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sábado, 28 de dezembro de 2013

"Todo pensamento é pensamento compartilhado. O outro está sempre suposto no próprio movimento do pensar" (BAR)

                               
                                   





                  Um intróito de filosofia vespertina

É na leitura que se fazem sentir estes pensamentos, aos quais, aqui, dou materialidade verbal. Sem delongas, cito, pois, Sponville antes de mais nada (e que não me apareça por aqui algum sabedor integrante da patrulha linguístico-normativista para condenar-me o uso dessa expressão que destaco, propositalmente, em itálico) : “filosofar é pensar mais longe do que aquilo que se sabe e do que aquilo que se pode saber”1.
Esse enunciado de Sponville diz-nos duas coisas: 1) que filosofar é ir além do que já conhecemos, ir além do conhecimento comum e estabelecido; 2) que filosofar, enquanto atividade de reflexão radical, é ir além de toda forma de conhecimento possível; nesse sentido, é fazer metafísica; é também, portanto, pensar o que está além da extensão de nossas capacidades cognitivas (ou se preferir, para dizer à moda kantiana, dos limites da razão). Um bom exemplo de domínio sobre o qual o pensamento filosófico se debruça é a Existência (com maiúscula para significar o fato mesmo da presença irrecusável do SER). Para ser mais claro, Existência, com maiúscula, deve sugerir que se trata de uma dimensão temporal situada entre dois nadas e relativa à qual supomos haver um fundo imperscrutável  onde, para alguns dentre nós, residiria o sentido último, absoluto e transcendente, ou onde, para outros dentre nós, residiria a ausência de sentido, o Nada, cujas feições se manifestam no interior da própria existência na forma da categoria do absurdo. Kierkegaard negava que a existência pudesse ser objeto para o pensamento; e, embora eu não esteja interessado em me alongar sobre o como Kierkegaard pensava a existência, preciso notar que ela é, para ele, a origem a partir da qual cada um de nós pensa e age. Para o homem, existir não é ser ou ter uma existência empírica e imediata. Para o homem, existir é uma tarefa, uma exigência, qual seja, a do devir, a do edificar-se. Você poderá encontrar o desenvolvimento destas ideias em outro texto que se encontra neste blog e no qual discorri sobre o conceito de angústia em Kierkegaard e Sartre. Por isso, escusa retomá-las aqui. Vale dizer, por ora, que a Existência excede, portanto, as possibilidades do próprio pensamento, enquanto atividade do espírito, o que não nos desobriga, por isso, de pensá-la.
Não quero correr o risco de dirigir meus pensamentos para muito longe dos caminhos previstos para eles. Por conseguinte, retorno à definição de Sponville. Tenhamo-la em conta. Pensei, então, que seria oportuno ilustrar a definição de filosofia aduzida por Sponville, tomando-se, para tanto, o significado da expressão sintagmática a existência de Deus. Quiçá, essa breve ensaio seja interessante também aos que apreciam dar seus testemunhos de fé (crença) em (na existência de) Deus; em todo caso, certamente, interessará a você e a todos que, como nós, apreciam o exercício do pensar livre, o ocupar-se da ginástica do pensamento, sem, todavia, recear a possibilidade do equívoco ou o próprio equívoco como possibilidade que nos incita a ir adiante, a repensar o nauseantemente dito, a reelaborar o já elaborado e cristalizado. Por isso também a filosofia é uma atividade discursiva sempre em abertura: não só porque supõe o incessante movimento de retomada das questões, do repropor do pensar que não cessa de elaborá-las, de reelaborá-las, de dar-lhes múltiplos caminhos, diversas dimensões, outros sentidos (é já lugar-comum para os iniciados na seara filosófica que as questões importam mais que as respostas, que a forma como elaboramos as questões é decisiva na busca pelas respostas (quando há) que elas reclamam), mas também porque tem em seu horizonte a possibilidade mesma do equívoco que, antes de refrear aquele movimento, dá-lhe mais força e ambição.
É Kierkegaard, de cujo pensamento andei ocupado recentemente, que nos põe em face do movimento dos sentidos, da própria realidade pluridirecional que lhes é constitutiva, quando usa a expressão existência de Deus. Quando nos perguntamos sobre que sentido tem essa expressão na filosofia de Kierkegaard, somos levados também a nos perguntar se faz algum sentido, tendo em conta o senso-comum, falar em existência de Deus. O que queremos dizer com o sintagma existência de Deus; por exemplo, quando o encontramos num enunciado como “Meu amigo crer na existência de Deus”? Reportemo-nos a Kierkegaard. Alguns intérpretes seus pensam que, ao usar a palavra existência em a existência de Deus, Kierkegaard se referiu à realidade eterna de Deus. É este o sentido pretendido por Kierkegaard: assumir a existência de Deus é o mesmo que admitir que Deus é dotado de uma realidade eterna. Para Kierkegaard, seria, então, uma blasfêmia tanto pretender provar a existência de Deus quanto negá-la.
Em contrapartida, intérpretes há que lançam um outro olhar sobre aquela expressão em Kierkegaard. Para estes, Kierkegaard entende por existência a maneira de ser do próprio homem; portanto, finita e temporal, submetida essencialmente ao devir. Ora, Deus, à luz da teologia cristã, não é finito, tampouco está sujeito ao devir, porque é imutável e intemporal (tempo e mudança se implicam: o tempo supõe mudança e a mudança só existe no tempo). Para esses intérpretes, Kierkegaard não  estaria senão expressando o mais absoluto fideísmo (sistema de pensamento que dá proeminência à fé em detrimento da razão). Esse fideísmo é suposto no próprio sentido da palavra existência em a existência de Deus construído pela interpretação à luz da qual Kierkegaard teria pretendido referir-se à realidade eterna de Deus. Não é difícil inferir o fideísmo kierkegaardiano: uma vez que Kierkegaard pense a existência de Deus na acepção de realidade eterna de Deus, segue-se daí que essa realidade eterna não pode ser acessível à razão humana, visto que ela só existe no tempo e visto que Deus, como tal, não se presta a ser um objeto para ela. A razão não pode pensá-lo porque ela é de natureza temporal e limitada. Somente pela fé se pode relacionar-se com Deus.
Se, como interpretam alguns estudiosos, Kierkegaard entende a existência como o  modo de ser do homem (chamado o existente), um modo marcado pela temporalidade e finitude, segue-se daí que a existência é uma categoria que não se aplica a Deus, porque ela envolve o tempo, a finitude e o devir. A conclusão que se nos impõe, logicamente, é a de que Deus não existe, se o consideramos em seu modo eterno de ser. Para os intérpretes que conscientemente ou não autorizam essa conclusão, Kierkegaard estava referindo-se ao fato paradoxal da Encarnação, ou seja, do mistério de Deus que se fez homem na pessoa de Cristo, o que equivale a dizer que, passando a viver entre os homens, se deixou submeter-se ao devir. Assim, a expressão a existência de Deus significaria, para Kierkegaard, o acontecimento – escândalo para os judeus! – e não menos, ao que parece, tormentoso para o próprio Kierkegaard – da encarnação de Deus na pessoa de Jesus Cristo.
A que nos conduzem essas despretensiosas meditações incipientes? Que sentido se pode atribuir à expressão existência de Deus? Ou melhor: faz algum sentido, de um ponto de vista estritamente lógico-semântico, falar em existência de Deus? Perceba que não está em questão a possibilidade de Deus existir ou não. Novamente, estamos nos situando no domínio lógico-semântico, o que nos conduz a levar em conta o significado da palavra existência, tal como procurei enfocá-lo nesse texto, à luz da contribuição de Kierkegaard e de seus intérpretes.
Acredito que, se acompanharmos rigorosamente Kierkegaard, dois caminhos de compreensão se nos abrem: 1) ou Deus existe enquanto realidade eterna inacessível à razão – e, nesse caso, a existência de Deus é de ordem diferente da existência humana (Deus é o ser cuja essência (inacessível a nós, seres racionalmente limitados e finitos) encerra a existência, e essa existência não é de ordem temporal (o que seria então?)); 2) ou Deus não existe, embora tenha existido quando se fez carne em Cristo e se submeteu ao devir.  1) nos leva a concluir, com Kierkegaard, que não devemos tentar provar a existência de Deus (se o fizermos, seremos blasfemadores); mas também que não podemos tentar fazê-lo porque Deus não se dá a conhecer pela razão. Todo esforço de uma “teologia racionalista” é inútil e incorre em blasfêmia. 2), por outro lado, nos conduz à conclusão de que Deus não existe, tal como dizemos de nós que existimos. Ele não existe porque não é finito, porque não está no tempo, porque é imutável.
Fica, pois, evidente a problemática em que nos envolvemos quando nos debruçamos sobre o significado da expressão a existência de Deus; ou melhor, quando levamos em conta seriamente o que se quer dizer com o enunciado “Deus existe”. Novamente, lembro que não está em pauta aqui qualquer tentativa de provar a existência de Deus ou de rejeitá-la como projeção da fantasia humana. Trata-se, na verdade, de saber se essa expressão tem algum sentido.
Concluo com o que lhe disse, certa feita, sobre o fato de ser parte importante do trabalho da filosofia o cuidado com a definição dos conceitos, dos significados das palavras – cuidado, em última análise, com a forma como as empregamos, com os sentidos que lhes atribuímos. Em grande medida – penso eu -, a filosofia é um exercício de exploração semântica das possibilidades de verbalização (não de uma verbalização vazia, despropositada; mas de uma verbalização que supõe o mundo, o homem, a existência mesma como questão). Nesse exercício, a preocupação com a exatidão na constituição da estruturação semântica do discurso, a preocupação com a extensão (classe de entidades a que uma palavra se aplica) e a intensão (conjunto de propriedades que determinam a aplicabilidade de um termo), tomadas como propriedades semânticas das palavras, é uma instância fundamental do próprio trabalho de filosofar, cujo objetivo é tornar possível o conhecimento da verdade (todavia, temporal ou temporária, como nós).

(BAR)




1. COMTE-SPONVILLE, André. A filosofia. Ed.: Martins Fontes, São Paulo, 2005, p. 20.


                                

quarta-feira, 15 de maio de 2013

"Filosofar é aprender a viver". (Sponville)


                          

                                  Desesperar-se é preciso
                                   A lição de Sponville

Proporei, neste texto, uma leitura de algumas passagens do livro O Amor à solidão (2006), do filósofo contemporâneo francês André Comte-Sponville. Esse livro fora escrito na forma de entrevistas concedidas pelo autor a escritores e amigos. Nele, Sponville aborda temas como a esperança, o desespero, a solidão, o amor... e, é claro, a filosofia. As influências budista e estóica são notáveis no pensamento deste autor, que é ateu, mas advoga a importância de uma espiritualidade no ateísmo. Não menos marcantes são as vozes de Spinoza e Montaigne.
Ao mesmo tempo em que produzirei uma leitura dos trechos que cuidei relevantes, também procurarei por a nu o processo mesmo de interpretação, ou seja, procurarei explicitar como o leitor pode desenvolver um trabalho interpretativo que escave a superfície textual, a fim de alcançar as camadas subjacentes de sentido.
Comecemos, pois, pelos temas, que estão correlacionados, esperança e desespero. O entrevistador, em sua fala, refere personalidades e sistemas filosófico e religioso que exercem influência sobre o pensamento de Sponville, quais sejam, Epicuro, os estóicos, Spinoza, o budismo primitivo, etc. Trata-se de um convite a Sponville para que fale um pouco sobre aqueles conceitos, levando em conta tais influências.
Sponville inicia seu discurso afirmando que “o desespero não tem fronteiras, e a sabedoria não pertence a ninguém” (p. 47), de modo que ele justifica a diversidade das fontes em que seu pensamento se inspira. Evocando Camus, que se ocupou tanto do absurdo, Sponville nos dirá que também o desespero (como o absurdo) é uma “sensibilidade esparsa no tempo”. Para ele, o mundo e a vida só nos parecem absurdos porque sabemos que eles não se acomodam às nossas esperanças. Abandonadas estas, o absurdo deixa de existir. No entanto, não estou certo de que esse seria o caso. Inclino-me a ver o absurdo como a implosão do sentido. Sempre que não conseguimos atribuir sentido a algum acontecimento da vida (vejam-se as mortes de inocentes, os acidentes mortais), o absurdo revela sua face descomunal e agressiva. O que sobra, segundo Sponville, é “a simples positividade do real” (p. 48). E o real deve nos bastar.
Sponville dá-nos a conhecer um passo de Samkhya-Sutra, um texto sânscrito atribuído a um sábio hindu chamado Kapila. O trecho constitui o cerne do pensamento do filósofo sobre os temas esperança e desespero.

“Só é feliz quem perdeu toda esperança; porque a esperança é a maior tortura que há, e o desespero, a maior beatitude”.
(p. 48)


Claro está que, para Sponville, só podemos alcançar a felicidade, ainda que ela seja, para o autor, episódica, se abandonarmos qualquer esperança. O desespero, que é a perda da esperança, é o caminho que conduz à felicidade serena no próprio real. No tangente ao desespero, assim se expressa o autor:

“É o contrário do futuro radioso, das utopias, das religiões, de todas as esperanças que nutrem as guerras e os fanatismos... (...) não há serenidade sem desespero, nem verdadeiro desespero sem uma parcela de serenidade”.
(pp.49-50)


A esperança é incompatível com a serenidade. Quem espera vive angustiado. A esperança nos separa da felicidade. Toda esperança conserva quem a nutre na passividade. O desespero, dirá Sponville, é um trabalho (p. 50) e, como tal, demanda de nós ação. O desespero supõe um trabalho empreendido pela pessoa que precisa se livrar da esperança. Ele envolve sofrimento, desilusão, dificuldades. Só se pode ser feliz pelo caminho da desilusão. É preciso desiludir-se para pretender fruir a felicidade. Quando se lhe apresentou a ideia de que a felicidade faz viver, Sponville pondera:

“A vida continua assim, de esperanças em decepções, de decepções em esperanças... Não condeno essas pessoas: cada um se vira como pode. Mas, se a esperança faz viver, na verdade faz viver mal: de tanto esperar viver, não se vive nunca, ou então só se vive essa alternância de esperanças e decepções, na qual o medo (já que não há esperança sem temor) não cessa de nos afligir...”
(p. 51)


A vida é decepcionante, nisso estaria de acordo Sponville. E tanto mais o será quanto mais esperamos. Fazendo eco a Chico Buarque, “quem espera nunca alcança”. É necessário escapar ao ciclo que compreende a alternância entre esperanças e decepções. Uma ideia precisa ser destacada aqui: toda esperança envolve medo. Libertar-se da esperança é também desescravizar-se do medo. Não que o medo deixaria de existir para nós, mas dele não seríamos mais escravos.
É pelo desespero que se pode libertar-se daquele ciclo. Sponville dirá que não é a esperança que faz viver, mas o desejo. Cotejando a esperança à vontade, traça-lhes uma linha divisória:

“A diferença entre a vontade e a esperança é que só esperamos o que não está em nosso poder, ao passo que só podemos querer no campo de uma ação imediatamente possível. Para falar como os estóicos: só esperamos o que não depende de nós; só queremos o que depende”.
(p. 52)


Faço aqui uma breve digressão. Uma das figuras mais importantes do estoicismo é Epiteto. Ele costumava ensinar a seus discípulos que não está ao nosso alcance mudar nada no modo como as coisas se dão, mas podemos mudar nossas opiniões ou perspectivas sobre a ordem das coisas. Para tanto, ele propunha exercícios espirituais. Um deles, considerado básico, consiste em perguntar a si mesmo se é possível exercer alguma influência sobre dadas condições. Se não temos influência alguma sobre a ordem dos acontecimentos, não devemos nos inquietar. Na verdade, para Epiteto, as nossas inquietações advêm de nossas opiniões sobre os acontecimentos adversos, e não dos acontecimentos em si.  É preciso aceitar o que não depende de nós, é preciso reconhecer se temos ou não alguma influência sobre dado estado-de-coisas. Muitos aborrecimentos desnecessários poderiam ser evitados, segundo Epiteto, se alcançássemos essa compreensão.
Estou ciente de que esse resumo da filosofia estóica é bastante grosseiro, mas suficiente para os meus propósitos. Voltando a Sponville, que recupera essa lição estóica, a vontade se distingue da esperança, porque ela nos dirige ou nos impulsiona às coisas sobre as quais podemos exercer alguma influência ou às coisas que estão ao nosso alcance. A vontade nos leva a agir; ao contrário, a esperança nos imobiliza na espera por algo cuja realização não depende de nós. Os três grandes monoteísmos nos prometem a vida eterna, e os seus adeptos alimentam a esperança na verdade dessa forma de vida. Todavia, tal vida além-túmulo não depende dos que nela creem. Eles tão-só esperam que seja verdade que há uma vida eterna aguardando por eles; mas isso não os livra do medo; isso  não cala a pergunta: “e se isso não for verdade?”. Na esperança, nunca se pode estar realmente seguro de que o que esperamos será realizado ou alcançado. Sponville será mais radical, ao defender que toda esperança está fadada a não se realizar. Leiamos este trecho abaixo:

“(...) há lição mais clara que esta: a de que toda esperança nunca se realiza? Muitas vezes por não ser satisfeita, e todos conhecem o sabor disso, que é de frustração. Mas também acontece, e não é a coisa mais fácil de se viver, que uma esperança não se realiza por ter sido satisfeita, e temos então de constatar que sua satisfação não consegue nos dá a felicidade que esperávamos”.
(p. 40)

Não podemos deixar de notar e de nos surpreender com a ideia de que, mesmo quando satisfeita, a esperança não acarreta nossa felicidade. Donde se segue que, em qualquer caso, a esperança não constitui um caminho para a experiência de felicidade. Mas isso nos coloca outro problema, que diz respeito à impossibilidade mesma do desejo de nos proporcionar felicidade. Para Sponville, a condição humana é atingida por duas catástrofes: ou nossos desejos são satisfeitos, ou nossos desejos não são satisfeitos. No entanto, mesmo quando eles são satisfeitos, permanece o sentimento de que ainda falta uma porção (a mais) de felicidade. O desejo nos aprisiona na insaciabilidade. Mesmo quando satisfeito, não somos por isso mais felizes. Não quer Sponville libertar o homem do desejo – coisa que pensa ser impossível -, mas quer fazer-nos ver que é necessário desejar menos o que nos falta e desejar mais o que é; desejar menos o que não depende de nós e desejar mais o que depende de nós (p. 53).
Sponville não nos condena à infelicidade, tal como Freud, por exemplo. Mas não deixa de notar que a felicidade só é possível quando nada esperamos. Atentemos para o que se segue:

“(...) Vou dizer simplesmente o seguinte: não temos felicidade, ao contrário, a não ser nesses momentos de graça em que não esperamos nada, não temos felicidade, a não ser à proporção do desespero que somos capazes de suportar! Sim: porque a felicidade continua sendo o fim, é claro, e isso quer dizer também que só a alcançaremos se renunciarmos a ela”.
(p. 41)


Disse que me preocuparia em por a nu o processo de interpretação. Faço-o agora, sugerindo que o leitor experiente deve ser capaz de desmembrar o trecho em algumas ideias fundamentais à compreensão do ponto de vista do autor. A primeira ideia é que a condição para usufruir a felicidade é não esperar nada. É somente nos momentos em que nada esperamos que podemos ser surpreendido pela felicidade. Ela é uma graça, porque não esperamos por ela. A segunda ideia é que a condição para a felicidade é abandonar-se ao desespero suportável. Mais uma vez, Sponville dá testemunho da influência que sobre seu pensamento exerce a filosofia estóica: o fim é a felicidade. A felicidade está no horizonte humano, é possível como experiência da vida verdadeira, como experiência no real. Todavia, segundo Sponville, nossos sonhos, nossas esperanças, nossas frustrações, nossas decepções, nossos discursos, também nossas angústias e medos nos separam da vida verdadeira, nos impedem de viver a vida real; nos inibem ou nos paralisam.
Que papel cumpre a filosofia aí? Sponville responde: “filosofar é aprender a viver” (p. 54). A filosofia é o caminho pelo qual exercitamos o desespero. Mas o próprio Sponville nos adverte de que a filosofia de nada vale, se não estiver a serviço da vida. Na verdade, é a vida que vale.
Quando indagado sobre o que é sabedoria, ensina o filósofo o seguinte:

“A sabedoria não é outra vida, que seria preciso alcançar: é a própria vida, a vida simples e difícil, a vida trágica e doce, eterna e fugidia... já estamos nela: só resta vivê-la”.
(p. 55)


Entendamos bem: a sabedoria não é acúmulo de saberes colhidos em vastos acervos de livros; tampouco se confunde com erudição. Evidentemente, a sabedoria envolve saberes; mas saberes vividos, saberes que não são mais que experiências de vida Direi melhor: a sabedoria é a vida vivida. Com Sponville, podemos concluir que a sabedoria é acessível ao homem comum; a todos nós, quer sejamos filósofos, cientistas, quer não. A sabedoria independe de educação formal, de titulação acadêmica. Sabedoria do homem simples; sabedoria da vida simples. É o que nos ensina Sponville. Novamente, convém lançar olhares sobre as palavras do filósofo:

“(...) a vida não para de se ensinar a si mesma, de se inventar a si mesma, até o fim, e a filosofia é apenas uma das formas, no homem, desse aprendizado ou dessa invenção”.
(p. 54)

Só a vida conta. Nem mesmo o conhecimento livresco faz as vezes da experiência vivida. Mais vale o conhecimento vivido. No entanto, para viver a vida verdadeira é preciso se desprender das esperanças, e, se pretendemos alcançar a sabedoria, é preciso lançar-se ao trabalho do desespero. A sabedoria só se alcança quando nada mais esperamos. Compreendemos que a vida verdadeira basta: isso é a sabedoria. O sábio é aquele que já não precisa mais da filosofia. A sabedoria é a vida simples, e simplicidade consiste em se desfazer de tudo quanto nos atravanca e nos separa do real e da vida.
É importante notar, a essa altura, que Sponville não supõe que todos nós possamos deter a sabedoria completa, porque o desprendimento de nossas ilusões, de nossas esperanças nunca se dá inteiramente. Mas só a sabedoria é o caminho que nos leva a viver, simplesmente. A sabedoria é o caminho: um caminho de ação e de amor.
Um dos enunciados mais lúcidos e intrigantes que destaquei deste trabalho de Sponville é este: “Há desespero em todo amor e tanto mais quanto menos ilusões temos” (p. 53). Também no amor não devemos esperar. Sponville sustenta que devemos amar as pessoas como elas são ou viver culpando-as por nos decepcionar. O amor não nos livra de nossa própria solidão. O amor, para Sponville, é solidão compartilhada.

“O próprio amor é que é extraordinário, todo amor, mesmo que se trate, como quase sempre, de amores muito comuns. Eu queria simplesmente dizer que nada tem importância, que nada tem valor, salvo pelo amor que depositamos ou que encontramos. Uma estrela que se extingue, que importância tem? O fim do mundo, que importância? Nenhuma, se não amássemos o mundo ou a vida!”.

(p. 67)


É o amor que valora. É o amor um valor. É ele que dá valor a seu objeto. Todo objeto amado é um valor para o amante. Chamo atenção do leitor para o uso da forma “amássemos”. Ela permite-nos pressupor que todos nós amamos o mundo ou a vida. Mas caberia perguntar se é verdade que todos podemos amar o mundo ou a vida. Interessante notar que o sentido seria outro, caso o autor (ou o tradutor?) escolhesse a forma “amarmos”. Se essa forma tivesse ocorrido, o pressuposto não se inferiria. A rigor, “amarmos” nos levaria a entender que há sempre a possibilidade de não amarmos a vida. Quem quer que não ame a vida não terá ela valor algum, importância alguma. Porque o amor valora.
Costumo insistir na ideia de que o descobrir-me ateu significou uma profunda transformação na maneira como compreendo e sinto a vida. E a influência da filosofia de Sponville para a reconciliação entre mim e o mundo ou a vida – sem que se tenha dissipado nela o conflito que lhe é inerente – é, certamente, um bem que reconheço e que compartilho com o leitor, sem nada esperar, é claro.

domingo, 28 de abril de 2013

"A única eternidade possível ao ateu é o real" (BAR)


                       

                             
                    

                         O sentimento ateu



Desnecessário dizer que estive ocupado com os livros, durante toda esta manhã. Se o digo, no entanto, é apenas para abrir um caminho discursivo para que as palavras o percorram. O percurso inicia-se com uma citação de Comte-Sponville, em seu Amor à solidão (2006).



“(...) a sabedoria outra coisa não é que essa simplicidade de viver” (p. 20).



Sponville argumenta que o sábio é aquele que dispensa a filosofia para viver. Ele não precisa mais dela. Se um dia chegou a escrever livros, abandona-os como balsas à margem do rio. A simplicidade é, assim, consoante Sponville, livrar-se de tudo quanto nos atravanca e nos separa do real e da vida. Mas o que é o real? Ensinará Sponville:

“(...) O real é o que é, simplesmente, sem nenhuma lacuna (p. 24)”.


Se não há lacuna no real, concluiremos, com Spinoza, que o real é perfeito. Spinoza escreveu: “Por realidade e perfeição entendo a mesma coisa”. Identidade entre realidade e perfeição, é o que nos quer fazer ver Spinoza. Mas não nos apressemos em concluir a perfeição do real signifique que ele seja maravilhoso, extremamente agradável. Aqui devemos nos prender à etimologia. A perfeição supõe acabamento. Algo perfeito é algo que se perfez, é algo completo, portanto, que não tem lacuna.
O real não deseja, por isso é perfeito. Não há falta. Ora, quando há desejo, há falta. O desejo supõe algo que nos falta e que por isso desejamos. Faço uma digressão breve. Aprendi com a filosofia que o trabalho de reflexão é trabalho cuidadoso com as palavras. Quando desenvolvemos um discurso filosófico, devemos prestar atenção no significado que pretendemos produzir ao concatenar as palavras. A filosofia é uma atividade discursiva durante a qual, com base na produção de conceitos (portanto, pelo uso da palavra) pelo uso da razão, forjamos representações sobre o mundo, com vistas a compreendê-lo.
O real também não tem perguntas, já que nada lhe falta. Nesse tocante, escreverá Sponville:

“Não há pergunta, e é por isso que a resposta é sim: é o próprio mundo. Os mistérios estão em nós, em nós os problemas e as perguntas. O mundo é simples porque é a única resposta às perguntas que ele não se faz: simples como a rosa e o silêncio (ib.id.)”.


O “sim” é a afirmação da vida; é a resposta à pergunta “o que é o real?”. Nada mais claro: é o próprio mundo. Os seres humanos que nele vivem são as únicas criaturas para as quais a sua existência é colocada como problema. Somente eles se perguntam: o que é isto, a vida? De onde vim? Para onde vou? Há sentido em viver? A morte tem sentido? Por isso, as perguntas e os mistérios estão no homem. O mundo nada pergunta. O real não precisa de respostas.
Algumas palavras sobre a filosofia de Sponville me parecem necessárias. Sponville é, declaradamente, ateu. Sua filosofia, até onde posso ver, tem também um pouco de Nietzsche, embora o próprio filósofo francês cite, com muita frequência, em seus trabalhos, Montaigne. A influência deste é inegável, decerto. No entanto, vejo um pouco de Nietzsche em Sponville sempre que ele insiste em que a vida basta, em que o mundo é uma presença irrefutável. É também uma presença que devemos experienciar plenamente. Sponville propõe uma plenitude imanente. A eternidade, para ele, no que estou de acordo, é o agora. Se entendermos por eternidade a negação da temporalidade, ou seja, a atemporalidade, a eternidade se identifica com o agora, e apenas com ele, porque não permite que seja segmentada num antes e depois. A eternidade nos oferece plenamente o presente. Não há futuro prometido. Nesse tocante, não há vida eterna por vir após a morte. Não há vida transcendente. Se há alguma transcendência, é uma transcendência na imanência. Não estou certo, contudo, de que Sponville sustentaria essa concepção. Não sei se ele concordaria em admitir a transcendência, ainda que ancorada na imanência do mundo. De qualquer modo, o que me parece certo é que a eternidade a que se refere Sponville nada mais é do que o agora. Acompanhemos as palavras do autor no seguinte trecho:

“A abolição do tempo (...) mas no tempo mesmo, na verdade do tempo: o sempre-presente do real, o sempre-presente do verdadeiro, e a interação deles, que é o mundo, e o presente do mundo (p. 26)”.



A abolição do tempo a que se refere Sponville é a própria eternidade. Ela se identifica com o “sempre-presente do verdadeiro” ou do “sempre presente do real”. Não deixemos que a linguagem nos traia. Dizer que a eternidade, negando a temporalidade, se identifica com o agora, significa dizer que a experiência do agora é a experiência da eternidade. A única experiência possível do tempo, para nós, é a do agora. Experiência consciente do agora. Ora, o passado é o não-ser; o futuro ainda não é. Passado e futuro são conceitos com que segmentamos nossa experiência do contiuum do tempo (realidade física). Temporalidade é já uma abstração. O universo não conhece passado, presente e futuro. Somente nós, seres humanos, é que podemos conceber o tempo como temporalidade dividida em porções de tempo, que designamos como tempo passado, tempo atual ou presente, tempo futuro. E, se meditarmos com acuro sobre a palavra eternidade , veremos que seu significado não descreve nenhuma experiência possível a nós, seres que se sabem mortais, a menos, é claro, que acreditemos que essa experiência transcende à vida e que será possível numa vida além-túmulo. Mas pensar a eternidade dessa forma é já reconhecer sua impossibilidade no aqui e agora do mundo.
Como seja ateu, Sponville só pode aceitar a experiência de eternidade, ou melhor, só pode aceitar que essa palavra signifique realmente alguma coisa, se ela servir para descrever uma experiência claramente budista de “dissolução do ego”. Sponville nos contará sobre o que pensa da experiência que reúne o silêncio, a plenitude e a eternidade. Noto, de passagem, que o silêncio, para ele, é “a presença muda de tudo”; a plenitude, “o desaparecimento da falta” (p. 26). Vejamos como ele situa a eternidade na imanência do mundo. Eternidade não é transcendência (uma experiência superior a e além do mundo):

A eternidade é o lugar de todos nós, é o único. Mas nossos discursos nos separam dela, bem como nossos desejos, bem como nossas esperanças... No fundo, só estamos separados da eternidade por nós mesmos. Daí essa simplicidade quando o ego se dissolve; não há mais que tudo, e pouco importa o nome (“Deus”, “Natureza”, “Ser”...) que alguns quererão lhe dar. Quando não há mais que tudo para que as palavras, já que o tudo não tem nome? (...) O silêncio e a eternidade andam juntos: nada a dizer, nada a explicar, já que tudo está presente (p. 28, ênfase minha)”.


Notemos que Sponville categoriza “eternidade” como “lugar”, o que sugere a noção de situação, mas uma situação no mundo, onde nós estamos. Assim, eternidade é também o mundo, o universo onde vivemos. Por isso, é uma eternidade imanente. Ela é inseparável do mundo, ou melhor, se identifica com o mundo. A eternidade congrega o agora e o mundo, num “sempre-presente-aqui”. Somos nós que forjamos palavras para designar essa experiência de dissolução do ego na eternidade do mundo. Mas os discursos, as palavras só servem para causar estorvo e perturbações. Inquietude mais do que placidez. O silêncio convoca-nos à experiência de placidez, por isso não carece do burburinho das palavras. Deus é, certamente, a expressão máxima da perturbação do silêncio, porque nele e através dele fala uma multidão de vozes estridentes convencidas de que compreenderam a eternidade. Basta a experiência do agora!
Nunca dissimulei meu interesse pelos estudos de religião, especialmente minha inclinação intelectual e afetiva às lições budistas. Mesmo tendo sido criado na tradição cristã, vejo no budismo um avanço em relação à doutrina cristã. Vejo mais vantagem, muito porque a doutrina budista não inclui a ideia de pecado e de culpa: flagelos da alma, com que o cristianismo mantêm o rebanho em seu estado de docilidade.  O budismo identifica a causa de nossos males, de nossos sofrimentos no desejo, mas não se limita a isso; propõe-nos um caminho para nos libertar da tirania do desejo, não num além-mundo, tampouco por meio de uma figura carismática e endeusada (Buda não era deus; no budismo, não há deus). Ao contrário, o cristianismo cria o mito da Queda do homem e com ele declara que o homem é irremediavelmente um pecador (o pecado como tudo aquilo que nos afasta de Deus). No mito cristão, a desobediência de Eva e a fraqueza de Adão, que não resistiu à tentação de comer da maçã do Paraíso, condenou todas as gerações de seres humanos. Nessa esdrúxula e obscena doutrina cristã, todo bebê que nasce traz a herança do pecado de Adão, por isso precisa ser batizado com a água que “lava o pecado”. Mas esse pecado, simbolicamente, lavado no batismo, é constitutivo da natureza humana. Por isso, o cristão viverá por toda a vida reconhecendo-se como pecador, humilhando-se, rebaixando-se diante de uma autoridade Superior com vistas a buscar a redenção de seus pecados (que nunca o abandonam totalmente) e a salvação após a morte. Todo cristão é pecador. Um cristão que não se reconhecesse como pecador não seria cristão, ou levantaria sérias suspeitas sobre sua fé ou mesmo desaprovações. Não se reconhecer pecador, para o cristão, já é pecado. Como se vê, não há como fugir. Só o pecado condena o cristão à fé.
Vou referir alguns trechos, colhidos de Buda – o mito e a realidade (2009), de Heródoto Barbeiro, a fim de dar a saber alguns ensinamentos do budismo sobre a dor e sobre formas de lidar com ela. Não me limitarei a citar os trechos; a cada um deles se seguirá uma breve avaliação:


“Siddharta não foi nem um teólogo, nem um metafísico. Ele chegou à conclusão de que era impossível viver sem dor. E para acabar com ela, era preciso descobrir sua origem. O Buda concluiu que essa origem era o nascimento. Nascer, sofrer. Envelhecer, perder afeto, bens, tudo aquilo pelo qual tanto se lutou, as mudanças constantes que estragam tudo o que foi construído e, por fim, a morte. Tudo isso provoca dor. Só resta renascer imediatamente e reiniciar o ciclo de nascimento e morte. Agarra-se nas poucas coisas agradáveis existentes na vida, e o restante é sofrimento (p. 64)”.


Quando cunhei a frase “O sofrimento trama as malhas da existência humana”, inspirei-me na doutrina budista que reza que “nascer é sofrer, viver é sofrer, morrer é sofrer”. É verdade que também o cristianismo reconhece a dor e o sofrimento como experiências constitutivas da vida humana, mas difere do budismo, nesse tocante, porque destitui o homem de autonomia no enfrentamento do sofrimento, não lhes fornece meios de por si só livrar-se do sofrimento, a não ser por sua fé e submissão a um outro que lhe serve de modelo de resignação ao sofrimento injusto, qual seja, Cristo. A Paixão de Cristo, ou seja, o seu martírio e sofrimento deve servir de inspiração ao cristão que sofre resignadamente confiante. Confiante na libertação por e em Cristo. Ele é o caminho pelo qual o cristão alcança a graça de Deus (“Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim” Jo 14: 6).
O budismo instrumentaliza o homem para que ele consiga se libertar dos seus sofrimentos, pelo conhecimento de sua causa. Segundo Barbeiro, “Buda disse que a vida é muito pior do que os homens pensam”. Buda não oferece o paraíso, não promete uma vida eterna. A morte no budismo é vista como dissolução da forma orgânica, após a qual haverá novas recombinações de elementos. O budista quer escapar ao samsara, ou seja, ao ciclo de nascimento-morte-renascimento. A sabedoria budista supõe que, ao nascer, uma pessoa começa a morrer, porque grávida de um princípio de destruição. Observará Barbeiro, “não há como fugir da morte, uma vez que também estamos em constante transformação, e que em um dia somos diferentes do que fomos no outro” (p. 65). Todos os dias, em nosso corpo, morrem e nascem novas células.
Disse que o desejo é, no budismo, a causa de toda dor.

“(...) ninguém deve iludir-se com as aparências: elas são falsas, enganam a mente, não se constituem na verdadeira realidade. Dor, envelhecimento e ilusão são as bases do sofrimento. Estão apoiados no desapontamento das pessoas com a impermanência de tudo (ib.id.)”



A lógica budista não poderia ser mais límpida. O desejo quer possuir, quer conservar, quer conter, aprisionar. O desejo é desejo de permanência. Mas a realidade, ensinou Buda, e nisso o acompanhou Heráclito, é mudança, é impermanência. Como nós e tudo que há somos parte do real, não escapamos à lei da impernanência das coisas. É notável como a razão, reconhecendo essa lei, se harmoniza com a verdade do mundo. O cristianismo, ao contrário, subverte essa relação harmoniosa da razão com a verdade do mundo, proclamando a imortalidade, a eternidade do homem. Inspirada na filosofia platônica, o cristianismo nos convencerá de que a morte é mera aparência, de que o mundo é mera aparência, de que a verdadeira realidade é transcendente ao mundo, está num além. A meu ver, essa compreensão cristã de que a morte é mera ilusão, de que, pela fé e confiança em Deus, os mortos ressurgirão, viverão por toda eternidade, leva a teologia cristã a esquivar-se a um tratamento honesto e útil da questão do sofrimento. O sofrimento significa pouca coisa em face da grande recompensa que aguarda os fiéis após a morte. Aquele que sofre com resignação e coragem semelhantes às de Cristo torna-se digno aos olhos de Deus e da comunidade cristã. O sofrimento cristão dignifica o sofredor. Uma das teodiceias cristãs ensina que ao sofrimento está atrelado um ensinamento, um bem maior. Em face do sofrimento, o cristão dirá ao sofredor: “tenha fé e Deus te livrará!” Se sua condição sofredora persistir, não hesitará em dizer: “paciente, Deus tem um propósito!” Se a morte deitar-se com ele no leito, consolará o cristão os que choram: “era a vontade de Deus, Deus sabe o que faz!”.
O caminho que vim percorrendo até aqui conduziu-me ao objetivo principal deste texto: mostrar que a atitude ateísta diante da existência pode sinalizar um sentimento de libertação e de conciliação com o real, portanto, com a eternidade. Contarei uma experiência que tive há algum tempo, já tendo acordado o ateu em mim.
Não me esqueço da experiência que tive naquele ônibus a caminho da faculdade onde eu lecionava. Era de tarde, o sol ameno e o céu ostentava seu manto azul reconfortante. No Centro da Cidade, observava, sem, contudo, reter atenção em alguma coisa em especial, as pessoas num ir e vir corriqueiro. Observava o movimento da vida pulsante nas artérias da cidade, sem qualquer pensamento que me sugerisse alguma verdade. Quando o ônibus atravessava a ponte, era o céu que prendia meu olhar. Eram as gaivotas que lhe davam testemunho do movimento incessante da vida. E eis que fui inundado de uma sensação de plenitude de vida, como se o céu, o movimento dos pássaros, a eternidade daquele instante mergulhassem em minha alma. Mas não era êxtase, não senti arrebatamento. Não havia violência nessa inundação. Havia uma paz delgada, acompanhada do silêncio da sofreguidão do cotidiano. Somente a vida, o estar vivo. Somente a simplicidade que há em olhar para o céu, tão convidativo à inspiração poética. Mas não havia palavras. Discursos só perturbariam quão íntima experiência com a vida. A vida ali nua: revelando-se tal como é. Simplesmente presente, acontecendo naquele instante. O silêncio do tempo. Alguns pensamentos misturados com sentimentos... pensamentos sentidos vieram-me a confirmar o que a filosofia, o que a razão já me ensinaram: não há Deus.
Naquela experiência de reconciliação com a vida, de sim à vida, eu não senti presença alguma no céu, exceto as gaivotas. Senti também a presença do movimento da vida, a presença do céu azul desnudado de nuvens... Foi uma experiência de sentimento, não de pensamento.
Há religiosos que dizem não conseguir explicar Deus, dizem não ser necessário refletir racionalmente sobre Deus. Dizem também ser capazes de senti-lo e sentindo-o, segundo creem, se contentam. A razão me sugere uma resposta ou uma explicação que protelo por ora. É de sentimento que se trata. Não que a razão se oponha ao sentimento, erro comum, por sinal. Eles caminham juntos, trabalham juntos em nós.
Duas experiências. Dois sentimentos opostos. Onde os religiosos dizem sentir Deus eu sentia a presença nua e simples da vida. Teriam eles algum sentido especial? Teriam eles alguma capacidade sobre-humana, extraordinária que tornaria possível o sentimento de Deus? Ou será que esse sentimento é sugerido tão-só pela crença de que Deus existe? Ou seja, penso que é porque eles creem que Deus existe, se convencem disso, que podem declarar poder sentir Deus. A crença suscita uma experiência que é interpretada, por força da crença prévia, como sentimento de Deus.
Eu mesmo, durante longo tempo em minha vida, estava convencido de que podia, em certas ocasiões, em que me abstraia de tudo que me seduzisse os sentidos, como durante à noite em que me ocupava com minhas produções poéticas, ou jazido na cama, conversando comigo mesmo no silêncio da alma, sentir a presença de Deus
Mas o que prova o sentimento? Nada. O sentimento nada prova; o sentimento não pode provar a existência de Deus. O sentimento prova apenas que existe um ser capaz de tê-lo e de tomar consciência dessa experiência.
Não pretendo levar adiante a objeção à possibilidade real de os crentes sentirem Deus. Se contei aqui a experiência que tive naquela tarde quando ia para o trabalho, é somente para mostrar que o descobrir-me ateu e o assumir a atitude ateísta diante da vida significou uma libertação. A experiência ateísta (isto é, viver sem a promessa de vida eterna, viver sem a crença numa divindade providente), longe de ser experiência de desespero, é experiência de libertação. É, decerto, sinal de coragem, que não suprime medos, apenas não se serve de alguma forma de fuga.
O acordar o ateu em mim significou sobrepujar o Pai primordial. Significou sobrepujar sua autoridade sobre o meu psiquismo. Para mim, a morte simbólica de Deus é fonte de alívio e de libertação em face de um autoritarismo do Outro (de Lacan). Libertação da escravidão da condição pecadora, da submissão a uma Vontade superior, vigilante e esmagadora, cujos desígnios e disposições me deviam ser ocultados. Também é uma libertação da dimensão egocêntrica que se enrobustece no religioso. Nesse sentido, deixei de interpretar os acontecimentos bons ou ruins com base na convicção de que Deus tem um propósito para tudo, propósito diante do qual me coloco como beneficiário, ou me represento como seu portador. A dimensão egocêntrica do religioso se expressa também na convicção de que ele é portador de uma verdade sobre o modo de Deus agir.
A imagem do cristão típico pode ser assim representada. Como cristão, alguém busca consolar um amigo cuja mãe foi desenganada pelos médicos. Sua mãe sofre de câncer terminal. Então, o cristão diz que tudo tem um propósito para Deus e, ao dizer isso, ele acredita na verdade do que diz, acredita que está sendo um porta-voz da palavra de Deus, um intermediário enunciador do desejo de Deus. Eis o seu ego insuflado! Ele traz a boa-nova, ele é portador dessa verdade que cuida inquestionável e consoladora.
Vejo nessa atitude cristã não só presunção, vaidade, mas certo desrespeito, certo desprezo pela dor, pelo sofrimento do outro. É mais nobre, a meu ver, participar de seu sofrimento. É mais digno e humano reconhecer-se também na fragilidade do outro, reconhecer-se como suscetível do mesmo sofrimento. Um abraço reconfortante é mais humanizante e consolador do que quaisquer palavras prontas, empacotadas, já-dadas pelos ensinamentos teológicos sobre Deus e seus caprichos, mascarados como “propósitos escusos” na ideologia cristã. É mais nobre reconhecer-se no sofrimento daquele amigo como ser humano também que se identifica com sua condição humana destinada ao sofrimento. Ser cúmplices no sofrimento. Ser humano no sofrimento humano, que é sofrimento consciente.
Solidariedade do humano com o humano no sofrimento exige que não elaboremos justificativas assentadas em alguma metafísica. Basta o sofrimento e a vida que precisa ser vivida. Pense-se nas teodiceias já forjadas por filósofos e teólogos cristãos que visam a justificar a quantidade de sofrimento que recai sobre os justos e inocentes. Pense-se nas tentativas ignominiosas pelos proponentes de teodiceias de justificar o sofrimento de crianças. Acho repulsivo tal esforço da razão contaminada pela fé. A razão deve ser, nesse caso, amordaçada, para que seu portador não se torne cúmplice num sofrimento sem sentido. Calemos a razão que serve à elaboração de justificativas inaceitáveis ao coração, refutáveis à luz de um exame cuidadoso, para deixar falar o amor, o sentimento de solidariedade e de desespero. Por que não? Viver é também desesperar-se. Desespero preferível, porque autêntico, a esperanças ilusórias. Deixemos o amor que conforta comandar o bom-senso, e não a fé (esse consolo da ausência, da mentira, da fantasia). O silêncio de um abraço em face da presença da morte comunica ao outro a cumplicidade do humano na dor, no sofrimento e no desespero que essa presença nos causa.



Anexo             

                               
                              Nietzsche, um ateu?


Há quem entenda que Nietzsche não era um ateu num sentido forte, isto é, no sentido de ser alguém que negava qualquer metafísica ou um princípio primeiro e absoluto que seja causa de tudo. Mas não se pode negar que Nietzsche, num sentido mais fraco, era um ateu, porque concordaria em negar existência a qualquer divindade. Certamente, sua veia ateísta torna-se protuberante em sua crítica ao deus cristão reconhecido por ele como deus antropomórfico. Os homens criaram Deus à sua imagem. Nietzsche critica justamente esta ilusão nos homens: eles não se reconhecem mais como os verdadeiros criadores de Deus. Não há por que culpá-los disso; o cristianismo já se encarrega de impingir-lhes a culpa original. Pobres homens ignorantes ou semiconscientes dos processos históricos entretecidos pelos fios robustos e falsificadores da ideologia, que, posicionando-os como produtores e produtos do devir histórico, lançam sobre a sua consciência o véu da obscuridade! Para Nietzsche, Deus é um ideal de super-humanidade no homem.

“Esse o ateísmo de Nietzsche. Combatia o deus criado pelos racionalistas, o deus definido por atributos. Nietzsche negava os atributos, porque o atributo já é um limite. Deus não poderia cingir-se às bitolas [medidas, padrões] pretensiosas da razão humana”.
(p. 65)


Chamo atenção para o fato de que Nietzsche, ao estender as garras de sua crítica aos atributos de Deus, assume-o não mais como um ser (transcendente), mas como um sujeito da linguagem. Um sujeito de que o homem predica atributos.


“(...) interpretar Deus, defini-lo, criar uma ciência como a teologia, é ofendê-lo. O silêncio em torno de seu nome é mais nobre. O crente é, por isso, um explorador de Deus. O ateísmo nietzschiano é, assim, uma devoção respeitosa”.
(p. 66)

Talvez nem devoção, talvez nem tão respeitosa. Porque Nietzsche destitui Deus de seu lugar elevadamente simbólico: Deus não é mais o Ser Supremo, Absoluto, Ser Criador. Uma devoção respeitosa não lhe autorizaria a operar, pelo uso da razão, tal sacrilégio.
Ao se voltar com ferocidade crítica para o cristianismo, é verdade que Nietzsche o condenava por aviltar o mundo e a condição humana, por transformar aquele num vale de lágrimas. Pretendeu convocar os crentes a que amassem o mundo. Pretendeu restituir o homem a terra, fincar-lhe as raízes no mundo. Mas também é verdade que Nietzsche, em muitos momentos, exaltou o cristianismo, certamente pelo seu caráter social-revolucionário. Há, portanto, essa ambivalência em sua crítica.

Em suma, a crítica ao cristianismo levada a efeito por Nietzsche pode ser resumida no que se segue:

“Em vez de construir na terra o Reino dos Céus, postergou-o para o infinito, e acusou o mundo de todos os males e o homem de todas as infâmias. E o que o homem tinha de mais puro e de mais belo, que eram e são os seus instintos, essas forças misteriosas que o trazem em constante defesa e lhe permitem usufruir a vida, veste-os de cores negras, desmerecendo-os. A natureza dos sentimentos, a ingenuidade das atitudes passaram a ser crime, pecado, afronta”.

“O homem – o verdadeiro Satã – criara o seu próprio inferno, porque se negava a si mesmo”.

(p. 67)


Novamente aqui, vale a lógica: afirmação de Deus significa negação do homem.
A coluna dorsal, assim me parece, da filosofia de Nietzsche consiste em seu princípio dionisíaco de afirmação da vida. À luz desse princípio, é possível entender a crítica de Nietzsche ao cristianismo e ao Deus cristão. Afirmar a Deus é negar o homem. Negá-lo em dois sentidos: primeiro, é negá-lo como agente da história, negá-lo, portanto, como único responsável pela fabricação, ao longo de milênios, da ideia de Deus; segundo, é negá-lo como ser mundano, como ser natural dotado de instintos que lhe são como forças criativas, forças que alimentam sua vontade de poder (de dominar), com a qual ele pode apossar-se da vida, agarrar-se a ela, enraizar-se no mundo, assumir-se como - para lembrar Heidegger - um ser-aí.
Ao concentrar sua crítica nos atributos de Deus, Nietzsche não só reconhece em Deus a marca da humanidade do homem (uma humanidade idealizada, elevada à máxima potência), mas também a presunção humana que se esconde na crença de que pode determinar a natureza de Deus. Vaidade, um dos pecados definitivamente censurados pelo cristianismo! Por isso, para Nietzsche, os crentes são ofensivos a Deus ao cuidarem-se conhecedores da sua natureza, ao cuidarem-se capazes de lhe fixar arestas, limites, contornos, por meio da atribuição de qualidades que não são senão marcas linguísticas deixadas pela razão humana.
O leitor atento consegue escutar a voz concordante de Feuerbach?

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

"A experiência da eternidade é a experiência do próprio presente" (BAR)


                                        


                                      O eterno presente


Não resisto à vontade de varrer para fora do domínio conceitual de uma palavra, que tenha valor teórico em algum campo do conhecimento, todos os vestígios do senso-comum de que ela fica impregnada, porque largamente usada na linguagem corrente. Assim, se não evito, cinjo ao máximo o espaço simbólico em que o lugar-comum possa encontrar ensejo.
Começarei, então, dando a conhecer ao leitor o propósito que persigo na produção deste texto. Ontem, importunado por um sentimento1 que me deslocava do agora, tornando-me desejoso do que ainda não existe, tomei a decisão de me ocupar com a leitura de um livro que respondesse àquele sentimento, de modo a fazer com que desistisse de me ocupar a alma. Não hesitei em escolher um livro de André Comte-Sponville. Escolhi A vida humana (2007) e li o último capítulo – o único, aliás, que ainda não tinha visitado. O título, desde logo, me fora bastante atraente – Eternidade. Considerando-se o sentimento como ‘disposição complexa’ e disposição – no sentido que lhe dá Jung – como certa propensão da psique para agir ou reagir numa dada direção (não importando, para tanto, a representação do objeto na consciência), precisei dar a esse sentimento outro sentido (destino), porque ele me afastava demais do instante, do presente – único tempo em que a existência é possível. O capítulo do livro de Sponville, conforme veremos, respondeu satisfatoriamente àquele sentimento, tornando-me conciliado com o presente.

1.
Sentimento: disposição complexa da pessoa, predominantemente inata e afetiva com referência a um dado objeto (outra pessoa, coisa ou idéia abstrata), a qual converte esse objeto naquilo que é para a pessoa. O sentimento é simultaneamente identificado pelo objeto e por certas relações entre a pessoa e esse objeto.

(Dicionário Técnico de Psicologia, p. 310)


O leitor talvez esteja supondo que o tema é sobremodo abstrato, por encerrar uma ideia que representa algo cuja existência será tomada de modo independente do ser (no caso, o homem) com que ela se relaciona. É este o conceito de substantivo abstrato, de que eternidade é um exemplo. Um substantivo se diz abstrato quando designa um estado, uma ação ou uma qualidade que são tomados como independentes do ser ou coisa a que se relacionam, como, por exemplo, bondade, felicidade e aspereza.
Consoante veremos, a eternidade se revestirá de concretude, nas especulações de Sponville. Impregnado de valor místico-religioso, o conceito de eternidade não se confundirá, no espaço discursivo instaurado pelo autor, com ‘duração ilimitada’ ou ‘negação total da temporalidade’, ou ainda ‘estado de vida transcendente’. Em Sponville, tomamos conhecimento da imanência da eternidade – ou seja, não é ela uma experiência desejada e transcendente. Não é ela transcendente, porque não é exterior a nós, não vai além do real. Ela é imanente ao real. Vamos, então, acompanhar a argumentação do autor, doravante. Creio ser possível essa experiência de eternidade sempre que nossa consciência está toda ela imersa no presente; sempre que nos damos conta de que não há futuro e de que o passado não é mais. Há tão-só o presente.
Antes de nos aventurarmos pelos caminhos especulativos abertos por Sponville, convém reter a seguinte lição, que colhi de Ferry e que gostaria de compartilhar aqui:

Para interrogar-se, é necessário quem interroga e o objeto interrogado. Só pode interrogar aquele que é capaz de distanciar-se da realidade que pretende interrogar.

Por isso, os animais são incapazes de interrogar, já que eles e a natureza (o real) formam um só. Não é dado a eles distanciar-se da natureza. Os animais e a natureza se confundem. Por outro lado, os homens e a natureza são dois.

Voltemos a Sponville. No limiar de seu texto, o autor explicita o princípio da cosmologia da filosofia de Heráclito de Éfeso, “tudo muda, tudo flui, tudo passa” (p. 99). O que é constante, imutável, no entanto, ensinará Sponville, evocando Marcel Conche, é o próprio princípio do devir (tudo flui, tudo se transforma). O devir identifica-se com a eternidade. Assim, dirá Sponville que não precisamos escolher entre Heráclito e Parmênides (este que pensava o Ser como uno e imutável), porque também tem razão este último no tocante à unicidade da verdade. É verdadeiro que tudo muda, que tudo passa.
Antes que o leitor fique confuso – porque pode ter-se dado conta de que Sponville não pensa a eternidade como negação da mudança (por isso o identificá-la com o devir), é preciso levar em conta que Sponville é ateu e, como tal, não poderá compreender a eternidade como transcendente ao real, ao presente. Para ele, a experiência da eternidade é possível, mas quando pensada na sua constitutividade do real, do presente. A eternidade não está apartada do mundo, do real, do presente. Sem pretender fazer incursão na sua perspectiva ateísta, limitar-me-ei a citar a passagem em que ele define um ateu:

“Não é que não creia em nada. Crê apenas no que existe – crê apenas no todo”.
(p 100)

O filósofo nos convida a repensar o como compreendemos o tempo. O tempo existe para a consciência de modo segmentado. Mas, na realidade, só há um tempo que é uno, totalizado num presente que permanece presente (o ser). Assim, o que chamamos de passado não é nada (porque deixou de ser); e o que chamamos de futuro também não é nada (porque ainda não é). Só há o presente. Só há “apenas o presente do mundo” (p. 99). O tempo para a consciência é tempo abstrato, que segmentamos em um antes, um agora e um depois. Mas só o agora é real. Ou melhor, só o presente é real.
Como pensar o ser de Parmênides na relação com a eternidade? O ser é “o presente que permanece presente” (p. 100). O ser não sofre mudança, se a sofresse não restaria mais nada. O ser é tudo que há, é “a presença de tudo” (id.ibid.). O ser, assim, identifica-se com a eternidade, que, por sua vez, é o silêncio. De que silêncio se trata? Leiamos este passo de Sponville, decerto intrigante:

“...O homem é um animal religioso, pelo menos espiritual: não se concentra em conhecer a verdade ou em buscá-la; de fato, precisa amá-la, contemplá-la, recolher-se nela, mesmo que nela se perca ou se salve; e é bom que assim seja. Rezar? Não é mais que pôr palavras no silêncio. Mas o silêncio, aquele que contém todas as palavras e que elas não contêm, permanece”
(p. 101)
(grifo meu)

Vou deixar, por ora, em suspenso, o que o autor entende por verdade e que relação tem ela com o ser, o devir e a eternidade. Isso ficará claro mais adiante. Quero chamar atenção do leitor para o trecho em negrito. De que silêncio se trata? Qual é o silêncio que contém todas as palavras, mas que elas não o contêm? A resposta salta aos olhos: o silêncio é a eternidade, ou, se preferirmos, o presente, que, embora contenha a linguagem com que o pensamos, não pode ser plenamente compreendido com ela. É importante perceber que a eternidade de Sponville exclui de seu domínio conceitual o tempo abstrato, ou melhor, exclui o passado e o futuro. O silêncio e a eternidade são o mesmo,

“(...) já que o tempo (a soma intotalizável de um passado que já não é e um futuro que ainda não é) só existe para o pensamento, já que só ganha verdadeiramente consistência – e olhe lá! – por meio das palavras que servem para hipostasiá-lo ou medi-lo.”.
(p. 101)

Cotejada ao real, a verdade se caracteriza por ser una e eterna; o real, ao contrário, é mutável. Assim, segundo o filósofo, “(...) esse pássaro que alça vôo: não voará para sempre, não viverá para sempre e nunca retornará ao seu vôo” (id.ibid.). O real, contudo, se impõe à verdade. Por isso, lembra o autor:

“Não é porque era verdade desde sempre que ele alçaria vôo neste instante que esse pássaro o faz; ao contrário, é porque ele o faz, aqui e agora, que era verdade desde todo o sempre”.
(pp. 101-102)

Insisto em que a verdade é eterna – “se alguém uma vez se banhou num rio, isso continuará sendo verdade eternamente” (id.ibid.). Vimos que o presente identifica-se com a eternidade. Se só o presente é real, então o real é a eternidade. A mudança que ocorre no real só ocorre no presente. Não há uma mudança no tempo, de um antes para um depois. Vimos que o passado não é mais; e o futuro ainda não é.

“Ontem nunca existiu (quando ontem existia, não era um ontem: era um hoje). Amanhã nunca existiu (quando existir, não será mais um amanhã: será um hoje). Eternidade do presente. É sempre agora. É sempre hoje. É o que chamo o sempre-presente do real, que é o próprio real”.
(p. 102)

Se o presente é eterno, bem como o é a verdade, então toda verdade é presente. Portanto, uma proposição como ‘era verdade’ é absurda, segundo o filósofo. “Se foi verdade, continua sendo; se já não é, não era” (id.ibid.). Não há uma verdade futura. O mesmo raciocínio vale para uma proposição como “será verdade”: “se for verdade um dia, já o é; se ainda não é, não será jamais” (id.ibid.).
A verdade e o real se encontram no presente: “o presente é, pois, o ponto de tangência entre o real e o verdadeiro”. É preciso insistir que a eternidade não se define como uma vida transcendente, em que a temporalidade é negada. A eternidade é a verdade desta vida. O autor não admite a distinção entre eternidade e tempo, conforme se lê abaixo:

“Enquanto você diferenciar entre a eternidade e o tempo, você estará no tempo. Paremos de sonhar com a salvação, a sabedoria, a libertação. A eternidade não é uma outra vida, mas a verdade desta. Existe algo mais absurdo que esperar a eternidade? Algo mais triste do que esperar a felicidade? Mas isso indica mais o caminho do que o ponto de chegada, onde já estamos.”.
(p.103)

Como o autor concebe a vida e, em particular, a vida humana? Sponville, nesse tocante, não poderia ser mais direto e claro: “(...) uma vida nada mais é que um processo contínuo de mudança” (p. 104). A vida humana, a seu turno, é frágil, fugaz, integrada ao todo, relacionada às demais formas de vida que com ela co-existem; é uma vida do presente, sempre comovente e impregnada de solidão. Nós somos dotados de uma coragem comovente.
Finalmente, alcançar a sabedoria, tornar-se sábio é aceitar a vida com serenidade, é regozijar-se dela, sem, contudo, esquivar-se de mudá-la, “pois toda mudança faz parte dela” (id.ibid.).