Para além da ignorância: do ser ateu
Feuerbach tem muito a nos ensinar, em A essência do Cristianismo (2009). Os religiosos deveriam permitir-se à leitura deste eminente filósofo alemão, que legou ao mundo um estudo antropológico, lúcido e consistente, da religião, em especial, do cristianismo. Ele vai às raízes, onde Deus é inventado. À página 134, escreve:
“(...) a especulação religiosa também considera os dogmas separados do contexto no qual eles somente têm sentido; ela não os reduz criticamente à sua verdadeira origem interna; antes transforma ela o derivado em primitivo e inversamente o primitivo em derivado. Deus é para ela o princípio: o homem vem depois. Assim distorce a ordem natural das coisas! O principio é exatamente o homem, depois vem a essência objetiva do homem: Deus”
Reitero aqui: Deus é a essência objetiva do homem. É somente possível um debate equilibrado e racionalmente orientado se os religiosos estiverem de acordo quanto a esta premissa: foram os homens que inventaram Deus. Inverter essa relação é ideologia. E o leitor que me lê me diria: mas pensar assim desmontaria todo edifício da fé, mostraria que as religiões são fabricações humanas pelas quais os homens contemplam, adoram a sua própria essência, nada além disso. Decerto, é isso que Feuerbach se esforçou por nos fazer ver. Para ele, a religião representa a cisão do homem consigo mesmo. Nas palavras do autor,
“(...) ele [o homem] estabelece Deus como um ser anteposto a ele. Deus não é o que o homem é, o homem não é o que Deus é. Deus é o ser infinito, o homem o finito. Deus é perfeito, o homem imperfeito; Deus é eterno, o homem é transitório; Deus é plenipotente, o homem impotente; Deus é santo, o homem pecador, Deus e homem são extremos: Deus é o unicamente positivo, o cerne de todas as realidades, o homem é unicamente negativo, o cerne de todas as nulidades”.
(p. 63)
Depreendemos daí que Deus é a antítese do homem. Na religião, se dá a cisão entre o homem e sua essência, que é objetivada como Deus.
Certamente, Feuerbach contribuiu significativamente para a consolidação de meu ateísmo. Entretanto, como insisti em recente controvérsia com alguns desconhecidos cristãos, numa rede virtual de relacionamentos sociais, meu ateísmo é fundamentado e, embora eles me tenham admoestado de que eu, como o supõem, não li a Bíblia, ou pelo menos não da forma como eles a leram, eu me tornei ateu, em grande medida, porque alcancei uma compreensão dos fatos, da história que a eles escapa. E insisti em que a religião promove a ignorância – e não só uma ignorância que atenta contra o bom-senso, mas também uma ignorância histórica. Afinal, eles se vangloriam de serem leitores (dedicados?) da Bíblia, mas nada sabem a respeito da História de sua fabricação. Estou quase certo de que livros como Evangelhos Perdidos (2008), de uma das maiores autoridades nos estudos do cristianismo primitivo, Bart D. Ehrman, não chegaram ao conhecimento deles (e provavelmente, não chega ao da maioria dos religiosos, que em igrejas, entoam cantos, se ajoelham e louvam as palavras que constam dos evangelhos canônicos). Entretanto, esses mesmos religiosos ignoram o fato de que existem outros evangelhos, hoje, então conhecidos, que foram considerados heréticos e excluídos do cânone. Ensina-nos Ehrman a este respeito, na referida obra:
“Quase todas as Escrituras “perdidas” dos cristãos primitivos eram falsificações. Com relação a isso concordam acadêmicos de todas as correntes, liberais e conservadores, fundamentalistas e ateus. O livro atualmente conhecido como o Proto-Evangelho de Tiago declara ter sido escrito por ninguém menos que Tiago, irmão de Jesus (ver Mc 6:3; Gl 1:19) (...) Mas quem quer que tenha escrito o livro, não foi Tiago. (...) Isso é verdade também com relação a quase todos os Evangelhos, Atos, Epístolas e Apocalipses que vieram a ser excluídos do cânone e falsificações em nome de apóstolos famosos e seus companheiros”.
(p. 28)
Há, portanto, aí, um testemunho histórico de que a Bíblia que chegou até nós foi produto de uma série de disputas, de falsificações e exclusões, em favor dos que detinham o poder. Nesse tocante, Ehrman levanta as questões seguintes:
“Como falsificações puderam entrar no Novo Testamento? Possivelmente, é melhor reverter a pergunta: por que falsificações não entrariam no Novo Testamento? Quem estava compilando os livros? Quando o fizeram? E como eles poderiam saber se um livro supostamente escrito por Pedro foi de fato escrito por Pedro, ou se um livro supostamente escrito por Paulo era realmente de Paulo? Até onde sabemos nenhuma dessas cartas foi incluída em um cânone de textos sagrados até décadas após terem sido escritas, e o cânone do Novo Testamento como um todo ainda não alcançaria sua forma final pelos dois séculos seguintes. Como alguém podia saber, centenas de anos depois, quem tinha escrito tais livros?”
(p. 30)
A VERDADE é intricada e depende de um esforço intelectual ao qual os religiosos que seguem fielmente as doutrinas que lhes são entulhadas na mente não demonstram qualquer disposição. É mais cômodo acreditar que a Bíblia realmente foi escrita por homens agraciados pela inspiração de Deus e não por muitas mãos que, ao longo de muitos séculos, falsificaram e deturparam textos e travaram lutas de poder em torno dos escritos que iam sendo forjados. É mais cômodo acreditar que a única visão de mundo verdadeira e a única forma de compreender a natureza de Cristo são as que foram institucionalizadas pelo cristianismo “vitorioso” do que saber sobre a existência de uma ampla diversidade de cristianismos, recoberta pela designação Cristianismo primitivo. Nos séculos II e III, havia pessoas que acreditavam em um único Deus, mas também havia quem acreditasse em dois, trinta, ou mesmo em 365 deuses (ver. Ehrman, p. 18).
Também nesses séculos, houve cristãos que creram que a Escritura Judaica (“Antigo Testamento”) fora inspirada por um Deus único e verdadeiro. Outros, por outro lado, acreditavam que, embora inspirada pelo Deus dos judeus, ele não era o Deus único e verdadeiro. Houve ainda aqueles que acreditavam que ela fora inspirada por uma divindade maligna. E, finalmente, havia cristãos que negavam qualquer inspiração.
Naqueles tempos, também houve aqueles que divergiam em crenças a respeito da natureza de Jesus. Houve aqueles que atribuíam a Jesus a dupla natureza: humana e divina. Houve os que acreditavam que ele era apenas divino e não humano. Outros ainda creram ser Jesus homem que fora adotado por Deus para filho, mas que não era divino por si mesmo. Havia cristãos que acreditavam ter sido Jesus humano; e Cristo, divino - este teria habitado o corpo de Jesus temporariamente e inspirado seus ensinamentos e milagres, abandonando-o antes da morte.
Nos séculos II e III, cristãos houve que acreditavam que a morte de Jesus nada tinha a ver com salvação; outros, porém, pensavam ao contrário: a morte significou a salvação do mundo. E ainda havia grupos que acreditavam que Jesus nunca morreu.
A religião nunca poderá pretender à verdade; seu pilar é a fé (confiança sem provas). Com que critério se poderia definir qual das muitas crenças que circulavam naqueles tempos era a verdadeira?
Na seção As Escrituras perdidas (p. 20), Ehrman nos ensina que os Evangelhos encerrados no Novo Testamento foram todos escritos anonimamente; só posteriormente lhes foram atribuída autoria. Nas palavras do autor:
“Mas na época em que esses nomes estavam sendo associados aos Evangelhos, outros livros da mesma espécie tornavam-se disponíveis, textos sagrados que eram lidos e reverenciados por diferentes grupos cristãos em todo o mundo: um Evangelho, por exemplo, que declarava ter sido escrito pelo discípulo mais próximo de Jesus, Simão Pedro; um outro de seu apóstolo Filipe; um Evangelho supostamente escrito pela discípula de Jesus, Maria Madalena; um outro do próprio irmão gêmeo de Jesus, Dídimo Judas Tomé.”
(p. 20)
Evidentemente, conforme assinala o autor, alguma pessoa decidiu pela inclusão de quatro desses primitivos Evangelhos no cânone. Donde a pertinência das questões suscitadas por ele:
“Mas como foram tomadas essas decisões? Quando? Como se poderia ter certeza de que estavam corretos? E o que aconteceu com os outros livros?
Vale notar ainda que os estudiosos não estão de acordo se Paulo foi realmente o autor de suas cartas. Há cartas atribuídas a Paulo que não constam do Novo Testamento, como as muitas que ele enviara ao filósofo romano Sêneca.
A única verdade que subsiste, neste terreno de disputas e crenças divergentes, é a verdade dos fatos, da história, que é trazida à cena por estudiosos como Ehrman. A verdade sobre a fabricação das Escrituras Sagradas pode ser resumida nestas linhas:
“Hoje sabemos que em alguma época, em algum lugar, todos esses livros não-canônicos, assim como muitos outros, foram reverenciados como sagrados, inspirados e escriturais. (...) Somente 27 dos livros cristãos primitivos foram enfim incluídos no cânone, copiados por escribas através dos tempos, finalmente traduzidos para o inglês [e para o português], e agora estão nas estantes de praticamente todos os lares dos Estados Unidos [e do Brasil]. Outros livros vieram a ser rejeitados, escarnecidos, amaldiçoados, atacados, queimados, completamente esquecidos – perdidos”.
(p. 21)
Em face das evidências, em face da verdade a respeito da fabricação da Bíblia, pergunto-me com que direito os religiosos podem me censurar por não acreditar em Deus e não acreditar que Jesus tenha operado milagres e tenha sido, em parte, divino? Para mim, o fato de a Bíblia ter sido resultado de uma série de cópias, falsificações e escolhas politicamente determinadas é uma prova suficiente de que não representa nem a mente de um suposto Deus, tampouco fora inspirada por ele. Como poderia Deus ter silenciado em face dessa fragmentação e deturpação de seus pensamentos? Escusa lembrar que há entre os Evangelhos constantes do cânone contradições, como a que diz respeito ao local onde Jesus nasceu. Isso também aponta para o fato de que a Bíblia é um produto literário de mãos e mente humanas.
Os estudiosos admitem, há muito, que mesmo os textos incluídos no cânone são falsificações. Alguns preferem chamá-los de escritos “pseudonímicos”.
O que a História nos revela sobre Jesus? Que ele era um profeta judeu, um dentre os muitos pregadores que circulavam na Palestina do século I d.C. Jesus anunciava o Reino de Deus – e Reino de Deus não fora empregado como uma metáfora. Jesus acreditava que Deus viria à Terra para estabelecer o seu Reino, sem injustiças e desigualdades sociais. A intervenção divina seria uma intervenção política, que poria fim às relações de classe.
Jesus, contudo, se destacara dos demais profetas, por três razões: primeiramente, ele rejeitava a luta armada; demonstrava-se impaciente com a observância exagerada dos preceitos judaicos; e aceitava as mulheres entre seus seguidores, o que contrariava os costumes das correntes rabínicas da época.
Paulo de Tarso, que outrora perseguia cristãos, converteu-se, tornando-se, segundo alguns estudiosos, o inventor do Cristianismo. Na realidade, foi ele seu principal propagador. Todavia, se considerarmos o modo como Paulo encarava a condição da mulher, seu pensamento é um verdadeiro retrocesso em relação à posição de Jesus. Na Primeira Epístola a Timóteo (2, 11-15), declara:
“A mulher aprenda em silêncio com toda a submissão. Pois não permito que a mulher ensine nem tenha domínio sobre o homem, mas que esteja em silêncio. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E Adão não foi enganado, mas a mulher, sendo enganada, caiu em transgressão; salvar-se-á, todavia, dando à luz filhos, se permanecer com sobriedade na fé, na caridade e na santificação, com modéstia”.
Pergunto-me como uma visão de mundo tão machista e sexista pode ainda orientar o pensamento de muita gente no século XXI, em sociedades modernas que vêm rejeitando as condições de assimetria entre os gêneros, em sociedades em que o homem deixou de ser o pai de família e provedor, em sociedades em que, reconhecidamente, as mulheres vêm alcançando maior participação social e política?
No entanto, devemos nos acautelar. Parece que nem todas as cartas são de autoria de Paulo. Em Gl 3: 28, Paulo declara: “em Cristo, não há homem ou mulher”. Paulo consentiu que mulheres falassem em igrejas, mas recomendava que cobrissem a cabeça, quando orassem e profetizassem.
De qualquer forma, é historicamente comprovado que as condições de existência da mulher, naqueles tempos, eram drasticamente limitadas e caracterizadas por submissão à figura patriarca.
O ateísmo nos permite um olhar de fora, do exterior, não-contaminado, não-infectado de dogmas, preceitos, crenças infundadas. O olhar ateísta permite-nos compreender a religião como uma instituição humana que, historicamente, serviu a interesses políticos. Pensá-la como uma realidade que paira sobre o meio sócio-cultural e político, que está além deste mundo e que, portanto, não pode ser colocada em debate, é mascarar o fato de que ela é uma realidade produzida por homens e, como tal, passível de discussão e entendimento.
Se, por um lado, podemos dizer que Jesus, enquanto viveu, teve boas intenções, pregando o amor, a pacificação e a igualdade; por outro lado, também é correto afirmar que seus ensinamentos não foram bem assimilados pelas gerações posteriores. Em 385, bispos pediam a cabeça de hereges. Em O livro negro do cristianismo: dois mil anos de crimes em nome de Deus, lê-se a respeito dessa prática nefasta:
“O primeiro a sofrer as consequências do novo costume foi o bispo espanhol Prisciliano, em 385. Condenado e banido por dois concílios regionais, Prisciliano que tinha um grande séquito popular, foi torturado e condenado pelo imperador Máximo, a pedido dos próprios bispos. Junto com ele, morreram seis de seus discípulos, dentre os quais uma mulher”.
(p. 50)
Para sentir-se confortado numa religião, como o cristianismo, é preciso ignorar a sua História, é preciso ignorar os sem-número de eventos de violência, de conflitos perpetrados por homens de fé. É preciso ignorar e se ajoelhar, se submeter, crer sem questionar, ter fé sem usar-se da inteligência racional, sem ousar refletir por um instante sequer, limitando-se a reproduzir o que se vem ensinando há séculos de doutrinação. “Cristo nos salvou”, “Deus é amor”, “Jesus é o caminho, a verdade e a vida”, etc.
As religiões, e já nos ensinara Rubem Alves, são feitas de símbolos. As pessoas religiosas ignoram isso; os católicos creem realmente que no cálice há o sangue de Cristo e que a hóstia é parte do corpo e agradecem por participar desse canibalismo simbólico. A cruz é, no cristianismo, símbolo da salvação, mas o judaísmo a vê como símbolo da maldição. A mim, me custa aceitar a cruz como símbolo de salvação, já que era um local de sofrimento e morte – a pior forma de punição aplicada a criminosos na Antiguidade. Há, aqui, uma violência simbólica.
Ser ateu significa romper com uma longa tradição de falsificações, de adestramento psicológico, de aviltamento do humano e da inteligência, de assassinatos, guerras, disputas, conflitos. O ateu não é só aquele que afirma não existir divindade alguma, mas também aquele que se recusa a compactuar com uma longa história de absurdos e imposturas, que se recusa a ser um herdeiro de uma tradição que conserva os homens num delírio.
Aqueles que insistem em valer-se da Bíblia como autoridade no modo como vêem o mundo e o interpretam sequer desconfiam de que a leem segundo a leitura que lhes é ensinada na igreja; não leem criticamente; leem como leitores passivos, que se apóiam numa leitura institucionalizada e teologicamente conveniente. Lêem segundo o filtro interpretativo legado por uma tradição de Concílios. Lêem aquilo que deve e pode ser lido.