sábado, 28 de dezembro de 2013

"Todo pensamento é pensamento compartilhado. O outro está sempre suposto no próprio movimento do pensar" (BAR)

                               
                                   





                  Um intróito de filosofia vespertina

É na leitura que se fazem sentir estes pensamentos, aos quais, aqui, dou materialidade verbal. Sem delongas, cito, pois, Sponville antes de mais nada (e que não me apareça por aqui algum sabedor integrante da patrulha linguístico-normativista para condenar-me o uso dessa expressão que destaco, propositalmente, em itálico) : “filosofar é pensar mais longe do que aquilo que se sabe e do que aquilo que se pode saber”1.
Esse enunciado de Sponville diz-nos duas coisas: 1) que filosofar é ir além do que já conhecemos, ir além do conhecimento comum e estabelecido; 2) que filosofar, enquanto atividade de reflexão radical, é ir além de toda forma de conhecimento possível; nesse sentido, é fazer metafísica; é também, portanto, pensar o que está além da extensão de nossas capacidades cognitivas (ou se preferir, para dizer à moda kantiana, dos limites da razão). Um bom exemplo de domínio sobre o qual o pensamento filosófico se debruça é a Existência (com maiúscula para significar o fato mesmo da presença irrecusável do SER). Para ser mais claro, Existência, com maiúscula, deve sugerir que se trata de uma dimensão temporal situada entre dois nadas e relativa à qual supomos haver um fundo imperscrutável  onde, para alguns dentre nós, residiria o sentido último, absoluto e transcendente, ou onde, para outros dentre nós, residiria a ausência de sentido, o Nada, cujas feições se manifestam no interior da própria existência na forma da categoria do absurdo. Kierkegaard negava que a existência pudesse ser objeto para o pensamento; e, embora eu não esteja interessado em me alongar sobre o como Kierkegaard pensava a existência, preciso notar que ela é, para ele, a origem a partir da qual cada um de nós pensa e age. Para o homem, existir não é ser ou ter uma existência empírica e imediata. Para o homem, existir é uma tarefa, uma exigência, qual seja, a do devir, a do edificar-se. Você poderá encontrar o desenvolvimento destas ideias em outro texto que se encontra neste blog e no qual discorri sobre o conceito de angústia em Kierkegaard e Sartre. Por isso, escusa retomá-las aqui. Vale dizer, por ora, que a Existência excede, portanto, as possibilidades do próprio pensamento, enquanto atividade do espírito, o que não nos desobriga, por isso, de pensá-la.
Não quero correr o risco de dirigir meus pensamentos para muito longe dos caminhos previstos para eles. Por conseguinte, retorno à definição de Sponville. Tenhamo-la em conta. Pensei, então, que seria oportuno ilustrar a definição de filosofia aduzida por Sponville, tomando-se, para tanto, o significado da expressão sintagmática a existência de Deus. Quiçá, essa breve ensaio seja interessante também aos que apreciam dar seus testemunhos de fé (crença) em (na existência de) Deus; em todo caso, certamente, interessará a você e a todos que, como nós, apreciam o exercício do pensar livre, o ocupar-se da ginástica do pensamento, sem, todavia, recear a possibilidade do equívoco ou o próprio equívoco como possibilidade que nos incita a ir adiante, a repensar o nauseantemente dito, a reelaborar o já elaborado e cristalizado. Por isso também a filosofia é uma atividade discursiva sempre em abertura: não só porque supõe o incessante movimento de retomada das questões, do repropor do pensar que não cessa de elaborá-las, de reelaborá-las, de dar-lhes múltiplos caminhos, diversas dimensões, outros sentidos (é já lugar-comum para os iniciados na seara filosófica que as questões importam mais que as respostas, que a forma como elaboramos as questões é decisiva na busca pelas respostas (quando há) que elas reclamam), mas também porque tem em seu horizonte a possibilidade mesma do equívoco que, antes de refrear aquele movimento, dá-lhe mais força e ambição.
É Kierkegaard, de cujo pensamento andei ocupado recentemente, que nos põe em face do movimento dos sentidos, da própria realidade pluridirecional que lhes é constitutiva, quando usa a expressão existência de Deus. Quando nos perguntamos sobre que sentido tem essa expressão na filosofia de Kierkegaard, somos levados também a nos perguntar se faz algum sentido, tendo em conta o senso-comum, falar em existência de Deus. O que queremos dizer com o sintagma existência de Deus; por exemplo, quando o encontramos num enunciado como “Meu amigo crer na existência de Deus”? Reportemo-nos a Kierkegaard. Alguns intérpretes seus pensam que, ao usar a palavra existência em a existência de Deus, Kierkegaard se referiu à realidade eterna de Deus. É este o sentido pretendido por Kierkegaard: assumir a existência de Deus é o mesmo que admitir que Deus é dotado de uma realidade eterna. Para Kierkegaard, seria, então, uma blasfêmia tanto pretender provar a existência de Deus quanto negá-la.
Em contrapartida, intérpretes há que lançam um outro olhar sobre aquela expressão em Kierkegaard. Para estes, Kierkegaard entende por existência a maneira de ser do próprio homem; portanto, finita e temporal, submetida essencialmente ao devir. Ora, Deus, à luz da teologia cristã, não é finito, tampouco está sujeito ao devir, porque é imutável e intemporal (tempo e mudança se implicam: o tempo supõe mudança e a mudança só existe no tempo). Para esses intérpretes, Kierkegaard não  estaria senão expressando o mais absoluto fideísmo (sistema de pensamento que dá proeminência à fé em detrimento da razão). Esse fideísmo é suposto no próprio sentido da palavra existência em a existência de Deus construído pela interpretação à luz da qual Kierkegaard teria pretendido referir-se à realidade eterna de Deus. Não é difícil inferir o fideísmo kierkegaardiano: uma vez que Kierkegaard pense a existência de Deus na acepção de realidade eterna de Deus, segue-se daí que essa realidade eterna não pode ser acessível à razão humana, visto que ela só existe no tempo e visto que Deus, como tal, não se presta a ser um objeto para ela. A razão não pode pensá-lo porque ela é de natureza temporal e limitada. Somente pela fé se pode relacionar-se com Deus.
Se, como interpretam alguns estudiosos, Kierkegaard entende a existência como o  modo de ser do homem (chamado o existente), um modo marcado pela temporalidade e finitude, segue-se daí que a existência é uma categoria que não se aplica a Deus, porque ela envolve o tempo, a finitude e o devir. A conclusão que se nos impõe, logicamente, é a de que Deus não existe, se o consideramos em seu modo eterno de ser. Para os intérpretes que conscientemente ou não autorizam essa conclusão, Kierkegaard estava referindo-se ao fato paradoxal da Encarnação, ou seja, do mistério de Deus que se fez homem na pessoa de Cristo, o que equivale a dizer que, passando a viver entre os homens, se deixou submeter-se ao devir. Assim, a expressão a existência de Deus significaria, para Kierkegaard, o acontecimento – escândalo para os judeus! – e não menos, ao que parece, tormentoso para o próprio Kierkegaard – da encarnação de Deus na pessoa de Jesus Cristo.
A que nos conduzem essas despretensiosas meditações incipientes? Que sentido se pode atribuir à expressão existência de Deus? Ou melhor: faz algum sentido, de um ponto de vista estritamente lógico-semântico, falar em existência de Deus? Perceba que não está em questão a possibilidade de Deus existir ou não. Novamente, estamos nos situando no domínio lógico-semântico, o que nos conduz a levar em conta o significado da palavra existência, tal como procurei enfocá-lo nesse texto, à luz da contribuição de Kierkegaard e de seus intérpretes.
Acredito que, se acompanharmos rigorosamente Kierkegaard, dois caminhos de compreensão se nos abrem: 1) ou Deus existe enquanto realidade eterna inacessível à razão – e, nesse caso, a existência de Deus é de ordem diferente da existência humana (Deus é o ser cuja essência (inacessível a nós, seres racionalmente limitados e finitos) encerra a existência, e essa existência não é de ordem temporal (o que seria então?)); 2) ou Deus não existe, embora tenha existido quando se fez carne em Cristo e se submeteu ao devir.  1) nos leva a concluir, com Kierkegaard, que não devemos tentar provar a existência de Deus (se o fizermos, seremos blasfemadores); mas também que não podemos tentar fazê-lo porque Deus não se dá a conhecer pela razão. Todo esforço de uma “teologia racionalista” é inútil e incorre em blasfêmia. 2), por outro lado, nos conduz à conclusão de que Deus não existe, tal como dizemos de nós que existimos. Ele não existe porque não é finito, porque não está no tempo, porque é imutável.
Fica, pois, evidente a problemática em que nos envolvemos quando nos debruçamos sobre o significado da expressão a existência de Deus; ou melhor, quando levamos em conta seriamente o que se quer dizer com o enunciado “Deus existe”. Novamente, lembro que não está em pauta aqui qualquer tentativa de provar a existência de Deus ou de rejeitá-la como projeção da fantasia humana. Trata-se, na verdade, de saber se essa expressão tem algum sentido.
Concluo com o que lhe disse, certa feita, sobre o fato de ser parte importante do trabalho da filosofia o cuidado com a definição dos conceitos, dos significados das palavras – cuidado, em última análise, com a forma como as empregamos, com os sentidos que lhes atribuímos. Em grande medida – penso eu -, a filosofia é um exercício de exploração semântica das possibilidades de verbalização (não de uma verbalização vazia, despropositada; mas de uma verbalização que supõe o mundo, o homem, a existência mesma como questão). Nesse exercício, a preocupação com a exatidão na constituição da estruturação semântica do discurso, a preocupação com a extensão (classe de entidades a que uma palavra se aplica) e a intensão (conjunto de propriedades que determinam a aplicabilidade de um termo), tomadas como propriedades semânticas das palavras, é uma instância fundamental do próprio trabalho de filosofar, cujo objetivo é tornar possível o conhecimento da verdade (todavia, temporal ou temporária, como nós).

(BAR)




1. COMTE-SPONVILLE, André. A filosofia. Ed.: Martins Fontes, São Paulo, 2005, p. 20.


                                

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