O abuso teológico
“Por que será que todo pseudointelectual,
torna-se ateu? Seria mais interessante fazer o caminho inverso. A ciência tenta
explicar as leis que regem o universo, mas não consegue explicar quem as criou.
Somos e seremos sempre responsáveis pelos nossos atos, atitudes, escolhas,
ações e omissões perante a vida." Aquilo que VOCÊ plantar, também
ceifará." Mas por falta de sabedoria ou por vaidade, orgulho, narcisismo é
fácil por na conta de Deus.”
(Anônimo)
O leitor que acompanha meus textos desde que decidi
trazê-los a lume neste blog sabe que um dentre os meus interesses intelectuais
é o estudo da linguagem. Sabe que venho desenvolvendo há três anos minha
pesquisa de doutoramento em Linguística. Portanto, sabe também que me dedico à leitura de textos vinculados a essa área do conhecimento humano. No entanto,
esse mesmo leitor sabe que me interesso por outras áreas do conhecimento humano
também, entre as quais está a filosofia e – surpreendentemente ou não – a
teologia.
Estava
eu, então, lendo prazerosamente um livro de teologia. O livro traz na capa o
título Teologia para todos – Manual de
iniciação teológica a partir de seus principais temas (2009). O autor
chama-se Celso Pinto Carias e é doutor em teologia. A leitura prosseguia sem
muitas interrupções a que se seguem, normalmente, notas de questionamento, até
que comecei a ler a seção intitulada de O
problema do mal e do sofrimento – um problema que ocupou a mente dos
antigos judeus e dos proto-cristãos (séc. I a.C) e que frequentou largamente a
pena dos autores bíblicos. O próprio autor reconhece que:
“A angústia diante do sofrimento e da realidade do
mal no mundo sobretudo quando não se encontra alguma justificativa para
explicar o sofrimento de alguém (ex. “está pagando o mal que fez”), tem
acompanhado o ser humano desde tempos mais distantes. Na Bíblia, o livro do
Gênesis possui 11 capítulos sobre isto. Temos também na Sagrada Escritura o
livro de Jô. Em toda história da Igreja encontraremos alguém preocupado com
esta questão. Santo Agostinho, por exemplo, que formulou a doutrina do pecado
original tendo esta preocupação como pano de fundo”.
(p. 29)
No que
se segue ao trecho acima transcrito, o autor nos lembra que a dor e o
sofrimento de Jesus Cristo deve nos inspirar a enfrentar nossos próprios
sofrimentos. Ele prefere não se deter no desenvolvimento deste ponto, adiando a
tarefa para outro capítulo. Seguirá lembrando a limitação da natureza humana e
adverte sobre o erro, produto da vaidade humana, de pretender igualar-se a
Deus. Escreverá “a busca da igualdade com Deus é o pecado dos pecados (...)”
(ibid.id.).
Até
aqui, contentei-me em me situar na retórica teológica cristã que insiste em nos
convencer de que Deus e homem são ontologicamente distintos. Contemplada mais
de perto a questão da relação entre Deus e homem, não será difícil concluir que
Deus e homem é uma coisa só. Convido o leitor a ler Feuerbach, em A Essência do Cristianismo. Insisto, com
Feuerbach, que Deus não é senão a essência do homem projetada para fora de si e
adorada como Deus.
Chegara
o momento em que precisei pôr freio ao meu espírito e ponderar. Após lembrar o
pecado original extensivo a toda humanidade (uma doutrina esdrúxula cunhada por
Santo Agostinho, sob cujo jugo vivem simbolicamente todos os seres humanos; afinal, somos
culpados por um ‘crime’ inventado, fantasioso, que, na verdade, não cometemos - digo nós, que pertencemos a gerações posteriores aos primeiros humanos, representados
nas personagens mitológicas Adão e Eva. Do ponto de vista moral, é uma bela
doutrina indecente!), eis o que nos escreve a o autor:
“E o pecado não deixa perceber que a questão
fundamental não é o sofrimento, e sim quais são as condições humanas para
enfrentá-lo”.
(p. 30)
Já
havia notado, alhures, que o conceito de ‘pecado’ serve de expediente para flagelação psíquica e manutenção da obediência do rebanho. Não
é difícil entender essa concepção de pecado. Teologicamente, e Carias insiste
nisto, o pecado leva à desumanização, mesmo quando por desumanização entendemos
a tentativa do ser humano de igualar-se a Deus (que é, segundo o autor, o maior
dos pecados). Compreendido neste domínio discursivo, o pecado é todo ato que
contraria a vontade de Deus. Estar em condição de pecado impede que nos
aproximemos de Deus. O pecado é uma criação teológica e, por ele, busca-se
captar as inclinações más de nossa natureza. Não obstante a aparente coerência
do conceito quando considerado no interior da totalidade doutrinária, se
contemplado criticamente, percebe-se que ele é um poderoso instrumento ideológico,
ou seja, de dominação, de submissão, mediante o qual uma classe que detêm o
poder espiritual (as autoridades eclesiásticas) mantêm obediente toda uma
imensa comunidade de indivíduos devotos. Ora, a lógica subjacente é a seguinte:
‘é preciso sentir-se pecador, reconhecer-se pecador para lograr a graça de
Deus’. Por isso, o brio, a autonomia intelectual, a busca por emancipação da consciência são
vistos de modo negativo aos olhos da Igreja. A aceitação da condição de pecado
leva à aceitação da relação de dependência para com Deus ou a Igreja.
Dispensando
olhares sobre o trecho acima referido, claro me parece que o autor se esquiva
a tratar da questão do sofrimento, à luz de uma doutrina que reza a existência
de um Deus infinitamente bom. Note-se bem que ele escreve “a questão
fundamental não é o sofrimento, e sim quais são as condições humanas para
enfrentá-lo”. Para o autor o fato inegável da intensidade e extensão do
sofrimento no mundo não constitui uma questão séria para a teologia ou para a
fé. E de modo sub-reptício, tenta justificar a cegueira para o reconhecimento
da “questão fundamental” usando-se do expediente ideológico do pecado. Para o
autor, não vemos qual é a questão a ser enfrentada porque estamos imersos em
pecado. Segundo ele, o pecado nos impede de discernir entre o que é dispensável
e o que é fundamental. É evidente que encontrar os meios para enfrentar as
dores e os sofrimentos é tarefa que cabe a todos nós e constitui matéria para
longas reflexões filosóficas, sociológicas, antropológicas, etc. Os especialistas têm de se ocupar em discutir sobre os meios mais eficazes para
enfrentar o sofrimento e os teólogos até podem tomar parte nessa discussão, mas
não podem furtar-se a pensar sobre o problema do mal ou do sofrimento, visto
que tal problema põe, ao menos, sob suspeita sua própria disciplina. Quem
teoriza sobre a existência de um Ser bom e onipotente e defende essa teoria
como uma verdade inabalável tem de enfrentar a grande e extenuante questão do
sofrimento. Notem bem que eu escrevi “põe sob suspeita”, apenas para atenuar o
impacto que esse problema causa no sistema teológico. Na verdade, esse problema atinge o núcleo do sistema. Abalando o
núcleo, tudo o mais desmorona. Se não se é capaz de oferecer um bom argumento
para explicar como é possível conciliar a crença na existência de um Deus bom,
amoroso, providente e todo-poderoso com as evidências da grande quantidade de
sofrimento no mundo, tudo o mais que se diga sobre Deus soará como estrídulos
enfadonhos e nauseantes.
E
quando não se imagina que as coisas podem piorar, elas pioram. O parágrafo
seguinte, que transcrevo integralmente, traz-nos boas razões para refletir
sobre quão desonestos, intelectualmente, podemos nos tornar ao tentar sustentar
uma visão de mundo fantasiosa e incompatível com o que sabemos sobre o modo como é a realidade:
“Com os olhos fechados pelo pecado, introduzimos no
mundo o mal. Introduzimos o mal na ânsia de, utilizando o poder da
inteligência, querer ocupar o lugar de Deus. Assim, criamos uma rede de
distribuição do mal, uma concorrência na procura de estarmos acima de tudo e de
todos. É o ser humano, e não Deus, o
autor do mal. O mal não é sofrer. O
mal não é ver uma criança sofrendo. O mal é não sermos capazes de nos
ajudar diante da dor e do sofrimento. Não sermos capazes de reconhecer que o
caminho humano é a busca constante de superação de si mesmo, pois isto nos
capacita para o encontro definitivo com Deus”
(p. 30)
(grifo meu)
Tenho
insistido que a emancipação intelectual em face da doutrinação religiosa
depende de que apreciemos com acuro os discursos religiosos. Todo discurso é um
momento entre outros momentos da prática social. O discurso não só constitui elementos
de outras práticas sociais, como também é influenciado por eles. Analisando um
discurso, pode-se perceber como são internalizados e articulados outros
momentos da prática social, tais como relações sociais e ideologias (entendidas aqui como 'construções/ representações da realidade que servem para a produção, reprodução e transformação de relações de dominação'). Todo
discurso reconstrói o real. Vejamos como o discurso do teólogo, tendo em conta
o trecho citado, constrói um modelo de realidade que pretende servir como uma forma, entre outras tantas, de interpretar e compreender o mundo.
O
parágrafo inicia-se com a crença de que o pecado é que nos levou a “introduzir
o mal no mundo”. O pecado nos cega. O autor responsabiliza o ser humano pela
existência do mal no mundo. Nesse sentido, ele é um continuador da retórica do
aviltamento da condição humana, da culpabilidade que pesa sobre a alma de todos os homens, mulheres e crianças; de uma retórica que perpassa toda a tradição
cristã. Assim, reproduz-se a crença de que somos culpados pela existência do mal no
mundo. O autor não define o conceito de mal, não faz alusão, por exemplo, à
distinção filosófica entre mal moral e mal natural. O primeiro infligido por certos seres humanos uns aos outros; o segundo proveniente da natureza (terremotos,
furacões, tsunamis, bactérias, vírus, etc.). Também desqualifica a
inteligência, atribuindo a ela um papel negativo. O homem é culpado por fazer
mal uso da inteligência. Decerto, empregar a inteligência para construir armas
nucleares é fazer mal uso dela. O século XX nos legou as dolorosas e
aterradoras consequências dessa verdade. Todavia, a mesma inteligência que pode ser usada para aniquilar toda a vida no planeta, também é usada em nosso benefício, pela produção de mais conhecimento sobre o mundo, conhecimento indispensável à nossa sobrevivência num planeta, não raro, hostil (p. ex., é a inteligência que nos permitiu a construção de instrumentos que tornam possível prever a chegada de furacões).
No entanto, o que preocupa o teólogo é o uso da inteligência orientado para destronar a Deus. Também o autor censura a competição egoísta e sem peias, que leva as pessoas a desejar mais poder, sucesso e status. A questão da competitividade num mundo do capitalismo tardio, caracterizado, mormente, pela concorrência e consumismo, é uma questão que deve ser vista à luz da filosofia (Ética) e, especialmente, da sociologia, sem que seja necessário procurar os culpados. Um biólogo evolucionista também poderia propor uma explicação para tal comportamento, remontando às condições de existência de nossos antepassados, nas quais havia a necessidade de competir cada vez mais por recursos escassos, dado o aumento vertiginoso da população, o que seria uma explicação mais próxima da verdade do que a explicação teológica baseada na culpabilidade pelo pecado. Tendemos à competição porque a seleção natural nos programou para lutar pela sobrevivência num tempo em que corríamos o risco constante de nos tornar comida de outros animais. Disso não se segue que devemos ignorar a influência que sobre nós exerce, nesse tocante, um sistema econômico que estimula práticas de competição. Por isso, como disse acima, acredito que a questão da competitividade entre os seres humanos pode ser mais bem contemplada pelos filósofos, sociólogos, aos quais se pode acrescentar os antropólogos, psicólogos, economistas e historiadores.
No entanto, o que preocupa o teólogo é o uso da inteligência orientado para destronar a Deus. Também o autor censura a competição egoísta e sem peias, que leva as pessoas a desejar mais poder, sucesso e status. A questão da competitividade num mundo do capitalismo tardio, caracterizado, mormente, pela concorrência e consumismo, é uma questão que deve ser vista à luz da filosofia (Ética) e, especialmente, da sociologia, sem que seja necessário procurar os culpados. Um biólogo evolucionista também poderia propor uma explicação para tal comportamento, remontando às condições de existência de nossos antepassados, nas quais havia a necessidade de competir cada vez mais por recursos escassos, dado o aumento vertiginoso da população, o que seria uma explicação mais próxima da verdade do que a explicação teológica baseada na culpabilidade pelo pecado. Tendemos à competição porque a seleção natural nos programou para lutar pela sobrevivência num tempo em que corríamos o risco constante de nos tornar comida de outros animais. Disso não se segue que devemos ignorar a influência que sobre nós exerce, nesse tocante, um sistema econômico que estimula práticas de competição. Por isso, como disse acima, acredito que a questão da competitividade entre os seres humanos pode ser mais bem contemplada pelos filósofos, sociólogos, aos quais se pode acrescentar os antropólogos, psicólogos, economistas e historiadores.
O
teólogo, seguindo uma linha de argumentação já consagrada neste domínio
discursivo, e fartamente propalada pelos leigos religiosos (‘leigos’ porque não
formados em matéria teológica), desculpa a Deus pela existência do mal no
mundo, fazendo recair a culpa sobre o homem. O trecho em negrito é bastante
claro. Escreve o autor “é o ser humano, e não Deus, o autor do mal”. Eis a
pedagogia da culpa claramente sustentada aqui. Lembro que o autor não distingue
entre as duas categorias de mal, a que me referi anteriormente: se o mal moral
ou o mal natural. No que toca ao mal moral, a tendência é dispensar sobre os
seres humanos toda a culpa, desresponsabilizando a Deus (tal concepção da natureza humana como pecadora tem uma longa tradição no cristianismo, e encontra sua forma teórica na teologia de Santo Agostinho). O argumento do
livre-arbítrio ganha aqui terreno. Assim, argumenta-se que o homem tem o poder
de escolher entre praticar o bem e o mal, tendo escolhido fazer o mal, não fez
senão uso do seu livre-arbítrio. Um mal uso, diga-se de passagem. A questão do
livre-arbítrio, quando considerada na problemática teológica, não se coloca em
termos de escolhas ordinárias entre tomar uma xícara de café e uma xícara de
chá (embora estudos neurocientíficos sugiram que o cérebro escolha por nós http://veja.abril.com.br/noticia/ciencia/o-livre-arbitrio-nao-existe-dizem-neurocientistas). Recorre-se ao
argumento do livre-arbítrio para desculpar a Deus pelos maus atos perpetrados
pelos seres humanos. O livre-arbítrio é trazido à cena do debate, geralmente, para explicar, com cômoda simplicidade, os maus atos humanos.
Parte-se
do pressuposto de que temos realmente livre-arbítrio. Mas esse pressuposto pode
ser questionado. Aqui no Brasil não podemos nos negar a participar como mesário
nas eleições, caso sejamos intimados a exercer esta função. Viver em sociedade pressupõe viver em
condições caracterizadas por coerção, pressupõe viver segundo regras,
convenções e leis estabelecidas. Quando atentamos para a composição da palavra
“livre-arbítrio”, reconhecemos aí a ideia de que podemos agir livremente
segundo a nossa vontade. Tal concepção de comportamento é incompatível com o que acreditamos ser necessário à boa
convivência em sociedade. Toda vontade sofre algum grau de coerção.
O
problema do mal moral tem mobilizado especialistas de diversas áreas
(neurocientistas, biólogos, psicólogos, psiquiatras, sociólogos, filósofos...)
na tentativa de compreender as motivações que levam as pessoas a infligir
sofrimento, inclusive a matar. Querer explicar o problema sugerindo que o mal
moral é mera consequência do mal uso do livre-arbítrio é esquivar-se a pensar
seriamente sobre um dos aspectos mais intrigantes da natureza humana: a prática do mal
voluntariamente. A razão é antes uma forte aliada do que um obstáculo. No que toca à influência de nossa capacidade racional na manifestação de comportamento agressivo, Zillmann (Grandes questões da ciência (2010)) advoga:
“(...) a racionalidade não só deixa de proporcionar
um antídoto eficaz contra a violência, como é também a causa direta de inúmeros
atos de violência perpetrados por seres humanos uns contra os outros. É nossa
capacidade de raciocinar que nos diz que usurpar os valores de terceiros, de um
modo que consiga minimizar ou contornar inteiramente as repercussões, é uma fórmula
vitoriosa. Em consonância com isso, nossas aptidões antecipatórias são
utilizadas para construir estratégias que tornem compensadora a violência. Elas
não apenas deixam todos os indivíduos expostos ao risco de coagir outros por
meio de atos agressivos, como também inspiram a violência organizada e a guerra”.
(p. 227)
Um exemplo de como nossa capacidade de raciocinar pode nos auxiliar no cometimento de ações atrozes contra outrem é o caso de crimes premeditados. A razão permite ao homicida planejar os meios pelos quais matará sua vítima. Pela razão, criminosos podem planejar como assaltarão um banco monitorado por câmeras de vigilância e ocupado por seguranças armados.
O autor lembra ainda que o próprio senso de justiça pode imbuir-nos sentimento de agressividade, desencadeando em nós atos de violência:
Sabe-se que nossas crenças orientam nossos comportamentos. Crenças exercem um intenso poder sobre nosso componente emocional. Para cada emoção que somos capazes de sentir, existe uma crença capaz de acentuá-la ou inflamá-la (Harris, 2009). Ter em conta a influência direta que nossas crenças exercem sobre nossas emoções é fundamental para que compreendamos por que as pessoas são capazes de cometer atos hediondos de violência, como, por exemplo, atentados com carros-bomba. Ajuda-nos também a entender como é possível que se cometam crimes em nome de Deus. Em A morte da fé (2010), Sam Harris adverte-nos sobre as consequências nefastas que podem ser produzidas por nosso comportamento, quando orientado por crenças que resistem a alguma forma de argumentação que vise a evitá-las:
Vê-se que não podemos subestimar a importância das convicções e das crenças como fatores que determinam o comportamento humano, especialmente o comportamento que engendra violência. Harris nos mostra que o grau de intensidade com que tais convicções atingem as pessoas pode ser tal, que elas se tornam resistentes a alguma forma de diálogo ou argumentação que vise a evitar as prováveis consequências indesejáveis previstas num comportamento prefigurado em seu conjunto de crenças. Da argumentação desenvolvida por Harris nesse trecho, pode-se depreender, sem dificuldade, que as guerras qualificadas de "religiosas" são, na verdade, um exemplo de guerra de ideias.
Não se pode negar o fato de que, uma vez admitindo que nossos comportamentos são desencadeados pelo grau de influência que nossas crenças exercem sobre nossas emoções (emoções nos movem), a afirmação de que agir de forma a provocar o mal é tão-só uma questão de livre-arbítrio torna-se uma maneira superficial e cômoda de entender a natureza humana.
Para mim – e nesse tocante, acompanho Freud, Nietzsche e toda uma comunidade de biólogos , neurocientistas e psicólogos – o livre-arbítrio é uma ilusão. Por um lado, porque nossas ações, que são sociais, se dão em espaços coercitivos (elas precisam pautar-se por um código moral e jurídico). Por outro lado, o reconhecimento da influência da hereditariedade, das crenças e convicções e a descoberta do inconsciente puseram sob suspeita a ideia, disseminada pela mentalidade teológica, de que atuamos de modo totalmente livre e voluntário.
O autor lembra ainda que o próprio senso de justiça pode imbuir-nos sentimento de agressividade, desencadeando em nós atos de violência:
“Os conceitos morais de equidade e retaliação
constituem grandes fontes de agressividade. As comparações em termos de justiça
social que nos situam no extremo desfavorecido das recompensas, a despeito de
envidarmos esforços equiparáveis, causam enfurecimento e, por isso, instigam à
agressão. A violação de nosso senso de justiça exige retaliação. Se formos
injustiçados, devemos “ir à forra”. O desejo de retaliar, para corrigir o que
está errado, frequentemente leva a choques interpessoais. Muitas vezes, as
guerras são travadas porque alguém convence a população de que as humilhações
sofridas no passado não podem ficar impunes. Vez por outra, até a perpretação
das mais vil atrocidades é interpretada como uma imposição moral, habitualmente
referida à autoridade divina”.
(p. 228)
Sabe-se que nossas crenças orientam nossos comportamentos. Crenças exercem um intenso poder sobre nosso componente emocional. Para cada emoção que somos capazes de sentir, existe uma crença capaz de acentuá-la ou inflamá-la (Harris, 2009). Ter em conta a influência direta que nossas crenças exercem sobre nossas emoções é fundamental para que compreendamos por que as pessoas são capazes de cometer atos hediondos de violência, como, por exemplo, atentados com carros-bomba. Ajuda-nos também a entender como é possível que se cometam crimes em nome de Deus. Em A morte da fé (2010), Sam Harris adverte-nos sobre as consequências nefastas que podem ser produzidas por nosso comportamento, quando orientado por crenças que resistem a alguma forma de argumentação que vise a evitá-las:
“A relação entre crença e comportamento aumenta
consideravelmente a importância do que está em jogo. Algumas premissas são tão
perigosas que o ato de matar pessoas que acreditem nelas pode até se tornar ético.
Isso pode parecer uma afirmação extraordinária, mas apenas enuncia um fato
comum sobre o mundo em que vivemos. Certas
convicções posicionam as pessoas que as adotam além do alcance de qualquer
forma pacífica de persuasão, ao mesmo tempo que as inspiram a cometer atos de
extraordinária violência. Na verdade, não há como argumentar com certas
pessoas. Se elas não puderem ser capturadas, e em geral é o que acontece,
alguém que normalmente é tolerante pode se sentir justificado a matá-las em legítima
defesa. Foi o que os Estados Unidos tentaram no Afeganistão, e é isso que nós e
outros poderes ocidentais tendemos a repetir em outros lugares do mundo
muçulmano, a um custo ainda maior para nós e para os inocentes em outros países.
Continuaremos a derramar sangue devido a
algo que é, no fundo, uma guerra de ideias”.
(p. 59)
(grifo meu)
Vê-se que não podemos subestimar a importância das convicções e das crenças como fatores que determinam o comportamento humano, especialmente o comportamento que engendra violência. Harris nos mostra que o grau de intensidade com que tais convicções atingem as pessoas pode ser tal, que elas se tornam resistentes a alguma forma de diálogo ou argumentação que vise a evitar as prováveis consequências indesejáveis previstas num comportamento prefigurado em seu conjunto de crenças. Da argumentação desenvolvida por Harris nesse trecho, pode-se depreender, sem dificuldade, que as guerras qualificadas de "religiosas" são, na verdade, um exemplo de guerra de ideias.
Não se pode negar o fato de que, uma vez admitindo que nossos comportamentos são desencadeados pelo grau de influência que nossas crenças exercem sobre nossas emoções (emoções nos movem), a afirmação de que agir de forma a provocar o mal é tão-só uma questão de livre-arbítrio torna-se uma maneira superficial e cômoda de entender a natureza humana.
Para mim – e nesse tocante, acompanho Freud, Nietzsche e toda uma comunidade de biólogos , neurocientistas e psicólogos – o livre-arbítrio é uma ilusão. Por um lado, porque nossas ações, que são sociais, se dão em espaços coercitivos (elas precisam pautar-se por um código moral e jurídico). Por outro lado, o reconhecimento da influência da hereditariedade, das crenças e convicções e a descoberta do inconsciente puseram sob suspeita a ideia, disseminada pela mentalidade teológica, de que atuamos de modo totalmente livre e voluntário.
Quando
se põe em cena a figura de Deus, é necessário lidar com algumas implicações
que, do contrário, não existiriam. Por exemplo, se Deus criou os seres
humanos, que responsabilidade tem ele sobre os atos dos psicopatas? Podem eles
escolher não infligir sofrimento a outrem? Ora, sabemos que a psicopatia torna
seu portador incapaz de restringir ou controlar certos impulsos anti-sociais. O
psicopata é incapaz de se compadecer do sofrimento de sua vítima. A psicopatia
parece ter uma base genética. Novas técnicas de mapeamento cerebral permitem
reconhecer diferenças entre o cérebro de um psicopata e de uma pessoa que não
tem pré-disposição à psicopatia.
Uma
pessoa que rouba um alimento, dada a sua condição de extrema pobreza, é
compelida pela fome, ao fazê-lo. Sua ação de roubar é motivada por uma pulsão:
ela precisa sobreviver; não tem escolha. E aproveito para considerar duas
questões: a moral e o livre-arbítrio. Considere-se o caso de termos de decidir
o que fazer, caso presenciássemos um psicótico estuprando nossa irmã e
dispuséssemos de uma arma capaz de matá-lo. Se obedecermos ao mandamento “Não
matarás” (embora esse mandamento tivesse validade tribal, não incluindo os
demais povos), deveríamos nos abster de usar a arma, para não corrermos o risco
de matá-lo? Talvez, fosse preferível atirar-se sobre ele, mesmo sabendo se
tratar de um homem mais forte e sabendo que ele poderia nos sobrepujar? Diante
de situações como esta, mesmo teólogos especularam sobre a possibilidade de
matar, em certas condições, como quem mata por legítima defesa. Vê-se, logo,
que o “não matarás” parece ser um preceito que excede disposições da natureza
humana que servem à auto-preservação e sobrevivência. Ele não especifica em que
condições não deve ser seguido. Em tal circunstância, é difícil sustentar o
livre-arbítrio; a pressão psicológica, a revolta instintiva que sentiríamos ao
ver nossa irmã sendo estuprada, ou a necessidade de sobreviver em face de um atentado
contra nossa própria vida nos impeliriam a tomar providências nem sempre
escolhidas. Portanto, agimos também devido a pressões do meio sobre nós.
Em face
de um crime hediondo, ficamos aterrorizados com a frieza e crueldade do
assassino e nos perguntamos como foi capaz de cometer tamanha atrocidade. Perguntamo-nos
pelas razões (ciúme, desejo de possuir a riqueza do outro, sublevação contra
alguma forma de opressão...?). A ciência tem procurado investigar as causas,
para, assim, talvez tentar tratar quem se comporta de modo criminoso.
Os
homens são dotados de liberdade em alguma medida; não são eles totalmente livres – outra ilusão! Mas
podem exercer sua liberdade dentro de certos limites, hereditariamente delineados ou culturalmente fixados. O problema está em pretender pensar a liberdade como
livre-arbítrio. O termo é perigoso, porque nos leva a pensar na possibilidade
de atuarmos sempre de modo absoluto, fazendo-nos senhores de nossas ações.
Basta que um outro se coloque diante de mim para que o exercício de minha
liberdade seja limitado pela consciência do direito do outro de exercer a sua
liberdade.
É
equivocado pensar que o mal seja consequência do livre-arbítrio conferido por
Deus aos homens. Sendo onipotente, Deus poderia ter criado um mundo onde os homens
só fizesse o bem, porque não haveria o
mal.
O
teólogo rejeita a ideia de que Deus é autor do mal. Mas me pergunto o que fazia
a serpente no paraíso quando tentou Eva? Se o mal não provém de Deus, donde
provém? Se do homem, ou provém naturalmente, ou ele o adquiriu de algum modo.
Se provém naturalmente, então Deus deve ser responsabilizado por ter criado
seres humanos cuja natureza é inclinada à maldade. Se, ao contrário, o mal foi
adquirido pelo homem, onde estava o mal então? É notável que na história de Jó,
satanás não era um adversário propriamente dito de Deus, mas um competidor com
ele, na tentativa moralmente reprovável de testar a fé do homem justo. Se o mal
está no diabo, por que Deus não o elimina de uma vez por todas, extirpando o
mal? Aliás, a cumplicidade entre Deus e o diabo sempre me pareceu
insuportavelmente incrível. Mas milhões de cristãos não se dão conta de que
manter a crença num Ser benevolente e todo-poderoso e, ao mesmo tempo, admitir
a existência de um ser como o diabo é um contra-senso. Se Deus é bom, não pode
permitir a "existência" do diabo; se ele tem poder infinito, deveria ser capaz de
aniquilá-lo. Mas o diabo continua atazanando a consciência de muitos
cristãos. E como se não bastasse, ousando possuir seus corpos, tendo Deus como
mero espectador. E o ridículo piora: Deus não evita as supostas possessões; ele
permite e tem de ser convocado a resolver o problema, por meio de rituais de
exorcismos feitos pelos funcionários da fé.
Uma
crítica contundente aos que defendem o livre-arbítrio é o reconhecimento de que
o argumento não soluciona o problema do mal
natural, isto é, do mal que experimentamos quando sofremos o efeito dos
fenômenos naturais (terremotos, erupções vulcânicas, tsunamis, etc.) ou doenças.
Sendo onipotente, Deus poderia ter criado outras leis naturais que não
redundassem em sofrimento. Deus poderia criar um mundo onde não houvesse
bactérias e outros microrganismos nocivos à saúde.
Vejam-se
os terremotos. O que são eles? São tremores que ocorrem na superfície terrestre.
O que os desencadeia? Eles podem ser desencadeados por alguma atividade
vulcânica, por falhas geológicas ou pelo choque de placas tectônicas. A crosta
terrestre constitui uma camada rochosa fragmentada, ou seja, formada por vários
blocos chamados placas tectônicas. Essas placas estão em movimento constante.
Quando se encontram em zonas de convergência, pode dar-se a colisão entre elas,
do que resulta um acúmulo de pressão e descarga de energia, que toma a forma de
ondas sísmicas, produzindo, assim, o terremoto. Esta é uma explicação bastante
simples do que é um terremoto, mas suficientemente adequada à argumentação que
venho desenvolvendo. O leitor poderá se perguntar por que Deus não poderia ter
dado uma nova ordem a esse estado-de-coisas, por que não poderia ele ter criado
um planeta sem esse fenômeno, muita vez, desastroso e nefasto? Sua onipotência,
por definição, torna sua escolha isenta de qualquer coerção; Deus é o único ser
que seria dotado de livre-arbítrio ou de liberdade absoluta.
Vejamos
as doenças, agora. São elas incontáveis. Pensemos nos vírus, que são os
principais agentes causadores de doença nos seres vivos. É verdade que os
virologistas estudam os vírus não só para curar doenças, mas também para
servir-se deles na produção de vacinas, em pesquisas com células (por serem
organismos muito simples, auxiliam na compreensão da própria vida, que surgiu
de organismos simples) e no combate a insetos (há vírus que atacam insetos, e
os cientistas os estudam para que possam ser úteis na aniquilação de insetos
que atacam as plantações). No tocante à importância dos estudos de vírus em
pesquisas com células, pesquisas feitas com vírus que atacam bactérias
permitiram aos cientistas compreender os genes e o DNA. No entanto, não é
porque a “chave” para a solução de nossos problemas parece estar nos vírus (e
bactérias) que os causam, que um mundo sem a presença desses organismos
patogênicos não seria preferível. E não podemos nos esquecer que além desses
agentes exteriores que podem causar sérios danos a nossa saúde, há também um
distúrbio interno no próprio organismo, que consiste no crescimento anômalo de
células desproporcionalmente ao crescimento harmonioso dos órgãos vizinhos, ou
seja, o câncer. E sem levar em conta as doenças congênitas (defeitos em certas
partes ou na estrutura do corpo herdados pelo bebê). Esses defeitos podem se
manifestar na forma de disposições para desenvolver determinadas doenças. Há
mais de mil tipos conhecidos de defeitos congênitos e as descobertas de outros
defeitos não cessam. A consciência de que podemos nascer com tais problemas
leva-nos a concluir pela fragilidade da vida, mas também deveria ser suficiente
para rechaçar a hipótese da existência de um Deus benevolente. Não há nada que
justifique o sofrimento de um ser humano que nasce, por exemplo, com uma doença
conhecida como coréia de Huntington, que
se acha latente no bebê quando do nascimento, mas que se desenvolverá na fase
adulta, acarretando problemas na fala e nos movimentos e levando a pessoa à
morte. Deus, sendo nosso criador, é responsável pelos males genéticos com que
nascemos, como também é responsável por infestar este planeta de microrganismos
prejudiciais à nossa vida e à vida de outras espécies. É também responsável por
distribuir injustamente as condições climáticas no mundo. Veja-se, por exemplo,
que, em várias regiões interioranas do nordeste brasileiro, a seca castiga
homens e animais. Bois viram cadáveres no solo cálido castigado pela seca.
Também esse Deus foi responsável por produzir um sistema de carnificina
conhecido como cadeia alimentar. Nesse
tocante, em Deus e outros inconvenientes
(2011), observa Ventós:
“Essa religião [o cristianismo], pensada para
explicar o mal ou justificar a dor humana, não
faz o menor esforço para dar alguma justificativa para a dor animal. Nada que
justifique a necessidade dessa aterradora carnificina que é a Criação (aliás,
“cadeia alimentar), segundo a qual toda espécie foi criada para viver da
destruição e do sofrimento das que estão abaixo dela. Uma divina
carnificina da qual todos os seres animados serão vítimas enquanto não chegarem
os tempos profetizados por Isaías, quando coexistirão pacificamente o lobo e o
cordeiro, o bezerro e o leão, a criança e a serpente”.
(p. 31)
(ênfase no original)
A
cadeia alimentar é um aspecto da realidade natural que passa despercebido
quando pensamos o mundo como uma obra perfeita de um ser infinitamente bom e
perfeito chamado Deus. É difícil sustentar algum propósito benéfico subjacente
à criação dessa cadeia de carnificina. Não há por que perdermos nossas noites
de sono para elucubrar sobre um possível propósito. Basta que retiremos Deus de
cena e compreendamos que, na natureza, os animais podem ser distribuídos
hierarquicamente segundo relações entre predadores e caça.
Relendo
o trecho citado do trabalho de Carias, claro está que o sofrimento não
constitui um obstáculo para a fé. E essa ideia está também presente neste
trecho final da seção.
“Irmãos e irmãs, ninguém tem uma resposta definitiva
me face da dor e do sofrimento. Porém, podemos ter certeza de uma coisa: Deus
não é um carrasco, ou sádico que nos quer ver sofrer. No entanto, se somos a sua imagem e semelhança,
certamente deve existir algo no sofrimento que esteja próximo da própria
realidade de Deus. E, pela criação livre de Deus, somos convidados(as) a
reconhecer, em nós mesmos, a capacidade de ir ao seu encontro, mesmo no meio da
dor. Não façamos da não explicação de tal realidade humana um pretexto para
causar sofrimento aos outros introduzindo o mal para aliviar o meu sofrimento,
não reconhecendo que esta é uma escolha de destruição de si e do mundo criado”.
(p. 30)
(grifo meu)
Em que
pese a dor e o sofrimento inexplicáveis, mesmo sob a ótica teológica, devemos
persistir na busca por aproximarmos de Deus. O trecho que destaquei em negrito
chama-nos atenção para a crença segundo a qual o sofrimento participa da
natureza de Deus. Tal argumento ressoa no discurso de alguns teólogos que
defendem que Deus sofre tanto quanto nós. A solidariedade de Deus para conosco
em sofrimento levanta suspeitas sobre sua onipotência. Um Deus que sofre também
é um Deus frágil e, portanto, incapaz de superar seu próprio sofrimento. Além
disso, a crença em que Deus possa sofrer tanto quanto nós significa assumir,
com honestidade, embora contrariamente ao que ensina a doutrina, a natureza
antropomórfica do Deus judaico-cristão. Um Deus que sofre é um Deus que se
humaniza.
Se Deus
sofre tanto quanto nós, de que nos vale ele, senão como mais um a engrossar a
grande massa de sofredores? Um Deus impotente em face da dor e do sofrimento é
dispensável.
Vê-se
que o problema do mal continua insolúvel para os apologistas da fé cristã.
Todas as tentativas de dar conta desse problema são argumentativamente
invalidadas. Na tentativa de conservar a crença na existência de Deus, teólogos
buscam modificar as representações de Deus, sem dar-se conta de que tais
modificações entram em conflito com outras maneiras, tradicionalmente,
estabelecidas de conceber a Deus. Por exemplo, se Deus é sofredor tanto quanto nós,
ele deixa de ser onipotente; ele se torna impotente.
Lamento
que toda essa argumentação não encontre eco favorável nos espíritos de muitos
religiosos. É provável que encontrem meios de escapar ao problema do Mal,
quando o assunto é justificar a crença em um Deus onipotente e bom. Sinceramente, não vejo
meio de escapar a ele. Para mim, continuar crendo na existência de um Ser tão
fantástico, tão poderoso, que foi incapaz de produzir um mundo com menos
quantidade de mal, que é incapaz de ver que o sofrimento de uma criança com
câncer não pode servir para qualquer reforma moral, ou para qualquer propósito escuso, é um Deus desprezível e indigno de seres
capazes de transcender as suas raízes naturais. Mas, após muito estudar sobre
religião, após convencer-me de que tinha de voltar ao meu estado inato de ateu
(porque nenhuma criança nasce crendo em Deus), percebo que não estou combatendo
a Deus, que não é senão uma ideia abstrata forjada no caldeirão de angústia da
alma humana e que serve de consolo a muitos, mas também de instrumento para
manipulação uns dos outros. A rejeição a Deus não é senão rejeição a toda forma
de subserviência intelectual a uma instituição autoritária que vê na
inteligência uma ameaça ao seu poder.
É
porque estou ciente de que não há nada que combater senão as imposturas dos
próprios homens, que preciso responder aos que, comumente, vomitam a ideia de
que os ateus, quando metidos em grandes dificuldades, hão de apressar-se em
socorrer-se de Deus. Não há, de minha parte, nada mais tolo. Pessoas há que
abandonam sua fé por muitas razões. Muitas podem abandoná-las por ter sido
vitimada por um sofrimento atroz, pelo qual não foram responsáveis. Podem ter
perdido um filho que lutava contra um câncer. E os que a censuram, deveriam
reconhecer que restituíram a sua coragem de se libertar da submissão ao
absurdo. Agiram segundo o imperativo racional. Não havendo razões suficientes
para acreditarem num deus benevolente e onipotente incapaz de poupar-lhes o
sofrimento e ao do filho, restituem a dignidade humana, antes aviltada pela fé.
Pessoas, assim, são dignas de meu respeito. Reconheço nela a mesma humanidade
que pulsa em mim. Por
que continuaríamos acreditando num ser que, supostamente dotado de todo poder
para usar em nosso benefício, permitiu que sucumbíssemos ao sofrimento? Nenhuma
filosofia cristã dá conta disso. Nenhuma lógica é capaz de explicá-lo.
Simplesmente, porque não há o que explicar.
Quando
alguém afirma “Deus criou o mundo” (além de pressupor a existência de Deus,
para a qual não dispomos de evidências), se compromete com a sua implicação: se
Deus criou o mundo, criou também as condições naturais hostis à vida.
Como
podem os religiosos serem indiferentes quando assistem a um noticiário que lhes
informa que uma criança morreu por causa da dengue e ainda assim orar à noite
antes de dormir? Se Deus criou o mundo, ele também criou o vírus da dengue e o
mosquito hospedeiro que, no Brasil, é o Aeds
aegypti. A crença em Deus – isso, para mim, tornou-se bastante claro –
torna muitos religiosos ignorantes do modo como o mundo funciona: a natureza
não é perfeita, nada parecido a uma obra de arte.
Posso
agora responder ao comentário de um leitor anônimo, estampado no limiar deste
texto. Não está bem claro para mim o que quis dizer com “fazer o caminho
inverso”. Nasci ateu, como qualquer bebê; em certa altura da vida, me vi
fazendo catequese (muito embora com a displicência típica de um menino de dez
anos). Fui educado e cresci em um meio familiar católico. Não obstante o
sofrimento de que fui acometido nos primeiros minutos de vida, que se estendeu
até os sete anos, aproximadamente, eu vivi uma adolescência ainda muito imbuído
de sentimento religioso. No entanto, nunca me deixei seduzir completamente pela
fé cristã. Para mim, como parece a muitas pessoas, era possível separar Deus da
religião. Esta era, para mim, censurável sob vários aspectos, mas Deus nada
tinha que ver com isso. Ele estava isento de culpa. Mas, não sendo um
pseudointelectual (embora tendo a humildade de reconhecer que há pessoas mais
capacitadas do que eu em muitos temas), sou, na verdade, um amante do saber.
Descobri a filosofia, e com ela o ateísmo. Descobri-o, porque estava latente em
mim.
Qual
não é minha indignação ao saber que pessoas religiosas são capazes de propalar
despautérios tais como “o HIV é um castigo de Deus às pessoas sexualmente
promíscuas ou aos homossexuais”! Eis aí um exemplo de como a doutrina religiosa
envenena tudo, incluindo, é claro, a capacidade racional das pessoas. E dizem
isso sem se dar conta de que, entre outras coisas, contradizem o que pregam,
pois que não podem afirmar “Deus é bom” e admitir “Deus enviou o HIV para punir
as pessoas que se comportam sexualmente de modo contrário à sua “lei””. A sua
maldade é evidente e deve ser combatida com toda a força do coração: o vírus
HIV também infecta bebês (ou, pelo menos, infectou no passado). E esses bebês,
quando conseguiram sobreviver, adultos,
vivem até hoje com o vírus; e, apesar de terem uma boa qualidade de vida
(porque podem se beneficiar de um tratamento bastante eficaz, graças ao
programa de combate ao HIV/AIDS do governo brasileiro, considerado o melhor do
mundo), precisam tomar remédios duas vezes ao dia em horários fixados.
É
verdade que a ciência não explica tudo. E provavelmente nunca venha a explicar.
Mas eu, como muitos na minha condição, estou sobrevivendo e posso gozar de uma
boa qualidade de vida graças aos avanços científicos, graças aos
antirretrovirais e à competência do médico que me assiste. A vida é um
mistério. Contente-se com ele! Quando se levanta a pergunta “quem criou o
Universo e suas leis”, e se dá a ela a resposta “Deus”, além de se comprometer
com a implicação que já mencionei, dever-se-á também explicar quem criou Deus.
É tão absurdo supor que Deus é um ser incriado ou eterno (ou ainda que se criou
a si mesmo, embora isso não faça sentido, já que o ato de criar pressupõe um
agente externo) quanto supor que o Universo é incriado e eterno. As leis
naturais a que se referiu podem ter sempre existido, tal como você poderia supor
não ter Deus um criador. E mais: por que deveria ser o seu Deus o criador
delas, e não outra divindade qualquer, dentre as milhares que são cultuadas
pelos homens? De que argumento pode se valer para provar que o Deus em que
acredita é o Deus verdadeiro, o que criou o Universo e os seres que há nele?