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domingo, 5 de agosto de 2012

"O objetivo de viver é viver" (Sponville)


                  

                                O paradoxo da felicidade

Ainda é viva em mim a lembrança das aulas em que eu pude estimular meus alunos ao debate sobre a leitura de textos. Nessas ocasiões, regozijava-me! De certo modo, reexperiencio essa grande satisfação, sempre que componho meus textos e os divulgo aqui neste espaço.
Meu intento – como de costume – é convidar o leitor que me acompanha a ler mais – e a ler o livro A Mais Bela História da Felicidade: a recuperação da existência humana diante da desordem do mundo (2010), que reúne André Comte-Sponville, filósofo, Jean Delumeau, especialista em história das mentalidades religiosas e Arlette Farge, historiadora especializada no século XVIII. O livro se estrutura em entrevistas feitas aos estudiosos. Eu vou-me ocupar com a exposição da terceira parte da entrevista a André Comte-Sponville, intitulada de O paradoxo dos filósofos. O tema de todas as entrevistas é a felicidade. Sponville irá considerá-la na história da filosofia, desde os gregos até os modernos. A terceira parte é dedicada à reflexão sobre como o homem comum pode ser feliz e sobre o papel que a filosofia desempenha na experiência de felicidade.
Já tive a oportunidade de escrever sobre a felicidade, ocasião em que sustentei a tese de que a felicidade não pode limitar-se ao acúmulo de riqueza, tampouco pode ser pensada sem que consideremos a satisfação de condições básicas de sobrevivência. Não me limitarei a apresentar os argumentos do autor; esforçar-me-ei por me posicionar em face de sua argumentação, o que implica nem sempre estar de acordo com ele. Urge, contudo, dialogar com o autor, entender a perspectiva com que ele trata do tema. Lembro que Sponville é ateu, de modo que, como veremos, falar em ‘sentido da vida’ só faz realmente sentido quando abandonamos a ideia de transcendência e nos situamos no âmbito da imanência. Para ele, o sentido da vida é viver a vida. Em tempo, teremos a oportunidade de compreender melhor sua posição, nesse tocante. Mas o leitor, se for cristão, poderá estar certo de que o autor não faz ataque à religião, apenas sua compreensão do sentido da vida é que diverge da compreensão religiosa. De resto, a mensagem de Sponville é a do amor – do amor à vida mesma, à verdade e ao saber.

1. A ausência de infelicidade

A tese de Sponville é a seguinte: viver a vida na esperança de ser feliz é uma forma de ser infeliz. Segundo o autor, para encontrar a felicidade, não precisamos procurar por ela. A experiência de ser feliz não depende da satisfação de todos os nossos desejos, já que eles são “indefinidos, flutuantes e sempre renovados” (p. 56). A insaciabilidade do desejo impede-nos de alcançar a felicidade. Se entendemos, com Platão, que desejo é falta e que, portanto, desejamos aquilo que não temos, experienciaremos o vazio, a frustração. Nem todo desejo é falta, entretanto.

“(...) desejar aquele ou aquela que existe, que se entrega e com quem fazemos amor, é experimentar a presença, a força natural, a plenitude”.
(p. 66)

O que entende o autor por felicidade? Num primeiro momento, pensa a felicidade como ausência de infelicidade. Nós buscamos afastar a infelicidade. Freud nos ensinava que nós buscamos incessantemente o prazer e desejamos permanecer nele. No entanto, a própria cultura impede-nos que experienciemos esse estado por muito tempo. Mas não só ela: “nossas possibilidades de felicidade já são limitadas pela nossa constituição” (Freud – O mal-estar na cultura, p. 63). Consciente de que a definição de felicidade apresentada é ainda insuficiente para compreender essa experiência, o autor reconhece que ser feliz não implica a ausência de inquietudes, de preocupações. É possível experienciar uma felicidade ordinária, episódica, apesar da aridez da vida. Não convém, segundo o autor, querer entender a felicidade como uma alegria perene, porque a alegria é movimento, é flutuante.
Sabemos – e Sponville também o reconhece – que a felicidade não está sempre presente, mas ele acredita que a alegria é sempre possível. A felicidade está na realidade, em potência.

“Se a felicidade existe quando não se é infeliz, ela também existe, sobretudo, quando a alegria parece imediatamente possível, e a fortiori, real. A felicidade não está sempre presente, ela vai e vem, mas não existe nada insuperável que nos separe dela (...)”.

(p. 58)

A definição de felicidade proposta por Sponville é bastante modesta. O autor entende que, se pretendemos que todos os nossos desejos sejam plenamente satisfeitos, para sermos felizes, então nunca conseguiremos sê-lo. A felicidade não é algo absoluto – e estou de acordo. Para ele, trata-se de “uma modalidade da existência, com altos e baixos” (p. 59). Não ser infeliz já é razão para sermos mais ou menos felizes.

“Uma das coisas que a vida me ensinou, e que, apesar de tudo, me propiciou uma forma de sabedoria, foi o seguinte: ser quase feliz já é uma felicidade”.
(p. 59)
(grifo no original)

Retomemos Freud, em O mal-estar na cultura. Nesse trabalho, Freud defenderá que, ao invés de viabilizar a fruição do prazer – sempre perseguido pelos seres humanos – a cultura, por eles criada, tende sempre a frustrá-los, decepcioná-los, afastando-os de seu objetivo. Os obstáculos para a experiência da felicidade são, segundo o autor de O Mal-estar na cultura, maiores. Ser feliz, para Freud, é experienciar intensas sensações de prazer, experiência esta inatingível aos seres humanos, no atual estágio da cultura. Neste trecho, Freud indaga-se sobre qual seria o propósito da vida das pessoas, e ele não hesita em responder ser a felicidade. Sponville – me parece – não concordaria com Freud, se entendemos por propósito a ideia de ‘sentido da vida’:

“(...) o que os próprios seres humanos, através de seu comportamento, revelam ser a finalidade e o propósito de suas vidas? O que exigem da vida, o que nela querem alcançar? É difícil errar a resposta: eles aspiram à felicidade, querem se tornar felizes e assim permanecer. Essa aspiração tem dois lados, uma meta positiva e outra negativa: por um lado, a ausência de dor e desprazer; por outro, a vivência de sensações intensas de prazer. Em seu sentido literal mais estrito, “felicidade” refere-se apenas à segunda”.
(p. 62)

De fato, Sponville está de acordo com Freud, no tocante ao fato de os homens aspirarem à felicidade e de desejarem permanecer nessa condição por longo tempo. Ambos também concordam que tal caso não é possível, porque a felicidade plena é um ideal. Para o pai da psicanálise, a própria forma como a cultura se organiza – essencialmente repressora – impede a fruição permanente do prazer (felicidade). Também para Freud a impossibilidade de experienciar uma felicidade duradoura se deve ao modo como a psique humana se estrutura. Entanto, ao contrário de Freud, Sponville já considera o afastamento do desprazer uma forma de felicidade. A pessoa que não sofre, que não experimenta dor e infelicidade já deve considerar-se uma pessoa feliz. Lembro que a quase felicidade é já felicidade, para o filósofo francês.
Sponville também não parece estar de acordo com Freud ao supor que o propósito da vida humana seja a felicidade. Se entendermos por propósito da vida a ideia de ‘sentido da vida’, certamente, Sponville não comunga da perspectiva freudiana. Veremos, mais adiante, o porquê.  Claro está que, se tomarmos por objetivo da vida ser apenas felizes, se acreditarmos que, sem a felicidade, a vida não faz sentido, muito frustrante será viver, já que a felicidade não é perene e nosso desejo é caracterizado pela insaciabilidade (sempre renovado, dirá Sponville).
A concepção de felicidade de Sponville difere da concepção freudiana. Isso é bem claro. Para o primeiro, a felicidade é um estado de alegria sempre passível de ser experimentado nas circunstâncias comuns da vida; ela pode ser uma experiência débil, difusa. Para Freud, ao contrário felicidade é “vivência de sensações intensas de prazer”. Só há felicidade onde há intenso prazer. Só há felicidade onde há profunda sensação de bem-estar. Como a cultura nos impede de experienciar esse profundo bem-estar (a felicidade), só nos resta a sublimação, ou seja, recorrer a outras formas de experienciar algum grau de felicidade (como a alegria experimentada pelo artista em sua atividade). É que, para Freud, a intensidade do prazer se aufere na satisfação de nossos instintos mais grosseiros (p. 69).


2. O sentido da vida

Ao ser perguntado sobre o sentido da vida, Sponville é bastante claro: a questão do sentido da vida não se coloca no momento em que a felicidade está presente. De fato, não nos preocupamos com o sentido da existência quando estamos envolvidos em sensações de felicidade.

“(...) nossos momentos de felicidade intensa (em que a alegria não é apenas possível, mas real, deslumbrante, espantosa) são aqueles nos quais a questão do sentido da vida não se coloca. Por que teríamos descoberto ou alcançado esse sentido? Por motivo nenhum, simplesmente porque aqui e agora a vida é suficiente para nos completar”.

(p.60)

O trecho em negrito é indispensável para a correta compreensão da posição do autor. Sponville, em nenhum momento, dissocia a felicidade da vida real; não a projeta para um além-morte, para outra vida. Mas, convém, por ora, nos deter no significado da palavra “sentido”. Para tanto, é necessário falar um pouco sobre semiologia. Sponville acredita que a palavra sentido encerra uma noção difícil, porque inclui tanto a ideia de “significado de uma frase” quanto a ideia de “direção ou propósito”. Nas duas acepções, segundo o autor, o sentido remete a alguma coisa que não ele mesmo. Isso fica claro quando pensamos na natureza de todo signo. O signo é signo de outra coisa, um signo está no lugar de outra coisa. Assim, ao nos depararmos com uma placa em que se avisa sobre um acidente a duzentos metros, essa sinal (signo) está “no lugar da coisa” (acidente) a que ele remete. Graças às palavras, que são signos lingüísticos, podemos falar de coisas que não estão presentes em nosso campo observacional. Não é necessário que haja diante de mim uma baleia para que eu fale dela. A palavra “baleia” evoca em minha mente a imagem desse animal (o seu significante). O sentido da palavra “baleia” não é a palavra “baleia”, mas a representação mental desse mamífero que vive no mar. O sentido é, pois, “outra coisa”. Falar em sentido é falar de algo que está fora de nós. Escreverá Sponville “o sentido encontra-se sempre fora e nós estamos sempre aqui” (p. 60). É interessante pensar no emprego do advérbio “aqui”, que é dêitico e que, portanto, em um de seus usos, refere-se ao “lugar onde se acha o falante”. É claro que a palavra “aqui”, nesse caso, não tem como escopo o lugar onde estava o autor. Ela se refere ao “estar no mundo”, à existência mesma. Por isso,  é forçoso concluir:

“O sentido da vida só pode ser uma outra vida (esse é o sentido que as religiões oferecem) ou uma vida diferente (a que se espera)”.
(p. 61)

Para o filósofo, a experiência de felicidade depende de que o objetivo de viver seja a própria vida, depende de que aceitemos a vida, com suas inconstâncias, com seus bons e maus momentos. Não seremos felizes, se nosso objetivo é outro que não a vida real. Citarei a seguir um trecho que torna a argumentação do autor um pouco confusa. Senão, vejamos:

“Os que são felizes não precisam procurar outra coisa além de sua própria vida tal como ela é, como ela passa, como se inventa e se transforma por si mesma a cada instante. Essa é a razão pela qual a experiência de felicidade não é uma experiência do sentido; ela é uma experiência do presente, da realidade, da verdade atualmente disponível”.

(p. 61)

Que fique bem claro. Para Sponville, o mais feliz dos homens é aquele que experiência a felicidade do momento. Projetar a felicidade para o futuro é também viver o vazio, a frustração, a falta, já que o futuro é o não-ser, não existe. Para o filósofo, “o objetivo de viver é viver”.
Certamente, se estamos felizes, estamos reconciliados com a vida e não precisamos nos apoiar na ilusão de serem felizes em outra vida. Para os que estão felizes, a vida é bastante. Todavia, sucede que, para Sponville, a felicidade depende de que estejamos conciliados com a própria vida, mesmo sabendo que ela está repleta também de dor e infelicidade. E o que dizer dos que não estão felizes? Como podem eles se satisfazer apenas com a vida? Como podem eles se regozijar dela?
Nem sempre a vida é suficiente, dirá o autor. Por isso, a necessidade da filosofia. Consoante o autor, há os que não precisam da filosofia, porque parecem possuir uma “sabedoria espontânea”. Tanto melhor, dirá. Mas há os que dela necessitam, porque “sem ela são incapazes de amar a vida tal como ela é”. A filosofia não é tão-só experiência de pensamento, mas também, mormente, experiência do bem viver. Ela nos ensina a viver mais e melhor. Ela nos ensina a enfrentar o sofrimento, porque é preciso aceitar a vida tal como ela é, mas também é preciso enfrentar as suas adversidades.
A função da filosofia é nos ensinar a viver, apesar do paradoxo diante do qual  a busca sempre urgente pela felicidade nos coloca:

“(...) somente aquele que deixou de buscar a felicidade pode ser feliz, somente aquele que ama a vida mais que a felicidade pode ser feliz”.
(p. 63)

No limiar do texto, disse que Sponville iria nos comunicar uma mensagem de amor. Ele a anuncia ao nos ensinar que devemos amar a vida mais do que a felicidade, e amá-la com seus reversos. A filosofia nos ensinará a regozijar-nos. O indivíduo que ama a felicidade não a alcançará, porque a vida se encarregará de evitar que ele a encontre. Assim, ensinará o filósofo:
“Trata-se de passar da esperança da felicidade ao amor pela vida, mesmo que nem sempre seja possível amá-la. E por que ela não seria amada? Não é o valor da vida que justifica o amor que lhe dedicamos; ao contrário, é o amor que lhe dedicamos que atribui valor à vida”.
(p. 63)

A lição de Spinoza é lembrada pelo filósofo: não é porque uma coisa é boa que a desejamos, é porque a desejamos que ela é boa. Logo, não devemos amar a vida por causa do seu valor, já que o valor advém do amor à vida. É porque a amamos que ela tem valor. O valor não está na vida em si, nem nas coisas. Quando o desejo se inclina a uma coisa, essa coisa passa a ter valor. O amor valoriza: “o amor não se submete ao valor do seu objeto: o amor é o criador do valor” (p. 63). Por isso, os valores que criamos depende da intensidade com que amamos. A verdade é um valor, porque a amamos; a honestidade é um valor, porque a amamos; a fidelidade é um valor, se a amamos. O amor é o fundador de todos os valores.
Mas volvemos à citação acima. Abandonar a esperança de felicidade, mas também a esperança como atitude diante da vida. É o que aprendi com Sponville. A esperança nos conforma na espera e nos imobiliza na experiência da ausência. Não se deve ter esperança de um dia ser feliz; é possível ser feliz no presente. Nisso estou de acordo com Sponville. Isso não significa que o presente sempre favorecerá a felicidade.

“Amar verdadeiramente a vida não é apenas amá-la apenas quando ela é feliz, mas amá-la em sua totalidade, seja ela constituída de felicidade ou infelicidade, de prazer, sofrimento, tristeza ou alegria”.
(p. 67)

O amor à vida é a força de que dispomos também para enfrentá-la. Só podemos enfrentar as adversidades da vida, se formos capazes de amá-la. O melancólico é aquele que perdeu a capacidade de amar – ou, ao menos, aquele cuja capacidade de amar se enfraqueceu. O suicida é aquele que perdeu o amor à vida.
Ao cabo da contribuição de Sponville, o autor concluirá – o que, para mim, sempre me pareceu bastante claro – que está no amor a maior fonte de felicidade.

“Como vimos, a alegria real ou possível é o verdadeiro conteúdo da felicidade. Isso quer dizer que não há felicidade a não ser no ato de amar. Trata-se, mais uma vez, de nossa experiência com todas as pessoas”.

(p.68)

Convém nos acautelar ao concluir que Sponville não nos dá margem a objeções. Parece que o autor não considera algumas circunstâncias dolorosas da vida real, ao defender a necessidade de amar a vida como condição para usufruir um pouco de felicidade. Penso nas crianças em cujos lares elas não conhecem o amor dos seus. Penso naqueles que nasceram em condições socioeconômicas muito precárias. Penso na grande quantidade de sofrimento que atinge milhões de pessoas em todo o mundo. Penso ainda que, apesar disso, uma vez vivo (porque não escolhemos nascer), podemos escolher viver... E não posso esquecer a lição de Marcel Conche, em A análise do amor (1998), ao se referir à felicidade do sábio:

O homem feliz de uma felicidade filosófica é o “sábio” – tanto quanto possível. O sábio não tem problema pessoal ou, pelo menos, tem força para enfrentá-los. Com isso, é tanto mais sensível aos problemas alheios. Falei do “privilégio da insensibilidade” do homem comum. O sábio, ao contrário, é tanto mais sensível aos problemas dos outros quanto menos se absorve com os seus. (...) Sua felicidade é um fato. Mas a felicidade não impede que possamos sofrer, como tampouco o sofrimento impede que possamos ser felizes. (...) Felicidade porque não se tem medo nem desejo, porque se está em paz consigo mesmo, em regra com a consciência de seu destino (entendo que sempre temos vivido na inteligência de si e na fidelidade a si), mas também tristeza porque o mundo é triste e não há o que fazer a esse respeito. Felicidade da potência sobre si, tristeza da impotência sobre o mundo”.
(p. 67)

Também Sponville nos fala da potência de gozar a vida cada vez mais. Também estou de acordo com Sponville no tocante ao fato de a felicidade ser, afinal de contas, apenas uma ideia. Existindo a palavra, precisamos nos valer dela. O problema, me parece, é quando enchemos a palavra felicidade de desejo, é quando insuflamos seu significado a tal ponto que ele nos parece difuso, pesado, inapreensível.
O que é a felicidade senão uma emoção de alegria, de satisfação? E o que é uma emoção, senão um padrão de reação, que nos impulsiona à experiência com o significado? Toda emoção envolve sentimentos, mas deles se diferencia por manter uma relação implícita ou explícita com o mundo. A emoção nos move, nos afeta o comportamento, tanto nos faz agir quanto nos faz estancar.
Uma pessoa pode sentir-se feliz, ao obter um emprego, ao ser promovida no trabalho, ou ao alcançar o corpo desejado (muito embora, nesses casos, o padrão de beleza estabelecido socialmente e reforçado pela mídia torna essa realização sempre inatingível, porque o desejo nunca é satisfeito; e sabemos que é provocando a insaciabilidade do desejo que o mercado lucra). Não podemos escapar ao desejo. Não é possível não desejar, mas é possível não se render a todos os seus apelos. A insaciabilidade do desejo torna-nos infelizes.
Ser feliz ou estar feliz? A felicidade tem a ver com um modo de estar no mundo, com um modo de agir, apesar do mundo. Sabemos que fazer atividade física, praticar esportes ter e fazer amigos, etc. torna as pessoas felizes. A felicidade não é um estado de alma; ela envolve todo o corpo. Por isso tem a ver com endorfina, dopamina, serotonina, noradrenalina; por isso também comer (especialmente chocolate, açúcar e lacticíneos), se apaixonar e  fazer sexo nos causa felicidade.
 A questão da felicidade é interminável, como tudo em filosofia... cujas questões nunca se fecham... apenas a vida tem de findar... enquanto houver vida, há a filosofia e a possibilidade de pensar em como ser feliz...



terça-feira, 3 de julho de 2012

"Não se começa a filosofar, se não se debruça seriamente sobre o problema da morte" (BAR)


A morada da morte




Como pensar a vida sem pensar a morte? A felicidade, sem aceitar a infelicidade? A sabedoria, sem aceitar sua loucura? (...)”



(p. 50)

(grifo meu)



Tão logo me deparei com este trecho de Sponville, em Bom dia, angústia (2010), compreendi, por intuição iluminadora (em inglês, insight), por que não me acontece ponderar sobre a vida sem levar em conta o fato da morte. Pessoas há que veem nessa minha disposição natural para o tratamento da morte em minha fala ou escrita um sinal de dissabor, desespero ou de gosto pelo trágico. Mas se esquecem de que a vida é trágica; a vida é decepcionante. Citarei as palavras de Sponville, que nos ensina a esse respeito. Por ora, noto que, entre aquelas pessoas que evitam pensar na morte ou me censuram quando esta palavra visita meus pensamentos ou freqüenta a cavidade de minha boca, está minha namorada. Ela não compreende e ninguém nunca compreendeu. E essa compreensão não conta com o serviço da razão; nada tem de racional. É pura emoção; é pura sensibilidade! Sensibilidade à fragilidade da vida, por certo. Um legado do limiar de minha existência. A razão, em si, não leva-nos à compreensão da relação visceral entre vida e morte. Provam-nos as palavras seguintes de Sponville, ao contar-nos sobre o comportamento de seus amigos, particularmente os inteligentes:



“Alguns de meus amigos, mesmo inteligentes, garantem-me que na morte eles nunca pensam, ou algumas vezes por ano quando muito. Quanto a sentir o sabor dela... Outros, como eu, pensam nela todos os dias, e quase a toda hora de cada dia... Este gosto, é ele o que melhor conhecemos. Como os morangos ao lado nos parecem exóticos! Medo? Não demais, parece-me. Mas esse gosto de nada em todas as coisas, carregar essa sombra do perecer... Não se morre uma vez, afinal de contas, para acabar. Morre-se todos os dias, a cada instante de cada dia. A criança que eu era está morta no adulto que sou, aquele que eu era está morto hoje, ou se sobrevivem em mim é apenas na medida em que lhes sobrevivo, cada qual tranporta seu cadáver consigo, e jamais retornarão os amores antigos... A vida é  pungente porque morre, porque não para de morrer, aqui, à nossa frente, em nós, e o tempo é pungência, essa morte em nós que avança, que escava, que espera, que ameaça... Deve-se pensar nela? Deve-se esquecê-la? Questão de sensibilidade, pelo que creio, mais do que de doutrina”.



                                                  (p. 51)




É de sensibilidade de que se trata, decerto, sempre que levamos em conta a morte. Pensar ou não na sua essência, que não é senão a perda. Enfrentar a angústia na serenidade do pensamento. Que é a angústia? O que manifesta o nada, ensinará Kierkegaard. É ela um pré-sentimento, segundo Lacan, porque destituída de conteúdo específico. É um lugar algum, segundo Heidegger, porque revela o fato de que o que nos ameaça não está presente. A angústia diante da ideia da morte ou mesmo da morte como fato constatado (quando velamos o corpo de um defunto) torna o ausente ameaçador. Mas um ausente sempre presente, em potência. Por isso, escrevi, certa vez, todo ser humano é grávido da morte. A morte está latente em nós. E isso me faz lembrar uma passagem de Pessoa, que observa “somos defuntos adiados”. Escreverá Sponville ainda “(...) viver é morrer; e por isso a vida é ainda mais bela, porque traz em si a morte amarga” (p. 53).

Preciso citá-lo novamente, quiçá, assim, se interesse o leitor em ler seu livro. Uma leitura inquietante e agradável!



“(...) A verdade? Qual verdade? A de viver e de morrer. É a mesma, pois que apenas os viventes morrem, e pois que morrem todos. O raciocínio não muda nada. Não se morre por acidente, doença, velhice. Morre-se por ser mortal, morre-se por viver, por ter vivido. A morte, ou a angústia da morte, ou a certeza da morte, é o próprio sabor da vida, seu amargor essencial.”.



                                                    (p. 49)



Morre-se, porque é necessário morrer. Porque não há vida sem morte; e, para morrer, é preciso antes ter vivido. O leitor experiente não concluirá que Sponville lança um olhar pessimista sobre a existência humana. Não se engane com esse trecho. Para o autor, a vida comanda, embora também a morte o faça. Para ele, a vida basta; tem ela “gosto de felicidade”, sem negar-lhe o gosto de desespero. Leiamos atentamente este trecho, a fim de que nos torne mais clara a visão do autor:



“Que a vida seja decepcionante, sempre decepcionante, no fundo é isso que ela nos ensina de mais claro. Não, por certo, que nela não haja alegrias e prazeres. Mas não os que esperávamos ou não da mesma forma, ou que não poderiam, quando estão presentes, dar-nos a felicidade que deles esperávamos  quando não estavam presentes, quando nos faltavam”.

                                          

                                                    (p. 54)



A vida nos ensina esta dura lição: a decepção, a desilusão: “o amor decepciona. O trabalho decepciona. A filosofia decepciona” (id.ibid.). Que nos resta senão amar verdadeiramente sem crer no amor, sem divinizá-lo, aceitando-o como ele é, como tudo o mais, decepcionante?



“Prefiro o alegre amargor do amor, do sofrimento, da desilusão, do combate, vitórias e derrotas, da resistência, da lucidez, da vida em ato e em verdade. Prefiro a realidade, e a dureza da realidade. Se a vida não corresponde às nossas esperanças que nos enganam, desde o início (desde a nostalgia primeira que as alimenta), e que a vida só possa desde então nos desenganar... Gosto azedo da decepção, do qual nada cura senão o desespero, se for possível, a sapidez muito acre e muito salutar do desespero. Toda esperança é decepcionada, sempre, só existe felicidade inesperada.”.



                                                 (p. 55)

                                               (grifo meu)





Felicidade episódica! Poderíamos amar sem acreditar no amor? Apressar-nos-íamos em responder negativamente. Necessário, contudo, se faz compreender a lógica de Sponville. Escreve o autor: “E como amar verdadeiramente, enquanto se acredita no amor, enquanto se faz dele uma religião, um absoluto, um sonho?” (id.ibid.). É que só podemos amar verdadeiramente quando nos desfazemos das ilusões do amor, quando abandonamos os ideais de amor, quando não mais o idealizamos! Desfazer-se das ilusões que construímos sobre os objetos de desejo é a única forma de viver para quem abandonou as ilusões da transcendência e as mentiras da religião. Eis o que me parece inegável:



“Aquele que só amasse a felicidade não amaria a vida, e com isso se proibiria de ser feliz. O erro é querer selecionar, como nas prateleiras do real. A vida não é um supermercado, cujos clientes seríamos nós. O universo nada tem para nos vender, e nada diferente para nos oferecer senão ele próprio – nada diferente para oferecer senão tudo.”



(p. 56)



Preciso ainda citar estas últimas palavras de Sponville, antes de levar a cabo este texto; principalmente, porque é preciso que se dissipe qualquer dúvida sobre o valor que o autor atribui ao amor na vida dos seres humanos. Não nos enganemos com aquele tom desalentado com que parece encarar o amor. Sponville nos brinda com estas belas palavras a seguir, trecho em que trata da solidão:



“Solidão da arte. Há também uma solidão da dor, e é a mesma. Solidão de viver. Solidão de morrer. Solidão: finitude. A amizade não adianta nada, e, além disso, temos tão poucos amigos... Gostaríamos de ser amados ainda mais, o que confirma simplesmente que de amor, de puro amor, nós mesmos somos muito pouco capazes. Solidão do amor, do amor imenso que esperamos, daquele – também imenso por vezes – que desejaríamos dar...Mas o amor não se dá, nem se possui. O amor é pura perda (...), e essa perda, essa puríssima perda de amar, é a única riqueza, como que uma luz sobre o mundo, como que uma pobreza radiosa, como que uma jóia de alegria e de doçura na infinita solidão dos viventes”.



(p. 54)



Como negar que a vida é uma corrida em direção à morte? E como negar que, ao pensar na morte, temos de lidar com a fragilidade da vida, mas também com o amor, a solidão, o desejo de felicidade e a convivência com a decepção? Como escapar à angústia? Evitando pensar sobre a morte? Para Kierkegaard, quanto menos espírito, menos angústia. Mas a angústia está entranhada na existência, no seu absurdo, para ser mais exato. Para Heidegger, as instituições sociais são o modo que os homens encontraram para se defenderem contra a angústia. Mas, o que é mesmo angústia? Uma forma de ansiedade superlativizada. Que é ansiedade? Um estado emocional desagradável suscitado em nós por um perigo suposto. Ele não está adiante. Angústia em face da morte não é senão o medo da morte. A ansiedade está na raiz de todos os mecanismos de defesa do ego.

Por que, então, pensar a morte? Porque é preciso enfrentá-la. É enfrentando-a na solidão do pensamento que podemos viver a alegre amargura da vida. À assunção de meu ateísmo seguiu-se o sentimento de libertação espiritual e intelectual que compartilho com Sponville. Sem a bengala da ilusão religiosa, vivo a fragilidade e fugacidade da vida. E a aceito, não sem pensá-la na sua relação visceral com a morte, condição final a que estamos destinados desde o nascimento. Entendidas estas palavras, o trecho abaixo não atormentará as noites solitárias do leitor:



“A morte não é terrível. Passa-se ao sono e o mundo desaparece – se tudo correr bem. Terrível pode ser a dor dos moribundos, terrível também a perda sofrida pelos vivos quando morre uma pessoa amada. Não há cura conhecida. Somos parte uns dos outros. Fantasias individuais e coletivas em torno da morte são frequentemente assustadoras. Como resultado, muitas pessoas, especialmente ao envelhecerem, vivem secreta ou abertamente em constante terror da morte. O sofrimento causado por essas fantasias e pelo medo da morte que engendram pode ser tão intenso quanto a dor física de um corpo em deterioração. Aplacar esses terrores, opor-lhes a simples realidade de uma vida finita, é uma tarefa que ainda temos que enfrentar”.



                      ( A solidão dos moribundos, 2001: 76-77)






sexta-feira, 22 de junho de 2012

"Mais um ano longe de ser criança? Isso não me parece ser o mesmo que crescer." (Richard Bach)


                             Sobre o crescimento humano

  

Uma pessoa só cresce (e refiro-me a crescimento espiritual, à maturidade), quando capaz de reconhecer que o mundo não se dobra em face de seus desejos. Somos seres desejantes, e não há como deixar de sê-lo. O desejo nos impulsiona a viver; calado o desejo, resta a apatia, a melancolia. O desejo está no princípio; a ação vem depois. Nem sempre agimos segundo desejamos, a experiência no-lo prova. E não podemos ter tudo que desejamos. É preciso domar o desejo (e não me refiro ao que pode nos levar à ruína, mas ao desejo que visa a algum benefício). Para isso, há a cultura e seu produto psíquico, o superego – que comanda e censura, impedindo a plenitude da satisfação dos desejos. Há uma compensação à castração do desejo - o princípio de realidade, que nos impele a buscar para o desejo objetos  substitutivos, cuja fruição  esteja adequado às exigências do superego; afinal, é ele quem comanda.

Dei passos largos e me perdi. Volto ao que me interessa. Não o desejo que transgride às exigências do superego (que é o juiz social em nossa mente); mas o desejo realizável, embora limitado por pressões externas. Portanto, é do desejo frustrável que se trata. Amadurecemos quando nos damos conta de que entre o desejo e a realização há uma série de condições adversas que devemos nos esforçar por superar, embora, não raro, a superação não esteja ao nosso alcance. Não é raro que, nesses casos, o desejo nos conduza à utopia (que nada mais é do que o “não-lugar, o lugar nenhum). Mas, então, me lembro do poema de Eduardo Galeano, cujos versos finais nos ensinam que devemos caminhar:  “Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”. Transcrevo-o abaixo na íntegra:



A utopia está lá no horizonte

Me aproximo dois passos,

Ela se afasta dos passos.

Caminho dez passos

E o horizonte corre dez passos

Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei.

Para que serve a utopia?

Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.



(Eduardo Galeano)



Vemos, assim, que a utopia, embora, por definição, infactível, ajuda-nos a avançar. Nesse sentido, ela nos leva a resistir à apatia. Ela nos move para frente e é possível que, durante o percurso tenhamos razões para nos contentar. Se nosso crescimento, eu dizia, depende de que reconheçamos, como cantava Cazuza, que aquele garoto que pretendia mudar o mundo agora está deitado num divã, não se segue daí que devemos concordar plenamente com ele; afinal, se queremos resistir ao conformismo, não podemos deixar o tal garoto em cima do muro, como mero espectador no teatro da existência, um coadjuvante no palco da vida. O Dasein pressupõe a transcendência do homem no mundo. A apatia é o efeito das frustrações que experimentamos por força das coerções sociais. A vida precisa superá-las. Para viver, precisamos resistir a elas. Digo às frustrações, é claro.

Tendo já a maturidade limado as suntuosas estruturas de nossos desejos de primavera, o que nos resta, no final das contas? O que, afinal, importa? Ter nosso cantinho, nosso cônjuge, possivelmente filhos, um carrinho na garagem e um emprego (porque é preciso, não há como viver sem trabalhar, embora o desejemos, nos lembra Sponville). E, a esta altura, quero fazer eco a Sponville – e me perdoem a pequena digressão (mas se verá que ela não perturba o itinerário deste comboio de palavras). Lê-se, na página 26, de seu livro Bom-dia, angústia (2010), o seguinte:



“O trabalho é um esforço, um sofrimento, uma fadiga. A riqueza, um luxo e um descanso. “O dinheiro não traz felicidade”, dizem, e isso é muito claro pois que nada o traz. Mas que luxo, porém, a preguiça, e que prazer o luxo!”.





Permita-me o leitor que eu me detenha um pouco nesse trecho. Percebo coisas interessantes nele, e quero trazê-las à sua consciência. O uso das aspas destacando o enunciado “O dinheiro não traz felicidade” serve de índice do que se costuma chamar, em Análise do Discurso, de “heterogeneidade mostrada”. Trata-se da recuperação explícita de outro discurso. Apreende-se, pelos recursos da linguagem, a presença do Outro (que é fundante de todo ato de linguagem). Esse discurso é atribuído a um enunciador genérico, que chamarei, seguindo a tradição desse campo, de “Vox populi”. É a voz popular que o diz, e o autor adere a esse discurso (e à perspectiva que se enuncia). E justifica sua adesão evocando Freud. Não explicitamente, é claro, mas quem leu O mal-estar na cultura (2010) sabe que, nessa obra, Freud advoga ser a felicidade inalcançável ao homem, dadas as condições repressivas da cultura. Na verdade, para Freud “nossas possibilidades de felicidade já são limitadas pela nossa constituição” (p. 63). Entenda-se tanto a constituição física quanto psíquica. Citando esses breves excertos de Freud, ocorre-me que a leitura daquela obra é extremamente importante para a compreensão da natureza humana. Contemplamos nela a dimensão visceral de nosso sofrimento. Nela, o drama nu de nossa condição!

Eu dizia que, se, no final das contas, desejamos ter uma família, uma moradia e um emprego (e um carro na garagem, talvez), haverá ainda espaço para o desejo? Se o trabalho é uma obrigação enfadonha, da qual não podemos escapar, se quisermos sobreviver, resta ainda espaço para um desejo que vai além de uma melhor remuneração? Devemos lembrar, e para tanto me apoio na argumentação de Sponville, que o valor do trabalho se acha fora dele. Ou seja, se acha na sua recompensa, qual seja, no dinheiro que se ganha, no salário que se recebe. Não me alongarei na discussão sobre o valor social do dinheiro, para a qual remeto o leitor à obra aqui referida de Sponville. Nela, se topa um capítulo, intitulado de O dinheiro, do qual, aliás, extraí aquele excerto. Convém, desde já, alertar o leitor sobre o perigo do reducionismo, particularmente, em matéria de interpretação textual. Preciso ser mais claro: devemos ter o cuidado para não fragmentar o discurso do outro ao pretender evocá-lo ou explicitá-lo em nosso texto, visto que podemos  deturpar o pensamento do autor. Em todo caso, não há como evitar o fato de que sempre procedemos tentando adequar as passagens citadas ao curso argumentativo que tomamos, para, assim, validar nossas conclusões. Cuido que Sponville diz, a seguir. o essencial a respeito do trabalho, em seu livro A Vida Humana (2009). Atente-se para o excerto:



“Engana-se sobre o trabalho quem vê nele apenas um fim em si ou mesmo um valor moral. É o que provam as férias e o salário. Trabalhar? É bem preciso. Mas quem o faria de graça? Quem não prefere o repouso, o lazer, a liberdade? O trabalho, considerado em si mesmo, não vale nada. Por isso é pago. Ele desgasta. Por isso pede repouso. Não é um valor (moral); por isso tem um valor (mercantil). Não é um dever. Por isso tem um preço.”



(p. 58)



Note-se bem que, ao se perguntar “quem não prefere o repouso, o lazer e a liberdade?” ao trabalho, Sponville nos deixa entrever um questionamento: há possibilidade de alguma liberdade no trabalho? Liberdade é incompatível com trabalho? Talvez, ainda, uma questão prévia se nos imponha ao espírito: há alguma forma de experimentar liberdade na vida em sociedade? Em que medida somos verdadeiramente livres? Não pretendamos dar respostas definitivas; não é a isso que se propõe a filosofia. Não é essa a sua lição fundamental. Mais valem as questões do que as respostas. E estas, quando dadas, abrem oportunidade para novas questões. E a busca pela verdade é um movimento incessante! De fato, a liberdade no trabalho não é plena; por vezes, muito limitada, ou quase nenhuma. Poderá refutar-me o leitor, observando, estando o trabalhador reduzido ao cumprimento de suas obrigações, sem qualquer liberdade de ação divergente de tal condição, resta-lhe a liberdade de escolher deixar o emprego. Tão-logo, no entanto, atentamos mais de perto para o drama humano, reconhecemos que esse trabalhador terá sua liberdade ainda mais limitada pelas condições externas, pois que precisa sobreviver, precisa do dinheiro para sustentar a si e a sua família (caso a tenha). As contas ignoram nossa liberdade!

No magistério – quem é professor bem o sabe -, precisamos acalentar desejos e nos esforçar por realizá-los. Sabemos outrossim que as condições administrativas da instituição são adversas. Lembro-me de que, tendo apresentado um projeto de um curso de leitura na faculdade onde trabalhava, e a despeito do reconhecimento de sua qualidade e validade, o curso nunca fora implantado, por razões organizacionais (parece que o programa curricular não deixava margem à inserção de uma nova disciplina, reconhecidamente importante!). Na ocasião, argumentei, me respaldando na constatação da baixa qualidade da compreensão textual e produção escrita dos alunos nos cursos que ministrei, entre os quais os ministrados na cadeira de Letras, que era urgente que se oferecesse um curso destinado tão-só ao trabalho com leitura e compreensão textual (aí implicadas as atividades de produção escrita). Era preciso exercitar a prática de leitura crítica e o exercício da escrita contínua, dizia eu, como uma tentativa de amenizar um problema, certamente mais grave e anterior, a baixa qualificação escolar de nossos estudantes. Atrelado a esse difícil problema, havia outro, a saber, a admissão desses estudantes para os cursos superiores. Todos sabíamos (os professores que o digam!) que muitos estudantes que ali estavam não dispunham de uma competência textual e de leitura satisfatória para avançar no percurso de sua formação acadêmica. Culpá-los por isso é um erro, embora despercebido por alguns professores. São esses estudantes antes vítimas! Se uma instituição de ensino privado, como um mercado, precisa de lucro para se manter, não havendo alternativa senão admitir o maior número de estudantes possível (a quantidade faz o lucro!), resta aos profissionais diretamente ligados ao ensino (nós, professores), ou nivelar nossas aulas por baixo (para que não haja um grande índice de reprovação e possível evasão), ou esforçarmo-nos por oferecer um curso com um mínimo de qualidade, buscando angariar apoios daqueles que são responsáveis pela administração (coordenadores, diretor, reitor...). A nossa liberdade, como se vê, está limitada na própria constituição desse sistema hierárquico; acima de nós, o coordenador do curso; acima deste, o diretor de um departamento; e acima deste o sub-reitor; e acima deste o reitor...

Eis, então, algo que preciso aprender com a maturidade: a desenvolver o sentimento de comando numa escala hierárquica. Não lido bem com a condição de estar acima de outros, de comandar, de submeter decisões à minha aprovação. Não porque eu seja incapaz de exercer comando, mas porque prefiro o estreitamento de vínculos, o espírito de congregação, que é próprio da sala de aula. Não nego a hierarquia também nesse espaço, é claro. Não há como escapar a ela. Estruturas hierárquicas estão na base das vivências sociais. Isso é inegável! Mas, por outro lado, sabemos que a relação professor-aluno, em nossa cultura, é marcada não pelo distanciamento, mas pela proximidade. Por isso, o estudante se dirige ao professor empregando a forma “você”, em geral. E o professor não se aborrece com isso! O “você” é a forma não-marcada para a hierarquia. Com ela, estabelecemos uma relação de proximidade com o interlocutor.

Malgrado o fato de nunca ter podido ministrar o curso previsto em meu projeto, ainda acalento o desejo de reunir numa sala de aula leitores, cujo objeto de sua atenção serão os textos. Um trabalho que, necessitando recompensa, tendo um preço, traria prazer. E eis que a voz de Freud ecoa-me na alma: “há sempre a frustração do prazer! A infelicidade é mais gorda; a felicidade mais magra!” Mas aí me lembro de que há o desejo e a sua inevitabilidade; e também a utopia, que nos faz avançar.






quinta-feira, 20 de outubro de 2011

"Como falar da felicidade sem falar do amor?" (André Comte-Sponville)

                             

                                      Quem inventou o amor?

Eu gostaria de compartilhar com vocês, estimados leitores, um pouco da leitura, a que me dediquei nesta tarde, do livro O Amor (2011), do filósofo francês André Comte-Sponville.
Ao revisitar as três formas de amor que o pensamento grego conhecia, a saber, Éros, philia, ágape, Sponville, no capítulo Éros ou amor paixão, nos ensinará a respeito desse amor:

“(...) o amor-paixão (...) é o amor que sentimos quando estamos apaixonados, mas no sentido mais forte e verdadeiro do termo, quando “caímos fulminados de amor”, como se diz. Em suma, é o amor que vocês, senhoras, sentiam pelos seus maridos, antes de eles se tornarem seus maridos. Ou o amor que vocês, senhores, sentiam por suas esposas antes de elas se tornarem suas esposas. Lembrem-se de como era diferente...”
(pp. 29-30)
 
É considerando, portanto, o amor-paixão (Éros) que o autor passará em revista a posição de Sócrates, em O Banquete. Dentre aqueles que discorreram sobre o amor e renderam elogios a ele, na ocasião, Sócrates foi o único a dizer a verdade sobre o amor. No discurso socrático, o amor é o desejo pelo que falta.
Não é meu intento, contudo, pormenorizar o conteúdo do discurso de Sócrates, mas referir a opinião do autor sobre o valor do feminino na experiência amorosa. Devemos ter em conta que o que Sócrates nos ensinou sobre o amor é atribuído a Diotima, uma sacerdotisa. Portanto, a verdade vem de uma mulher, e não da boca de um homem (que era a norma naquela época).
Nesse tocante, se expressará o autor:

“É muito raro, em toda a filosofia grega, especialmente na obra de Platão, a verdade vir de uma mulher. E, sem dúvida, não é por acaso que isso ocorra justamente com relação ao amor. Cheguei a dizer, por provocação, que o amor é uma invenção das mulheres”.
(p. 42)
(grifo meu)

Eis a tese: “o amor é uma invenção das mulheres”. Seguirá o autor apresentando justificativas para tal afirmação. Insistirá que ele não quer dizer, com ela, que os homens são incapazes de amar ou que o amor não existe. Na verdade, segundo o autor, o amor existe, já que foi inventado; e ele existe, inclusive, para os homens também. No entanto, declara:

“(...) mas não existiria se as mulheres não tivessem tomado a iniciativa do amor”.
(id.ibid.)


Para o autor, o amor seria uma experiência primordialmente feminina, ou seja, uma experiência criada e ensinada pelas mulheres, e não pelos homens. Sua argumentação segue nestes termos:

“O que quero sugerir, dizendo isso, é que uma humanidade exclusivamente masculina (poderia ter ocorrido, a natureza apresenta outros modos de geração que não a reprodução sexuada) nunca teria inventado o amor. O sexo e a guerra sempre teriam sido suficientes – digamos, para sermos menos incompletos: o sexo, a guerra, os negócios e o futebol sempre teriam sido suficientes! Acontece que, para as mulheres, felizmente, o sexo, a guerra, os negócios e o futebol não são suficientes. Assim, elas inventaram outra coisa, que concerne à cultura pelo menos tanto quanto à natureza (mas a cultura faz parte do real, como a humanidade), algo que elas viveram como mães, sem dúvida, muito mais e muito antes do que como amantes ou esposas, algo que chamamos de amor, que elas trataram de ensinar também aos homens (ao filho, ao companheiro), os quais pouco a pouco conseguiram aprender, ao longo dos milênios, a tal ponto que para os mais talentosos quase poderíamos esquecer que se trata de um personagem que foi composto... (...)”
(pp. 42-43)

Ao cabo deste parágrafo, o autor agradece “do fundo do coração” a todas as mulheres por tão grandioso feito.
Importa ver que, ao situar o amor no domínio do feminino, ao qual atribui o autor o poder criador, ele nos chama a atenção para a relação intrínseca entre amor e cuidado, entre amor e amparo. Afinal, é essa a experiência que a mulher, então, mãe, vive junto ao filho que está a amamentar e a criar. O amor nasce então do ato de cuidado. Trata-se, novamente, da ideia, aqui por mim, exaustivamente, defendida do amor como experiência de cuidados.
Também aí vemos que, no universo feminino, sexo não se identifica com amor, muito embora a experiência sexual deva ser uma das formas de expressão do amor. Donde se segue a crença generalizada de que mulheres fazem amor e homens fazem sexo. O divórcio entre sexo e amor, comum no universo masculino, é superado, pelo menos ideologicamente, no universo feminino. Neste, sexo e amor não se identificam, mas aquele mantém com este relação simbólica, tal como significante (sexo) e significado (amor).
Sabemos, contudo, como me dissera um taxista, que há muitas mulheres sexualmente disponíveis por aí (embora muitas ainda esperem encontrar homens para os quais a experiência sexual seja também uma das formas de expressão da experiência amorosa). Se,  dos anos 60 a 70, assistimos a uma “Revolução Sexual”, quem sabe daqui a alguns anos não possamos assistir a uma “Revolução amorosa”? Sim, uma “Revolução do Amor”, que tem de ser deflagrada pelas mulheres, suas criadoras. Essa revolução consistirá num movimento político-ideológico que reivindicará mais respeito, mais fidelidade, mais cumplicidade, mais excesso de alma e de ser nas experiências interpessoais.
Já é tempo de fazer ver uma ética feminina, fundada no cuidado. A mesma mulher que hoje conseguiu ocupar o cargo de maior poder deve ser a mulher que reivindicará e conquistará o domínio sobre algo, que lhe é seu naturalmente, e que é tão importante à vida da humanidade: O AMOR.
É com as palavras de Sponville, que compõem a seção Introdução, que ponho termo a este texto. O autor lembra-nos o seguinte a respeito do amor:

“(...) Não são necessárias longas preliminares para justificar a escolha desse tema: o amor é o tema mais interessante. Quase sempre. Para quase todo o mundo. Por exemplo, numa noite, num jantar com alguns amigos. A conversa pode girar em torno da situação política, do último filme que vocês viram, da sua profissão, das férias, e tudo isso pode ser interessantíssimo. Mas, se um dos convivas se põe a falar de amor, o interesse dos outros quase sempre aumenta sensivelmente. Sim, o amor, tomado em si mesmo, é o tema mais interessante, quase sempre, para quase todo o mundo. Acrescentarei que qualquer tema só tem interesse à medida do amor que temos por ele. Imaginem que um de vocês me diga: “Não, não, para mim nem um pouco! O que mais me interessa não é o amor, é o dinheiro!” Eu responderia, claro: “Isso prova que você ama o dinheiro!” É sempre um amor...
(...) Não só o amor é o tema mais interessante, para a maioria de nós, mas qualquer outro tema só tem interesse à medida do amor que temos por ele”.
(p. 11)




terça-feira, 19 de abril de 2011

O absoluto está aí; olhe para ele.

                                     Aceitação


Agora estou só, nesta manhã nebulosa de abril. Mais uma manhã comum de menos um dia de vida. Estou presente a mim mesmo; posso experienciar-me por inteiro, pois que estou inteiramente presente nas palavras cuja distinção minha alma é capaz de gerar. Há pouco, lia o capítulo em que Sponville trata do que chamou de aceitação, em seu instigante livro O Espírito do Ateísmo. O autor nos propõe a aceitação do real, sem mais nem menos. Também nos recomenda suspender qualquer juízo de valor.


“O real basta: por que submetê-lo a outra coisa? Tudo é perfeito: não há mais necessidade de consolo, nem de esperança, nem de juízo final (não se trata mais de julgar, mas de compreender, e menos de compreender que de ver). O real é para pegar ou largar, ou antes, nessa experiência que evoco, ele é aquilo mesmo que não temos  como não pegar: porque ele é sua própria pega, que nos despega de todo o resto”.
(pp. 166-67)


Mais adiante, escreverá:


“O real comanda, pois não há nada além dele. O pensamento? É o próprio real (a verdade) ou não passa de uma ilusão (que faz parte do real: ela é verdadeiramente ilusória)”
(p. 172)


Dirá ainda do absoluto,


“Por que o absoluto está em outro lugar? Ao contrário: porque ele está aí, sempre já aí, antes de qualquer obra, antes de qualquer juízo, antes de qualquer compromisso, porque precede e acompanha todos eles, carrega-os e leva-os embora”.
(p. 170)


E o que é o absoluto? É o que é em si e por si e que independe de nada, ilimitado, indeterminado.  A experiência do absoluto é a experiência de sua imanência e não de sua transcendência. O absoluto, nessa perspectiva, é tudo que está aí; é imanente. O absoluto é o Ser (de Parmênides), o devir (de Heráclito), a natureza (de Espinosa), o Tao (de Lao-tsé), etc.  Não importa o nome que lhe demos; ele é a vida pulsante em nossas veias; vida que se desliza para o abismo da morte.
Estar no absoluto é estar completamente imerso no silêncio da vida; é experienciar o silêncio de nossa existência absurda. Confesso que experiencio o absoluto quando estou imerso no AMOR. A experiência do AMOR correspondido é a experiência do absoluto, pois que sentimos não precisarmos de mais nada, pois o AMOR não depende de nada mais; ele basta a si mesmo.
Também o absoluto pode ser sentido na contemplação da natureza: do grandioso mar adiante, do vôo bailarino das gaivotas, do canto matinal dos passarinhos, no suave adejar das borboletas; também pode ser experimentado no pensamento. Não raro, quando escrevo, quando me ocupo com meus pensamentos, quando me doo à prática laboriosa da escrita experimento o absoluto encerrado em cada palavra. A linguagem para mim encerra o absoluto; nasci destinado a ela.
É certo que, nela, em suas malhas de significado, meu espírito se me desnuda; sou eu mesmo inteiramente imerso nas palavras. Apreciem ou não o que escrevo; censurem ou acolham, ainda assim minha exposição à linguagem é irrepreensível; não pode ser de outro modo, uma vez que as palavras não me são dadas; são constitutivas do que sou: meu ser mesmo é tecido de palavras.
Há muitos anos, tenho vivido da mesma forma e pretendo assim viver até o dia de minha morte: uma vida disciplinada e pautada na comunhão com o verbo. Nada em mim escapa à expressão verbal; o indefinível em mim se submete aos caprichos da linguagem, às suas figuras que subvertem o significado. Toda minha alma está espelhada nas palavras que faço derramar sobre o papel. Olhem do ângulo que desejarem e verão a mim mesmo refletido, submerso.
Outrora, estar só fazia-me ausente de mim mesmo; desde que o AMOR, todavia, pousou em minha vida, estar sozinho é estar inteiramente presente em mim e a mim mesmo. Eu estou aqui e comigo estão os meus pensamentos e a linguagem, evidentemente, sem a qual eles não são socializados.
Não há nada além do mundo, dirá Sponville. Tudo está aí e nada falta. Só o presente é real, é o ser; o futuro é o não-ser, a ausência. Lembro-me bem de que escrevi “não vivo amalgamado com o mundo”, mas isso não significa que eu não reconheça meu pertencimento ao mundo. Sou um átomo desse Todo. O mundo é uma totalidade que me abrange. Nada nele me será estranho, muito embora, como nossa experiência do Todo seja, inevitavelmente, relativa, nem tudo do mundo me será aceitável. O homem não experiencia o real em si, o mundo não entra em sua consciência em estado bruto. Ao contrário, nossa experiência do mundo é sempre mediada. Entre o homem (e seu espírito) e o mundo, há a interpretação. O mundo, o real, para o homem, é mundo, é real interpretado.
Os seres humanos não se contentam em ver uma árvore, mas se perguntam por que ela está ali, que relação tem ela com o meio natural, que função desempenha, que significado tem ela para a vida, o que é essa entidade natural, etc. E as questões não cessam. Por isso o mundo é um problema, a vida é um mistério e o absoluto inapreensível. É condição do homem conhecer, suscitar questões, interpretar. Nossas experiências existenciais são, necessariamente, experiências de sentido, com o sentido. É também condição de nosso ser de linguagem. É porque somos homo loquens que, parafraseando Sartre, estamos condenados a produzir sentidos.
É somente quando me encontro com as palavras, quando lhes desvelo a intimidade, quando gozo delas, que ponho a descoberto o fundo da minha alma. No dia-a-dia, não costumo ser tão hermético, compenetrado, distante; ao contrário, sou simples, comum e sempre acessível aos que me querem bem. No entanto, a vida diária não propicia o desvelar da profundidade de minha alma. As conversas triviais que atendem a propósitos comunicacionais imediatos  são sempre ineficientes para alcançar as suas regiões mais densas.
O absoluto não está no cotidiano, cada vez mais comprimido pelas nossas incumbências; ele está aí onde se dá o encontro de si consigo mesmo; quando olhamos  nossa interioridade com um olhar espiritual que vem de dentro. É a solidão existencial de que tratei. Cada experiência com o absoluto é única, porque a relação individual com a vida é singular e distinta. Para mim a força da vida reside na beleza do AMOR e na resistência do Pensamento. A força da vida repousa na força do AMOR e na intensidade, na verdade do pensamento, que deve ser expressão de liberdade amparado na responsabilidade.
O absoluto pode ser pensado? Creio que sim, mas só apenas quando a vida mesma é colocada diante de nós, ou, o que dá no mesmo, nós nos colocamos diante da vida. Acontece que muitos apenas se limitam a vivê-la, mas raramente se preocupam em olhar para ela. Já olhou para a vida? Já se confrontou com ela? Há quem prefira evitar esse confronto; sei que sempre a confrontei, em que pese à experiência de desespero em que me vi, muitas vezes, mergulhado. Hoje, posso confrontá-la e aceitá-la sem esperar por nada mais; quero ser lembrado no coração daqueles que amo e que me amam.
Viver para ser lembrado, para ser recordado, avivado no coração daqueles que amamos. Ao final de tudo, restar-nos-ão as lembranças; elas darão testemunho de nossa existência e reafirmarão a presença inconteste do absoluto: aí diante de nossos olhos e no íntimo abissal de nosso coração.




(BAR)