e que esse
advogado, em troca de meu favor, atenda o sapateiro que, por sua vez, em
retribuição, consertria os meus sapatos. Mas, e se o advogado estiver com maçãs
bastantes em casa e necessitar, na realidade, de um corte de cabelo? Esses
exemplos hipotéticos patenteiam não só o fato de que, numa economia complexa, o
escambo não funciona; eles mostram que o dinheiro foi criado como meio
universal de troca que permite que as pessoas convertam quase tudo em
praticamente qualquer coisa. O dinheiro não se resume apenas a moedas e
cédulas. Dinheiro é qualquer coisa (uma concha de cauri, por exemplo.) que as
pessoas estejam dispostas a usar para representar sistematicamente o valor de outras coisas a fim de que
obtenham bens e serviços. Como nota Harari (2018, p. 241), “o dinheiro permite
que as pessoas comprem de maneira fácil e rápida o valor de diferentes
mercadorias (como maçãs, sapatos e divórcios), troquem uma coisa pela outra com
facilidade e armazenem riqueza de forma conveniente”.
Existiram
muitos tipos de dinheiro ao longo da História. Muitos povos prosperaram usando
coisas como conchas de cauri, sal, grãos, tecidos, etc. como unidade monetária.
Portanto, o dinheiro existia muito antes da invenção da cunhagem, que
viabilizou a produção da moeda. As conchas de cauri, por exemplo, funcionaram
como dinheiro por cerca de 4 mil anos em toda a África, sul e leste da Ásia e
leste da Oceania. Mesmo hoje, moedas e cédulas são uma forma rara de dinheiro.
A soma de todo o dinheiro do mundo é de cerca de 60 trilhões de dólares, dos
quais 50 trilhões existem apenas virtualmente em servidores de computador. A
maior parte das transações econômicas é feita mediante a movimentação de dados
eletrônicos de um arquivo de computador para outro, sem que seja necessária a
troca de dinheiro físico.
O
dinheiro, portanto, pode converter quase tudo em qualquer coisa. A saúde é
convertida em justiça quando um médico utiliza o dinheiro que recebe em suas
consultas para contratar um advogado. O sexo se convertia em salvação, quando
prostitutas do século XV, usavam o dinheiro que ganhavam para comprar indultos
da Igreja Católica. Uma vez que o dinheiro viabiliza a conversão, o armazenamento
e o transporte da riqueza de maneira fácil e barata, ele permitiu o surgimento
de redes comerciais complexas e mercados dinâmicos.
Por
que alguém está disposto a servir pizzas a estranhos num rodízio de pizzas? Por
que alguém vende seguros-saúde ou cuida de crianças birrentas e mimadas se tudo
que ganham em troca são pedaços de papel colorido? A resposta a essas questões
é simples, embora não seja óbvia: as pessoas estão dispostas a fazer essas
coisas porque confiam, acreditam num
sistema de imaginação coletiva e no seu produto. Como diz Harari (ibid., p.
245), “a confiança é a matéria-prima com que todos os tipos de dinheiro são
cunhados”. O dinheiro é um sistema de confiança mútua universal. Como
constructo social, o dinheiro só vale e funciona porque homo sapiens estabeleceram historicamente a crença de que um pedaço
de papel ou círculo de metal servem para converter qualquer coisa em outra.
Segundo Harari (ibid., p. 252), “o dinheiro pede para acreditar que outras
pessoas acreditem em algo”. Por causa do dinheiro, pessoas que não se conhecem
ou mesmo que não confiam umas nas outras, podem cooperar de maneira eficaz.
Portanto, como constructo social, o dinheiro é desprovido de valor inerente. O
valor do dinheiro é resultado de processos sociais imaginários que se regulam
por dois princípios simbólicos universais, tais como: 1) convertibilidade universal: com o dinheiro podemos transformar
terras em lealdade, justiça em saúde, violência em conhecimento, e até favores
sexuais em amor verdadeiro. Como dizia Nelson Rodrigues, “o dinheiro compra
tudo, até amor verdadeiro”; 2) confiança
universal: com o dinheiro como intermediário, duas pessoas quaisquer, mesmo
estranhas umas às outras, podem cooperar em qualquer projeto ou atividade.
É
preciso, então, reconhecer que esse animal efêmero, precário e insignificante
na escala evolutiva é o edificador de valor e significado de uma ordem social,
de um mundo histórico que é produto da atividade dos membros de sua espécie. O
mundo humano-social, em toda a sua complexidade e diversidade, é produto da
construção humana, cultural e histórica. Esse mundo só tem valor e importância
para seus autores, já que o próprio valor e significado desse mundo é uma
criação deles. Como ensina Filho (2017, p. 31-32), “a realidade social
existente (incluindo as dimensões imaginárias, simbólicas e subjetivas) é uma
construção que decorre das práticas dos indivíduos, grupos e classes sociais,
instituições em sua contínua atuação nos vários espaços em que se distribuem
nas diferentes sociedades e épocas”.
Finalmente,
cumpre dizer que o dinheiro, se prestando à conversão universal de qualquer
coisa em outra, pode, como acontece com frequência, corromper até a raiz a
rede imaginária de valores “sagrados” que sustentam e nutrem as relações
humanas. Nesse tocante, nos chama a atenção Harari (ibid., p. 254):
“O
dinheiro tem um lado obscuro. Embora
gere confiança universal entre estranhos, essa confiança não é investida em
humanos, comunidades ou valores sagrados, mas no próprio dinheiro e nos
sistemas impessoais que lhe servem de apoio. Não confiamos no estranho, ou no
vizinho – confiamos na moeda que possuem. Se suas moedas acabarem, acaba a
nossa confiança. Ao mesmo tempo em que o dinheiro derruba as barragens de comunidade,
religião e Estado, o mundo corre o risco de se tornar um mercado enorme e um
tanto cruel”.
3.4. Sociabilidade e trabalho
Para
Marx, a categoria trabalho, é pensada
tanto como atividade quanto como produção ou produção material. Atividade é
sinônimo de trabalho, mas o conceito de produção apresenta duas acepções. Como
sinônimo de trabalho, produção compreende a atividade dos indivíduos. Em
sentido lato, produção significa atividade dos indivíduos (trabalho) e
metabolismo social. Nessa última acepção, a produção inclui as relações de que
participam os produtores no interior de um processo de produção e a reprodução
de suas vidas. Para que haja produção, é necessário que os indivíduos mantenham
entre si relações sociais, as quais são sempre mediadas pela linguagem. As
relações que os homens mantém com a natureza, mediadas pela produção, são
sempre imediatamente relações entre os homens, porque os homens não consomem
produtos derivados diretamente da natureza, mas produtos do trabalho humano.
Portanto, as condições materiais naturais, as condições técnicas e sociais herdadas, tudo isso define, a cada
momento, em cada lugar, uma maneira determinada de produzir. A isso Marx chama modo de produção. O modo de produção
designa, pois, o estágio de desenvolvimento em que se encontram as forças
produtivas responsáveis pela produção social da existência humana. Essas forças
produtivas compõem as relações sociais que os homens estabelecem entre si na
produção social de sua existência. Essas relações são necessárias e independem
da vontade deles. O conjunto dessas relações forma a infraestrutura econômica,
o fundamento real, sobre o qual se erige a superestrutura jurídica e política.
Produção, portanto, em sentido estrito, corresponde ao trabalho dos indivíduos,
mas, em sentido amplo, engloba todo o processo de produção social da qual faz
parte, no caso do processo de produção capitalista, a circulação.
Para
Marx, o homem é um ser social; por conseguinte, a produção humana se define
fundamentalmente por seu caráter social. A sociabilidade é a característica
determinante de todo ato humano de produzir; portanto, do próprio trabalho. O
que cada indivíduo é depende do conjunto de relações sociais presentes e
pretéritas que eles estabelecem ou estabeleceram entre si enquanto indivíduos
ativos e engajados no processo de produção de sua existência.
Sociedade
e indivíduos não são, portanto, realidades separadas e externas uma à outra;
também não se trata de crer haver uma relação de sobredeterminação do social no
individual. Sociedade e indivíduos constituem dois momentos distintos de uma
mesma realidade, qual seja, a que compreende as interações sociais entre os
homens na produção e na manifestação de suas vidas. A sociedade é o momento
mais geral da expressão do modo de ser individual cunhado nas interações
sociais; e o individual é esse mesmo modo de ser como síntese particular,
subjetiva, concreta e empírica do conjunto da sociabilidade. A sociabilidade
consiste, portanto, numa série de relações estabelecidas e renovadas pelos
indivíduos em seus atos particulares. A partir do reconhecimento do caráter
fundante da sociabilidade, Marx pensará o homem como ser ativo, como ser social
que se autoconstitui, produzindo sua própria vida na sociabilidade. O trabalho,
compreendido à luz do horizonte da sociabilidade, é visto como a determinação
constitutiva do ser dos homens.
A
sociedade, para Marx, é o conjunto das interações que, necessariamente, medeia
a relação entre o homem e o mundo. Ela é a condição de possibilidade da
produção e da autoprodução dos homens e da própria existência humana. Pelo
trabalho, portanto, os indivíduos não só se reproduzem e produzem a si mesmos,
produzindo sua própria vida material, mas também produz e reproduz sua própria
espécie, de tal sorte que a produção humana é, fundamentalmente, produção para
o outro. É porque são diversas as necessidades dos indivíduos que eles dependem
uns dos outros para satisfazê-las. O próprio intercâmbio produtivo faz surgir
as diversas necessidades e esse mesmo intercâmbio as amplia. O intercâmbio
produtivo se inscreve no afastamento do homem em relação às suas determinações
naturais. O trabalho, por conseguinte, serve não só para que os indivíduos
satisfaçam suas necessidades próprias, mas também, sobretudo, para que
satisfaçam as necessidades uns dos outros.
Para
Marx, o homem é originariamente um animal gregário; e ele só se individualiza
no processo histórico. A reciprocidade é uma qualidade inerente ao agir humano,
e o indivíduo só pode satisfazer a sua necessidade e as necessidades do outro
por meio de seu agir próprio, que é o trabalho. O homem só se constitui como
ser social com o desenvolvimento histórico de sua atividade laboral.
É
importante ter em vista o fato de que a individualização decorre de um processo
histórico, em cujo centro está a produção. Quanto mais nos afastamos da
modernidade, tanto menos o indivíduo existe separado do todo, tanto menos
autonomia ele tem. Nas formações sociais pré-modernas, os indivíduos estão
subsumidos na coletividade, da qual dependiam suas vidas. A individualização é
resultado de todo um desenvolvimento histórico do modo de produção da
existência dos homens. Esse desenvolvimento acarretará certa desvinculação do
indivíduo relativamente às suas condições originárias de existência. O
surgimento do indivíduo, tal como o conhecemos em nossas sociedades modernas
pós-industriais, resulta da distinção do homem em relação às condições
objetivas do trabalho.
Por
fim, cabe acrescentar que, para Marx, a subjetividade humana se expressa num
objeto produzido por ela e a objetividade do produto é a materialização externa
da subjetividade do trabalhador. Pelo trabalho, os seres humanos humanizam a
natureza. Nesse sentido, o trabalho é práxis,
a saber, ação na qual o agente e o produto da ação são idênticos, porquanto o
agente se exterioriza no produto da ação ao mesmo tempo que o produto traz a
marca da capacidade criadora do homem, isto é, traz a marca de sua subjetividade.
Obviamente, no modo de produção capitalista, com a divisão social do trabalho
que lhe é própria, o trabalho deixa de ser a livre expressão da subjetividade
humana, para tornar-se uma atividade opressora, que o esmaga. A divisão social
do trabalho não consiste apenas numa simples divisão de tarefas, mas é a
manifestação da existência da propriedade, ou seja, da separação entre a
propriedade, que é a posse das condições e dos instrumentos de trabalho, e o
próprio trabalhador, despojado dessas condições. A propriedade é que estabelece
os meios de produção (condições e instrumentos do trabalho) como algo distinto
das forças produtivas[5],
as quais recobrem as forças materiais (tanto a força de trabalho humana quanto
os instrumentos de trabalho e demais recursos) envolvidos na produção.
Conclusões
A
insignificância radical da existência,
mais do que uma disposição de humor descerrada pela intuição do caráter absurdo
da existência, é a conclusão razoável a que chega todo aquele que, levando em
conta os resultados das ciências naturais, como a biologia e a física, de um
lado; e a lição da filosofia, das ciências humanas, como as ciências sociais,
antropologia cultural e a sociologia, de outro, não reluta em aceitar 1) que a
natureza (e seus fenômenos, muitas vezes, hostis e destruidores) é indiferente
ao nosso bem-estar e felicidade; 2) que a realidade social é fabricada, é um
constructo humano; é um grande edifício imagético-simbólico produtor de ficções
que dão certa solidez, consistência e
sustentação à precariedade da existência humana. A insignificância radical da
existência humana esteia-se na constatação de que a espécie homo sapiens sapiens é produto de um
longo processo de evolução cujo modus
operandi é um mecanismo cego e sem finalidade. Todas as evidências disponíveis
apontam na direção de que a Natureza e as forças físicas não estão nem aí para
os nossos desejos de felicidade e prosperidade, não estão nem aí para o nosso
sofrimento; ao contrário, uma parte considerável de nosso sofrimento é causada
por entes ou fenômenos naturais, como vírus, bactérias, terremotos, vulcões, os
raios ultravioletas que provocam câncer, etc. Para fazer face à natureza, que
demonstra não ter qualquer preocupação ou consideração pelos organismos vivos
que dela se originam, o homem, que não ocupa nenhum lugar privilegiado na
evolução das espécies, precisa construir o mundo da cultura, ou o mundo histórico,
através de sua atividade, que é o trabalho. A crença dos homo sapiens em que a sua existência tem sentido metafísico, tem
algum significado último é um efeito de processos sócio-históricos, culturais, ideológicos
em cuja base está esse mundo histórico construído pela atividade desses
organismos biológicos efêmeros e insignificantes, quando os consideramos
enquanto máquinas de sobrevivência que, acreditando realizar uma grande obra
através da reprodução, não fazem senão garantir a sobrevivência de seus genes e
a perpetuação da espécie. Somente os genes gozam do que se aproxima de uma
imortalidade, ao passo que os indivíduos podem lograr viver por apenas algumas
décadas.
A crença segundo a qual o trabalho
dignifica o homem se produz e se reproduz numa formação discursiva que combina
a ética cristã-protestante com a ideologia capitalista-(neo)liberal. Se o
trabalho conferisse tal alegada “dignidade” ao trabalhador, questiona Sponville
“por que não deploramos os poucos bilionários que vivem de renda?”. (Sponville,
2007, p. 60). Ora, quem preferiria uma suposta dignidade à custa de um trabalho
penoso a viver como um bilionário? Por isso, é novamente Sponville quem nos
adverte:
“Engana-se sobre o
trabalho quem vê nele apenas um fim em si mesmo ou mesmo um valor moral. É o
que provam as férias e o salário. Trabalhar? É bem preciso. Mas quem o faria de
graça? Quem não prefere o repouso, o lazer, a liberdade? O trabalho,
considerado em si mesmo, não vale nada. Por isso é pago. Ele desgasta. Por isso
pede repouso. Não é um valor (moral); por isso tem um valor (mercantil). Não é
um dever. Por isso tem um preço” (ibid., p. 58).
O
que quer um desempregado, acima de tudo, não é um trabalho, mas o dinheiro. É
claro que ele também busca, pelo trabalho, inserir-se na ação coletiva,
integrar-se de modo eficaz no processo de constituição do mundo humano, que é
histórico - mundo, no entanto, insignificante numa escala cosmológica. Que o trabalho quase sempre seja uma condição necessária para tanto
não resta dúvida. No entanto, se esse mesmo desempregado ganhasse na loteria, muito
provavelmente não hesitaria em deixar de trabalhar, preferindo talvez outra
forma de integração. Certo me parece é que, livre do jugo do trabalho, esse desempregado bilionário fruiria a banalidade do real numa imersão privilegiada e distinta da maioria da humanidade, para quem "a vida é uma tarefa que devemos desempenhar laboriosamente e, nesse sentido, a palavra defunctus é uma bela expressão" (Schopenhauer, 2014, p. 28).
Uma abordagem filosófico-existencialista
do trabalho ou da condição do homem como homo
faber não só corrobora a opinião comum de que grande parte do ônus do
ingresso do indivíduo na vida adulta consiste na redução do viver à necessidade de
trabalho como meio de garantir a subsistência, mas também, quando feita à luz
do horizonte da insignificância radical
da existência, convida-nos à Lucidez que descerra aos que a ela chegam uma
nauseante e impiedosa verdade, a qual se expressa na seguinte fórmula de
Schopenhauer:
“Tudo
o que procuramos colher resiste-nos; tudo tem uma vontade hostil que é preciso
vencer (...) a vida do homem é um combate perpétuo, não só contra males
abstratos, a miséria ou o aborrecimento, mas também contra os outros homens. Em
toda parte encontra-se um adversário: a
vida é uma guerra sem tréguas, e morre-se com as armas na mão”. (ibid., 2014, p. 26).
[1] Cioran, 2011, p.
26.
[3]
Para os autores clássicos latinos, a expressão senso comum tinha o significado de costume, gosto, modo comum de
viver ou de falar. Cícero, por exemplo, censurava quem rejeitasse o costume do
senso comum. Sêneca, por seu turno, afirmava ter a filosofia o objetivo de
desenvolver o senso comum. Modernamente, por senso comum, entende-se todo um conjunto de crenças, saberes
práticos, opiniões, valores comumente aceitos como inquestionáveis que se
adotam sem que sejam submetidos ao crivo da reflexão crítica. A experiência de
mundo do senso comum supõe uma familiaridade com a ordem das coisas e com o
mundo. Para o senso comum, o mundo se afigura como um mar tranquilo de
evidências. Contrariamente ao senso comum, a filosofia vem mostrar que o mundo
está longe de ser esse mar tranquilo de evidências.
[5]
O conceito de forças produtivas, como
outras categorias utilizadas por Marx, não é claro. As forças produtivas estão
intimamente ligadas às relações sociais, mas não se vê, como pretende Marx,
como elas se distinguem.