segunda-feira, 3 de junho de 2013

"A fé torna-se ainda mais frágil quando conhecemos sua História" (BAR)



Como tudo começou
A História dos antigos hebreus


Atualmente, a palavra História apresenta duas acepções, com que a maioria de nós está suficientemente familiarizada: a) disciplina que se constitui de relatos, análises, pesquisas sobre documentos, desenvolvidas pelos historiadores; b) a matéria dessa disciplina, ou seja, os acontecimentos, as relações, as práticas em que os seres humanos estão envolvidos como agentes e pacientes (guerras, sucessão de reis, alianças, assassinatos, miséria, escravidão, etc.). É preciso dizer, no entanto, que os historiadores não lidam diretamente com “fatos históricos”; na verdade, os fatos históricos são produtos de seu trabalho de pesquisa, seleção e interpretação. A história não nos dá o passado; mas o passado é que é reconstruído pelo trabalho investigativo e interpretativo dos historiadores. A reconstrução do passado se dá com base nas evidências disponíveis; no entanto, elas, por si mesmas, não lhes fornecem um “retrato” do que aconteceu. Embora todo fato histórico seja um acontecimento do passado, o inverso não é sempre verdadeiro (Schaff, 1983, p. 209). Para que um acontecimento seja considerado um fato histórico, ou seja, um fato social, necessário se faz que ele produza efeitos em certa conjuntura social e em certo sistema de referência. Todo fato, para ser considerado um “fato histórico”, tem de ser dotado de significado num dado sistema de referência. É no interior desse sistema que o historiador valoriza e seleciona acontecimentos segundo os objetivos de sua pesquisa. Tendo em conta o trabalho do historiador na definição de um fato histórico, observa Schaff,

“O historiador que procura, por exemplo, fontes sobre a história política de um país, ficará indiferente aos testemunhos da cultura e da arte se estes não estiverem diretamente ligados à vida política; estes testemunhos não terão para ele nenhuma significação história, enquanto que se tornarão fatos históricos significantes (podem pelo menos vir a sê-lo em certas condições) para aquele que os situar no contexto da história cultural do país ou de uma determinada época, para aquele que os ligar a um dado sistema de referência.”

(pp. 210-11)


Tendo em vista o exposto, serão dois os objetivos que perseguirei neste texto: o primeiro dos quais será tornar patentes os acontecimentos da saga dos antigos hebreus que influenciaram o aparecimento dos primeiros manuscritos que, após reeditados muitas vezes e muito tempo depois, por escribas, viriam a constituir a Torá (Bíblia hebraica); o segundo será mostrar a importância da fé israelita na Escrita da História da Antiga Israel.


Escrituras Sagradas


De início, a despeito da crença em contrário, os documentos que se iam forjando na época em que viveram os antigos hebreus (aproximadamente 1.200 a.C), no Antigo Oriente Próximo, se tornaram “Escrituras” não porque fossem divinamente inspirados, mas porque as pessoas os tratavam de modo diferente. Sucedeu assim com os textos que viriam a compor o que hoje conhecemos como Bíblia. Os textos só se tornaram sagrados pelo uso especial que deles faziam os homens, ou seja, quando eram lidos em contextos ritualizados e, portanto, quando eram desvinculados da vida comum e dos modos de pensamento secular (Armstrong, 2007, p. 10).
O sagrado, portanto, não está nas coisas em si, mas é um significado que os seres humanos atribuem a certos objetos, lugares ou pessoas, segundo a forma como eles entram em relação com esses objetos, lugares e pessoas. É a linguagem humana que cria o sagrado. Em outras palavras, as coisas se tornam sagradas quando os homens a nomeiam como tais (Alves, 2008). Seres, objetos e coisas se tornam sagradas quando entram a fazer parte de teias invisíveis de significação. O que é o sagrado, senão o imaculável, o não profanável, o inviolável, com que os homens têm de se relacionar com profunda deferência e decoro? O sagrado é o sinal, para os homens, da presença do divino entre eles no mundo. Por isso, o sagrado deve ser adorado, reverenciado e transformado em objeto de culto. Ao atribuir o valor de sagrado a um objeto ou experiência, esse objeto ou experiência é desvinculado do viver cotidiano. O sagrado transcende o significado de que são dotadas as coisas em nossa vida cotidiana. Uma rodela de pão ázimo, entre os católicos, deixa de ser uma rodela de pão para tornar-se o próprio corpo de Cristo. Justamente porque é o corpo daquele de quem os cristãos dizem ter sido o próprio Deus, aquela rodela de pão ázimo torna-se sinal do sagrado.
Na experiência do sagrado, os humanos se submetem aos próprios significados que forjam, à própria linguagem religiosa que produz significados extraordinários, que lhes evocam a presença do divino no mundo.
Em suma, os manuscritos se tornaram sagrados porque passaram a fazer parte de estruturas ritualísticas, o que lhes permitiu separar-se das experiências da vida comum.


A Bíblia Judaica

A Bíblia judaica é mais antiga e serviu de base para o aparecimento da Bíblia cristã. A Bíblia dos cristãos depende da Bíblia judaica. Pode ser surpreendente para muitas pessoas, mas a Bíblia judaica não existia como tal antes do aparecimento dos primeiros cristãos. É verdade, por outro lado, que grande parte dos manuscritos que viriam a constituir essa Bíblia já se prestava a uso, havia muito tempo, como escritura autorizada pelas comunidades judaicas. Em Desvendando a Bíblia (2010), Kristin Swenson, nos ensina o seguinte:

“As Escrituras pré-Bíblia – que tanto os judeus tradicionais quanto os judeus seguidores de Jesus usavam naquela época – eram traduções de antigos manuscritos em hebraico para uma língua comum, o grego. Essa versão grega é uma espécie de Bíblia oculta, pois sua existência, pressupostos, linguagens e estrutura estão por trás de muitas diferenças nas Bíblias de hoje”.
(p. 30)


Essas traduções dos manuscritos em hebraico para o grego ficaram conhecidas pelo nome de Septuaginta, em referência aos setenta estudiosos e aos setenta dias necessários à tradução dos manuscritos para o grego. Não havendo ainda uma Bíblia, a Septuaginta acabou por incorporar mais do que escrituras hebraicas traduzidas; incluiu variantes de livros já existentes e novos livros inteiros. Foi somente no século I d.C que os judeus excluíram os novos livros que, por serem novos, não mereciam credibilidade, e definiram seu cânone, ou seja, a sua Bíblia.
A Bíblia hebraica ou judaica, também, às vezes, chamada de Torá, encerra, além da Torá (Pentateuco), os livros dos Profetas e dos Escritos (Salmos, Provérbios, Jô e Eclesiastes). Por vezes, a Bíblia hebraica é chamada pela sigla Tanakh, em que ‘T’ refere-se a Torá; ‘N’, à palavra hebraica Nevi´im, que significa Profetas; e ‘Kh’, à palavra hebraica Kethuvim, que significa “Escritos”. O Pentateuco, que se identifica com a Torá, encerra os livros do Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.
Bíblia judaica, Tanakh e Bíblia hebraica são designações para a mesma Bíblia dos judeus. Muita vez, o Antigo Testamento cristão corresponde a todo o conteúdo da Bíblia hebraica, muito embora seja organizado de modo diferente. Como os cristãos acreditavam que a vinda do Messias, que foi identificado com Jesus, havia sido profetizada nos manuscritos judaicos, o Antigo Testamento foi organizado de tal modo que o último texto anunciasse  a chegada do Salvador. A identificação do Messias aguardado pelos antigos hebreus com Jesus de Nazaré, por isso chamado o Cristo, se deveu à interpretação dos primeiros cristãos, já que os antigos judeus não acreditavam que esse Messias apareceria na forma humana. O Messias dos antigos judeus deveria ser muito mais grandioso do que sugeria ser um simples carpinteiro de Nazaré.
Embora se costume chamar de Antigo Testamento a toda a Bíblia hebraica, esta não se reduz àquele. Os Antigos Testamentos da Igreja Católica e da Igreja Ortodoxa encerram livros e seções da Septuaginta que não figuram na Bíblia judaica.
A Bíblia compreende textos provenientes de várias épocas e lugares. Estimava-se que a Bíblia hebraica inclua textos que remontam a um período que se estende por mais de mil anos (o mais antigo data de 1.200 a.C; o mais recente, de aproximadamente 165 a. C). Os textos são provenientes da Mesopotâmia, de Canaã, do Egito e de todo Crescente Fértil (um extenso território que inclui os atuais Israel, Jordânia, Líbano, partes da Síria, Iraque, o sudoeste da Turquia e do Irã). A região tem esse nome em virtude de ser banhada pelos rios Jordão, Eufrates, Tigre e Nilo. Não só a origem dos textos é bastante variada, mas a literatura bíblica também o é. A Bíblia inclui poesia devocional, textos jurídicos, biografias, aforismos, tratados filosóficos, cartas a indivíduos e grupos, cânticos e narrativas de instrução, anedotas e sermões (Swenson, p. 64).
Como, no período em que a Bíblia ia tomando forma, a grande maioria das pessoas era analfabeta, a produção e uso dos manuscritos eram circunscritos a uma pequena elite letrada. No tangente à autoria da Bíblia, Swenson dá-nos a saber o seguinte passo:

“Autoria, durante o período do desenvolvimento bíblico, raramente significava a empreitada criativa de um indivíduo, cujas palavras, uma vez escritas, permaneciam imutáveis. Quase toda a literatura da Bíblia é atribuída a uma pessoa ou outra que não chegou a escrevê-la. A maior parte da Bíblia (especialmente da Bíblia hebraica) é produto das poucas pessoas, geralmente anônimas, que podiam aprender a ler e escrever – escribas, ensinados no templo (...)”

(pp. 64-5)


Importante notar que os escribas lançavam mão, ainda que parcialmente, de tradições preexistentes e de textos na modalidade oral (narrativas, poesias, anais, oráculos preservados e veiculados por discípulos de um profeta) (Swenson, p. 65). Eles copiavam e editavam tais textos de acordo com seus interesses e teologia. A literatura que hoje chamamos de Bíblia não circulava em códices encadernados, mas na forma de rolos de pergaminho. Os textos circulavam de modo independente, do que resultou uma organização não muito fixa.
Desde já, convém ter em conta a influência decisiva do exílio dos antigos hebreus na Babilônia, por ocasião da invasão a Jerusalém por Nabucodonosor, então rei da Babilônia, na fabricação da Bíblia. Não menos importante foi o papel desempenhado pelo imperador persa que, após libertar os exilados, recomendou que eles codificassem em forma escrita suas leis e tradições. Há um consenso forte entre os especialistas de que os cinco primeiros livros da Bíblia judaica se constituíram durante o exílio, se tornando oficiais na comunidade judaica durante a ocupação dos persas.


Os primeiros hebreus: a saga da antiga Israel

A palavra “hebreu” significa “viajante” ou “aquele que atravessa para o outro lado” (Blainey, 2010, p. 94). De fato, os hebreus eram povos nômades. Embora tenham vivido períodos de prosperidade, conheceram a miséria, a humilhação, o cativeiro e o exílio. Foram escravizados no Egito, mas alcançaram sua liberdade por meio dos esforços de seu líder Moisés. Entretanto, o que ficou conhecido como Êxodo não constitui um fato histórico.
O aparecimento dos antigos hebreus remonta a, aproximadamente, 1.200 a.C. Os israelitas eram, segundo pensam alguns estudiosos, refugiados provenientes das cidades-estado em crise situadas nas planícies costeiras. Eles, provavelmente, surgiram nas cabeceiras dos rios do Golfo Pérsico ou nos desertos próximos. Os países banhados pelo Golfo Pérsico são Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Quatar, Bahrein, Kuwait, Iraque e Irã.
É possível que aos refugiados tenham-se unidos outras tribos provenientes do sul, que professavam fé em Jeová, deus que se originou das regiões próximas ao Sinai, ao sul. Os israelitas transmitiam suas tradições oralmente. Em 1.200 a.C, eles se organizavam em doze tribos situadas na região montanhosa cananeia, ainda que acreditassem possuir uma origem e história em comum. Ao contrário dos demais povos, que desenvolveram uma mitologia e liturgia baseadas no mundo dos deuses no tempo primordial, os israelitas professam sua fé em Jeová, que acreditam intervir na história de seu povo. Jeová os conduziu à Terra Prometida, por intermédio de Moisés. Eles viveram, durante muito tempo, sob o domínio egípcio e ansiavam retornar à terra natal.
Em aproximadamente 1000 a.C, o sistema de tribos entrou em declínio, e os israelitas fundaram duas monarquias em Canaã: o reino de Judá, no sul; e o reino de Israel, no norte. Eles já não mais celebravam, em festas, a aliança que, outrora, lembrava-lhes a linhagem comum. Ainda que não haja, atualmente, muitas informações sobre o reino de Israel, sabe-se que muitos salmos, que posteriormente viriam a ser incluídos na Bíblia, eram usados na liturgia em Jerusalém e revelam que os judeus foram influenciados pelo culto de Baal, deus da vizinha Síria. Também, àquela época, o povo do norte acalentava a crença de que Jeová havia feito uma aliança com o rei Davi, fundador da dinastia judaica, e prometido que seus descendentes reinariam para sempre em Jerusalém.
Um importante acontecimento na longa história da produção dos manuscritos que viriam a compor o que hoje chamamos de Bíblia foi interpretado como uma revolução literária. Sucedeu, no século VIII a.C, em todo o Oriente Médio e no Mediterrâneo Oriental, que os reis recomendassem documentos que conferissem glória ao seu regime. Os textos foram guardados em bibliotecas. Em Israel e em Judá, historiadores trabalharam para articular as primeiras narrativas, de modo a criar sagas nacionais. Elas foram preservadas nas versões mais antigas do Pentateuco. Com base em variadas tradições de Israel e de Judá, os historiadores do século VIII a.C puderam construir uma narrativa coerente. Chamaram de “J” ao épico sulista de Judá; e de “E” à saga do norte (Israel). O “J” faz referência a Jeová, nome com que os habitantes de Judá chamavam Deus; e “E” faz referência a Eloim, forma com que Deus era designado pelos habitantes do reino do norte. Tempos depois, essas duas narrativas foram combinadas por um editor para constituir a história única que é, hoje, o cerne da Bíblia hebraica.
É importante frisar que “J” e “E” não escreveram relatos históricos. Nesse tocante, devemos lembrar, com Mckenzein (2005), que, na Escrita da História na Antiga Israel, não havia uma preocupação em relatar o que realmente aconteceu. O objetivo básico era “prestar contas com o passado” (Mckenzein, 2005, p. 36). Isso significa que os autores bíblicos buscavam imputar responsabilidades pelas ações e julgá-las, de tal sorte que pudessem explicar seus efeitos no tempo presente. A Escrita da História na Israel Antiga era, portanto: a) uma forma de tradição específica; b) um meio de rememorar o passado e determinar seu significado; c) um meio de determinar as causas, basicamente morais, das condições do presente; d) nacional e coletiva; e) de natureza literária e um importante componente da identidade de grupo. Portanto, ela não consistia num relato histórico, no sentido em que, modernamente, entendemos a palavra História.
Desde as origens, não houve uma mensagem única para o que se tornaria a Bíblia. Os autores J e E desenvolviam diferentes interpretações sobre a saga de Israel, e os editores futuros não se esforçaram por suprimir as incoerências e as contradições.  Historiadores subsequentes fizeram acréscimos aos textos de J e E e os alteraram radicalmente.
Particularmente interessante é ver que J e E tinham concepções diferentes sobre Deus. O Deus de J era antropomórfico, imagem que desagradaria exegetas posteriores. O Deus de E (Eloim), no entanto, possuía uma natureza transcendente: se Jeová falava e caminhava no Jardim do Éden; Eloim raramente falava e preferia enviar um anjo como mensageiro. Embora a religião de Israel fosse se tornar, posteriormente, uma religião monoteísta, centrada, portanto, na fé na existência de um único Deus verdadeiro, nem J nem E eram monoteístas. A Jeová faziam companhia outros santos. Jeová pertencia a uma Assembleia Divina de “santos”. Até a destruição do Templo por Nabucodonosor, em 586 a.C, a Bíblia nos dá testemunho de que os israelitas adoravam muitas outras divindades.
Em 597 a.C., sucedeu que o Estado de Judá, situado na região montanhosa de Canaã, não mais aceitou o acordo que o mantinha sob o domínio do soberano Nabucodonosor, então imperador da Babilônia. A ruptura do acordo foi catastrófica para o povo judaico. Nabucodonosor invadiu a região de Jerusalém, então capital de Judá, com seu exército, forçando o rei a se render. Ele foi deportado para a Babilônio com cerca de dez mil cidadãos que constituíam o Estado (sacerdotes, militares, líderes, artífices e trabalhadores em metal).  Em 586 a.C., uma rebelião em Judá provocou a destruição do Templo por Nabucodonosor. O Templo ficava no monte Sião e fora construído pelo rei Salomão (970-930 a.C.) e era o centro da vida nacional e espiritual do povo israelense. Acreditava-se que Deus residia lá.
No século VIII a.C., surgiram alguns profetas dispostos a fazer com que o povo de Israel adorasse apenas Jeová. Jeová era um guerreiro invencível, mas não era dotado de conhecimento sobre agricultura. Quando as pessoas desejavam uma boa colheita, não hesitavam em recorrer ao deus da fertilidade Baal. O profeta Oséias injuriou-se com seus conterrâneos.  Para Oséias, o povo de Israel deveria retornar à adoração a Jeová, suficientemente capaz de prover as necessidades dos fiéis. Ele também cuidava inapropriado sacrificar um animal a Jeová. O que este queria era lealdade de culto. Segundo Oseias, se as pessoas não se voltassem exclusivamente para Jeová, Israel seria destruída pelo Império da Assíria. Àquela altura, a Assíria dominava a região do Oriente Médio. Outro profeta, chamado Amós, que pregava em Israel naquele tempo, viria a transformar definitivamente o culto a Jeová. Para esse profeta, Jeová não mais se agradava das cantorias e rituais do Templo.
Outro profeta, chamado Isaías, também desempenhou um papel importante na interpretação da história de Israel. Por volta de 740 a.C, Isaías recebeu uma mensagem terrível de Jeová: o império assírio devastaria a zona rural de Judá.  No entanto, Isaías não temeu a Assíria, porque “vira que a glória de Jeová enchia a terra” (Armstrong, 2008, p. 24). Mas o reino do norte não gozava de tal proteção. Em 722, os exércitos assírios destruíram Samaria, então capital de Israel.
Decerto, a saga dos israelitas não termina por aqui. Outros profetas e um grupo de reformadores, os deuteronomistas desempenhariam um papel extremamente importante nessa longa história de construção, reconstrução e preservação de uma identidade nacional, tão profundamente marcada por guerras, lutas, exílio e sofrimento, que culminaria com a produção das Escrituras hebraicas. Em seu muito instrutivo livro A Bíblia (2007), Karen Armstrong nota acerca dos deuteronomistas:

“É instrutivo que os deuteronomistas, os precursores da ideia de ortodoxia escriturística, tenham introduzido uma legislação surpreendentemente nova que – caso implementada – teria transformado a antiga fé de Israel. Para assegurar a pureza do culto, eles tentaram centralizá-lo, criar um judiciário secular independente do templo e despojar o rei de seus poderes sacros, tornando-o submetido à Torá como qualquer pessoa. Os deuteronomistas na verdade mudaram a redação dos códigos legais, das sagas e dos textos litúrgicos mais antigos, de modo que passassem a endossar sua proposta”.

(pp. 27-28)


Com o Deuteronômio, passou-se a exigir uma mudança radical na ordem social. O Deuteronômio tinha outra explicação para o fato de os israelitas serem privados da posse de sua terra: isso não se devia à suposição de que Jeová residisse em Sião, mas ao fato de os israelitas não observarem seus mandamentos.




quinta-feira, 30 de maio de 2013

"Viver acima de tudo é necessário"



A Morte de Deus
Ou o seu reaparecimento?

O meu empenho, na produção deste texto, será o de aproximar a filosofia da vida. Este texto deve ser visto como um ensaio, e não como um artigo filosófico. Meu esforço consistirá em reduzir a formalidade linguística tanto quanto possível. Se eu conseguir com que, ao final da leitura, o leitor veja este texto como expressão da fórmula dos antigos segundo a qual “filosofar é aprender a viver”, já me darei por satisfeito e contente. Não escrevo do lugar em que se situaria um filósofo profissional, mas de um filósofo-aprendiz e dedicado ao exercício do próprio filosofar. Escrevo como um aprendiz de filósofo. O aprendizado é a meta de minha escrita. Ao escrever, eu reelaboro o que aprendi e reaprendo, ou mesmo desaprendo para aprender. A norma é o prazer na aprendizagem. A meta – eu repito – é sempre aprender.
Então, neste texto, eu retorno a Nietzsche. Eu revisitarei sua filosofia, sem pretender recobri-la totalmente. Meu ponto de partida é o seu postulado segundo a qual “Deus está morto” (que aparece em A Gaia Ciência e em Assim falou Zaratustra). Tomo para ponto de ancoragem de minhas reflexões a morte de Deus enunciada, ou melhor, retomada e reelaborada por Nietzsche. Até onde pude entender, a ideia de que Deus está morto já estaria, tacitamente, presente no pensamento dos modernos anteriores a Nietzsche, pelo menos desde o século das Luzes (XVIII). Mas o que é novo em Nietzsche é a sua compreensão da extensão do significado da expressão “Deus está morto” – extensão e profundidade, eu diria. Nisso consiste o que entendo por reelaboração da questão da morte de Deus, empreendida por Nietzsche.
Mas, antes de atacá-la, preciso dizer também que ela se prende a outros conceitos nietzschianos, como o do “além-do-homem” (traduzido por alguns especialistas comumente como “super-homem”) e do Eterno Retorno. Mas não para por aí. A morte de Deus também leva-nos a fazer incursão no seu projeto de “transvaloração de todos os valores”. No fundo, a morte de Deus implica um olhar sobre os valores tradicionais que precisam ser superados e, mais ainda, sobre a gênese dos valores. O problema que ela suscita é também o problema da verdade. A verdade, assumida pelos antigos gregos como um valor metafísico, passará à categoria de ficção, de ilusão, de metáfora em Nietzsche. Se Deus era a verdade e se a razão sempre foi a condição para alcançar a verdade, uma vez morto Deus, a verdade carece de fundamento e a razão passa a atrair sobre si muita suspeita como um caminho para atingir alguma verdade. Mas não vou me apressar.
É preciso, antes de prosseguir, situar Nietzsche. É preciso considerá-lo relativamente a um tempo marcado por profundas mudanças em todos os setores da vida. É urgente, então, considerar o que significa pós-modernidade. Não pretendo dar conta da complexidade envolvida nessa questão. O que se costuma designar como pós-modernidade é uma realidade histórica bastante complexa e, para alguns especialistas, pouco clara. Serei forçado a fazer referência a alguns aspectos dessa condição da existência do homem contemporâneo, com vistas a acentuá-los em conformidade com os meus propósitos.
A condição pós-moderna é caracterizada por convergências e divergências históricas em várias esferas (arte, cultura, política, economia, saber, religião, ensino, etc.). Recobre um período, cujo início pode ser datado na década de 1950 e cuja extensão abarca os dias atuais, que se caracteriza por múltiplas posições e profundas inquietações. O período pós-moderno inaugura uma série de mudanças em nossa cosmovisão e nas diversas maneiras como a realidade se organiza. O homem pós-moderno é um sujeito extremamente inquieto em face de uma realidade que muda incessantemente. Em meio à profusão de mudanças, em um espaço de tempo muito curto, esse homem se vê desorientado ou perdido, porque se dá conta de que o universo de referências em que a vida de seus antepassados se baseava e de que é herdeiro, diluiu-se. O pós-moderno deve ser entendido como superação do moderno. Tempos de crises são estes, decerto. Crise da razão, crise dos valores que tradicionalmente guiaram a vida das pessoas. O pós-moderno decreta o esgotamento do poder da razão, que tanto seduziu os modernos, especialmente os que viveram sob os auspícios das Luzes. E o Iluminismo (séc. XVIII) – vale dizer – compreendeu uma corrente radical do pensamento intelectual que liberou a filosofia das amarras teológicas. Os filósofos do século XVIII aproveitaram as ideias que animavam os avanços científicos para questionar a maneira como o governo era pensado, o modo como a sociedade era compreendida. Seus esforços foram orientados para a superação da superstição, da tirania e da injustiça, para o que eles se serviam do poder da razão. A Razão Iluminista ocupa, pois, a posição que, durante séculos, fora ocupada por Deus. A bandeira iluminista era desfraldada sobre a necessidade de tolerância e justiça. Somos herdeiros do século das Luzes. E, a despeito da crítica avassaladora de Nietzsche, ainda resiste, em nossa era, pelo menos no senso comum, uma confiança na racionalidade científica. É claro, contudo, que, na pós-modernidade, a ciência não é mais vista como o único saber legítimo; e a ciência de hoje é uma ciência que se coloca sempre em questão, que não cessa de revisar seus postulados, de avaliar o alcance de seus resultados e a validade deles. Não se admite mais que ela silencie as demais formas de saber.
A pós-modernidade é uma era afeita ao relativismo; é infensa à ideia de uma verdade absoluta; reina nela uma suspeita sobre o imperativo da objetividade. É verdade que, nela, a razão está em crise, mas não é menos verdadeiro que a crise lhe tenha sido companheira em quase todas as épocas.
Também gostaria de lembrar, nessa rápida revisão da condição pós-moderna, que, nela, a ideia de progresso, herdada da Modernidade (mais precisamente do período da Renascença), e vinculada ao surgimento do método científico-tecnológico, perde seu significado dentro de um projeto político-filosófico de emancipação do gênero humano. O homem pós-moderno suspeita da ideia de progresso; vê nela uma mentira que não pode mais ser sustentada como uma preciosa verdade. Como, então, situar Nietzsche em face desse contexto sócio-histórico? Comecemos por entender quem foi Nietzsche, atentando para o seguinte trecho, tomado a Antonio C. Braga, em Nietzsche – o filósofo do Niilismo e do Eterno Retorno (2011):


“Considerado por muitos como o maior filósofo dos tempos modernos e por outros como destruidor impiedoso de todos os valores conquistados pelo homem em toda sua história, Nietzsche causou espécie por seus posicionamentos radicais e inovadores no mundo da filosofia, da moral, da religião, da arte e da história. Não resta dúvida de que foi um crítico feroz do passado e um dessacralizador dos valores tradicionais, mas foi também como que um profeta de um mundo renovado e inteiramente novo, de uma história futura depurada dos entulhos de séculos e milênios, de um homem dessacralizado e embriagado de vida plena isenta de moralismos, o super-homem (...)”.

(p. 10)


Vejamos, então, como este dessacralizador dos valores tradicionais, atacou radicalmente o valor supremo do homem ocidental: Deus. Preciso aqui enfatizar que, ao declarar a morte de Deus, Nietzsche está declarando a morte da Verdade como valor metafísico. O que está, portanto, implicado na proposição “Deus está morto”? Dito douto modo, qual é a extensão e profundidade de seu significado no interior do pensamento filosófico de Nietzsche? De início, acho importante salientar que Nietzsche não conflita apenas com o Deus cristão, ou seja, não declara apenas que ele não pode mais servir de fundamento da verdade ou da moral; ele vai mais além: também rejeita qualquer fundamento divino supraterrestre, o que inclui o Deus de Platão (Demiurgo) e o de Aristóteles (Primeiro Motor Imóvel).
Em linhas gerais, a morte de Deus parece envolver:

a) o questionamento da verdade como valor metafísico;
b) a busca por superar a metafísica platônica;
c) a busca por suprimir o fundamento do sentido;
d) a afirmação da única e verdadeira vida no aqui e agora;
e) a rejeição como utopia de uma vida além-mundo.

Morto Deus, cai por terra a metafísica. A morte de Deus representa o esgotamento do sentido no coração do próprio universo. Uma vez morto Deus, o próprio universo deixa de ter um coração. A morte de Deus é a morte da oposição entre a vida no mundo e a vida além-mundo.
Mas cabe questionar se a metafísica definitivamente desapareceu, estando Deus morto. Nietzsche parece sugerir uma resposta negativa. Para compreender por que a metafísica não desapareceu de fato, Nietzsche nos pede que consideremos o fato de que a Ciência e a Filosofia, bem como a Verdade, foram transformadas em Deus na Modernidade.
Em Teologia e Pós-modernidade – novas perspectivas em teologia e filosofia da religião (2008), no artigo de Sousa, intitulado de A morte de Deus em Nietzsche: fim da metafísica?, compreendemos o que está envolvido na observação de que a metafísica não desapareceu totalmente, a despeito da morte de Deus:

“Nós, que matamos Deus, em nome da razão, daquela mesma razão que o construíra, em nome da ciência, em nome da filosofia. Tornamo-nos “ateus”, mas “ateus” graças a “Deus”, porque a metafísica continuou na ciência e na filosofia, e a metafísica chama-se “verdade”, Deus chama-se ciência e filosofia”.

(p. 64)


O novo Deus dos ateus modernos é a Ciência, é a Razão, é a Filosofia. Deus nunca foi completamente eliminado; ele ressurge na cena do pensamento ocidental, no espírito da modernidade com novas roupagens.
A pós-modernidade se nos apresenta como uma época ou um tempo em que se erige uma suntuosa e avassaladora crítica ao valor metafísico da verdade. Ao reconhecer a morte de Deus, Nietzsche declara a destruição do fundamento da Verdade. Se Deus é a verdade em sua forma suprema e transcendente e se a razão é a condição para atingir a verdade (desde Platão), então “a morte de Deus” é a morte do poderio da verdade.
Aprendemos com Nietzsche sobre quem estabeleceu a verdade como valor metafísico. Nossos antepassados, decerto. Eles erigiram a verdade como valor inquebrantável e inquestionável. Eles a impuseram a nós e, pressupondo-a como algo a ser desvelado, nos ensinaram o caminho para o seu desvelamento.
Costuma-se afirmar que Nietzsche é um antiplatônico, mas não convém depreender disso que ele não reconheça o valor da filosofia de Platão, que não veja em Platão o grande mestre da filosofia ocidental. Mas há aspectos da metafísica de Platão que precisam ser superados. Em oposição ao homem metafísico de Platão, Nietzsche ergue o “além-do-homem”. Compreendamos o lugar de Platão na crítica desenvolvida por Nietzsche à metafísica e à verdade como valor metafísico.
De início, é preciso reconhecer que a metafísica sistematizada tem sua origem em Platão, e a mentalidade do homem ocidental se formou com base na filosofia platônica. Um papel fundamental nessa formação do pensamento ocidental desempenhou a Alegoria da Caverna (que consta do Livro VII, de A República). Nesse texto, Platão introduz a concepção de que o mundo da experiência sensorial é um mundo ilusório, um mundo de aparências, ao passo que o verdadeiro mundo é o da experiência intelectiva, ou o mundo das Ideias perfeitas. Platão opera, portanto, uma inversão decisiva para a constituição e desenvolvimento de toda uma teologia cristã posterior: ele chama de ilusório o mundo tal como conhecemos por meio de nossa percepção sensorial e de verdadeiro o mundo acessível apenas à experiência racional, intelectiva. Está, então, estabelecida a base sobre a qual outros dualismos podem ser desenvolvidos, tais como “corpo” x “alma”. Aliás, a ideia de que o corpo é um cárcere da alma é uma ideia consagrada por Platão, na esteira de Pitágoras.
Na Idade Média, com a patrística, o cristianismo incorpora grande parte do platonismo, de tal modo que passa a ser uma espécie de platonismo para o povo. Ou seja, Platão passa a ser conhecido para os cristãos, muito graças aos esforços de Santo Agostinho (354-430 d.C), a quem devemos a elaboração de uma teologia de influência platônica que constitui o coração da doutrina cristã até hoje.
O Nietzsche de O Anticristo condena impiedosamente a condição servil a que o homem foi destinado no cristianismo. Assim,  ao homem é negada a possibilidade de tornar-se mais forte sem recorrer a subterfúgios supra-sensíveis. Para Nietzsche, a moral cristã condena a vida humana à decadência, ao niilismo resignado, porque eleva sobre esta uma outra vida a ser aguardada na fé e na esperança. O cristianismo, nota Nietzsche, é responsável também por desencorajar o homem a mudar sua própria condição de existência – marcada, não raro, por dor e sofrimento -, uma vez que lhe acalenta a esperança numa recompensa numa vida além-mundo.
Para a superação deste homem decadente e resignado produzido pelo cristianismo, Nietzsche postula uma transformação do próprio homem, que assumiria a forma de um além-do-homem. Trata-se de um homem que supera a metafísica e que avança convivendo com o desespero (perda de qualquer esperança numa vida no além). É um homem que, consciente da falta de sentido, torna-se ele mesmo o seu sentido. O além-do-homem é o estado do homem que superou o homem metafísico, cujas raízes se acham no pensamento platônico.
Nietzsche convoca, portanto, o homem a viver esta que é a vida verdadeira. Somente esta vida é eterna. Para Nietzsche, qualquer valor metafísico religioso que produz a crença numa vida além-mundo é uma farsa. Como era um grande estudioso da Bíblia, o filósofo alemão não deixou de notar, evocando a mensagem de Jesus Cristo, que o Reino dos céus é um estado do coração. Por isso, para ele, considerá-lo uma região transcendente é um erro grosseiro de uma interpretação posterior.
Nietzsche também reconheceu que “o verdadeiro cristão morreu na cruz”, numa clara alusão ao fato de que o cristianismo não foi fundado por Cristo e que coube a São Paulo trazer a “má-nova”, uma interpretação tendenciosa da mensagem de Jesus.
Contrariamente à crença cristã, para Nietzsche, sagrada é a vida aqui e agora, a vida do devir. Valor, em Nietzsche, é necessariamente o que torna esta vida, aqui e agora, mais forte – uma vida que precisa ser vivida. Qualquer valor que negue esta vida, na verdade, não é sequer um valor.
A filosofia de Nietzsche projeta o homem para um vir a ser. É uma filosofia do porvir. Nesse sentido, ela se opõe também a qualquer sentimento niilista, a ela erroneamente associado, muitas vezes. Nietzsche é, definitivamente, o contrário de um niilista. Sua máxima é: é necessário viver e viver mais.
O além-do-homem é o homem que vive num mundo que é dionisíaco – um mundo em que tudo nasce, tudo muda, tudo se transforma e morre. É um homem que vive e aceita o trágico. E o trágico, em Nietzsche, é um caminho para a aprendizagem. É o homem que ama a vida, que experiencia o amor fati (amor ao destino).
A morte de Deus, portanto, não significa, para Nietzsche, o fim da vida. É, ao contrário, o retorno a ela. O além-do-homem se realiza neste mundo, o verdadeiro, ao contrário do que ensinou Platão.
O além-do-homem não é escravo; ele não precisa de um sentido para viver, ou para crer na vida. Ele é o homem que ama o seu destino, que ama o devir, que é o real (Heráclito). Ele é o contrário de um niilista. É criador de valores. É homem da imanência. Se há transcendência, em Nietzsche, ela só é possível na imanência. O homem renovado é um homem que transcende a si mesmo no mundo dionisíaco nietzschiano. É o homem que transvalora todos os valores, que supera os valores empedernidos que herdou de uma longa tradição metafísico-religiosa (Sousa, 2008).
“Acima de tudo é preciso que se viva” (Sousa, 2008: p. 79). Eis a máxima de Nietzsche. E, anunciando-a aqui, quero, por fim, dizer algumas palavras sobre o seu conceito de Eterno Retorno que, como vimos, está intimamente ligado ao postulado segundo o qual “Deus está morto”.
O Eterno Retorno do mesmo recobre a ideia de Heráclito de devir, do vir a ser contínuo. Também envolve a ideia do além-do-homem, já que o além-do-homem, esse homem que superou o homem metafísico, vive como quem deseja reviver cada acontecimento infinitas vezes. Portanto, essa ideia supõe a infinitude do tempo e o retorno de vivências na infinitude do tempo.

O Eterno Retorno também se vincula à necessidade de dizer sim à vida infinitas vezes. É preciso viver sem arrependimentos e remorsos. O Eterno Retorno é um critério de avaliação, pelo qual o homem seleciona os acontecimentos que merecem ser revividos e que devem ser revividos (Ferry, 210, p. 118). É preciso dizer que esse reviver infinitas vezes os instantes de nossa vida inclui também os momentos de dor, os momentos de infelicidade, muita vez, incontáveis. É desejar reviver sem concessão. O que Nietzsche ensina aí é que devemos viver como quem tem necessidade de reviver, como quem deve desejar reviver. Devemos viver como alguém para quem desejar reviver se coloca como um dever. 

segunda-feira, 27 de maio de 2013

"Amanhã, nós vamos se falar"


A gente não sabemos
O erro que ninguém vemos

Esta é uma cena que se repete todos os dias em nossa sociedade:

A – Eu tinha trago o caderno ontem.
B – (risos) Não se diz tinha trago. É errado. O certo é tinha trazido.

Nesta amostra representativa de uma situação de comunicação comum em nosso dia-a-dia, o falante A usa uma forma participial negativamente avaliada pelo falante B. A forma participial “trago” é classificada de “errada” pelo falante B, que enuncia a forma que acredita ser a certa – “tinha trazido”.
O que nem um nem outro sabem é quais as condições históricas que tornaram possível a eles acreditar que existem formas linguísticas certas e formas linguísticas erradas. Esses falantes, que representam a maioria esmagadora de nossa sociedade, acreditam que valores como “certo” e “errado” são intrínsecos às expressões linguísticas. Na verdade, como me esforçarei por mostrar, eles não fazem senão reproduzir uma tradição que, tendo mais de dois mil anos, congrega atitudes e práticas que visaram a estabelecer um padrão linguístico ideal calcado sobre a língua em que foram escritas as grandes obras literárias da Antiguidade Clássica. Vou apresentar, a seguir, sem pretender a exaustão, os desdobramentos históricos que levaram à constituição do que ficou conhecido por Gramática Tradicional (doravante, GT) entre nós, ocidentais.


Contando a História

1. A gramática tradicional

No Ocidente, foram os antigos gregos os primeiros a desenvolver reflexões sobre a linguagem. No século V a.C, as sementes de tal empreendimento encontraram no pensamento de Platão um terreno fértil. A ele coube a distinção entre ónoma (nome) e rhéma (verbo). Posteriormente, Aristóteles acrescentou a essas partes do discurso os syndesmoi (unidades gramaticais); mas foram os estóicos quem separou, nesse grupo, as formas variáveis (artigos e pronomes) das invariáveis (advérbios e conectivos). Mais tarde, no século II-I a.C, Dionísio da Trácia estabeleceu as oito categorias gramaticais, que compõem as classes de palavras de nossas gramáticas hoje (substantivo, adjetivo, advérbio, artigo, conjunção, preposição, numeral e verbo).
A gramática, como disciplina, surgiu entre os gregos para atender a dois propósitos: um, filológico, que consistia em estudar as produções literárias de grandes poetas e prosadores, para preservá-las, e em identificar as regras de uso da língua em que foram escritas; o outro, pedagógico, que consistia em estabelecer um padrão de língua que deveria ser ensinado aos cidadãos e seguido por eles (que eram homens (seres do sexo masculino) que tinham direito à educação e acesso à cultura letrada). Em sua obra A Vertente Grega da Gramática Tradicional (1987), a linguista Maria Helena de Moura Neves nota o seguinte:

“Toda uma situação cultural cerca esses fatos. A exigir a instalação de uma disciplina estão as condições peculiares da época helenística, marcada pelo confronto de culturas e de línguas, e pela consequente exacerbação do zelo pelo que então se considerava a cultura e a língua mais puras e elevadas”.
(p. 243)


Esse caráter da gramática se manteve entre os romanos, a quem coube divulgá-la. A situação não mudou na Idade Média. O latim era a lingua em que se escreviam as grandes obras da Europa medieval até o século XIII. A gramática passou a compor o trivium das instituições acadêmicas, ao lado da dialética e da retórica. Um abade, à época, escreveu a gramática “prepara a mente para entender tudo que possa ser ensinado por meio das palavras” (Azeredo, 2000: p. 17). O passo de Neves (1987), a seguir, lança luzes sobre as motivações que subjaziam ao trabalho dos gramáticos:

“Era para facilitar a leitura dos primeiros poetas gregos que os gramáticos publicavam comentários e tratados de gramática, que cumpriam duas tarefas: estabelecer e explicar a língua desses autores (pesquisa) e proteger da corrupção essa língua “pura” e “correta” (docência), já que a língua quotidianamente falada nos centros do helenismo era considerada corrompida. E, servindo à interpretação e à crítica, realizava-se o estudo metódico dos elementos da língua e compõe-se o que tradicionalmente seria qualificado como gramática”.
(pp. 104-5)


Como se pode ver, havia um sentimento elitista a guiar o trabalho desses gramáticos. A produção das gramáticas era impulsionada pela crença de que a língua falada pelas camadas populares era considerada “errada” ou “estropiada”.
Quando nos debruçamos sobre a GT, a primeira coisa que devemos reconhecer é que ela remonta à gramática grega. A GT é um fato da cultura helenística e representa os esforços para a preservação dessa cultura.
Desde sua origem, a GT se preocupou com o estabelecimento das regras consideradas as melhores para a língua escrita, para o que se baseou no uso que dela faziam aqueles que tinham prestígio na sociedade à época; eram eles, especialmente, os grandes escritores da literatura, entre os quais poetas e prosadores. O uso da lingua escrita literária serviu, portanto, originalmente, de modelo para uso “correto”, “adequado”, “bom” do grego.
Essa tradição, preocupada em estabelecer um padrão na base do qual o comportamento linguístico dos indivíduos deveria se modelar, começa a ganhar corpo entre os filólogos-gramáticos alexandrinos, no século III a.C. Nesse período, a Alexandria (que tinha esse nome devido ao seu fundador Alexandre, O Grande), era o principal centro irradiador da cultura clássica. Foi entre esses filólogos que a preocupação em estabelecer um padrão de uso calcado sobre a língua escrita e em eleger uma determinada variedade da língua como exemplar da língua “correta”, encontrou origem. A GT, portanto, tem clara orientação elitista. Ela reforça a variedade linguística da elite, que passa a ser valorada como boa e correta, silenciando, em contrapartida, as variedades usadas pelas camadas populares, que, por sua vez, eram consideradas “ruins” ou “erradas”.
Lyons chama de “erro clássico” a um acontecimento que envolveu os filólogos alexandrinos, ou melhor, pelo qual eles foram responsáveis: privilegiar a língua escrita dos grandes escritores, em detrimento da língua falada pelas camadas populares. Os filólogos alexandrinos opunham a fala à escrita de modo radical. Eles eram grandes apreciadores da produção literária do passado glorioso da Grécia clássica. Acreditavam que somente a língua escrita literária merecia atenção, análise, descrição e estudo e que somente ela poderia servir de modelo para a prescrição de normas do bem falar e escrever. Para esses estudiosos, a fala era caótica e desregrada, era lugar de erro e equívoco, ao passo que a escrita, vista como uma realidade homogênea, era clara e regulada. Duas línguas eram, então, contrapostas: a língua falada no dia-a-dia da Alexandria do século III a.C e a língua escrita literária da Atenas do século V a.C.
Foram os gramáticos alexandrinos, portanto, quem definiu o destino dos estudos gramaticais e da pedagogia das línguas por mais de dois mil anos – uma pedagogia ainda muito em voga em nossa sociedade atual. É com esses gramáticos que foi introduzido no pensamento linguístico ocidental as noções de “certo” e “errado”, com as quais são avaliados os usos da língua.
Dentre os discípulos dos gramáticos alexandrinos, destaque-se Varrão (séc. I a.C), cuja contribuição foi aplicar a gramática grega ao latim. Ele propôs uma gramática do latim padrão, chamado latim clássico, que se opunha ao latim vulgar – a variedade latina falada pelas classes populares da República e do Império Romano. Para ele, a gramática “é a arte de escrever e falar corretamente e compreender os poetas”.
Terminamos, pois, esta seção, referindo o seguinte passo de Weedwood, em História concisa da Linguística (2002), em que a autora esclarece-nos sobre o que é a GT:

“(...) a Gramática Tradicional, expressão que engloba um espectro de atitudes e métodos encontrados no período anterior ao advento da ciência linguística. A “tradição”, no caso, tem mais de 2000 anos de idade, e inclui os trabalhos dos gramáticos gregos e romanos da Antiguidade clássica, os autores do Renascimento e os gramáticos prescritivistas do século XVIII.”
(pp. 9-10)


É preciso insistir em que os estudos compreendidos pela GT são de orientação descritivo-prescritivista e tinham finalidade pedagógico-filológica. Na esteira dessa tradição, surge e se desenvolve a partir do século XX, com a publicação do Curso de Linguística Geral, de Ferdinand de Saussure, a Linguística, uma disciplina descritiva de orientação científica, cuja preocupação única é descrever e explicar o funcionamento e a estrutura da língua/linguagem. É bem verdade, entretanto, que as sementes de uma cientificidade na abordagem dos fenômenos linguísticos já se faziam presentes nas reflexões dos gramáticos histórico-comparativistas do século XIX.


2. Gramática normativa

Se, por um lado, a GT é o espírito, a mentalidade, a doutrina, o sistema de crenças, de valores, de reflexões que deram ensejo ao surgimento de uma disciplina e pedagogia de orientação prescritivo-normativista; por outro lado, a gramática normativa dá corpo à GT (Bagno, 2010). A gramática normativa constituirá um conjunto de regras que se destinam a fixar uma variedade ideal de excelência (a variedade padrão) da língua. A gramática normativa prescreve as regras dessa variedade, que devem ser seguidas pelos usuários que pretendam falar/escrever “corretamente”.
A gramática normativa se ocupa apenas com os fatos da língua padrão, da norma culta de uma língua. Essa norma se tornou oficial e prestigiosa para indivíduos num dado contexto sócio-histórico. A gramática normativa, de que nossas gramáticas escolares são exemplares, constitui um manual de regras para o bom uso da língua. Acompanhemos o que nos ensina Bagno, em sua Dramática da Língua Portuguesa (2010), ao nos esclarecer sobre o fato de a gramática normativa ter-se tornado um instrumento ideológico de poder e controle sociais:

“(...) Com a instrumentalização da gramática normativa em mecanismo ideológico de poder e controle de uma camada social sobre as demais, formou-se essa “falsa consciência” coletiva de que os usuários de uma língua é que precisam da gramática normativa, como fonte mística, invisível da qual emana a língua “bonita”, “correta” e “pura”. A língua ficou subordinada á gramática. O que não está na gramática normativa “não é português”, assim como as palavras que não estão no dicionário simplesmente não existem...”.
(p. 27)


Bagno nos ensina que, por um efeito ideológico, as pessoas, em geral, passam a acreditar que quem não domina as regras de uso prescritas pela gramática normativa não sabe falar português. Essas pessoas acreditam também que precisam da gramática para falar “corretamente” a sua língua materna. Daí que os usos não contemplados e abonados por essa gramática não são considerados pertencentes à língua portuguesa. Essas pessoas não se percebem mais como os verdadeiros agentes e construtores linguísticos; a língua não pertence à gramática, tampouco aos seus supostos guardiães; mas a todos os seus falantes nativos que dela se servem não só para interagir socialmente, mas também para construir, definir e reafirmar sua identidade (individual, linguística, social e cultural).
Carlos Franchi (2006) dá-nos a conhecer uma definição de gramática normativa bastante concisa e lúcida, que vale referir aqui:
“(...) é o conjunto sistemático de normas para bem falar e escrever, estabelecidas pelos especialistas, com base no uso da língua consagrado pelos bons escritores”.
(p. 16)


É importante perceber, na definição de gramática normativa, o valor assumido pelo uso da língua feito pelos considerados “bons escritores” da literatura tomados para modelo a partir do qual se determina uma língua padrão ou “correta”.
Quais são as razões por que determinadas formas e usos linguísticos são inseridos ou excluídos da norma de prestígio? Vejamo-las a seguir.
A primeira é de ordem estética. Nesse caso, são incluídas na norma as formas linguísticas consideradas elegantes, belas, eufônicas; e dela são excluídas as formas cacofônicas (boca dela), os pleonasmos viciosos (hoje em dia/ subir para cima), o eco, etc. A segunda é de ordem elitista. Esta está na base do preconceito e discriminação linguísticos. Nesse caso, contrapõe-se o uso da língua feito pelos indivíduos pertencentes às classes dominantes ao uso feito pelos indivíduos das classes dominadas. A terceira é de ordem política. Nesse caso, combatem-se os neologismos e os estrangeirismos. Valoriza-se a pureza do idioma e a vernaculidade. A quarta é de ordem comunicacional. Nesse caso, deve-se evitar a ambiguidade, o hermetismo, a imprecisão. Valoriza-se a busca pela clareza, a precisão, a fim de facilitar a compreensão. A quinta é de ordem histórica. Aqui tem peso a tradição. Deve-se evitar as inovações e valorizar as formas consagradas pelo uso feito pelos usuários da língua (escritores literários clássicos) considerados de excelência. Por essa razão é que se proscrevem formas como “vende-se carros” ou “custei a acreditar nele”.
Antes de por termo a esta seção, gostaria de distinguir aqui entre norma padrão e norma culta, com base em Bagno (2007, p. 107). A norma padrão não pertence à língua. É um modelo, uma entidade abstrata, uma forma ideológica que exerce grande poder simbólico no imaginário coletivo, mormente sobre o imaginário dos indivíduos mais escolarizados. A norma culta é a norma real que compreende as variedades linguísticas de prestígio, ou seja, as que são usadas pelos membros das camadas socioeconomicamente favorecidas da população. Seus usuários são definidos por critérios mais próximos à noção de cientificidade, quais sejam, antecedentes biográfico-culturais urbanos e grau de escolarização superior. No entanto, atento à problemática suscitada pelo uso do termo “culto” relativamente à “norma”, Bagno (p. 105) prefere falar em variedades de prestígio e variedades estigmatizadas. Assim, há diferentes normas, dentre as quais a norma de prestígio.


3. Linguagem, ideologia e discriminação


No trecho de Bagno, anteriormente citado, lemos sobre a transformação da gramática normativa num mecanismo ideológico de poder e controle sociais. Nesta seção, irei descer a pormenores sobre o papel desempenhado pela ideologia na legitimação de práticas e atitudes que visam a avaliar os padrões linguísticos em termos de noções como “certo” e “errado”. Ademais, examinarei, sem, contudo, ser exaustivo, as consequências sociais desse patrulhamento linguístico generalizado em nossa sociedade.
Assumirei a visão marxista de ideologia. Por ideologia entenderei, pois, um conjunto de crenças, valores e atitudes culturais que servem para justificar e legitimar o status quo. As ideologias, em geral, refletem os interesses de grupos dominantes e servem de meio para perpetuar sua dominação e privilégios. Elas produzem uma “falsa consciência”; são ilusões, abstrações e inversão da realidade. Na ideologia, a realidade assume a forma de aparecer social. No modo de representação ideológica, os indivíduos consideram o aparecer social como se fosse a realidade social mesma. A ideologia oculta à consciência dos indivíduos as verdadeiras causas de suas condições de existência.
Acrescente-se também que a ideologia consiste no processo pelo qual as ideias das classes dominantes se tornam as ideais dominantes numa dada conjuntura social. As ideias das classes dominantes se tornam, por força da ideologia, as ideias de todas as classes sociais. Isso é particularmente verdade quando observamos que avaliar o comportamento linguístico de outrem é prática comum aos indivíduos de todas as classes sociais. Essa prática, que expressa os interesses das classes dominantes, torna-se também uma prática dos indivíduos das classes subalternas. Sob o embotamento da consciência provocado pela ideologia, os indivíduos não se reconhecem mais como agentes responsáveis pelos processos sociais. Eles não percebem que a realidade de sua classe decorre da atividade de seus membros.
Na ideologia, dá-se a inversão entre as ideias e o real. Ao invés de o real explicar as ideias produzidas pela consciência (que é produto socioideológico) de indivíduos que se relacionam em condições de existência concretas, são as ideias que explicam o real. As ideias são decalcadas do real e passam a ter existência independentemente das condições sociais em que foram produzidas. Os indivíduos não mais percebem as condições sócio-históricas como a verdadeira causa de suas ideias. Eles imaginam que suas ideias independem de tais condições e que valem para todo o sempre. Na ideologia, a realidade aparece à consciência do sujeitos como algo dado, já pronto, acabado, para que seja simplesmente ordenado, classificado e julgado.
É, portanto, a ideologia que nos ajuda a explicar por que os indivíduos costumam avaliar as formas e usos linguísticos uns dos outros na base de noções como “certo” e “errado”. Em primeiro lugar, a ideologia mascara as condições sócio-históricas que explicam por que eles tendem a avaliar os padrões linguísticos em termos de “certo” e “errado”. Também é por meio dela que eles buscam, sem estar conscientes disso, justificar tal prática. A ideologia cristaliza a crença de que existem formas linguísticas essencialmente certas e formas linguísticas essencialmente erradas, mascarando o fato de que as noções de “certo” e “errado” tomam a forma de valores com que é julgado o comportamento linguístico dos indivíduos numa sociedade. Considerar certo um determinado uso e errado outro resulta de valoração social, em cuja origem se acha um forte sentimento de estratificação social.
Cumpre dizer algumas palavras sobre a noção de valor cultural. O valor, entendido no âmbito da da Antropologia Social, é uma ideia comum que sinaliza o modo como alguma coisa é classificada, tendo em conta desejabilidade, perfeição e mérito. Valorar é atribuir valores (bom, ruim, aceitável, desejável, etc.) a qualquer coisa. Valores podem servir virtualmente para classificar qualquer coisa, desde abstrações (lógica acima de intuição), a experiências e comportamentos. O que torna uma ideia um valor é seu uso para categorizar coisas em relação a outras. Portanto, quando se valora uma expressão linguística como errada, faz-se em relação a outra que é avaliada como “correta”.
A autoridade dos valores transcende o indivíduo, existe fora dele. Valores são partes importantes de todas as culturas, porquanto influenciam a maneira como as pessoas escolhem e como os sistemas sociais se desenvolvem e mudam.
É preciso, então, insistir, para o que serei enfático: as formas e usos linguísticos NÃO SÃO INERENTEMENTE certos ou errados; é a sociedade como um todo que atribui os valores de certo e errado às expressões linguísticas e, ao fazê-lo, refletem e reforçam os interesses das camadas sociais dominantes.
Outra lição importante: uma forma não é errada porque a gramática normativa diz que é errada; o que essa concepção mascara é que uma forma só é errada porque é produzida por membros de camadas sociais desprivilegiadas. Disso se segue que a avaliação é negativa apenas porque as formas linguísticas usadas por uma pessoa não correspondem ao ideal de correção atribuído ao comportamento linguístico de usuários mais prestigiados. As gramáticas normativas legitimam isso fazendo-nos crer que toda forma que não seja agasalhada pela norma avalizada por elas é “errada” e deve, por isso, ser evitada.
Uma política e pedagogia linguísticas comprometidas com o combate ao preconceito e a discriminação sociais, quase nunca percebidos nas práticas de uso da linguagem, devem orientar-se pelo reconhecimento de que a avaliação é essencialmente social e incide sobre o sujeito social. Não é propriamente a língua que está sendo avaliada, mas a pessoa que está usando a língua. Repito: os juízos de valor feitos sobre os usos linguísticos não são imanentes aos usos, mas resultam de relações sociais ou sócio-políticas marcadas por conflitos entre classes e que expressam interesses antagônicos. Assim é que, quando se avalia negativamente uma forma linguística como “trabaio” (típica de falantes da zona rural), avalia-se negativamente o seu usuário e, por extensão, toda a sua classe e origem sociocultural. Infelizmente, a grande maioria das pessoas ignora o fato de que toda palavra é uma arena de conflitos sociais e de que a língua é um lugar onde se encenam as lutas de classe com mais ou menos clareza.
Uma consciência clara do papel que desempenha o uso da língua no robustecimento do preconceito e da discriminação social está intrinsecamente ligada à percepção de que a língua é um poderoso instrumento de controle social, de manutenção e ruptura de vínculos sociais, de inclusão e exclusão, de constituição, legitimação, preservação e destruição de identidades individuais (Bagno, 2007).
A ideologia também ofusca a percepção do fato de que o uso da linguagem é inseparável das esferas de poder. Em Linguagem, Escrita e Poder (2003), Gnerre nos lembra o seguinte:

“A começar do nível mais elementar das relações com o poder, a linguagem constitui o arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso ao poder”.
(p. 22)
(ênfase minha)



O autor nos chama atenção para o papel desempenhado por certas linguagens especializadas, tais como a linguagem jurídica. Essas formas de linguagem excluem da comunicação as pessoas de comunidades linguísticas externas ao grupo que as usa. Além disso, elas servem para reafirmar a identidade dos membros desse grupo reduzido que tem acesso a elas. Segundo Gnerre,


“A linguagem pode ser usada para impedir a comunicação de informações para grandes setores da população. Todos nós sabemos quanto pode ser entendido das notícias políticas de um jornal Nacional por indivíduos de baixo nível de educação (...)”.
(p. 21)



Nesse caso, apenas os indivíduos já familiarizados com a linguagem usada e capazes de reconhecer os conteúdos associados às informações conseguirão compreender alguma coisa. Gnerre nos ensina que a variedade de prestígio incorpora conteúdos ideológicos que podem ser facilmente manipulados, uma vez que as formas às quais se ligam ficam imobilizadas (vejam-se as palavras democracia e ditadura), o que favorece a restrição da comunicação entre grupos que sabem a que domínio conceitual se prendem as palavras. Disso se segue que fica garantida a impossibilidade das grandes massas, não obstante estarem familiarizadas com a forma das palavras, não terem acesso ao significado delas atualizado contextualmente.


4. Há erros mais errados que outros

Gostaria de acrescentar algumas palavras, antes de pôr termo a este texto. Bagno nos mostra que, nas múltiplas práticas de valoração e discriminação de usos da língua, há erros que carreiam mais desaprovação do que outros. Em outras palavras, há erros que são mais percebidos do que outros, o que contribui para gerar uma situação sociolinguística de valoração e discriminação bastante hipócrita, visto que a mesma pessoa ou grupo que acusa “erros” na fala do outro, muita vez, não se dá conta de que também comete “erros”, embora sutis ou não reconhecidos como tais. É também com base nesse ideal de língua que muitas pessoas apreciam apontar erros na fala de personalidades públicas de quem esperam um comportamento linguístico adequado à norma de prestígio. O que essas pessoas não percebem é que, se tais personalidades fazem uso de formas desaprovadas pela gramática normativa é sinal de que tais formas já encontram abrigo na norma de prestígio, pois que quem faz a norma são os próprios usuários da língua (evidentemente, no caso da norma de prestígio, os que gozam de acesso à educação plena e à cultura letrada).
Ontem, assistindo ao RJ TV, uma repórter da Globo, durante uma reportagem, empregou, várias vezes, o verbo ter, no sentido de existir (tinha muitos buracos nesta rua). Se a repórter usa o verbo “ter” em tal caso, é porque esse uso já é parte da norma entre os falantes mais escolarizados. Ou seja, é já um uso abonado na norma de prestígio, em que pese os resmungos desabonadores de gramtiqueiros de plantão. O uso do verbo “ter”, no sentido de “existir”, é normal no português brasileiro e figura na fala de muita gente bem educada de nosso país. Não há razões para condená-lo. A língua varia e muda, segue sua deriva. É claro que os usos linguísticos sofrem pressões que vão na direção da inovação, que tende à mudança, e da conservação, que tende a refrear a mudança. Lembro novamente que a língua é palco de conflitos.
A mesma pessoa que condena uma forma como “Eu preocupo com você” ou uma forma como “Nós se vemos amanhã” usará, normalmente, “Custei a acreditar que isso era verdade” ou “O ônibus que eu entrei estava lotado”. São justamente as formas usadas por indivíduos que não pertencem à sua classe social, que não gozam dos privilégios dessa classe, que ela condena. São formas que ela não usa; no entanto, usa também formas que, se estivesse realmente preocupada em basear seu comportamento linguístico pelo padrão prescrito pela gramática, deveria evitar. Em “custei a acreditar...”, reza a tradição que o verbo “custar” tem de ser construído com sujeito “oracional” e que deve preservar seu sentido original de ‘ser dificultoso’ (cf. Custa-me acreditar...). Em “custa-me acreditar”, o sujeito é a oração de infinitivo “acreditar” e o “me” é o objeto indireto (a mim, a alguém). Já em “custei a acreditar”, uso corrente, embora ainda mal avaliado por vários indivíduos das classes dominantes (e, certamente, por professores e profissionais da linguagem antiquados e ultra-conservadores), o verbo “custar” tem a acepção de “demorar para”, “levar tempo”. Sintaticamente, ele rege a preposição “a” e se acompanha, portanto, de um objeto indireto. Já em “O ônibus que eu entrei estava lotado”, temos uma forma chamada de “cortadora”, já que, com a supressão da preposição “em” regida por “entrar”, a função sintática correspondente a “o ônibus” na oração introduzida por “que” não é atualizada (O ônibus estava lotado / Eu entrei (que)). Analogamente, é possível ocorrer “O ônibus que eu entrei nele estava lotado”, caso em que figura o constituinte “nele”, introduzido para retomar a forma “ônibus” na função de adverbial locativo. O “que” é destituído de sua função como pronome relativo e passa a funcionar como conectivo apenas. A função anafórica é desempenhada pelo constituinte “nele” que “copia” o sujeito “o ônibus” da oração principal na função adverbial na oração introduzida por “que”.
Outros exemplos:

O carro que eu andei nele era um fusca.
O menino que eu falei era irmão de minha amiga

O homem que o filho dele falou comigo conhece meu pai.