segunda-feira, 5 de maio de 2025

"Numa sociedade dominada pela produção capitalista, até o produtor não capitalista é dominado por concepções capitalistas." (Karl Marx)

                             




          O CONCEITO DE CAPITAL

 

  Breves considerações

       Não sei por que caminhos verbais trafegarão minhas reflexões, ora costuradas com o intento precípuo de retomar minha prática de escrita, tão inconvenientemente postergada por força das demandas da vida diária e da pregnância da intuição costumeira da insignificância de todas as coisas. Mesmo convencido de que tudo que fazemos, nesse universo absurdo, seja radicalmente irrelevante e sem sentido último, toda a minha constituição fisiológica e psicológica impõe-me a aceitação da crença de que ler e escrever são atividades que dão significado a minha contingente existência, de sorte que renunciar a elas é não só privar-me de um deleite, como também é manter-me atabalhoado, por tempo muito prolongado, no falatório do senso comum. 

  Com este texto, espero não apenas romper um silêncio cuja permanência se me tornou intolerável, como também discorrer sobre um tema, sobre o qual dispensei atenção e estudos por um longo período. Tema bastante complexo, dados os desdobramentos inerentes à sua constituição interna. Como sejam muitos os caminhos abertos à reflexão no tratamento desse tema, imperioso se faz operar um recorte metodológico na complexa trama temática que se vai descortinando a quem quer que dele se ocupe. Inicialmente – quero dizer, antes mesmo de iniciar a primeira linha deste texto – estava disposto a discorrer sobre a apropriação indébita da riqueza social a partir da questão “Quem são os verdadeiros donos do mundo?”. Esse tema, todavia, demandaria muito tempo e diligências teóricas para a sua exposição, e eu pretendo que este texto não exceda o número de cinco laudas. Portanto, sem mais delongas, o tema a cuja exposição o presente texto se destina é o capital. Pretendo esclarecer o que se entende por capital tanto nos domínios da pesquisa sociológica como no interior do pensamento de Marx. 

     Principio por notar que a palavra “capital” serve de base para a formação “capitalismo”. No que tange ao capitalismo, cinjo-me a dizer que se trata de um modo de produção cujo fim é a reprodução e acumulação contínua do capital mediante a exploração do trabalho assalariado. Como o que está sob foco de minhas reflexões não é propriamente o capitalismo, mas o capital, deverá ser suficiente esta definição de capitalismo. Considere-se, doravante, a polissemia do termo capital.

  No senso comum de nossa sociedade, o capital é entendido como o conjunto dos bens que um sujeito individual ou coletivo (uma empresa, por exemplo) possui em determinado momento. Falamos de “capital” quando, por exemplo, nos referimos ao patrimônio material que uma pessoa possui (carros, apartamentos, títulos públicos). Se situarmos o conceito de capital na esfera dos fenômenos produtivos, então o termo passa a recobrir o conjunto de bens produzidos pelo homem e que são utilizados pelo indivíduo ou por uma comunidade, sociedade, como meios de produzir outros bens e serviços. É nesse domínio de compreensão do conceito de capital, que a palavra capital passa a designar o conjunto dos meios de produção, a saber, os instrumentos, os utensílios, aparelhos, máquinas, edifícios que são propriedade do capitalista. Pode-se também entender o capital não só como o conjunto desses bens, mas também como o valor dos meios de produção que pertencem a uma empresa, ou seja, o valor a eles agregado, tais como o crédito, a capacidade comercial e a reputação da empresa, seus estoques, etc. 

     Antes da era moderna, sob o rótulo capital reunia-se bens como rebanho e gado possuídos por uma família. Na Idade Média, o chamado capital pecorum era a parte principal do débito, em comparação com os juros que deveriam ser pagos pelo devedor. Ainda hoje a atividade bancária usa a palavra “capital” nesse sentido. 

   No âmbito da ciência econômica, não encontramos uma definição satisfatória de capital, muito embora possamos demarcar um núcleo de sentido que torna estáveis os diferentes empregos dessa palavra. Em economia, o capital é um dos fatores de produção. O capital é formado pela riqueza (embora não se confunda com ela!) e gera renda. Ele é representado pelo dinheiro. Nesse sentido, o capital recobriria a quantidade de dinheiro aplicado que uma pessoa tem. O capital também pode ser definido como todos os meios de produção que foram criados pelo trabalho e que são utilizados para a produção de outros bens. Destarte, o capital de uma empresa ou de uma sociedade é constituído por todos os recursos produtivos que foram criados pelo trabalho humano, excluindo-se desse conjunto os recursos naturais. O que se entende por capital, portanto, recobre somente os meios de produção, ou seja, aqueles utilizados em atividades que se inserem na divisão do trabalho. Num sistema de produção capitalista, o capital, por conseguinte, abriga os recursos usados na produção de bens e serviços destinados à venda, isto é,  usados na produção de mercadorias. 

 

1. O capital como relação social

 

     Na esteira de Marx, o capital não recobre os objetos de trabalho nem o trabalho em si, mas os valores, ou mais, precisamente, os preços.  A definição de capital desenvolvida por Marx é mais radical que as definições correntes desse conceito. A radicalidade da definição marxiana de capital se prende ao termo preço. Segundo Marx, o preço  expressa precisamente a existência de uma relação social que resulta da propriedade privada dos meios de produção. Estes só são considerados capital porque são propriedade privada. 

 Ora, é porque existe propriedade privada que se pode fixar um preço ao trabalho prestado pelos trabalhadores e um outro preço, superior ao primeiro, aos bens produzidos por eles. É a existência da propriedade privada que permitirá a apropriação da diferença entre esses dois preços, e parte dessa diferença se destina ao aumento do capital.

   Destarte, observa Marx que o capital não se reduz simplesmente ao poder de dispor do trabalho, como pensava Adam Smith, mas é, essencialmente, o poder de dispor de um trabalho não remunerado. É por essa razão que o capital é uma relação de produção específica, a saber, a de produção capitalista. Convém insistir em que, para Marx, o conceito de capital não consiste na apropriação de determinados meios de produção, mas numa forma específica de relação social, que se apresenta sob a forma de objetos, tais como dinheiro, meios de produção e mercadoria. Assim, o capital é visto como produto de um tipo de sociedade, a saber, a sociedade capitalista.

   Cabe perguntar, todavia, se estaria o capital circunscrito ao modo de produção capitalista. Marx acreditava que sim. Ao definir o capital, reunindo nesse conceito os meios de produção, a propriedade privada e a sociedade burguesa, Marx nos priva de um termo que designe os meios de produção característico de um sistema social diverso. Outro problema com a definição marxiana de capital surge quando da análise da relação entre exploração – entendida como apropriação de uma parte do produto do trabalho da classe trabalhadora – e os meios de produção na sociedade burguesa. Autores de orientação marxista reconhecem que a exploração capitalista radica não no capital, mas no desenvolvimento necessário das formas senhoriais, cuja origem remonta ao modo como se constituiu o capital numa dada formação social. Dessa divergência no tocante à definição marxiana de capital, resulta a insustentabilidade da identificação do capital com a sociedade burguesa. Assim, ao termo capital restitui-se o significado de conjunto dos meios de produção que podem ser empregados com objetivos diferentes em sociedades diversamente organizadas sob o aspecto econômico e político.

 Na extensão da literatura especializada, é possível discernir entre tipos de capital; não vou, no entanto, dar a conhecê-los neste texto, visto que cuido mais importante acrescentar algumas palavras sobre as condições determinantes da formação do capital, antes de encerrar. 

 

2. A formação do capital

 

 As condições históricas que determinaram a formação do capital sempre foram muito diferentes, segundo as sociedades e as épocas, o que impede que elas sejam reduzidas a um modelo único de explicação.

   A afirmação de Marx segundo a qual a pré-história do capital constitui a transformação da pequena propriedade de muitos na grande propriedade de poucos, com a consequente expropriação da grande massa da população, dá conta das condições históricas da Europa Ocidental, anteriores à Revolução Industrial; entretanto, é insuficiente para elucidar seu aparecimento em países cujo desenvolvimento econômico é mais recente.

  Os historiadores do capitalismo moderno comungam da opinião predominante de que o capital das primeiras manufaturas foi, em grande medida, de origem agrícola, tanto na Inglaterra quanto na França, Alemanha e Itália. Esse capital agrícola foi investido em atividades industriais por grupos muito diferentes em termos de origem sociocultural, localização geográfica e ocupação. Nesses grupos, encontram-se ex-comerciantes, artesãos, mineradores, funcionários e senhores do campo. Para alguns historiadores, à formação do capital foi indispensável o desenvolvimento do comércio internacional e as empresas coloniais que transferiram crescentes fluxos de dinheiro para a Inglaterra, durante o longo período que precedeu o início da Revolução Industrial. Essa explicação, todavia, não dá conta da razão por que, a despeito de ter recebido um fluxo análogo de investimento, Itália, Espanha e Holanda, não chegaram a atingir uma acumulação de capital semelhante à que se deu na Inglaterra.

  Max Weber, por sua vez, mostrou como um dos fatores de formação do capital – o alto grau de racionalidade formal – facilitou a apropriação de todos os meios de produção. Segundo o sociólogo alemão, em empresas que não sejam muito pequenas, o cálculo do capital disponível é uma operação muito complexa, que demanda a aplicação de técnicas apuradas, sem a qual é impossível a uma empresa determinar se, depois de um ciclo produtivo, seu capital diminuiu, cresceu ou ficou constante. Uma série de condições, tais como a apropriação de todos os meios de produção, a autonomia absoluta na escolha dos dirigentes, a separação entre os postos de trabalho e os trabalhadores, por exemplo, facilita sobremaneira o emprego daquelas técnicas. A economia capitalista, segundo Weber, se aproximou daquelas condições ideais mais do quel qualquer outra.

    Não se pode ignorar que, em todas as sociedades, o controle do capital garante um elevadíssimo poder econômico e político. Embora isso não seja uma exclusividade da sociedade burguesa, em nenhuma outra que a precedeu, o capital se tornou a potência econômica que domina tudo (e cada um de nós, trabalhadores ou desempregados, aposentados, jovens ou adultos, é, diariamente, expropriado e explorado por essa onipotência econômica, chamada capital!). 

 Por fim, vale acrescentar que, à análise sociológica, interessa mostrar como o controle do capital se torna um instrumento de poder extremamente importante nos países industrializados. É parte importante da análise sociológica do capital patentear como o controle dos meios de produção é efetivamente distribuído entre os diversos grupos e classes dentro das empresas, no sistema econômico, no Estado, nos partidos políticos, e como tal distribuição desigual se transforma gradual ou bruscamente em virtude de fatores técnicos, econômicos, culturais e políticos. 

 Como mencionei anteriormente, capital e riqueza são coisas distintas. Somente um aumento do capital impulsiona - o tão aclamado pela mídia dominante e pelos partidos pró-mercado - “crescimento econômico”. Mas crescimento econômico não leva necessariamente ao aumento da riqueza de uma sociedade, porque, como riqueza não é sinônimo de capital, aquela pode aumentar simplesmente em decorrência de um aumento de “rentas”, mas a capacidade produtiva da economia pode não aumentar no mesmo ritmo da riqueza medida. Pode suceder, inclusive, que a capacidade produtiva decline, enquanto a riqueza aumenta. 

    

domingo, 12 de janeiro de 2025

"Graças à sensação da presença da morte na estrutura do vital, introduz-se implicitamente um elemento do Nada na existência." (Cioran)

 

                              

 

                     O pessimismo e o trágico no pensamento de Cioran


       Consoante observa Pecoraro, “a negação abismal, absoluta, é um marco da filosofia de Emil Cioran”[1]. Toda a sua filosofia é um movimento acumulativo de negações. Para Cioran, negar é o melhor meio para emancipar o espírito.

 

Mas a negação só é fecunda enquanto nos esforçamos por a conquistar e nos apropriamos dela; uma vez adquirida, aprisiona-nos: uma cadeia como qualquer outra. Escravatura por escravatura, mais vale orientarmo-nos no sentido da do ser, embora tal não seja possível sem alguma dilaceração: trata-se nem mais nem menos de nos subtrairmos ao contágio do nada, ao conforto de uma vertigem... [2]

 

        Negar, todavia, não é, na filosofia de Cioran, um sintoma de degenerescência, de adoecimento dos instintos, como poderia entender Nietzsche. A negação não é simplesmente uma característica estilística de uma escrita filosófica que envenena, infecciona e mata. Ela se apresenta como um modo de vida ou uma sabedoria de vida. Não é apenas negação da catástrofe que é a existência, é afirmação do suplício do ser, da existência como esquartejamento, da queda no tempo; é recusa do devir como “agonia sem desenlace”[3]; a filosofia cioraniana diz “não” também “aos truques da razão, às pretensões da filosofia, às violências da verdade, às ilusões sobre o homem e a sua História, às utopias, às promessas de uma redenção, à esperança, aos enganos do conhecimento, às sereias do engajamento (...)”[4]. Cioran nega as profecias sagradas ou profanas que anunciam um novo advento. A negação cioraniana é negação fisiológica, porque “agita-se violentamente nas veias”[5]. A experiência orgânica, a experiência de vida, constitui o solo donde brota e viceja todo o pensamento de Cioran; nesse tocante também, ele está muito próximo de Nietzsche, a despeito das divergências inegáveis que ele terá com o filósofo dionisíaco a partir da fase francesa da escrita de sua obra. Reiter-se que a experiência de vida é, para Cioran, a fonte última de todo o seu pensamento, mais importante que os livros ou quaisquer outras fontes externas. De modo particular, foi a insônia uma experiência fundamental e decisiva na elaboração de seu pensamento, sobretudo porque ela permitiu a confirmação dos ensinamentos gnósticos com os quais ele já tinha inclinação a concordar.

     Não obstante ser a negação e o mais profundo, radical e esquartejador pessimismo características marcantes de seu pensamento, Cioran é um filósofo paradoxal. Seu pensamento é multifacetado, gestado e entretecido no concurso de várias experiências de leitura. Embora fosse filósofo de formação, Cioran frequentou muitas obras e autores de filosofia, literatura e religião. No âmbito da filosofia, se incluem as mais diversas ciências humanas, tais como psicologia, história e sociologia, a cujos estudos Cioran se dedicou. Na área da literatura, Cioran visitou escritores e poetas em geral, com especial destaque para Dostoiévski. No âmbito da religião, se interessava por diversos textos teológicos, mitológicos, quer fossem oriundos da tradição judaico-cristã, quer proviessem de tradições orientais. O espectro de leituras de Cioran é amplo e variado, incluindo literatura, poesia, historiografia, relatos místicos, correspondências, memórias, mitologia, teologia e muito mais. No campo da filosofia, ele não se ocupou apenas dos filósofos pessimistas. Sua tese de conclusão de seu curso de filosofia foi sobre Bergson, chegando a cogitar da realização de uma segunda tese sobre esse filósofo (que não chegou a escrever).

   Dada a complexidade da obra de Cioran, “não apenas os rótulos e definições se mostram insuficientes – e como que rígidos demais para comportar as nuanças e oscilações do espírito”[6]. Portanto, deve-se prevenir contra a tentação de superestimar a dimensão inegavelmente pessimista do pensamento cioraniano a tal ponto que fique eclipsada a complexidade de sua obra. Cioran não se via como pessimista, não conceituou o pessimismo, não o transformou em palavra de ordem, não o tomou como imperativo pelo qual se nortearia seu pensamento. Para Cioran, ser pessimista não é ser defensor do pessimismo. Cioran não foi teórico do pessimismo, e se recusou a fazer panfletagem do humor amargo, da tristeza incurável. Num de seus fragmentos, ele notou que “o sofrimento abre-nos os olhos, ajuda-nos a ver as coisas que de outra maneira não teríamos descoberto” [7]. Sem pretender descer a pormenores, neste momento, sobre o significado da experiência do sofrimento na obra de Cioran (tema que retomaremos no capítulo destinado ao estudo do niilismo em Cioran), será suficiente dizer que, para o filósofo romeno, o sofrimento nos edifica acima da mediocridade. Como ele mesmo nota, “só o sofrimento muda o homem. Todas as outras experiências e fenômenos não conseguem modificar essencialmente o temperamento de ninguém nem aprofundar certas disposições suas a ponto de transformá-las completamente”[8].

     Teólogo ateu, místico sem Deus, cético que recusa a epoché, cínico infectado pelo desengano, teólogo gnóstico – são algumas das maneiras de qualificar Cioran.[9] Tal como os cínicos da Antiguidade, aprouve a Cioran a negação até o gozo, o excesso do êxtase, o paradoxo e a contradição até o cume do delírio. A Lucidez[10] afiada de Cioran opera o aniquilamento da superstição, da crença na história, e na política. Nesse sentido, ele foi um pensador iconoclasta, um pensador crepuscular, tal como Nietzsche. Dadas as múltiplas imagens com que Cioran se representa em seu discurso, o seu pessimismo não pode ser definido univocamente. Seu pessimismo também se constitui pela confluência de vários domínios de significado, que o fazem assumir diversas formas: há um pessimismo cínico, um pessimismo gnóstico, um pessimismo metafísico e um pessimismo antropológico. Todas essas formas de expressão do pessimismo cioraniano pressupõe a tese de que a existência é resultado de um despedaçamento do ser. Nesse sentido, o pessimismo multívoco de Cioran afina-se mais com o de Mainlãnder, para quem toda a existência está fundamentada numa Vontade de morte, do que com o pessimismo de Schopenhuaer, que descerra um caminho salvífico, redentor. Cioran não era pessimista à moda clássica, como o eram os filósofos do século XIX. Seu pessimismo não assume a forma dogmática, sistemática e cientificista. Trata-se de um pessimismo vivido, afirmado na nervura de sua fisiologia, enunciado pelas tonalidades de suas intuições. Seu diagnóstico negativo não se acompanha de esperança, de possibilidade, de redenção. Ele recusa a ascese schopenhaueriana, a síntese hegeliana, a escuta ou recordação do Ser em Heidegger, o Deus kierkegaardiano, a Revolta de Camus, as Ideias platônicas, o sim jubiloso de Nietzsche, o Nirvana budista, etc.  A angústia, a dor, o tédio, o desespero, o sofrimento, a consciência como doença não encontram solução em remédios e consolações. A Lucidez é um tormento, do qual não há libertação.

    O pessimismo cioraniano, a despeito de suas modalidades semânticas, também se caracteriza pelo exílio metafísico, isto é, pela incapacidade de instalar-se no devir, na duração, de satisfazer-se com seu ritmo. Para Cioran , o Tempo não pode ser aprovado, amado, afirmado, porque é a duração de uma queda em direção à catástrofe do ser. O Tempo  representa o domínio da morte e da derrelição, que leva todo vivo à condição de cadáver anunciado. O Tempo descerra a condição entrópica do ser como um precipitar-se para a dissolução. No tempo, a duração é destinação à decomposição. O Tempo é o princípio do pessimismo de Cioran, a razão que fundamenta todas as suas negações. O Tempo reflete a consciência da morte, da finitude, reflete também o fluxo da existência, seu escoamento em meio ao qual a consciência se asfixia em desespero. A negação pessimista de Cioran está impregnada de contradição e melancolia, porquanto, ao negar, Cioran é incapaz de renunciar ao desejo e ao mundo. O Tempo tem aspectos corrosivos, sobretudo o tempo histórico, a História como dimensão humana por excelência. A História é caracterizada pela negatividade radical, pelo nada de fundo, pelo vazio, pela insubstancialidade que constituem terrenos férteis para a produção e a disseminação de ilusões e mentiras vitais.

    Não se deve buscar, portanto, as raízes do pessimismo cioraniano em Schopenhauer, apesar da influência, conforme veremos na próxima subseção, que este exerceu sobre o pensamento de Cioran. Cioran recusa o caminho salvífico aberto ao homem por Schopenhauer. Não há salvação alguma para a condição humana fatalmente decaída, corrompida e má, segundo Cioran[11]. Nesse sentido, ele comunga com a tradição hebraica, particularmente com a visão bíblica do Gênese, mas também com Dostoiévski. Ele admira o escritor russo por ser um profundo perito da natureza humana. Se Cioran afirma o mal como a essência humana, ele deve isso ao escritor russo. Todavia, Cioran tinha uma espécie de “fé” de que Dostoiévski carecia. Segundo Menezes, devemos buscar as raízes do pessimismo antropológico de Cioran na religião. Ele se forma como consequência de sua visão essencialmente religiosa do homem. Convém, nesta subseção, dar a conhecer, em linhas gerais, como se caracterizam os quatro tipos de pessimismo cioraniano, anteriormente mencionados, começando pela caracterização do pessimismo antropológico, não sem dizer que tornaremos a considerá-lo numa análise mais cuidadosa no capítulo apropriado[12].

      O pessimismo antropológico de Cioran está baseado na concepção do homem como animal enfermo. Segundo Menezes, “[...] existiria no ser humano uma enfermidade essencial profunda, incondicional, absoluta, enfermidade esta que estaria na raiz do mal-estar contemporâneo e de sua busca desesperada pela Saúde”[13]. O pessimismo antropológico de Cioran é indissociável de sua visão religiosa do homem e do mundo, o que torna Cioran um pensador religioso. Sua visão negativa da condição humana esteia-se numa concepção gnóstica, que se tornou conhecida por ele através de seus ancestrais bogomilos, os quais formavam uma seita gnóstica dos Balcãs durante a Idade Média. Os bogomilos teriam influenciado a cultura romana. Portanto, o pessimismo antropológico consiste numa antropologia essencialmente gnóstica, à luz da qual o homem é concebido como um ser contaminado pelo Mal[14], “criatura de um deus febril que projeta no universo seu padecimento supremo; ser dividido entre o bem e o mal, a saúde e a doença”[15] . No homem, a consciência lhe parece como um punhal na carne. A cisão entre o bem e o mal, a saúde e a doença, que constitui a natureza do homem, liga-se intimamente a sua condição enferma, para a qual ele tem de despertar. A antropologia cioraniana é uma antropologia teológica, porquanto afirma o caráter ontologicamente problemático do homem. Conquanto seja desoladora, a concepção cioraniana do ser humano não é, de modo algum, infundada. Atendo-se à observação dos acontecimentos históricos, ao exame das intenções humanas, quase sempre conflitantes com as ações, Cioran vê o homem como um animal decaído, como uma espécie de heresia da natureza. Deixando de viver em companhia com Deus, o homem rompeu a relação simbiótica com a natureza, à qual sua vida estava ajustada. Assim, segundo Menezes, “supondo que evoluímos do macaco, o que nos fez abandonar nossa condição primeira não deve ser algo que estava incluído, programado nos planos da natureza: um acidente, um desvio repentino e inevitável no curso natural da vida”[16]. Cioran vê a consciência (consciência reflexiva, mais propriamente, para nós) o elemento de ruptura do homem com a natureza. Com a emergência no homem da consciência reflexiva, ele passou a ser vítima de medos indeterminados. Tornou-se não só suscetível de males reais, comuns aos demais seres vivos, mas também mais sensível a males possíveis ou abstratos. A consciência, para Cioran, é a marca de uma anomalia, é o registro do antinatural no âmago do homem, que torna a vida questionável e culpada.

     Na antropologia teológica de Cioran, a queda é uma traição à natureza.

 

A queda equivale, em termos ontológicos, à traição à natureza. “Desertor da zoologia”, o homem rompe com suas raízes, e essa ruptura equivale a um cisma contra a “ortodoxia da natureza”, cujas leis, para sua própria preservação, precisam ser respeitadas. É como se a vida mesma – essa potência que cria e destrói para manter-se em contínua renovação – para se perpetuar, precisasse de disciplina, normas. A natureza é tradição e o homem representa uma ruptura em relação a esta tradição. [17]

 

 

     O que Nietzsche exaltava no homem Cioran parece condenar: sua capacidade de inovar, de transgredir, de ousar para além dos limites naturalmente fixados. Cioran vê, nessa ousadia do homem, um erro de um agitador indesejável, que perturba a ordem natural em favor da mudança, da variação, da diferença, do ilimitado. Cioran pensa que a inovação é biologicamente ruinosa. A vida tende a ser conservadora e se desenvolve por meio da repetição, pela falta de estilo. O homem, ao contrário, é avesso à quietude, à monotonia; agitador por natureza, não tolera o tédio e busca toda sorte de expedientes para fugir dele. O animal humano tem necessidade de pôr-se em movimento incessante; precisa viver inovando indefinidamente, numa metamorfose constante. Por isso, segundo Menezes, “o cisma [do homem com a natureza] representa, por fim, a maior agressão já cometida contra a natureza, que fica indefesa contra os excessos desse animal traidor”[18]. Nesse tocante, a visão pessimista que Cioran tem do homem é bastante afim com a visão pessimista de Schopenhauer. Tanto para um quanto para o outro, o homem é o grande tirano da natureza, o destruidor, por excelência, da ordem natural, do equilíbrio ecossistêmico.

      Acerca do pessimismo, nos diz Cioran que ele é uma “crueldade dos vencidos que não podem perdoar à vida haver frustrado sua expectativa”[19]. Se o pessimismo antropológico afirma a enfermidade do homem, não o faz simplesmente em função de um pressuposto teológico negativo, mas o faz, sobretudo, com vistas a denunciar a modernidade[20] como um modo de o homem  encontrar-se no tempo e no espaço, que lançou suspeitas sobre a dimensão teológico-transcendente que caracteriza a condição humana. Para Cioran, a Enfermidade do homem é incurável, pelo menos o é por meio das descobertas científicas e invenções da técnica, “que podem no máximo curar nossos males secundários, por trás dos quais se esconde um outro que nos recusamos a admitir”[21].

      Em sua dimensão metafísica, o pessimismo cioraniano calca-se sobre a intuição do pior (le pire), compreendido como tendência do ser, como princípio vital e elã em direção ao nada[22]. Ele é movido por um profundo desprezo pelo mundo: “se o desprezo pelo mundo concedesse por si só a santidade, não vejo como é que eu poderia evitar a canonização”[23]. Como pessimismo metafísico, o pessimismo de Cioran afirma o Nada como princípio do ser. O pior do pessimismo identifica-se com o fatum, uma fatalidade a que estão submetidos os seres desde que nascem. A categoria do pior é quase onipresente no pensamento de Cioran. Cioran não distingue, contudo, entre pessimismo e pensamento trágico. O pessimismo metafísico de Cioran pretende dar conta do pior estado de coisas. O pior é a intuição fundamental do pessimismo, segundo o filósofo romeno. O pior do pessimismo é da ordem do necessário, daquilo que precisa ser realizado. Para Cioran, o pior espraia-se por toda a existência e se identifica com o ser mesmo. O pior cioraniano é atravessado por um sentido místico. Ele é pensado como o desvelamento de uma catástrofe, uma revelação no sentido profético do livro do Apocalipse.

     Como pessimismo gnóstico, o pessimismo de Cioran encontra-se na base de sua visão terrificante da história, “esse dinamismo de vítimas”[24]. Uma vez que não podemos escolher não nascer e que a unidade primordial foi rompida por causa do pecado, fomos expulsos do paraíso e jogados no mundo onde vivemos como condenados à perdição. Abandonados ao devir, à corrupção e à morte, aspiramos à serenidade de uma idade de ouro que remonta a um passado imemorial antes da queda. É porque fomos infectados pela nostalgia das origens, que buscamos reencontrar o paraíso perdido aqui neste mundo. Mas a nostalgia carece da saudade e se torna, por isso, “[...] nostalgia invertida, falseada e viciada, dirigida para o futuro, obnubilada pelo “progresso”, réplica temporal, metamorfose disparatada do paraíso original”[25].  

      O pessimismo cínico de Cioran, por fim,  herdou do cinismo antigo os expedientes metodológicos da tendência ao paroxismo, da polêmica, do desdém, do prazer no excesso, do gozo na recusa. O pessimismo cínico ou pessimismo do desengano, tal como também o chama Cioran, não concede ao homem muita importância. Cioran não recusa o pior, isto é, o pior que consiste em ter consciência do que significa ter nascido, em ter escolhido o sofrimento mais por vaidade e orgulho. Cioran sente o peso da condenação à Lucidez. A Lucidez desvela a inanidade de todas as coisas e a gratuidade, a frivolidade de todos os esforços humanos. Como pessimista cínico, Cioran não chega, contudo, a desprezar totalmente as ilusões, já que, para ele, ninguém consegue assumir imediatamente a frivolidade, o viver conscientemente imerso na banalidade do mundo. O filósofo romeno agradece ao cinismo e a um mendigo que conheceu nas ruas de Paris, de quem disse ser “o maior filósofo de Paris” [26], o aprendizado do nojo ao consolo confortador, agradece também a força com que ele pôde “transformar em lucidez  até mesmo a preguiça, essa ‘dúvida da carne’, esse ‘ceticismo fisiológico’(...)”[27]. Tanto o cinismo quanto a Lucidez dão à luz o desengano e o desespero. A insônia, “esse Nada sem trégua”, “um lucidez vertiginosa”[28], de que padeceu em sua juventude, foi uma experiência decisiva na construção de toda a sua filosofia profundamente pessimista e incendiária. A insônia não só destrói a saúde, mas também faz germinar o ceticismo, o cinismo; robustece a descrença no poder emancipador da consciência, que, para Cioran, é sempre necessariamente má. A insônia força o insone a uma ruminação sem fim nem consolo, interditando o florescimento de qualquer esperança de inibir a tentativa de fuga mediante o esquecimento (o sono). O insone é aquele que sabe que não existem ideias consoladoras na obscuridade, na escuridão.

      Diferentemente dos cínicos antigos, Cioran não oferece uma forma de pedagogia. Sua Lucidez demoníaca expressa o aniquilamento da superstição, da crença na política e na história. Não se pode esperar dele qualquer intento de correção e formação da humanidade. Ele se satisfaz com a impotência da palavra, do conceito, da teoria na tentativa de revelar e compreender o que só existe através de suas marcas negativas, o que não se deixa capturar nas tramas do sentido e que somente se deixa entrever em paradoxos, nas obsessões e nostalgias do eterno. Em suma, para Cioran, devemos à carne e à sua necessidade de paixão o produzirmos e o sofrermos.

     O profundo e mais radical pessimismo que constitui a nervura do pensamento cioraniano não é inconsistente com o caráter trágico da existência. No tocante à questão do trágico na obra de Cioran, há que distinguir entre o caráter trágico da existência, que Cioran não cessa de denunciar, de desvelar, e a sabedoria trágica, que não se confunde com a sabedoria dionisíaca de Nietzsche. Há uma sabedoria trágica em Cioran, embora ela careça do sim jubiloso nietzschiano. Como a sabedoria trágica, em Cioran, só pode ser compreendida a partir da noção de revelação do Essencial, devemos postergar para o capítulo sete as considerações sobre esse tema. Reiteremos que a sabedoria trágica de Cioran não é uma retomada da sabedoria trágica de Dioniso.

    O trágico, no pensamento de Cioran, é a revelação do nada (ausência de ser, essência, substancialidade nas coisas); é revelação do impasse, do conflito sem resolução; é revelação da profunda negatividade que constitui a nervura e as fibras da existência. O trágico também está ligado à emergência da consciência. Como nota Pecoraro, “ a irrupção da consciência condenou o homem ao suplício eterno ao desencadear o conflito trágico”[29]. O trágico recobre a impossibilidade de redenção. O trágico cioraniano ensina-nos que só existimos verdadeiramente enquanto sofremos. Só conhecemos por meio da lúcida consciência de nossas dores. O trágico, em Cioran, é expressão de uma verdade fatal: a essência de tudo é má, sem sentido, abominável. O universo não comporta verdade, essência, fundamento; não admite afirmação. Trágica é a condição do homem como ser desgarrado, extraviado da natureza, atormentado, angustiado, para quem não há nada que possa salvá-lo, libertá-lo e ajudá-lo a viver. Cioran rejeitou a doutrina do abandono taoísta, a alegria trágica de Nietzsche, as seduções fugazes da fama, a ascese de Schopenhauer, o nirvana budista, os medicamentos contra a depressão. Ele nunca se usou da máscara do profeta ou do filósofo; nunca se convenceu da necessidade de apontar caminhos como o fazem os farsantes da salvação. Cioran rejeitou todos os lenitivos que a filosofia, a religião, a literatura, os médicos lhe prescreviam, a fim de ajudá-lo a suportar o Intolerável ( o fato de ter nascido, a queda no tempo, a morte necessária). Quem quer que pretenda realizar um trabalho de liberação precisa buscar motivos nos recônditos de si mesmo. É inútil buscar a liberação nos sistemas filosóficos, nos livros, nas igrejas, nas doutrinas orientais.

       O trágico em Cioran vivencia-se como experiência do desespero, “doença que tem de ser curada; doença até a morte”[30] . Mas há desesperos profundos, imensos que não se deixam solucionar por nada. O desesperado desespera-se de não poder viver nem morrer. Cioran concorda com Kierkegaard: no desespero, estamos mortalmente doentes. Dilacerado pelo desespero, o desesperado sofre sem um motivo “real”; ele padece a consciência de sua infelicidade. Consoante observa Pecoraro, “[...] o desespero só pode ser “sentido” quando dilacera as carnes, quando se está obcecado pela ideia de suicídio, quando a insônia interrompe o esquecimento que todas as noites fornece as armas para suportar mais um dia”[31]. O desesperado sofre da lucidez de não poder não ser desesperado; ele não pode viver, mas também não pode se matar, de modo que não lhe resta senão viver plenamente consciente de sua condição de desespero. O desesperado sabe que “a vida só é possível pelas deficiências de nossa imaginação e de nossa memória” [32]. Para Cioran, todos os homens são desgraçados, mas são poucos os que o sabem.

     O trágico, em Cioran, também se expressa como fatalismo. Pode-se definir o fatalismo como “a doutrina segundo a qual todos os acontecimentos do universo, especialmente os da vida humana, encontram-se submetidos ao destino, quer dizer, acontecem por uma necessidade absoluta”[33]. Segundo Menezes, o fatalismo põe em evidência um elemento central do pensamento trágico em geral: o destino.

 

 Diferentemente da concepção cristã de história, em que o homem, mediante o livre-arbítrio, tem a possibilidade de influir nos rumos dos acontecimentos, no universo trágico a história está muito mais associada à ideia de necessidade, determinismo, fatalidade. No início de uma tragédia, geralmente há um acontecimento responsável por disparar o processo que conduz inelutavelmente ao destino fatal[34].

 

 

      Esse acontecimento que desencadeia o processo que leva o herói ao encontro de sua fatalidade é, na tradição hebraica, segundo Cioran, o pecado[35]. O pecado seria a maldição original que condenaria todos os homens. Adão encapsula todo o curso da história humana e a trajetória de cada vida pessoal, “de modo que a soma de quedas individuais representa uma atualização da Queda primeira, modelo da nossa”[36]. Nem mesmo o ministério de Jesus teria modificado nosso destino, pois que continuamos sendo os mesmos humanos decaídos desde Adão, arrastando sobre a terra, como uma chaga de nossos corpos, nossa hereditariedade pecaminosa. Cioran não acredita que a Ressurreição, evento capital do cristianismo, constituiu uma escapatória lícita para a nossa condição trágica. A Ressurreição só escamoteou nossa condição necessariamente mortal e finita. A atitude voluntariamente trágica rechaça a Ressurreição e a Salvação que, no imaginário-simbólico cristão, estão personificadas na figura de Jesus Cristo. Assim, Cristo é o antípoda do herói trágico, para Cioran.

 

Se Jesus houvesse acabado sua carreira na cruz e não tivesse se comprometido a ressuscitar, que belo herói de tragédia teria sido! Seu lado divino fez com que a literatura perdesse um tema admirável. Partilha assim a sorte, esteticamente medíocre, de todos os justos. Como tudo o que se perpetua no coração dos homens, como tudo o que se expõe ao culto e não morre irremediavelmente, não se presta nada a essa visão de um fim total que marca o destino trágico. Para isso teria sido necessário que ninguém o seguisse e que a transfiguração não viesse a elevá-lo a uma ilícita auréola. Nada mais estranho à tragédia do que a ideia de redenção, salvação e imortalidade. O herói sucumbe sob seus próprios atos, sem que lhe seja dado escamotear sua morte por uma graça sobrenatural; não se prolonga – enquanto existência, de nenhum modo, permanece distinto na memória dos homens como um espetáculo de sofrimento; ao não ter discípulos, seu destino infrutífero não fecunda nada, salvo a imaginação dos outros. Macbeth desmorona sem esperança de resgate: não há extrema unção na tragédia. [37]



[1] PECORARO, 2004, p. 13.

 

[2] CIORAN, Emil. A tentação de existir. Tradução de Miguel Serras Pereira; Ana Luísa. Lisboa: Relógio d’Água, 1988, p. 171.

 

[3] CIORAN, Émil. Do inconveniente de ter nascido. Tradução de Manuel de Freitas. Lisboa: Letra Livre, 2010, p. 45.

 

[4] PECORARO, ibidem, p. 13.

 

[5] Ibidem.

[6] MENEZES, 2007, p. 45.

 

[7] Do inconveniente de ter nascido, p. 157.

 

[8] CIORAN, Émil. O livro das Ilusões. Tradução de Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2014, p. 25.

 

[9] Segundo Menezes (2016, p. 71), “pessimismo, ceticismo, cinismo e misticismo: estas são as tendências mais usualmente identificadas em Cioran por seus intérpretes”. (cf. MENEZES, Rodrigo I.R.S. Existência e Escritura em Cioran. PUC-SP, 2016. (Tese de Doutorado)).

 

[10] O conceito de “Lucidez”, em Cioran, é central em toda a nossa compreensão do niilismo como campo semiótico de desmitificação; por isso dedicaremos a ele uma seção exclusiva para esclarecê-lo no capítulo 7.

[11] A questão da “salvação”, em Cioran, demadará análises detidas no capítulo 7, em que nos debruçaremos sobre a questão do niilismo no pensamento desse filósofo. Trata-se de uma questão controversa e de difícil resolução, pois Cioran hesita entre a possibilidade de alguma forma de salvação para o indivíduo e a impossibilidade de regeneração da condição humana decaída.

 

[12] Dentre as quatro modalidades de pessimismo em Cioran, destacam-se em importância, neste estudo, o pessimismo antropológico e o pessimismo gnóstico, dado o fato de ambos contribuírem para a dissolução do lugar imaginário de superioridade ontológica em que o homem se situa na cultura ocidental.

 

[13] MENEZES, 2007, p. 13.

 

[14] Deve-se enfatizar que o Mal é uma das obsessões de Cioran. O Mal é, para Cioran, a verdade primeira. Ele é inquestionável, preside às leis da vida; é a substância da vida.

 

[15] Op.cit., p. 15.

 

[16] MENEZES, ibidem, p. 64.

 

[17] Ibidem, p. 66.

 

[18] Ibidem.

 

[19] CIORAN, Émil. Breviário da Decomposição. Tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011b, p. 199.

 

[20] O que Cioran critica na modernidade é a pretensão de se atingir, através da tecnociência e da razão instrumental, a perfectibilidade indefinida, a solução para todos os problemas existenciais do homem. A era moderna teria, assim, a pretensão de oferecer um elixir universal capaz de nos curar de nós mesmos. Para Cioran, no entanto, “não está ao alcance do homem evitar perder-se”. (Menezes, 2007, p. 13).

 

[21] MENEZES, ibidem, p. 16.

 

[22] Deve-se advertir que o “nada”, para Cioran,  não é simplesmente o não ser, não é o oposto do ser, como pensam os filósofos e teólogos do Ocidente. O nada é indizível, inefável; pode-se apenas senti-lo, sofrê-lo. Consoante ensina Pecoraro (ibidem, p. 161), “Cioran está literalmente obcecado pelo nada, mas jamais consegue avançar um passo que não seja uma definição abortada e absolutamente inadequada do que está em jogo”. O que não impede Cioran de tentar dar voz ao nada, de delimitá-lo semanticamente.

 

[23] Do inconveniente, p. 25.

 

[24] CIORAN, Émil. Silogismos da amargura.  Tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011c, p. 94.

 

[25]  CIORAN, Émil. História e Utopia. Tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro, Rocco, 2011d, p. 100.

 

[26] Numa carta-prefácio que data de 22 de outubro de 1973, endereçada ao amigo e estudioso de sua obra Fernando Savater, Cioran escreve: “Durante anos recebi a visita de um mendigo que vinha fazer-me perguntas sobre Deus, a matéria, o mal etc., às quais, obviamente, eu não podia responder. Ele carregava essas perguntas consigo, dava voltas ao redor delas, confundia-se com elas. Nunca conheci ninguém mais dedicado ao insolúvel e ao inextricável. Um dia, em um momento de desalento, me confessou que merecia sua condição, que era apenas um mendigo e nada mais e que tanto seu modo de vida como suas obsessões lhe pareciam igualmente desprezíveis. Para levantar o seu ânimo, disse de imediato: “Sabe, para mim, você é o maior filósofo de Paris, neste momento”. Fitou-me atônito e deve ter pensado que eu estava de gozação. Mas havia nas minhas palavras um tom de sinceridade que não lhe escapou e que deve tê-lo impressionado. Depois, suas visitas se espaçaram até cessarem por completo. Está vivo ainda? Morreu? Não sei. A vantagem de não possuir domicílio é poder desaparecer sem deixar vestígio. Tal é o privilégio do mendigo. Esse homem, em verdade, é, ou era, um filósofo. E talvez eu também o seja um pouco, na medida em que, a favor dos meus fracassos, sempre me atarefei em avançar a um grau ainda mais alto de insegurança”. (Carta prefácio de E. M. Cioran. In: SAVATER, Fernando. Todo mi Cioran. Barcelona: Editorial Ariel, 2018, p. 14-15. (tradução nossa)).

 

O texto original a que corresponde a tradução é: “Durante años he recebido la vista de um mendigo que venía a plantearem preguntas sobre Dios, sobre la materia, sobre el mal, etc., a las cuales, claro está, yo no podia responder. Llevaba esas prehuntas en él, les daba vueltas em todos los sentidos, se confundía con ellas. No he conhecido a nadie más cogido, más aquejado por lo insoluble y por lo inextricable. Un día, em um momento de desaliento, me confesó que merecía su condición, que sólo era um medigo y nada más, u que tanto su modo de existencia como sus obsesiones le pareciam igualmente despreciables. Para levantarle el ánimo, le dije de inmediato: “Sabes, eres para mí el mayor filósofo de París, en este momento”. Me miró atónito y creyó que me burlaba de él. Pero había en mis palavras um tono de sinceridad que no se le escapo y que debío impresionarle. Después, sus visitas se espaciaron hasta cesar por completo. ¿ Vive todavia? ¿ Há muerto? No lo sé. La vantaja de no tener domicilio es poder desaparecer sin dejar huellas. Tal es el privilegio del mendigo. Esse hombre em verdade es, o era, un filósofo. Y quizá yo también lo soy un poco, en la medida en que, a favor de mis achaques, me he atareado em avanzar siempre hacia um más alto grado de inseguridad”.

 

[27] JÚNIOR, Ruy C.R. De kynismus a Zynismus: ou do latido pedagógico ao pessimismo cínico de Cioran. In: REDYSON, Deyve (org.). Emil Cioran e a Filosofia Negativa: homenagem ao centenário de seu nascimento. Porto Alegre: Sulina, 2011. p. 30.

 

[28] CIORAN, Émil. Nos cumes do desespero. Tradução de Fernando Klabin. São Paulo: Hedra, 2011a, p. 15.

[29] PECORARO, ibidem, p. 61.

 

[30] Ibidem, p. 62.

 

[31] Ibidem, p. 63.

 

[32] Breviário de decomposição, p. 43.

 

[33] JAPIASSÚ, HILTON; MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 103.

 

[34] MENEZES, 2007, p. 71.

 

[35] Os temas de “Adão”, da “Queda” e do “Pecado Original” serão retomados e desenvolvidos no capítulo sete, já que constituem eles dimensões fundamentais da antropologia teológica e do pessimismo antropológico radical de Cioran. Eles formam as malhas semânticas do imaginário-simbólico no domínio do qual se erige e se desenvolve o pensamento cioraniano. Como teólogo herege, Cioran não abandonou o imaginário-simbólico cristão, mas o subverteu a partir de seus significados, de seus signos, de suas imagens e símbolos.

 

[36] Op. cit. p. 75.

 

[37] Breviário de decomposição, p. 114-115.