segunda-feira, 20 de maio de 2013

"Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção." (Paulo Freire)


                          


                          Interpretar e compreender
                 Um quadro representativo da leitura

Este texto é minha contribuição para a compreensão do que está em jogo em todo processo de leitura. Ler é uma atividade linguístico-cognitiva de produção de sentidos. Este texto consiste num ensaio sobre as duas macroatividades pressupostas em toda atividade de leitura, quais sejam, a interpretação e a compreensão. Como seja um ensaio, este texto não pretende, evidentemente, dar conta da complexidade do processo de leitura. Um dos meus objetivos é antes suscitar questões do que resolvê-las; no entanto, estou interessado em fornecer um quadro representativo de como o leitor opera ou pode operar quando, no momento mesmo em que lê o texto, busca interpretá-lo e compreender. A leitura é um trabalho sociocognitivo e linguístico de interpretação/compreensão, no qual está envolvido um conjunto de atividades e estratégias de ordem cognitiva e metacognitiva, bem como competências e habilidades diversas. Não tenciono dar conta de todo esse aparato de recursos cognitivos, é claro; mas mencionarei alguns deles.
Embora eu vá definir e desenvolver, adiante, as atividades de interpretação e compreensão separadamente, não suponho que essas atividades sejam estanques ou que uma preceda à outra. Na verdade, quero que o leitor tenha em mente que a compreensão acompanha, ou melhor, está implicada no próprio processo de interpretação, de modo que interpretar é pôr em curso a compreensão, é desenvolver a compreensão. Durante o processo de interpretação, o leitor está operando sucessivas etapas compreensivas. Uma imagem pode nos ajudar a compreender como se relacionam interpretação e compreensão. As etapas compreensivas equivaleriam a cada ponto dado num tecido durante a atividade de costura. Cada vez que uma parte do tecido danificado é restaurada com o traspassar da agulha e da linha a ela presa constitui uma etapa de compreensão. Essa imagem sugere a necessidade de supormos uma compreensão global do texto, mas nunca uma compreensão cabal. Tendo em vista o exposto, considero que interpretar é analisar; e compreender é operar sínteses.

Algumas palavras sobre leitura

Os estudos linguísticos que se ocupam das questões sobre leitura nos ensinam que a leitura é uma atividade complexa durante a qual o leitor mobiliza uma série vasta de competências e estratégias, na busca por construir um sentido (dentre os muitos possíveis) para o texto. Há especialistas que sustentam que o ato de leitura é um ato individual, no qual estão envolvidos os objetivos, os sentimentos e as expectativas do indivíduo leitor. No entanto, esse leitor é um sujeito social que lê, de sorte que, ao interagir com o texto durante a prática da leitura, está interagindo com toda uma comunidade de fala ou uma comunidade sociodiscursiva imaginária e representada no texto. Compreendamos melhor esta noção. É consenso entre os estudiosos de Linguística Textual que, no processo de produção de sentidos (leitura), o leitor interage com o texto e com o autor. A leitura pressupõe, assim, essa interação entre leitor, texto e autor. No entanto, tanto o leitor quanto o autor são sujeitos sociais que pertencem a uma comunidade sociodiscursiva, que é evocada e representada tanto no momento em que o autor produz seu texto (a uma comunidade que fala através dele) quanto no momento em que o leitor “lê” o texto (há uma comunidade que lê com ele). Não estou interessado aqui em evocar a problemática em torno da noção de autor. Essa questão já foi tangenciada em outros textos meus. Para os meus propósitos, apelo para o senso comum e entendo o autor como o ser responsável pela produção do texto escrito, pela garantia de sua coerência; é ele quem responde por seus escritos; é ele que é alvo de censura e a quem deve assinar suas obras. Note-se, de passagem, que Barthes (1968) declarou “a morte do autor”. O autor não é uma pessoa, é uma função-autor (Foucault). Disse, no entanto, que não me deterei nessa problemática.
Reformulando a noção de leitura, por ela entendo um processo sociocognitivo-interacional de produção de sentidos. Emprego o termo leitura pressupondo como objeto dessa atividade o texto escrito; no entanto, é possível ler outras coisas que não textos (gestos, obras de arte, uma situação, a mão, etc.). Recuperando aqui a voz de Paulo Freire, antes de ler um texto, lemos o mundo. A leitura do mundo precede a leitura da palavra escrita. 
Antes de prosseguir, gostaria de definir o conceito de cognição. Por cognição entendo um conjunto de processos e atividades mentais (que envolvem atenção, memória, raciocínio, sentimentos, imaginação) assentado numa base de linguagem, que são mobilizados na busca da aquisição, transformação e aplicação do conhecimento. Todo texto é forma de cognição social (Koch, 2004).
Disse, anteriormente, que, no processo de leitura, que pressupõe interpretação e compreensão, estão envolvidos conhecimentos, habilidades, estratégias de ordem vária. Também aí se deve incluir os objetivos, os interesses e sentimentos do leitor. Alguns dos conhecimentos envolvidos são o conhecimento linguístico, o conhecimento prévio sobre o assunto do texto, conhecimento de mundo, conhecimento sobre outros textos com que o texto que é objeto de leitura mantém relações (intertextualidade), conhecimento sobre tipos e/ou gêneros textuais, etc. É importante dizer que cada gênero textual (poema, artigo de opinião, crônica, romance, artigo científico, carta pessoal, carta oficial, etc.) demandará habilidades e estratégias diferentes de leitura. Não lemos um poema do mesmo modo como lemos um artigo de jornal, por exemplo. Também as expectativas do leitor serão diferentes num e noutro caso. Diante de um poema, o leitor busca entendimento e fruição estética, ao passo que, diante de um artigo jornalístico, o leitor busca basicamente conhecer a opinião do jornalista sobre um tema de relevância sociocultural, política ou econômica, embora o entendimento esteja, é claro, aí envolvido. No entanto, um artigo jornalístico não cumpre a função de provocar uma emoção estética no leitor. E o leitor reconhece e espera isso.
Dois tipos de estratégias devem ser consideradas no processo de produção de leitura: estratégias cognitivas e estratégias metacognitivas. As estratégias cognitivas orientam os comportamentos automatizados, quase inconscientes do leitor no processo de leitura e servem à construção da coerência local do texto. As estratégias metacognitivas, a seu turno, dizem respeito ao estabelecimento de objetivos na leitura. É a capacidade pela qual o leitor controla e regula o próprio conhecimento. As estratégias metacognitivas recobrem o estabelecimento de objetivos e a formulação de hipóteses, visto que são atividades em que está implicada a reflexão e o controle consciente sobre o próprio conhecimento, sobre o próprio trabalho interpretativo e sobre a própria capacidade de estabelecer objetivos e formular hipóteses. Por exemplo, um médico que lê artigos científicos especializados em sua área de atuação o faz segundo objetivos previamente determinados. Se ele é um cardiologista, pode estar interessado em conhecer novas formas de tratar doenças cardiovasculares, para o que ele buscará artigos que tratem do assunto.
A formulação de hipóteses está na base do processo de interpretação/compreensão de todo ato de linguagem. Charaudeau (2010) observa que toda interpretação é uma suposição de intenção. Em toda e qualquer atividade linguística, os interactantes estão a cada instante elaborando hipóteses sobre os saberes uns dos outros. Situada na prática de leitura, a elaboração de hipóteses pelo leitor supõe uma atividade durante a qual ele vai elaborando e testando hipóteses à proporção que faz avançar a leitura do texto.
Há outras estratégias envolvidas no processo de produção de sentidos; mas delas não me ocuparei aqui.
Cumpre notar, por fim, que, basicamente, o leitor, no momento mesmo da leitura, opera com seu conhecimento de mundo, o qual envolve saberes sobre o mundo, quer adquiridos em processos de educação formal, quer adquiridos nas experiências vividas cotidianamente em sociedade. Seu conhecimento de mundo, como seja de ordem geral, inclui também saberes de ordem intertextual, de modo que suas experiências de leitura prévias, estruturadas em sua memória em forma de conhecimento, são ativadas por ocasião do processo de interpretação e compreensão textual. Por conseguinte, quanto mais leituras prévias acumulamos sobre um dado tema mais fácil se torna o processo de compreensão do texto. Quanto mais se lê melhor se lê. A leitura é, portanto, um trabalho orientado para o texto que, não se limitando ao texto, mobiliza uma série de conhecimentos, crenças, ideologias e valores exteriores ao texto. O movimento de leitura vai do texto para o exterior do texto. O exterior compreende o que se pode chamar de contexto sociocognitivo, o qual compreende diversas formas de conhecimentos armazenados na memória do leitor e que são ativados por ocasião do processo de leitura. Entre essas formas de conhecimento estão o conhecimento de mundo (ou enciclopédico), o conhecimento linguístico, o conhecimento sociointeracional (relativo a tipos de atos de fala, aos propósitos visados pelo produtor do texto, à variedade linguística empregada, a normas socioculturais de interação linguística, etc), o conhecimento procedural (que compreende os procedimentos pelos quais as demais formas de conhecimento são ativadas pelo leitor no momento da leitura), etc.
No tocante ao conhecimento de mundo, é importante reter que ele é suposto como partilhado entre leitor e produtor do texto. O sucesso do leitor no processo de interpretação e compreensão textual depende de que uma grande parcela desse conhecimento de mundo seja partilhada com o autor. Embora os conhecimentos de mundo do leitor e do autor nunca correspondam totalmente, o sucesso do leitor depende de que uma grande quantidade desse conhecimento seja partilhada com aquele. O produtor do texto, por ocasião da atividade de escrita (para ficar nesse domínio estrito), supõe partilhada com o leitor uma série de conhecimentos sobre o mundo; o produtor constrói, assim, uma imagem-leitor. Também o leitor constrói uma imagem-autor e será tanto mais bem sucedido quanto mais conhecimento de mundo partilhar com o produtor do texto, no momento da leitura. Portanto, falar em conhecimento de mundo é falar em conhecimento de mundo compartilhado.

Interpretar e compreender: o processo de leitura

No processo de interpretação, estão envolvidos conhecimentos, estratégias e habilidades que são mobilizados nessa circunstância pelo leitor. Uma atividade básica em todo processo de interpretação é a produção de inferências. Por isso, entendo por interpretação o processo de produção de inferências com base em nosso conhecimento de mundo. A interpretação é o processo pelo qual o leitor, mobilizando seu conhecimento de mundo, estabelece relações não explícitas entre trechos do texto ou entre segmentos do texto e os conhecimentos prévios armazenados em sua memória e necessários à compreensão. A interpretação tem como atividade básica, portanto, a inferenciação, ou seja, a produção de inferências. Evidentemente, a elaboração de hipóteses também faz parte da interpretação. Interpretar é operar uma análise complexa, para a qual são mobilizados conhecimentos, crenças, estratégias e habilidades variados.
A compreensão é o ponto final do processo de interpretação. Nesse caso, devemos falar em uma compreensão global. Silva (2011), em O Ato de ler – fundamentos psicológicos para uma nova Pedagogia da Leitura, sustenta que ler é compreender (em primeiro lugar, compreender o mundo), ou seja, a compreensão inclui a interpretação. Em outras palavras, para Silva, na compreensão, está implícita a interpretação. A interpretação é constitutiva da compreensão. A compreensão desvela o que estava oculto; a interpretação supõe a presença diante de nós de algo cuja natureza ou estrutura deve ser compreendida. Refiro as palavras oportunas de Silva sobre como devemos entender o significado:

“(...) aquilo que é compreendido não é o significado, tomado no seu sentido bem estrito (significado de livro, ou de qualquer outro objeto). Significado é aquilo que se mantém oculto e que se desvela apenas pela inteligibilidade. (...) o significado não está nas coisas e nos objetos, nem nas palavras e nas proposições, mas constitui uma possibilidade de desvelamento, de atribuição, que é característico do Ser-do-Homem. O significado é a possibilidade que algo possui de tornar-se visível como algo que é.
(p. 34)



Em negrito, destaquei as ideias que nos ajudam a compreender esta passagem de Silva: a primeira diz respeito ao fato de o significado não estar diretamente acessível, mas oculto; a segundo diz respeito ao fato de ele só ser desvelado pela inteligibilidade; a terceira se refere ao fato de ele não estar localizado nas coisas ou nas palavras; a quarta diz respeito ao fato de ele ser virtualidade de desvelamento, ou seja, de ser ele a possibilidade de ser desvelado, de ser atribuído, de tornar algo visível ao entendimento humano como algo que é. O significado, segundo essa última ideia, é o que torna possível a revelação do ser das coisas.  Mas somente o ser humano é capaz de “adivinhar” o significado, ou seja, de significar. Significar para o ser humano é desvelar o ser das coisas. O significado é a condição necessária para que as coisas se mostrem tal como são. É o leitor que atribui significados ao objeto de leitura.
De minha parte, entendo que a compreensão é constitutiva da interpretação. No processo de interpretação, está envolvida a compreensão. A compreensão consiste numa síntese cognitiva a que chega o leitor ao cabo do processo de interpretação. Enquanto a interpretação é o movimento cognitivo que implica um complexo trabalho de produção de inferências e mobilização de saberes e estratégias, a compreensão é o resultado cognitivo desse complexo trabalho.
No entanto, como mencionei anteriormente, no processo de interpretação, o leitor opera sucessivas etapas de compreensão. Isso me parece claro quando consideramos a extensão do texto. Quanto maior for o texto mais etapas de compreensão ocorrerão ao longo do processo de interpretação. Sugerir que a compreensão se dê por etapas não exclui o atingimento necessário de uma compreensão global. A compreensão global é, portanto, o ponto final do processo de interpretação. Em face da interpretação, a compreensão se coloca como meta a que visa o leitor. Logicamente, quem quer que pretenda interpretar alguma coisa visa a compreender essa coisa. Na interpretação, a compreensão é o objetivo final.

O que é compreender na prática?

Penso que a compreensão pode organizar-se em três etapas fundamentais:

1a etapa – identificar a ideia central do texto;
2a etapa – estabelecer uma hierarquização entre as ideias do texto;
3a etapa – reelaborar (por paráfrase) o significado do texto.

A fim de ilustrar de que modo o leitor pode operar no sentido de compreender um texto, segundo o esquema oferecido, proponho que consideremos os dois trechos que se seguirão, colhidos do livro Existencialismo (2013). O primeiro  trecho que se segue abaixo tem como tópico a fórmula de Sartre “no homem a existência precede a essência” :

“(...) a existência do ente precede a essência (...) simplesmente significa que os entes humanos não têm alma, natureza, eu ou essência que os façam o que são. Nós, simplesmente, somos, sem quaisquer restrições que nos façam existir de qualquer modo particular, e somente mais tarde viemos conferir à nossa existência qualquer essência”.
(p. 83)


Ideia central – primeiro o ser humano existe para depois conferir a si uma essência.

Identificada a ideia central, o leitor poderá elencar, sem, necessariamente, estabelecer, neste momento, uma hierarquização de ideias, as demais ideias que constam do texto. Poderá identificá-las atentando para a sequência em que aparecem no texto. Também poderá parafrasear as partes do texto identificadas.

Ideia 2 – o ser humano não tem uma natureza que o define previamente à existência;
Ideia 3 – Não há restrições que definem quem somos.

A atividade de parafrasear é constitutiva do próprio processo de compreensão. A hierarquização das ideias compreende a sequência: ideia central, ideia 2 e ideia 3. É importante atentar para o fato de que, embora pretenda o autor que o segmento que vem depois de “significa que” explique o significado de “a existência precede a essência”, parece claro que seu significado é mais bem explicado no último enunciado do texto, que reelaboramos como ideia central. Ou seja, com base na ideia central, a fórmula “a existência precede a essência” significa que o homem, primeiramente, existe para depois definir para si uma essência. Tanto a ideia central quanto a segunda ideia encaminham a conclusão de que o ser humano é livre para escolher quem quer ser (já que nada que lhe seja exterior ou prévio à sua existência lhe fixa limites ao seu ser).
Durante o processo de interpretação que visa à compreensão, algumas questões deverão ser formuladas pelo leitor. Por exemplo, Sartre pensa gozar o homem de liberdade absoluta ou irrestrita? Sartre não supervaloriza a liberdade no homem? Será que ele está sugerindo que a essência do homem é a liberdade? Essas são algumas das questões que o leitor pode formular e cujas respostas tentará obter ao longo da leitura (supondo-se a continuação do texto).
Veja-se o próximo trecho:

“A liberdade humana precede a essência do ente humano e a torna possível; a essência do ente humano está suspensa em sua liberdade. O que chamamos de liberdade é impossível de distinguir do ser da “realidade humana”. O ente humano não existe primeiro a fim de ser subsequentemente livre, não existe diferença entre o ser do ente humano e o seu ser livre”.
(p. 86)


Este trecho foi colhido da obra O ser e o Nada do próprio Sartre e oferecido pelo autor de Existencialismo (2013).

Ideia centralA liberdade humana é anterior à essência do ente humano;
Ideia 2 – A liberdade torna possível a essência do ente humano;
Ideia 3 – A liberdade não se distingue da “realidade humana”;
Ideia 4 – A existência não precede à liberdade humana;
Ideia 5 – O ser do ente humano não difere do seu ser livre.


O tópico discursivo é a liberdade humana. Note-se que, na ideia central, Sartre declara que a liberdade, agora, precede à essência humana. Então, primeiro o homem é livre. A liberdade é condição sui generis do homem, graças à qual ele pode escolher a sua essência. É o que nos ensina na segunda ideia. A liberdade do homem permite a ele definir uma essência para si. A terceira ideia sugere que a liberdade e a condição humana são a mesma coisa. Uso o termo “condição humana” como equivalente à realidade humana. No entanto, penso que por realidade humana, Sartre entende o modo de existir que é inerente ao homem. Esse modo consiste em ser livre. Por isso, ser humano e ser livre são uma mesma coisa. A quarta ideia nos diz que o homem não existe primeiro para então ser livre. Logo, existir para o homem é ser livre. Isso é confirmado na última ideia, em que Sartre diz que o ser do ente humano é ser livre, ou seja, não há diferença entre ser humano e ser livre.
Alguns comentadores de Sartre sugerem que a essência humana, em Sartre, é a própria liberdade. No entanto, o próprio Sartre diz que a liberdade “torna possível a essência do ente humano”, do que se conclui que a essência é outra coisa que não a liberdade. Por outro lado, ele mesmo diz não ser possível traçar uma distinção entre a liberdade e o ser da realidade humana. Se Sartre entende por “ser” a essência e por “realidade humana” o modo de existir próprio do homem, a interpretação segundo a qual “a essência do homem é a liberdade” se torna lícita, não obstante Sartre dizer que a liberdade precede à essência. Nesse caso, não se deve responsabilizar o leitor, mas o próprio Sartre que não parece ter-se esforçado por buscar a clareza na exposição de suas ideias.
Seja como for, uma ideia é clara: segundo Sartre, não há existência para o homem que não suponha sua liberdade. Existir para o homem é ser livre. Creio que esse último enunciado sintetiza bem a compreensão do referido trecho de Sartre. Mas insisto em que a compreensão é sempre um trabalho em cujo desenvolvimento se abrirão lacunas ou caminhos para novos sentidos. Pode-se alcançar – e é necessário que assim se faça – uma compreensão global do texto, mas nunca uma compreensão definitiva que aprisiona o sentido. Vale sempre a lição: os sentidos são múltiplos e tomam direções diversas.
O leitor alcança a compreensão global quando é capaz, ao final, de reelaborar com suas próprias palavras o sentido atribuído ao texto. Evidentemente, esse sentido não pode ser qualquer um; mas tem de estar previsto pelo texto. Tem de estar entre os sentidos potenciais do projeto de dizer do produtor do texto, ainda que de todos os sentidos possíveis o produtor não esteja nem consciente nem sobre o controle.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

"Este texto fora escrito por um estudioso ateu, que se aventura na busca pela verdade" (BAR)


                      


                       Um breve retrato do Senhor Deus
                           O segundo relato do Gênesis


Jack Miles, eminente estudioso bíblico, ex-seminarista jesuíta e autor de Deus – uma biografia (2009), adota como premissa primeira desta sua obra a ideia de que Deus é uma personagem de uma extraordinária obra literária chamada Bíblia. Outra premissa consiste na ideia de que nem a personagem nem a obra são inumanos. Nas palavras do autor, “(...) não se encontra na própria Bíblia nada que nos autorize a ver Deus como um assunto a ser evitado em respeitoso silêncio” (p. 23). Acolho a observação do autor e ponho-me, aqui, então, a escrever sobre Deus, a tomá-lo para assunto a ser perquirido neste texto. Não silencio, visto que, tal como Jack Miles, também entendo que Deus é uma personagem – a principal - forjada por homens que viveram no Antigo Oriente Médio e a quem devemos atribuir a autoria dos textos que, muito tempo depois, reunidos, compuseram o que hoje chamamos de Bíblia. É difícil saber quem foram esses homens (certamente pertenciam a pequena elite letrada), mas o fato é que só a Bíblia hebraica (não incluindo aí a Bíblia cristã, cujos textos foram produzidos na metade do tempo) fora fabricada pelas mãos de muitos homens ao longo de mais de mil anos.
Veremos, neste texto, como Miles entende a participação de Deus no livro do Gênesis. Partirei do momento da narrativa em que Deus cria o homem. Ainda estamos no primeiro livro do Gênesis. E nele somos informados de que o homem foi criado à imagem de Deus. Miles levanta a seguinte questão: “Por que dar à humanidade essa versão do domínio divino?” (p. 40). A resposta oferecida pelo autor é que, dessa forma, a humanidade se torna uma imagem mais adequada de Deus, que comanda a criação. Também Miles se pergunta por que Deus ordena aos seres humanos que criou que se reproduzam e se multipliquem. Miles responde que, ao fazê-lo, Deus lhes confere a imagem de criadores também. Assim, Deus cria outro ser que também é criador.
Uma questão importante aventada por Miles, em sua análise da personagem Deus, na trama narrativa do Gênesis é a que diz respeito à razão por que Deus criou o mundo. Acompanhemos o que nos ensina o autor, nesse tocante:


“(...) Deus faz o mundo porque quer a humanidade e quer a humanidade porque quer uma imagem. Outros motivos podem estar igualmente em jogo. Para citar um relacionado ao Oriente Próximo, ele podia querer um servo. Para escolher outro, posterior em sua própria história, ele podia querer uma amante. Podia querer até um adorador (...)”.

(p. 41)


Miles, contudo, pensa que, neste momento, a Bíblia não permite endossar qualquer um dos motivos sugeridos posteriormente. Ele mantém que Deus quer uma imagem e, por isso, cria o homem.  A essa altura, outra pergunta se nos impõe: Por que Deus ia querer uma imagem de si? O autor reconhece que a narrativa não nos permite chegar a uma resposta exata; ela nos deixa à deriva das especulações. Nota o autor que o texto inclui um “nós” que faz referência ao próprio Deus. Esse “nós” incluiria as noções de macho e fêmea? O texto não poderia ser mais claro: Deus é retratado como um ser masculino e no singular. Miles observa também que nada sabemos da vida privada de Deus. O que ele fazia antes da Criação? Teria ele uma vida social com outros deuses? O que está claro é que faltava à vida de Deus um relacionamento com seres humanos. Estamos muito distante aqui da crença famigerada na autossuficiência de Deus. Se Deus criou os seres humanos, criou porque tinha alguma necessidade de fazê-lo. Quem quer que crie o faz segundo suas necessidades.
Miles nos ensina que no ato de Criação não há nenhum esforço despendido por Deus; no entanto, é notável o fato de que Deus, como um ser humano, descansa no sétimo dia. Atento a isso, Miles lança-nos a pergunta: “Será que custou-lhe mais esforço do que percebemos de momento? (p. 42)”. A essa pergunta, segue-se esta outra: “Será mais fraco do que demonstra?”. O autor observa ainda duas coisas que ao leitor comum passam despercebidas: em primeiro lugar, após criar o macho e a fêmea humanos, Deus lhes ordena que se multipliquem. No texto, aparece o enunciado “E assim se fez”. No entanto, naquele momento, eles ainda não tinham procriado. Em segundo lugar, Deus não diz da criação do homem que é boa, ele o diz em relação à criação como um todo (“Viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom”).
Não nos deixemos de nos impressionar com o relato segundo o qual Deus teria descansado no sétimo dia após a Criação. Miles é muito perspicaz em notar que “Deus já é, nesse primeiro momento de sua história, uma mistura de força e fraqueza, de determinação e arrependimento” (p. 42). Espero que o leitor que me acompanha atente para o modo como o autor vai-nos revelando a personalidade e a humanidade de Deus. A ambivalência patente que compreende força e fraqueza é um caso característico da humanização da própria natureza de Deus pelo narrador.
Sabe-se que a Bíblia inclui dois livros do Gênesis. O segundo relato da criação, cuja fonte original é independente, inicia-se com a substituição do termo elohim, traduzido como Deus, pelo termo yahweh elohim, que significa “Senhor Deus”. A expressão “o Senhor”, observa Miles, é usada para traduzir yahweh, mas ela traduz melhor a palavra hebraica edonay, que significa “meu Senhor”. Essas distinções linguísticas na forma como os antigos judeus chamavam a Deus serão importantes, porque permitirão a Miles distinguir num mesmo Deus duas personalidades. A primeira personalidade será denominada de “Deus”; a segunda, de “Senhor Deus”.
Consoante observa Miles, o segundo relato de Gênesis, lido, por vezes, em continuidade com o primeiro, deixa ver claramente uma tensão entre o criador e a criatura humana. Nas palavras do autor:


“A humanidade não é mais situada “na terra”, concebida como um gigantesco paraíso natural no qual deve ser fecundada e multiplicar-se, mas sim em “um jardim no Éden, na banda do Oriente”, que Deus plantou e deu ao “homem”, para que plantasse e cuidasse. E o domínio que a humanidade deveria exercer como imagem de Deus é também restringido”.

(p. 43)


Deus impõe limites à liberdade de ação e dominação humana. É nesse momento que Deus estabelece a primeira proibição: “De toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que comeres, certamente morrerás” (Gên., 2: 17). Deveríamos nos pergunta por que Deus plantaria uma árvore cujos frutos estariam proibidos ao homem? Miles ventila a questão em outros termos: “se o homem deve dominar a terra (relembrando o primeiro relato da criação), por que não lhe é permitido o conhecimento do bem e do mal?” (p. 43). Mas ao homem não se lhe oferece qualquer razão. Na verdade, a que é oferecida não faz sentido algum. Para Miles, “o Senhor Deus desta segunda história da criação parece notavelmente mais ansioso no confronto com sua criatura do que parecia o Deus da primeira”.
O Senhor Deus, que é outra personalidade diferente, portanto, da personalidade de Deus no primeiro relato da Criação, não vê bondade no homem. Deus cria a mulher a partir de uma costela do homem. Com o surgimento da mulher na cena narrativa, surge também o papel fundamental da serpente. Miles não vê na serpente um adversário de Deus. Nesse tocante, levanta as questões:


“Será a serpente sua rival? Ou será todo o episódio da tentação, por assim dizer, uma fraude? Será a serpente o agente secreto ou involuntário do Senhor Deus?
(p. 45)


Não se pode negar que a serpente, ao seduzir a mulher a comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, não mente para ela sobre o fato de que, se o fizesse, morreria. A serpente diz a verdade, e a mulher (Eva) e o homem (Adão) não morrem ao desobedecer à ordem do Senhor Deus.
Uma interpretação teológica tradicional, intentando conferir à serpente o papel de enganador, mantém que o casal experimentou uma morte espiritual, conhecida como “A Queda do homem”. Trata-se do famigerado “pecado original”. Miles objeta que “a narrativa que estamos lendo não é muito dada a significados espiritualizados ou puramente simbólicos, sendo-lhe, contudo, extremamente caras as histórias de enganos de todos os tipos” (p. 45). Em outras palavras, a interpretação teológica tradicional que vê na desobediência do homem uma morte espiritual, uma queda no pecado que condena todas as gerações posteriores, não é autorizada pelo texto do Gênesis. Miles propõe, ao contrário, buscar a origem do conflito no próprio Senhor Deus, em cujo caráter conflitam impulsos bons e maus. Para Miles, é o próprio Senhor Deus que causa as dores e as infelicidades da vida de suas criaturas.
O leitor precisa ter em conta, a esta altura, que, neste segundo relato de Gênesis, atua outra personalidade de Deus, chamada “Senhor Deus”. Espero também que não haja qualquer dúvida para o leitor sobre o caráter mítico das narrativas dos Gênesis. Não quero, contudo, sugerir um sentido negativo ao afirmar que o Gênesis é um mito bíblico. É verdade que mitos são histórias constitutivas de todas as religiões. Os mitos versam sobre a criação do mundo, do cosmo, sobre a natureza humana e dos deuses. Mitos contam a verdade sobre nós e, segundo Armstrong (2005: 15), eles servem de um guia, orientando-nos a viver de modo completo. Não obstante sua importância na construção da história e da identidade de um povo, mitos são histórias ficcionais, e não relatos históricos reais. No tocante à narrativa do Dilúvio, que consta do Livro do Gênesis, os especialistas estão de acordo em que a história bíblica é produto de uma releitura ou readaptação do mito babilônico, em que também se relatava uma enchente que destruiu o mundo. Acompanhemos as palavras de Miles, ao nos ensinar que:


“(...) A crítica histórica percebeu há muito a semelhança da história do dilúvio bíblico tanto em sua estrutura geral como numa variedade de detalhes importantes, como o mito equivalente da Babilônia. Naquele mito, como neste, passaram-se dez gerações entre a criação do mundo e sua destruição, a ira divina resulta numa enchente: o herói veda o seu barco com piche; depois a divindade sente o cheiro de uma oferenda, e assim por diante”.
(p. 62)


Ainda notando a influência sofrida pelo texto bíblico, Miles nos ensina que na Antiga Mesopotâmia, a criação era retratada como uma expressão da vitória da divindade sobre o caos. O caos era representado por uma deidade rival (um dragão aquático ou um monstro de enchentes). Miles observa que “existe sem dúvida um eco dessa batalha mítica na punição dada pelo Senhor Deus à serpente por haver tentado a mulher” (p. 46). O autor acrescenta, no entanto, que a versão bíblica tornou a serpente uma espécie de terceira personalidade do Senhor Deus. Para Miles, a serpente não é um oponente de Deus.


“O material mítico antigo foi tão profundamente reescrito que a serpente – a terceira personalidade absorvida na personalidade divina emergente – não é mais um deus rival, mas (remetendo-nos ao primeiro relato da criação) meramente uma criatura de Deus”.
(p. 46)


Caberia perguntar: quem criou a serpente? Ora, o próprio Senhor Deus, logo, com Miles, não é custoso dizer que o Senhor Deus é responsável pelos atos da serpente. É possível ver também na serpente a personificação da razão: a razão que leva ao conhecimento, que induz Eva a provar do fruto do conhecimento do bem e do mal. Aparentemente, não fazia parte do plano de Deus conceder ao homem tal conhecimento e liberdade. O que levanta a questão do livre-arbítrio, conceito desenvolvido por Santo Agostinho muito tempo depois. O Deus criador não estava disposto a dar nenhum livre-arbítrio ao homem, essa questão não se coloca na narrativa. Duas outras questões também ficam irrespondíveis: por que Deus criaria uma árvore de cujos frutos o homem e a mulher não podiam comer? O Senhor Deus do segundo livro do Gênesis não dá sinal de que é onisciente. Se o fosse, ele saberia tanto que a serpente tentaria Eva a comer do fruto proibido quanto que Eva assim o faria. Deus não só repreende a serpente, mas a si mesmo. Consoante nota Miles,


“(...) Aquilo que no politeísmo poderia ser dirigido para o exterior, contra uma divindade rival, no monoteísmo – mesmo um monoteísmo que fala ocasionalmente na primeira pessoa do plural – tem de se transformar num arrependimento voltado para o interior do Senhor Deus”.

(p. 46)


O criador se arrepende e seu arrependimento constitui o aparecimento do criador como uma personagem literária. É interessante ver que o Senhor Deus descobre a desobediência do homem e da mulher. E ainda pergunta ao homem: “Onde estás?”. Se pergunta, é porque não sabia. Miles observa ainda que a forma como Deus se dirige ao homem e a mulher, repreendendo-os, é a forma como qualquer ser humano faria ao se dirigir a outro ser humano. A linguagem do Senhor Deus não tem nada de majestosa, se comparada com a linguagem do Deus do primeiro relato do Gênesis. Todavia, na vingança, a linguagem do Senhor Deus assume uma forma mais poética e majestosa:


“Então o Senhor Deus disse à serpente:
“Visto que isso fizeste,
maldita és entre todos os animais domésticos
e o és entre todos os animais selváticos:
rastejarás sobre o teu ventre
e comerás o pó
todos os dias da tua vida
Porei inimizade entre ti e a mulher,
Entre a tua descendência e o seu descendente
(...)”


Miles reforça a ideia de que a serpente não é um oponente de Deus. No que se segue, ele é bem claro a esse respeito:


“(...) qualquer ideia de conflito cósmico é frustrada pelo fato de a serpente ter falado a verdade a respeito da árvore sobre a qual o Senhor Deus mentiu. A serpente parece ser o bobo de Deus mais do que o seu grande inimigo, e o castigo imposto pelo Senhor Deus ao casal humano parece, consequentemente, quase um ato arbitrário”.

(p. 48)



Até aqui, o perfil da personalidade do Senhor Deus pode ser traçado considerando seu modo de agir vingativo, brutal e arbitrário. O Senhor Deus é quem estabelece uma proibição e que pune pela desobediência ao seu mandamento. O Senhor Deus, ao contrário do Deus da primeira narrativa do Gênesis, não é tão generoso. Não só ele deu às suas criaturas humanas apenas uma porção de terra, mas também as privou dela. Miles nos lança duas perguntas importantes, a essa altura:


“Por que o Senhor Deus, que pacientemente organizou para o homem um cortejo de todos os animais numa tentativa de achar uma companheira para ele, tem de reagir com uma impaciência tão brutal diante da desobediência de uma mulher e do erro aparentemente inocente do homem? Nesses primeiros momentos tão cruciais, que tipo de relacionamento entre o Senhor Deus e a humanidade podemos ver?

(p. 49)


No segundo relato do Gênesis, o Senhor Deus não cria o homem à sua imagem; cria-o do pó. Ademais, a nudez do casal torna-se uma questão de interesse, o que não sucedia no primeiro relato. Mas Miles entende que o segundo relato continua o primeiro relato, de sorte que o pó, o desejo e a vergonha dizem muito sobre o caráter da divindade, o modelo a partir do qual o homem foi criado e do qual é uma imagem. “E na longa e emocional explosão – escreverá Miles – que acabamos de citar o Senhor Deus age de fato como o original de uma criatura humana feita de pó e paixão (p. 49)”.
Comparado ao Deus do primeiro relato, o Senhor Deus é menos poderoso e generoso, e, certamente, é mais vingativo. Sua ira não tem razão de ser. Segundo Miles, “para o Senhor Deus, tudo depende da obediência ao seu enganoso mandamento (p. 50)”. A obediência não é uma questão no primeiro relato. É importante insistir na aproximação do Senhor Deus de suas criaturas humanas. Há uma aproximação física, decerto. Deus as toca e, por isso, torna-se mais assustador para elas. Novamente, as palavras de Miles lançam alguma luz sobre este ponto:


“Como personagem, o Senhor Deus é tão perturbador quanto alguém que detém um imenso poder e parece não saber o que fazer com ele. Até esse ponto, o poder do Senhor Deus parece menor do que o poder de Deus. Mas, da forma como se manifesta, esse poder nos perturba. As motivações para o exercício desse poder estão em conflito, e esse conflito ocorre num relacionamento incomodamente íntimo”.

(p. 50)


Preciso esclarecer um ponto importante. O Deus do primeiro relato criou a humanidade à sua imagem. Ele queria criar um ser que fosse a imagem de si mesmo. Diferentemente, o Senhor Deus do segundo relato cria o homem para que ele o faça companhia.
Não pretendo ser exaustivo na apresentação da compreensão de Miles da natureza e personalidade de Deus no segundo relato do Gênesis. Muito ainda haveria para ser dito. Por limites de tempo e espaço, abreviarei este texto, não sem, antes, dar a saber a perplexidade do autor diante do fato de o temperamento de Deus oscilar rápida e facilmente entre a ira explosiva e a doçura, com que cura a ferida que ele mesmo infligiu. Assim se expressa Miles:


“Note-se que o Senhor Deus não se limita a fornecer as roupas de peles para as suas criaturas envergonhadas, punidas e humilhadas, ele próprio veste seus corpos nus com essas roupas. Súbito e íntimo, esse gesto quase paternal é, como teremos ocasião de ver depois, característico do Senhor Deus”.

(p. 52)


Não obstante, isso não o torna amável e adorado pelas criaturas humanas. Uma última questão é ventilada por Miles: “Se a única motivação de Deus ao fazer a humanidade era que a humanidade fosse imagem de Deus, e se Deus vive para sempre, então por que não permitir que a humanidade viva para sempre? (pp. 52-53)”. Miles sugere que a imortalidade poderia assegurar a obediência do homem e da mulher ao único mandamento explicito por Deus: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a”.
Por fim, gostaria de referir este trecho em que Miles reforça a afinidade entre o Senhor Deus e a serpente:


“A preocupação expressa pelo Senhor Deus nos leva [ a de que, uma vez que comam do fruto da árvore do conhecimento, o homem e a mulher tornar-se-iam conhecedores do bem e do mal] de volta à nossa observação anterior de que seus propósitos ameaçadores compreendem também os propósitos supostamente hostis da serpente. O Senhor Deus, semiconscientemente como é, parece estar jogando um jogo duplo. Ele não formula para os primeiros humanos a explicação, a determinação de que a humanidade não se torne um de nós [Deus]”

(p. 53)


Deixo a cargo do leitor as implicações desencadeadas por este texto.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

"Filosofar é aprender a viver". (Sponville)


                          

                                  Desesperar-se é preciso
                                   A lição de Sponville

Proporei, neste texto, uma leitura de algumas passagens do livro O Amor à solidão (2006), do filósofo contemporâneo francês André Comte-Sponville. Esse livro fora escrito na forma de entrevistas concedidas pelo autor a escritores e amigos. Nele, Sponville aborda temas como a esperança, o desespero, a solidão, o amor... e, é claro, a filosofia. As influências budista e estóica são notáveis no pensamento deste autor, que é ateu, mas advoga a importância de uma espiritualidade no ateísmo. Não menos marcantes são as vozes de Spinoza e Montaigne.
Ao mesmo tempo em que produzirei uma leitura dos trechos que cuidei relevantes, também procurarei por a nu o processo mesmo de interpretação, ou seja, procurarei explicitar como o leitor pode desenvolver um trabalho interpretativo que escave a superfície textual, a fim de alcançar as camadas subjacentes de sentido.
Comecemos, pois, pelos temas, que estão correlacionados, esperança e desespero. O entrevistador, em sua fala, refere personalidades e sistemas filosófico e religioso que exercem influência sobre o pensamento de Sponville, quais sejam, Epicuro, os estóicos, Spinoza, o budismo primitivo, etc. Trata-se de um convite a Sponville para que fale um pouco sobre aqueles conceitos, levando em conta tais influências.
Sponville inicia seu discurso afirmando que “o desespero não tem fronteiras, e a sabedoria não pertence a ninguém” (p. 47), de modo que ele justifica a diversidade das fontes em que seu pensamento se inspira. Evocando Camus, que se ocupou tanto do absurdo, Sponville nos dirá que também o desespero (como o absurdo) é uma “sensibilidade esparsa no tempo”. Para ele, o mundo e a vida só nos parecem absurdos porque sabemos que eles não se acomodam às nossas esperanças. Abandonadas estas, o absurdo deixa de existir. No entanto, não estou certo de que esse seria o caso. Inclino-me a ver o absurdo como a implosão do sentido. Sempre que não conseguimos atribuir sentido a algum acontecimento da vida (vejam-se as mortes de inocentes, os acidentes mortais), o absurdo revela sua face descomunal e agressiva. O que sobra, segundo Sponville, é “a simples positividade do real” (p. 48). E o real deve nos bastar.
Sponville dá-nos a conhecer um passo de Samkhya-Sutra, um texto sânscrito atribuído a um sábio hindu chamado Kapila. O trecho constitui o cerne do pensamento do filósofo sobre os temas esperança e desespero.

“Só é feliz quem perdeu toda esperança; porque a esperança é a maior tortura que há, e o desespero, a maior beatitude”.
(p. 48)


Claro está que, para Sponville, só podemos alcançar a felicidade, ainda que ela seja, para o autor, episódica, se abandonarmos qualquer esperança. O desespero, que é a perda da esperança, é o caminho que conduz à felicidade serena no próprio real. No tangente ao desespero, assim se expressa o autor:

“É o contrário do futuro radioso, das utopias, das religiões, de todas as esperanças que nutrem as guerras e os fanatismos... (...) não há serenidade sem desespero, nem verdadeiro desespero sem uma parcela de serenidade”.
(pp.49-50)


A esperança é incompatível com a serenidade. Quem espera vive angustiado. A esperança nos separa da felicidade. Toda esperança conserva quem a nutre na passividade. O desespero, dirá Sponville, é um trabalho (p. 50) e, como tal, demanda de nós ação. O desespero supõe um trabalho empreendido pela pessoa que precisa se livrar da esperança. Ele envolve sofrimento, desilusão, dificuldades. Só se pode ser feliz pelo caminho da desilusão. É preciso desiludir-se para pretender fruir a felicidade. Quando se lhe apresentou a ideia de que a felicidade faz viver, Sponville pondera:

“A vida continua assim, de esperanças em decepções, de decepções em esperanças... Não condeno essas pessoas: cada um se vira como pode. Mas, se a esperança faz viver, na verdade faz viver mal: de tanto esperar viver, não se vive nunca, ou então só se vive essa alternância de esperanças e decepções, na qual o medo (já que não há esperança sem temor) não cessa de nos afligir...”
(p. 51)


A vida é decepcionante, nisso estaria de acordo Sponville. E tanto mais o será quanto mais esperamos. Fazendo eco a Chico Buarque, “quem espera nunca alcança”. É necessário escapar ao ciclo que compreende a alternância entre esperanças e decepções. Uma ideia precisa ser destacada aqui: toda esperança envolve medo. Libertar-se da esperança é também desescravizar-se do medo. Não que o medo deixaria de existir para nós, mas dele não seríamos mais escravos.
É pelo desespero que se pode libertar-se daquele ciclo. Sponville dirá que não é a esperança que faz viver, mas o desejo. Cotejando a esperança à vontade, traça-lhes uma linha divisória:

“A diferença entre a vontade e a esperança é que só esperamos o que não está em nosso poder, ao passo que só podemos querer no campo de uma ação imediatamente possível. Para falar como os estóicos: só esperamos o que não depende de nós; só queremos o que depende”.
(p. 52)


Faço aqui uma breve digressão. Uma das figuras mais importantes do estoicismo é Epiteto. Ele costumava ensinar a seus discípulos que não está ao nosso alcance mudar nada no modo como as coisas se dão, mas podemos mudar nossas opiniões ou perspectivas sobre a ordem das coisas. Para tanto, ele propunha exercícios espirituais. Um deles, considerado básico, consiste em perguntar a si mesmo se é possível exercer alguma influência sobre dadas condições. Se não temos influência alguma sobre a ordem dos acontecimentos, não devemos nos inquietar. Na verdade, para Epiteto, as nossas inquietações advêm de nossas opiniões sobre os acontecimentos adversos, e não dos acontecimentos em si.  É preciso aceitar o que não depende de nós, é preciso reconhecer se temos ou não alguma influência sobre dado estado-de-coisas. Muitos aborrecimentos desnecessários poderiam ser evitados, segundo Epiteto, se alcançássemos essa compreensão.
Estou ciente de que esse resumo da filosofia estóica é bastante grosseiro, mas suficiente para os meus propósitos. Voltando a Sponville, que recupera essa lição estóica, a vontade se distingue da esperança, porque ela nos dirige ou nos impulsiona às coisas sobre as quais podemos exercer alguma influência ou às coisas que estão ao nosso alcance. A vontade nos leva a agir; ao contrário, a esperança nos imobiliza na espera por algo cuja realização não depende de nós. Os três grandes monoteísmos nos prometem a vida eterna, e os seus adeptos alimentam a esperança na verdade dessa forma de vida. Todavia, tal vida além-túmulo não depende dos que nela creem. Eles tão-só esperam que seja verdade que há uma vida eterna aguardando por eles; mas isso não os livra do medo; isso  não cala a pergunta: “e se isso não for verdade?”. Na esperança, nunca se pode estar realmente seguro de que o que esperamos será realizado ou alcançado. Sponville será mais radical, ao defender que toda esperança está fadada a não se realizar. Leiamos este trecho abaixo:

“(...) há lição mais clara que esta: a de que toda esperança nunca se realiza? Muitas vezes por não ser satisfeita, e todos conhecem o sabor disso, que é de frustração. Mas também acontece, e não é a coisa mais fácil de se viver, que uma esperança não se realiza por ter sido satisfeita, e temos então de constatar que sua satisfação não consegue nos dá a felicidade que esperávamos”.
(p. 40)

Não podemos deixar de notar e de nos surpreender com a ideia de que, mesmo quando satisfeita, a esperança não acarreta nossa felicidade. Donde se segue que, em qualquer caso, a esperança não constitui um caminho para a experiência de felicidade. Mas isso nos coloca outro problema, que diz respeito à impossibilidade mesma do desejo de nos proporcionar felicidade. Para Sponville, a condição humana é atingida por duas catástrofes: ou nossos desejos são satisfeitos, ou nossos desejos não são satisfeitos. No entanto, mesmo quando eles são satisfeitos, permanece o sentimento de que ainda falta uma porção (a mais) de felicidade. O desejo nos aprisiona na insaciabilidade. Mesmo quando satisfeito, não somos por isso mais felizes. Não quer Sponville libertar o homem do desejo – coisa que pensa ser impossível -, mas quer fazer-nos ver que é necessário desejar menos o que nos falta e desejar mais o que é; desejar menos o que não depende de nós e desejar mais o que depende de nós (p. 53).
Sponville não nos condena à infelicidade, tal como Freud, por exemplo. Mas não deixa de notar que a felicidade só é possível quando nada esperamos. Atentemos para o que se segue:

“(...) Vou dizer simplesmente o seguinte: não temos felicidade, ao contrário, a não ser nesses momentos de graça em que não esperamos nada, não temos felicidade, a não ser à proporção do desespero que somos capazes de suportar! Sim: porque a felicidade continua sendo o fim, é claro, e isso quer dizer também que só a alcançaremos se renunciarmos a ela”.
(p. 41)


Disse que me preocuparia em por a nu o processo de interpretação. Faço-o agora, sugerindo que o leitor experiente deve ser capaz de desmembrar o trecho em algumas ideias fundamentais à compreensão do ponto de vista do autor. A primeira ideia é que a condição para usufruir a felicidade é não esperar nada. É somente nos momentos em que nada esperamos que podemos ser surpreendido pela felicidade. Ela é uma graça, porque não esperamos por ela. A segunda ideia é que a condição para a felicidade é abandonar-se ao desespero suportável. Mais uma vez, Sponville dá testemunho da influência que sobre seu pensamento exerce a filosofia estóica: o fim é a felicidade. A felicidade está no horizonte humano, é possível como experiência da vida verdadeira, como experiência no real. Todavia, segundo Sponville, nossos sonhos, nossas esperanças, nossas frustrações, nossas decepções, nossos discursos, também nossas angústias e medos nos separam da vida verdadeira, nos impedem de viver a vida real; nos inibem ou nos paralisam.
Que papel cumpre a filosofia aí? Sponville responde: “filosofar é aprender a viver” (p. 54). A filosofia é o caminho pelo qual exercitamos o desespero. Mas o próprio Sponville nos adverte de que a filosofia de nada vale, se não estiver a serviço da vida. Na verdade, é a vida que vale.
Quando indagado sobre o que é sabedoria, ensina o filósofo o seguinte:

“A sabedoria não é outra vida, que seria preciso alcançar: é a própria vida, a vida simples e difícil, a vida trágica e doce, eterna e fugidia... já estamos nela: só resta vivê-la”.
(p. 55)


Entendamos bem: a sabedoria não é acúmulo de saberes colhidos em vastos acervos de livros; tampouco se confunde com erudição. Evidentemente, a sabedoria envolve saberes; mas saberes vividos, saberes que não são mais que experiências de vida Direi melhor: a sabedoria é a vida vivida. Com Sponville, podemos concluir que a sabedoria é acessível ao homem comum; a todos nós, quer sejamos filósofos, cientistas, quer não. A sabedoria independe de educação formal, de titulação acadêmica. Sabedoria do homem simples; sabedoria da vida simples. É o que nos ensina Sponville. Novamente, convém lançar olhares sobre as palavras do filósofo:

“(...) a vida não para de se ensinar a si mesma, de se inventar a si mesma, até o fim, e a filosofia é apenas uma das formas, no homem, desse aprendizado ou dessa invenção”.
(p. 54)

Só a vida conta. Nem mesmo o conhecimento livresco faz as vezes da experiência vivida. Mais vale o conhecimento vivido. No entanto, para viver a vida verdadeira é preciso se desprender das esperanças, e, se pretendemos alcançar a sabedoria, é preciso lançar-se ao trabalho do desespero. A sabedoria só se alcança quando nada mais esperamos. Compreendemos que a vida verdadeira basta: isso é a sabedoria. O sábio é aquele que já não precisa mais da filosofia. A sabedoria é a vida simples, e simplicidade consiste em se desfazer de tudo quanto nos atravanca e nos separa do real e da vida.
É importante notar, a essa altura, que Sponville não supõe que todos nós possamos deter a sabedoria completa, porque o desprendimento de nossas ilusões, de nossas esperanças nunca se dá inteiramente. Mas só a sabedoria é o caminho que nos leva a viver, simplesmente. A sabedoria é o caminho: um caminho de ação e de amor.
Um dos enunciados mais lúcidos e intrigantes que destaquei deste trabalho de Sponville é este: “Há desespero em todo amor e tanto mais quanto menos ilusões temos” (p. 53). Também no amor não devemos esperar. Sponville sustenta que devemos amar as pessoas como elas são ou viver culpando-as por nos decepcionar. O amor não nos livra de nossa própria solidão. O amor, para Sponville, é solidão compartilhada.

“O próprio amor é que é extraordinário, todo amor, mesmo que se trate, como quase sempre, de amores muito comuns. Eu queria simplesmente dizer que nada tem importância, que nada tem valor, salvo pelo amor que depositamos ou que encontramos. Uma estrela que se extingue, que importância tem? O fim do mundo, que importância? Nenhuma, se não amássemos o mundo ou a vida!”.

(p. 67)


É o amor que valora. É o amor um valor. É ele que dá valor a seu objeto. Todo objeto amado é um valor para o amante. Chamo atenção do leitor para o uso da forma “amássemos”. Ela permite-nos pressupor que todos nós amamos o mundo ou a vida. Mas caberia perguntar se é verdade que todos podemos amar o mundo ou a vida. Interessante notar que o sentido seria outro, caso o autor (ou o tradutor?) escolhesse a forma “amarmos”. Se essa forma tivesse ocorrido, o pressuposto não se inferiria. A rigor, “amarmos” nos levaria a entender que há sempre a possibilidade de não amarmos a vida. Quem quer que não ame a vida não terá ela valor algum, importância alguma. Porque o amor valora.
Costumo insistir na ideia de que o descobrir-me ateu significou uma profunda transformação na maneira como compreendo e sinto a vida. E a influência da filosofia de Sponville para a reconciliação entre mim e o mundo ou a vida – sem que se tenha dissipado nela o conflito que lhe é inerente – é, certamente, um bem que reconheço e que compartilho com o leitor, sem nada esperar, é claro.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

"Amo como ama o amor. Não conheço nenhuma outra razão para amar senão amar. Que queres que te diga, além de que te amo, se o que quero dizer-te é que te amo?" (Fernando Pessoa)


                            

                            
                              A liquidez do romântico


Duas questões porão em movimento minhas reflexões neste texto: O que é o romantismo? e Quem é o romântico?. Para tentar respondê-las, proporei um passeio, que se pretende breve, pela história do movimento romântico. O movimento romântico, na verdade, recobriu um conjunto diversificado e díspar de tendências, de tal modo que parece mais adequado falar em romantismos.
Como um movimento estético, o romantismo surge num período que se estende do final do século XVIII aos meados do século XIX. A cena história em que se deve situar o romantismo é marcada pelo declínio da aristocracia do século XVIII e a eclosão do cientificismo urbano-industrial da segunda metade do século XIX (período longo em que se deu a chamada Revolução Industrial). O romantismo teve diversos desdobramentos nos três países em que vicejou: a Inglaterra, a Alemanha e a França.
Sendo mais do que um programa de ação que congregou poetas, filósofos, artistas, romancistas e músicos, o romantismo foi um movimento que abrigou atitudes conservadoras e libertárias, a inovação estética e a repetição de padrões consagrados, a íntima relação com o poder e a revolta radical. Não se pode negar que liberdade, paixão e emoção constituem os pilares do movimento romântico. Mas não foi só disso que viveu o romantismo.
Uma maneira de compreender mais facilmente o drama romântico é pensar na natureza do herói romântico. Ele é marcado pela inadaptação ao mundo, pelo desacordo com a sociedade, pelo descontentamento com ela. O herói romântico é um sujeito deslocado ou marginalizado. Seu destino é solitário e suas disposições psíquicas levam-no às diversas formas de fuga (o sonho, a morte, a idealização do amor, da mulher, da pátria, etc.).
O romantismo nasce – é preciso frisar - permeado por contradições, assentado sobre afirmação e negação que instauram o conflito entre o eu e o mundo, entre o indivíduo e o Estado, produzindo as condições necessárias à eclosão de um individualismo de profundidade jamais antes sentida no Ocidente. O sujeito romântico é um sujeito problemático, porque em desarmonia com o seu tempo e com a História. Devemos entender que a exacerbação lírica ou o sentimentalismo exagerado, a melancolia, o pessimismo e a valorização da morte são algumas das formas pelas quais o romântico expressa sua insatisfação ou espanto em face dos valores de sua época que, em sua visão, se tornaram inaceitáveis. O romântico é, assim, um sujeito social inconformado, que vive em constante conflito com o mundo.  A insatisfação com a realidade sócio-histórica levava os românticos a acentuar as sensações, os sentimentos e as imagens oníricas.
Nada mais distante de um romântico que o homem comum deslumbrado com a vida, bem satisfeito com as condições sociais de existência. Nada mais longe de um romântico que o indivíduo bem adaptado ao social, ao seu mundinho egóico. Não se é romântico se não se vê à volta com um profundo sentimento de mal-estar. Ser romântico não se reduz a ser afetuoso, extremamente carinhoso e cortês. Quem está bem arranjado em sua própria pele não é um romântico; quem olha para o mundo e se sente em casa não é um romântico.  Tampouco é romântico quem não se confronta com o mundo e se abandona ao desejo de sua própria morte como fuga derradeira em face das desilusões. Todo romântico se caracteriza, fundamentalmente, pelo desencanto, pela tendência à melancolia e pela valorização da morte, ao mesmo tempo em que alimenta um espírito revolucionário ou de revolta.
Um olhar sobre o romantismo hoje revela, segundo Citelli (2007), o seguinte:

“O que existe hoje são presentificações de gestos e valores que vicejaram pelo século XIX: um olhar sonhador, um comportamento evasivo, um certo saudosismo e crença de que o mundo já não é tão bom como antes, a viagem proporcionada pelas drogas, o intenso e muitas vezes platônico sentimento amoroso, são alguns dos múltiplos aspectos a que se chama comumente de postura romântica. É preciso ponderar, portanto, que ao se falar hoje em romantismo considera-se um conjunto de experiências humanas decorrentes de uma situação histórica precisa e que já não se confunde mais com aquele quadro de referências do século XIX”.
(p. 9)



Não tenho a intenção aqui de contar a história do amor romântico, mas de examinar qual é o espaço destinado ao amor romântico em nossa modernidade líquida. Outra questão também me ocupará: o que é ser romântico numa época em que os valores do mercado permeiam as relações interpessoais, de modo a torná-las cada vez mais frágeis e descartáveis? Tenho, forçosamente, de começar por entender a relação entre o amor-paixão e o amor romântico. Giddens, em seu A transformação da sexualidade (1993), propõe uma distinção entre amor-paixão e amor romântico. Segundo Giddens, o amor paixão exige dos amantes a abstração das suas atividades rotineiras. O envolvimento emocional entre eles é invasivo e avassalador. Destarte, imersos no amor paixão, os apaixonados ignoram as obrigações do dia-a-dia.  Por ser um sentimento subversivo, e, portanto, capaz de sacrificar as exigências da vida social, é encarado como perigoso (Giddens, 1993, p. 48).
Claro é que o amor romântico incorporará um pouco do amor-paixão, mas, ao contrário deste, procurará responder melhor aos anseios sociais. O amor romântico acena com as necessidades de liberdade e auto-realização ainda muito presentes em nosso século. Seus valores estão associados ao casamento e ao papel da mulher como dona de casa e mãe. Se, por um lado, o amor romântico estava associado à subordinação da mulher ao lar e à sua limitada participação nas esferas públicas, por outro lado, serviu também a elas para a expressão de seu poder e autonomia. Para os homens, a tensão entre o amor-paixão e o amor romântico ligava-se à separação entre o amor “respeitável” experienciado com a esposa e o amor sensual experienciado, fora da esfera do lar, com a prostituta. Segundo Giddens,

“(...) a fusão do amor romântico e da maternidade permitiu às mulheres o desenvolvimento de novos domínios de intimidade. (...) Como especialistas do coração, as mulheres estabelecem contato uma com a outra em uma condição de igualdade pessoal e social, dentro dos aspectos amplos das divisões de classe. As amizades entre mulheres ajudaram a mitigar os desapontamentos do casamento, mas também mostraram-se por si sós compensadores. As mulheres falavam das amizades, assim como os homens frequentemente o faziam, em termos de amor, e ali encontraram um verdadeiro confessionário”.
(p. 55)



O amor romântico supõe certo grau de autoquestionamento (como eu me sinto em relação ao outro?). Importa ver que o amor romântico é incompatível com a luxúria. Na realidade, a consumação do ato sexual, no amor romântico, tende a enfraquecê-lo. O amor romântico é amor de almas. No amor romântico, o outro preenche um vazio no eu. O eu só se torna inteiro pelo outro. O amor romântico, não deixando de incorporar resíduos do amor-paixão, é amor voltado para a transcendência. Seu fim pode ser trágico, mas também pode produzir triunfos. O amor romântico se baseia na idealização do outro. Há, como no amor-paixão, a absorção do outro. As heroínas românticas são agentes produtoras do amor. O amor delas faz com que sejam amadas pelo outro.
Não se pode negar o caráter subversivo do amor romântico, mas, como nota Giddens,


“O caráter intrinsecamente subversivo da ideia do amor romântico foi durante muito tempo mantido sob controle pela associação do amor com o casamento e com a maternidade, e pela ideia de que o amor verdadeiro, uma vez encontrado, é para sempre”. (p. 58)



No tangente ao amor-paixão, Furtado, em seu livro Amor (2008), nota que:

“O amor-paixão implica a ideia da eleição do outro e da busca da fusão erótica com ele – fusão que não depende necessariamente da realização de um ato sexual sem o que a própria vida perderia o sentido. O outro é elevado ao estatuto de ser absoluto, paradoxalmente, para mim”.

(pp. 39-40)


Qual é a forma de amor predominante na modernidade atual? Há quem entenda que o amor de nossa época é um amor epidérmico, ou seja, um amor que se manifesta ao nível superficial da pele. Bauman (2004), enfatizando a fragilidade dos vínculos humanos, chama ao amor da modernidade atual “amor líquido”. O amor líquido é a forma de amor característica da modernidade líquida (Bauman, 2009).

“A vida líquida” e a “modernidade líquida” estão intimamente ligadas. A “vida líquida” é uma forma de vida que tende a ser levada adiante numa sociedade líquido-moderna. “Líquido-moderna” é uma sociedade em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir. A liquidez da vida e a da sociedade se alimentam e se revigoram mutuamente. A vida líquida, assim como a sociedade líquido-moderna, não pode manter a forma ou permanecer por muito tempo”.

(p. 7)


Segundo Bauman, as relações amorosas estão hoje entre os dilemas mais árduos com que precisam lidar homens e mulheres. A maioria deles tem necessidade da ajuda de um companheiro fiel “até que a morte os separe”. No entanto, o “até que a morte os separe” os assusta e os desencoraja: outras pessoas não podem nos aprisionar; não podemos permitir que elas nos impeçam de viver as múltiplas possibilidades de usufruir cada vez mais prazer. Temos de seguir o ritmo frenético desta “vida líquida” cujas condições mudam num curto espaço de tempo. Temos de buscar prazeres cada vez mais urgentes e sempre renováveis. O “até que a morte nos separe” condena-nos ao tédio, causa aborrecimento e nos acarreta uma vida sexual-afetiva de privações. Os compromissos que aspiram a conservar-se por tempo indeterminado devem ser evitados, porque podem nos impedir de viver algo melhor no futuro. Prefiram-se as “conexões”, facilmente desfeitas caso as circunstâncias não nos beneficiem mais.
Nas condições da vida líquida – ou “no império do efêmero”, termo com que o filósofo francês Gilles Lipovetsky denominou a modernidade, - o amor tornou-se uma mercadoria cuja aquisição, por um preço módico, todos desejam rapidamente. As leis da sociedade de consumo – obsolescência, sedução e diversificação – passaram, por meio de processos ideológicos e socioeducativos, a invadir as esferas privadas de relacionamentos, produzindo, assim, as condições favoráveis à experiência dos amores líquidos. Os amores líquidos se definem por duas características essenciais: a incessante busca por novos relacionamentos e a recusa de vínculos duradouros. Os amores líquidos, sempre fluidos e frágeis, se regem pelo imperativo da libido, o qual leva os envolvidos a buscar incessantemente novas possibilidades de prazer. Consoante nota Bauman (2009) a respeito das condições de existência na modernidade líquida,

“A vida numa sociedade líquido-moderna não pode ficar parada. Deve modernizar-se (leia-se ir em frente despindo-se a cada dia dos atributos que ultrapassaram a data de vencimento, repelindo as identidades e assumidas) ou perecer. (...) A necessidade aqui é correr com todas as forças para permanecer no mesmo lugar, longe da lata de lixo que constitui o destino dos retardatários”.

(pp. 9-10)


Eis o drama amoroso dos homens e mulheres modernos: eles querem o amor verdadeiro, mas não estão dispostos a vivenciá-lo como um longo trabalho intersubjetivo de construção de companheirismo, cumplicidade e fidelidade ao próprio amor. Novamente, devemos ponderar sobre estes excertos de Bauman (2009)

“Não se deixe apanhar. Evite abraços muito apertados. Lembre-se de que, quanto mais profundas e densas suas ligações, compromissos e engajamentos, maiores os seus riscos. Não confunda a rede – um turbilhão de caminhos sobre os quais se pode deslizar – com uma malha, essa coisa traiçoeira que, vista de dentro, parece uma gaiola. E lembre-se, claro, de que apostar todas as suas fichas em um só número é a máxima insensatez”.

(p. 78)


“Quando a qualidade o decepciona, você procura a salvação na quantidade. Quando a duração não está disponível, é a rapidez da mudança que pode redimi-lo”.

(p. 77)


O imperativo da libido, que impulsiona os homens e as mulheres a buscar cada vez mais prazer, em novas formas de relacionamentos, se pauta pela quantidade de conquistas sexuais. Entre os jovens é comum ouvir o conselho “a fila anda”, sempre que percebem que os relacionamentos de outrem fracassaram. É o que nos diz Bauman: nessas circunstâncias, só a rapidez da mudança, do seguir em frente na busca ininterrupta de prazer é que pode nos poupar o aborrecimento ou o tédio.
Instabilidade, fragilidade, urgência de prazer, recusa a manter vínculos duradouros caracterizam as condições dos relacionamentos humanos da modernidade líquida. Tais condições são reforçadas pela influência do que Bauman (2009) chama “síndrome consumista”.

“A síndrome consumista” à qual a cultura contemporânea se rende cada vez mais tem como centro uma enfática negação da virtude da procrastinação e do preceito de “retardar a satisfação” – princípios fundadores da “sociedade dos produtores” ou “sociedade produtivista”. Na hierarquia herdada dos valores reconhecidos, a “síndrome consumista” destronou a duração, promoveu a transitoriedade e colocou o valor da novidade acima do valor da permanência”.


(p. 83)


Na cultura líquido-moderna, a norma é seguir o fluxo das mudanças, libertar-se das condições sufocantes e desagradáveis. É necessário esquecer rapidamente o que passou ou o que já foi superado. Os valores de outrora já não contam mais; os padrões em que se pautavam comportamentos dantes apreciáveis fazem parte do antiquário do esquecimento.

“Evidentemente, seria injusto e imprudente depositar na indústria de consumo, e apenas nela, a culpa da situação em que a criação cultural hoje se encontra. Essa indústria está bem equipada para a forma de vida a que chamo de “modernidade líquida”. Essa indústria e essa forma de vida estão afinadas entre si e reforçam mutuamente o controle sobre as opções que os homens e as mulheres de nossa época podem, de forma realista, fazer. A cultura líquido-moderna não se percebe mais como uma cultura do aprendizado e do acúmulo, como as outras registradas nos relatos de historiadores e etnógrafos. Parece, em vez disso, uma cultura do desengajamento, da descontinuidade e do esquecimento.

(p. 83)



Ocorre, porém, que, pelo menos desde Platão, o amor sempre foi pensado como um sentimento vinculado à ideia de eternidade. Ao contrário, o desejo é instantâneo. Segundo Furtado (2008, p. 28), o gozo não é a realização do amor. Para ele, o amor é um trabalho, é uma dificuldade, muito mais do que uma faculdade. A isso, acrescenta que o amor supõe a crença de que de dois se possa fazer um. Certamente, essa concepção é adequada à imagem do amor romântico. Furtado nota, contudo,

“[que] o sexo desfaz essa crença através da certeza, sempre refeita em cada ato sexual, por melhor que ele seja, de que onde há dois, há sempre e reiteradamente, dois”.

(p. 32)


Lembre-se de que já disse que o amor romântico é incompatível com a luxúria. O amor romântico não supõe consumação do ato sexual. É um amor de almas. Disso se segue que, nas condições atuais, tais como descritas acima, nas quais os relacionamentos se estabelecem sobre o imperativo da urgência de gozo, é pouco provável que haja terreno para o enraizamento do amor romântico ou de seus ideias. No amor romântico e nisso ele acompanha o amor-paixão, o outro é elevado à posição de ser absoluto, muito embora, paradoxalmente, essa elevação seja relativa ao amante (Furtado, 2008 p. 40).
Em O paradoxo amoroso (2011), Pascal Bruckner oferece-nos à apreciação estas palavras bastante felizes:

“Amar é antes de mais nada subtrair um ser da comunidade humana, desertificar o mundo e não saber de nada que não seja ele. Esse sacrifício exige, porém, reembolso e se possível com juros. O eleito deve me provar diariamente que eu estava certo ao colocá-lo sobre um pedestal e desdenhar outros galantes eventuais”.

(p. 86)


Claro me parece que a representação que Bruckner faz do amor nesse trecho é incompatível com a forma de amor-líquido, já que esse supõe, dada a fragilidade, a necessidade de buscar novos galantes.  Todavia, Bruckner nos ensina algo importante sobre o amor: todo amor é condicional. Além disso, todo amor é fonte de demandas. No amor, os amantes se elegem em meio a uma multidão de possíveis pretendentes. Isso, evidentemente, implica privações. Ao se elegerem, eles aceitam abrir mão de outros possíveis pretendentes ao posto de objeto do seu amor. Tal sacrifício demanda a garantia da permanência do sentimento eletivo. O Eu te amo passa, assim, a significar eu te elegi para ser senhor de meu coração. O Eu te amo reiterado todos os dias reforça ao amado a sua importância na vida do amante. No amor, todo ser amado é um ser especial. Mas não nos enganemos. Como nos lembra Precht (2012), não raro, amamos os que não nos amam e não amamos os que nos amam. Curiosamente, “não escolhemos sempre a pessoa mais amorosa para amar” (Precht, 2012, p. 172).
E esta lúcida fórmula de Sponville, em O amor à solidão (2006), não nos deixará iludir com o amor:

“Há desespero em todo amor e tanto mais quanto menos ilusões temos”.
(p. 53)