terça-feira, 4 de novembro de 2025

"Que a vida não significa nada, todo mundo sabe ou pressente: que se salve ao menos por um truque verbal" (Cioran)

 


               

                             Estagnação

“Desde sair para dar uma volta até o massacre, o homem só percorre a gama dos atos porque não percebe seu sem-sentido. Tudo que se faz sobre a terra emana de uma ilusão de plenitude no vazio, de um mistério do Nada...”

 

Cioran.

Ocorreu-me, há pouco, que, não conseguiria escrever duas teses de Doutorado, uma dissertação de Mestrado e uma monografia de Especialização, se tivesse de escrevê-las hoje. Lendo algumas páginas de minha tese de doutorado em Filosofia, que compreende 749 páginas, das quais 730 abrigam o desenvolvimento da tese, muito embora admirado da qualidade acadêmica do texto, da meticulosidade com que empreendi a análise do tema de estudo, sinto resplandecer sua insignificância, social, histórica, cosmológica... Não deixo, contudo, de me impressionar com o fato de tê-la escrito durante a pandemia da covid-19. Tive covid, ansiedade e sofri com as aflições da quarentena, mas não desisti de escrevê-la.

É um alívio pensar que levei a termo todo este percurso acadêmico que se iniciou em 2001, quando ingressei no curso de Letras, e que se prolongou até meados de 2023, quando defendi minha segunda tese de doutorado. Não conseguiria escrever tantos trabalhos acadêmicos hoje como escrevi ao longo de 22 anos, não apenas por cuidar desimportante e insignificante essa empresa, mas também por me dar conta de que minha vocação, meu talento para a escrita está minguando. Falta-me o entusiasmo jovial, até ingênuo, que, outrora, animava meus versos, tornava viçosos meus pensamentos. Há quize anos, quando criei meu blog, parecia-me que eu conseguiria viver prolongadamente acalentado pela crença – ilusória, decerto – de que minha escrita, tornando públicas minhas inquietações espirituais e os conhecimentos auferidos no curso de uma prática de leitura diária (não interrompida, a despeito de episódios de declives espirituais e abatimento cerebral), manteria minha existência sustentada por uma rede de sentido (decerto, muito delgada e frágil). Com o blog, abri um espaço para a interlocução. Mas, em dois ou três anos, a interlocução cessou. Meus textos deixaram de estimular comentários e se tornaram nada mais do que artefatos verbais a boiar entre outros dejetos verbais no mar de banalidades dos ciberespaços.

É inapropriado o emprego da palavra “crise” para descrever o estado psicofisiológico com que escrevo este texto. Do grego Krisis, a palavra “crise” significava, originalmente, ‘julgamento’, ‘separação’, ‘momento de decisão’. No domínio discursivo da medicina, ela era usada para designar o momento decisivo de uma doença, em que o padecente poderia evoluir para a cura ou para a morte. Nesse sentido, não vivo uma crise, já que não vislumbro qualquer alteração significativa a sobrevir a este estado em que me encontro. Não estou em crise; estou imerso numa estagnação, que beira ao esgotamento, do qual fala Cioran.

Outrora, escrever, quase cotidianamente,  ajudou-me a atravessar as tempestades da alma, as tormentas da depressão. Recordo aquele tempo não com saudade, mas com certa admiração, pois que dos tormentos depressivos se iam construindo suntuosas catedrais verbais. Daquele tempo, período que se estende de 2005 a 2011, guardo muitos poemas e tantos textos em prosa, com gratidão. Sentia-me mais íntimo das palavras; entretinha-me com elas. Querem uma prova disso? Eis, abaixo, um fragmento de um dos textos escritos naquele período:

 

“Um pensamento insano aconchega-me no âmago e suscita-me uma inquietação: será possível que as palavras conversem umas com as outras? Parece-me que sim. Escrever é uma forma de arte impressionista que combina a verdade das coisas e o sentimento que elas provocam. As palavras dialogam, decerto, pois, quando dou minhas pinceladas verbais, ouço uma orquestra de vozes a compor páginas sinfônicas em meu coração. Muitas vezes, sou apenas ouvinte; mas, às vezes, atrevo-me a participar das conversas.

Toda palavra é grávida de silêncio. O silêncio significa; não é ausência de som. Nenhuma palavra diz tudo; toda palavra tem frestas por onde escorre o silêncio. As palavras criam conceitos através dos quais nós, homens, compreendemos o mundo. Para o senso-comum, palavras são artefatos que empregamos cotidianamente para nos comunicar. Mas as palavras são como lentes pelas quais vemos, sentimos e interpretamos a realidade.

As palavras provocam-me sempre um efeito estético. Fico extasiado com seus contornos, texturas, cores e sabores. Há também o prazer de que me impregno ao pronunciá-las. Pronuncie a palavra esperança. Não é bom pronunciá-la? Há suavidade e doçura em sua estrutura fônica. A palavra amor tem o frescor da brisa marinha e o perfume do jasmim. Outra palavra cujas formas me aprazem é a palavra existência. Pronuncie-a, novamente, leitor! Percebe como ela derrete na boca?

Assim que me pus a escrever este texto, algumas ideias escuras povoavam-me o espírito. Desejava usar a palavra para escrever sobre a palavra, ou melhor, sobre o modo como me relaciono com ela. Para tanto, precisava iluminar aquelas ideias. Agora, um clarão de palavras manifesta-se em minha alma, Quero capturá-las... Mas elas resvalam na minha inépcia. Vão-se como folhas secas ao vento. Talvez, pretendam aninhar-se em espíritos mais sensatos e equilibrados, que não sendo desbravadores da linguagem, conformam-se com os pequenos goles de significado que elas podem dar. Eu, por outro lado, busco extrair toda a seiva semântica delas. Acomodo-as em ambientes sintáticos estranhos aos seus usos convencionais; busco na aparente incompatibilidade semântica de uma combinatória uma nova forma de significação. Atente o leitor para as seguintes combinações: “palavras rasteiras”, “olhos anoitecidos”, “fuga cândida”, “parto verbal”. Note que a arte, como tenha um apelo estético, ou seja, vise a provocar a sensibilidade, a estimular as emoções, a produzir significações, a produzir o Belo, permite-nos experimentar os mais variados conteúdos. Pela arte, o homem exprime seus sentimentos mais profundos, cria imagens que traduz um modo de sentir. Toda forma de arte é um trabalho de recriação ou transformação da realidade. O artista é um criador de mundos, de espaços, beleza, sonhos, etc.”

(Fevereiro de 2010)

 

Mas, hoje, sinto como se os pensamentos me viessem ao espírito como fantasmas, que fugazmente aparecem para sumir na escuridão de um deserto. Escrevo agora com extrema dificuldade. Escrever é uma tarefa inútil. Já não posso mais falar da escrita como dela falou Cioran. Ela nem é um “desafogo extraordinário”, para mim, nem me serve para ajudar a “atravessar os anos”.  Não só sei que as palavras não revelam nada, não esclarecem o que o mundo é verdadeiramente, como também lamento que elas não estimulem, na maioria das pessoas, a compreensão  das ocorrências do mundo. O prazer da escrita sucumbiu à percepção de minha condição existencialmente insignificante. Leio para matar o tempo, para não sofrer de tédio mortal. Eis tudo!

 

O dia seguinte...

 

Ao leitor ausente ou  ao curioso, se fosse dado percorrer fortuitamente os escritos que vieram à luz naquele período, salvo por desatenção ou limitações cognitivas, não escaparia o fato de que a tonalidade afetiva, o humor e a acuidade intelectual sofreram uma radical transformação quando se comparam os escritos produzidos antes de 2011 com os que foram produzidos a partir desse ano. Essa transformação radical não só se deu em função do abandono da tradição religiosa em que fui criado e da assunção do ateísmo; se deu, principalmente, em função de meus avanços no estudo filosófico. O ano de 2014 inaugura uma fase de exuberante transformação intelectual e descerra um caminho sem volta. Desde então, ia se formando um filósofo. Se bem que já me apetecesse a leitura dos filósofos desde 2005, foi somente em 2014 que dei início a minha experiência acadêmica com a filosofia. Foi um período de grande entusiasmo  com o novo mundo que a filosofia me descerrava, período  em que fui tomado de certa vaidade por aperceber-me desperto para uma realidade obnubilada nas vivências do senso comum. No entanto, não tardei a aperceber-me de que no próprio curso de aprofundamento dos estudos filosóficos o estudante ou estudioso é levado a pôr em suspeita a própria filosofia como uma modalidade de saber, uma prática ou atividade intelectual que torne aquele em que nela se exercita uma pessoa dotada de alguma insígnia que o posicione acima dos reles mortais. O encantamento primaveril com a filosofia converteu-se, em alguns anos, portanto, em desencanto, sinal, contudo, - assim penso – de maturidade intelectual e do envelhecimento biológico. É certo que minhas leituras de Cioran foram decisivas também para esse desencanto com a filosofia; decisivas, mormente, para afiar ainda mais meu pessimismo filosófico.

Estou convencido de que a escrita de minha tese de doutorado, para cuja realização foram necessárias extensas e cuidadosas pesquisas sobre o fenômeno do niilismo, foi  o divisor de águas na minha experiência com a filosofia, em especial, com a filosofia acadêmica.

A esta altura, o leitor talvez suspeite de que dissimulei ao declarar a dificuldade que pesa sobre mim ao escrever, uma vez que este texto parece ter superado aquele estado de empobrecimento vocacional  a que eu estaria destinado enquanto sujeito da escrita. Quiçá o leitor tenha razão; mas não renuncio a minha certeza fundamental, alicerçada num sentimento, e não em meros argumentos: careço de aptidão para produzir trabalhos intelectuais da envergadura de minhas teses de doutorado. A bem da verdade, toda produção intelectual que precise se ajustar à normatividade que regula a produção textual acadêmica é, para mim, desestimulante e, por isso, uma prática a cuja realização me recuso.

Embora não deva exclusivamente a Cioran o meu desencantamento com o poder “revelador” das palavras ou da linguagem, a ele devo a revelação das consequências perturbadoras, em nível psicofisiológico-afetivo, dessa profunda e radical ruptura entre a palavra e o mundo. Cito, por fim, um trecho de minha tese de doutorado em que discorro sobre o tema da Lucidez, em Cioran, em cujo desenvolvimento ele vai esclarecendo o processo de ruptura entre o espírito e o mundo. Desde então, sinto-me afundado nessa experiência de Lucidez. Tornei-me um homem lúcido e isso é antes uma condição inquietante, perturbadora, aflitiva que um estado dignificante e salvífico.

 

“Faz-se mister também não confundir a Lucidez, em Cioran, com o esclarecimento da razão. A Lucidez não é um esclarecimento do tipo iluminista. O iluminista não está mais apto para chegar à clarividência que um analfabeto. A Lucidez é uma forma de experiência mística, sem salvação[1]. A salvação, todavia, almejada pelo místico implica uma completa perda de si, um completo desapego ao “eu”, ou mesmo a dissipação do eu individualista (o “ego”, para as tradições de pensamento orientais). Para Cioran, essa dissipação do “eu”, essa aniquilação dos desejos do eu não chega a ser alcançada na experiência da Lucidez. O homem lúcido não experiencia, portanto, salvação alguma; ele está permanentemente ameaçado pelo cansaço do vazio. A Lucidez é uma plenitude do Nada. Não encontrando sentido algum em sua vida, o homem lúcido sacrificaria a própria vida por uma ilusão convincente. Como bem observa Savater, alundindo à condição do homem lúcido e do próprio Cioran, “o desengano já não pode deslocar-se da lucidez; místico fracassado, não é incapaz de orientar seus êxtases para coisa alguma, está condenado a ver”[2]. (tradução nossa)

Como a Lucidez é um estado transitório entre acessos de febre, não resta àquele que a alcançou senão esperar que as crises cessem, certo, porém, de que este consolo é enganoso, pois que o homem lúcido já é outro diferente do que era, uma espécie de desesperado sem consolo. Assim, jamais dispomos da Lucidez, mas somos sempre possuídos por ela. O homem lúcido não pode contar sequer com a ilusão de esperar algo desse estado de desilusionamento. Tampouco deve orgulhar-se de não ser possuído pelas ilusões habituais de que se servem os demais indivíduos para viver e para se proteger das garras do desespero, para evitar as tensões orgânicas, o desequilíbrio espiritual. Nas palavras de Savater, “Tal como o místico, o clarividente alcança seus cumes - ou seus abismos - de lucidez, através de certas experiências que ocorrem em momentos únicos: desejo, dor, terror em face da morte são algumas das principais”[3] (tradução nossa). O medo da morte é um exemplo paradigmático de experiência de Lucidez.

 

[...] quem, no ápice do horror de qualquer noite, vislumbrou o que significa cessar, além de qualquer imagem dramática ou macabra, sofrerá um choque impossível de esquecer ou minimizar; pressentirá que, a partir daí, terá que construir sua vida ocultando de si o que percebeu naquela noite, pois ninguém pode viver sob a sombra letal do inevitável. Esta experiência pode, assim, se tornar uma espécie de ruído surdo, inconsciente, que serve de pano de fundo para o seu cotidiano, conferindo-lhe uma inexplicável ansiedade; mas também pode vir a iluminar tudo, com sua luz predatória, roubando a solidez e a maior parte de tudo o que existe, o Ser em si, infectando cada palavra e cada justificação com a névoa da vacuidade que introduziu o horror naquela noite[4]. (tradução nossa).

 

Consoante Savater, deve-se aproveitar o horror em que está embebida a tomada de consciência do que significa realmente morrer, para favorecer o desenvolvimento da disposição para a Lucidez. Quem nunca sentiu necessidade fisiológica de negar a si mesmo, de negar tudo, de negar em cada coisa o seu ser ou seu deixar de ser, o vazio ofensivo de suas pretensões, a futilidade cruel da vida, quem nunca amaldiçoou, entre soluços, a consciência e a impotência da carne não está predisposto para a Lucidez. Somente a ignorância tem futuro; somente o engano e o autoengano gozam a serena felicidade da tradição. Tudo o que não é ilusão é dádiva; e a dádiva é o acaso, o abismo, o terror. Ainda que tenha alcançado, alguma vez, o estado de desengano, o homem, com frequência, recai no estado de delírio, comumente chamado de “senso comum”. Não obstante, se alguma vez, por um instante que seja, um indivíduo foi atravessado por um grau mínimo de Lucidez, jamais deixará de ser um nostálgico do desengano, “dos véus rasgados e dos templos que se agitam, da noite, da negação e de sua irreprimível gargalhada”[5] (tradução nossa).

Se o lúcido é aquele que está livre do delírio ou da loucura, a Lucidez é, porém, uma condição instável; “é somente uma ilhota luminosa na condição sombria do delirante”[6] (tradução nossa). Lembra Savater que cada momento de Lucidez pode ser nosso último. O delírio é, decerto, a condição normal em que nos instalamos. A Lucidez, por seu turno, é penosa e inquietante; não podemos permanecer nessa condição por longo tempo, de modo que “a principal e indubitável certeza que o lúcido alcança é que deixará de sê-lo”[7] (tradução nossa). Não se deve confundir a Lucidez com a consciência. A Lucidez representa a culminação do processo de ruptura entre o espírito e o mundo, de sorte que “o discurso do mundo e o discurso do discurso - o espírito - são acomodados sem atrito, até que a lucidez marque a descontinuidade entre cada um deles e si mesmo, uma vez demonstrado que ambos são idênticos”[8] (tradução nossa). Para Cioran, nossos sentidos não mentem; é apenas quando se dá a interpretação de seus dados, no momento em que estes são codificados no sistema da língua, que aqueles podem nos enganar e nos enganam.  O homem vive sob o feitiço da palavra que o domina e o define, “mas a vida mesma, tal como a experienciamos, está envolvida nesse feitiço”[9] (tradução nossa). Insurgindo-se contra o feitiço da língua, a Lucidez encontra a vida, a vida desnuda, e se ocupa dela. Todavia, a tentativa de enfrentar o feitiço das palavras com as palavras, ou seja, por meio do discurso, está sempre sob a ameaça de recair no encantamento da língua. Ao usar a língua, acreditamos que a estrutura de nossos enunciados, os estados de coisas neles designados, refletem exatamente a ordem, a estrutura da realidade mesma. O homem comum, geralmente, assume existir uma relação natural entre a palavra e a “coisa” designada; quase sempre se esquece de que a relação entre o significante e o significado no signo, e deste com o seu referente, é resultado de uma convenção[10]. A Lucidez se encarrega de mostrar haver nessa relação uma “fissura”, momento em que, dando-se conta de que o laço que une o significante ao significado, o signo à coisa designada, é uma ficção imaginária, ou é determinada por uma imaginário-simbólico instituído socialmente, realiza-se a ruptura entre o espírito e o mundo e se revela o funcionamento da ficção. Assim, “o delírio se desvanece por uns instantes e o homem lúcido é separado do mundo; mas, sobretudo, ele é separado dos outros homens”[11] (tradução nossa).

O hiato mais profundo e perturbador é o que se instala entre o homem lúcido e o delirante. Cotidianamente, o homem lúcido continuará a reproduzir os mecanismos imaginário-simbólicos que sustentam a vida em sociedade, mas estes se  lhes apresentarão falhos e ineficazes. Se a normalidade plena parece condená-lo a uma condição de estranhamento em relação à existência, ao mundo, “somente o engano, a comédia imita uma vida cujos prazeres deprecia e de cujos fins descrê, podem preencher,  ironicamente e sempre falsamente, a descontinuidade que afasta o homem lúcido do resto dos homens”[12] (tradução nossa). A Lucidez aqui se apresenta como sinônimo de desengano. Ela produz o desengano pleno, completo. A tal desengano pleno pode-se chamar “despertar”. O Todo, isto é, a totalidade do mundo experienciado pelo homem, do universo conhecido, é um mecanismo, e devemos saber desmontar esse mecanismo. O mecanismo do Todo é um complexo de artifícios, de truques, de ficções, de operações imaginário-simbólicas. Como experiência do despertar, em sentido místico, a Lucidez  se determina pela resposta que viermos a dar à questão: até onde se chegou na percepção da irrealidade? Conforme lembra Savater,

 

“[...] Se trata, novamente, de nos purificarmos do feitiço que a vigente explicação do mundo nos colocou: o artificial é apresentado como natural, o fabricado como espontâneo, o arbitrário como necessário, a argumentação que sustenta a coisa toda como um simples reflexo da realidade”[13]. (tradução nossa).

 

 

É preciso, contudo, entender que aquele que despertou não abriu os olhos para uma realidade objetiva; o homem desperto é capaz de perceber, com mais clareza, “os vazios que perfuram o texto do mundo”[14] (tradução nossa). O homem desperto não é um embriagado de luz, mas aquele que se tornou sensível à irrealidade fundamental que o mundo da experiência comum, das nossas vivências ordinárias, mascara. O desperto deixa de estar enganado, porquanto despertar é perceber até que ponto a explicação do mundo escamoteia uma desculpa; e toda coerência, uma falácia. As palavras que o homem lúcido ou desperto usa para dissipar a ilusão não são mais seguras nem mais bem fundamentadas que aquelas com as quais a ilusão cotidiana se enuncia; todavia, se apresentam como pura negação das palavras correntes da vida diária; tendo, por isso, menos pretensão de durar. A Lucidez se encarrega de desnudar as raízes das teorias, a articulação das consequências de cada pensamento. Destarte, segundo Savater, “quem alcança a lucidez é imediatamente despojado da paixão pelo remédio, o resultado mais óbvio do discurso lúcido é o diagnóstico, mas um diagnóstico que exclui ou zomba da ideia de cura”[15] (tradução nossa). Na experiência da Lucidez, a trama verbal se desfaz e a realidade, antes sólida, se torna frágil e porosa. A suspeita e a dúvida precedem o diagnóstico que assinala a deficiência do manto verbal sob o qual experienciamos o mundo. O diagnóstico da Lucidez é sempre negativo, visto que serve de obstáculo tanto para uma ruptura total entre o espírito e o mundo quanto para uma solidariedade inquebrantável entre eles. A fidelidade ao negativo confere à Lucidez seu caráter ingovernável. “

 

( Trecho de minha TESE DE DOUTORADO EM FILOSOFIA DEFENDIDA NA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (UERJ) em 2023).

 



[1] Savater hesita em identificar a Lucidez com a experiência mística, alegando que, ao contrário desta, a Lucidez não encerra crença nem fé. Como vimos, todavia, Cioran entende que a mística não exige, necessariamente, fé nem adesão a dogmas. Se Savater afirma que o místico pode renunciar a todas as ilusões, exceto a de salvar-se, não deixa de reconhecer que a mística e a Lucidez se assemelham em Cioran, não só porque ambas nos levam a libertar-nos de nossas ilusões habituais, como também porque a Lucidez se define por meio dos memsos vocábulos com que se define a experiência mística no Ocidente e no Oriente: ‘despertar’, ‘ver’, ‘revelação’, ‘experiência’, ‘desenganar-se’, etc. Não acompanhamos Savater em sua hesitação. Para nós, não resta dúvida de que, em Cioran, a Lucidez é tematizada no horizonte da mística heterodoxa, ou seja, se uma mística sem salvação. Por isso, entendemos ser a Lucidez definida por Cioran polissemicamente, de sorte que um dos seus múltiplos sentidos se liga ao campo da mística.

[2] O texto a que a tradução corresponde é: “El desengaño ya no puede moverse de la lucidez; místico bloqueado, no puede orientar su éxtases hacia nada, está condenado a ver”. (ibidem, p. 51-52).

 

[3] O texto a que a tradução corresponde é: “Tal como el místico, el clarividente alcanza sus cumbres - ou seus abismos - de lucidez a  favor de ciertas experiencias que se poducen em momentos únicos; el deseo, el dolor, el pánico a la muerte son algunas de las principales”. (ibidem, p. 52).

 

[4] O texto a que a tradução corresponde é: “[...]quien, em alto horror de cualquier noche, há vislumbrado lo que significa cesar, más allá de cualquier imagen dramática o macabra, sufrirá un choque imposible de olvidar o minimizar; presentirá que, desde esse punto, deberá construir su vida de espaldas a lo que ha percebido esa noche, pues nada puede viver bajo la sombra letal de lo inevitable. Esa experiencia que puede convertise, de este modo, en una especie de ruido surdo, inconsciente, que sirva de fondo a su contidianidad, poniendo en ele un punto de inexplicable zozobra; pero también pudiera llegar a alumbrar cada coisa com su luz depredadora, robando la solidez y el bulto a todo lo existente, al Ser mismo, contagiando cada palabra y cada justificación de la niebla de vacuidad que introdujo el pânico em aquela noche”. (ibidem, p. 52-53).

[5] O texto a que a tradução corresponde é: “[...] de los velos rasgados y de los templos que se tambalean, de la noche, de la negación y su irreprimible carcajada”. (ibidem, p. 54).

 

[6] O texto a que a tradução corresponde é: “[...] es sólo un islote luminoso en la turbia condición del delirante”. (Ibidem, p. 40).

 

[7] O texto a que a tradução corresponde é: “La principal e indubitable certeza que alcanza el lúcido es que dejará de serlo”. (idem).

 

[8] O texto a que a tradução corresponde é: “El discurso del mundo y el discurso del discurso – o espíritu – se acomodan sin rechinamiento hasta que la lucidez marca la discontinuidad entre cada uno de ellos u sí mismo, uma vez demonstrado que ambos son idênticos”. (Ibidem, p. 41).

 

[9] O texto a que a tradução corresponde é: “[...] pero la vida misma, tal como la padecemos, se cifra em esse embrujo”. (idem).

 

[10] Convém lembrar que, na perspectiva sociocognitivo-interacional da linguagem,em que nos baseamos, os “referentes” das expressões linguísticas não são vistos como “coisas” de um mundo extralinguístico, mas como objetos-de-dicurso, entidades sociocognitivas construídas discursivamente.

 

[11] O texto a que corresponde a tradução é: “El delírio se desvanece por uns momentos y el lúcido queda separado del mundo; pero, sobretodo, queda separado de los otros hombres”. (Ibidem, p 42).

 

[12] O texto a que a tradução corresponde é: “ Sólo el engano, la comedia que mimetiza una vida cuyos placeres deprecia y de cuyos fins descree, puede colmar, ironicamente y siempre en falso, la discontinuidad que aleja al lúcido del resto de los hombres”. (Ibidem, p. 43).

[13] O texto a que a tradução corresponde é: “Se trata, nevamente, de purgarnos del hechizo que la vigente explicación del mundo nos inflige: lo artificioso se apresenta como natural, lo preparado como espontâneo, lo arbitrário como necesário, la argumentación que sostiene todo el tinglado como el simple refejo de la realidad misma”. (Ibidem, p. 44).

 

[14] O texto a que a tradução corresponde é: “[...] los vacíos que agujerean el texto del mundo”. (Idem).

 

[15] O texto a que a tradução corresponde é: “Quien alcanza la lucidez se despoja de imediato de la passion de remediar lo próprio del discurso lúcido, su resultado más evidente, es el diagnóstico, pero un diagnóstico que excluye o se burla de la ideia de curación”. (ibidem, p. 45).

domingo, 2 de novembro de 2025

"(...) A busca da redução das desigualdades é que reforça a performance econômica" (Ladislau Dowbor)

 



                              A Grande Redistribuição

 

Enquanto, muito recentemente, no Brasil, o Congresso Nacional rejeitou o projeto do governo Lula de implementação do imposto progressivo, entre os anos de 1914 e 1980, no mundo ocidental, países como Reino Unido, França, Alemanha, Estados Unidos e Suécia, entre outros, além de Japão, Rússia, China e Índia, levaram a efeito a chamada “grande redistribuição”. Naquele período, as desigualdades de renda e de propriedade nesses países foram acentuadamente reduzidas.

O primeiro fator decisivo para essa grande redistribuição foi o fortalecimento do Estado social, somente possível em virtude das lutas sociais e da atuação crescente do movimento socialista e sindicalista a partir do século XIX.  O fortalecimento do Estado social foi acelerado pelas duas Grandes Guerras Mundiais e pela crise de 1929, que, no espaço de 31 anos (1914-1945), modificaram completamente as relações de força entre trabalho e capital.

O segundo fator igualmente decisivo para a ampla redistribuição foi o desenvolvimento do imposto progressivo sobre a renda e a herança, cuja consequência notável foi a redução substancial da concentração de riquezas e do poder econômico no topo da pirâmide social, o que também favoreceu uma maior mobilidade social e prosperidade. O imposto progressivo também foi decisivo na definição de um novo contrato social e fiscal. A redução das desigualdades e a desnaturalização da propriedade privada foram também efeitos da influente liquidação dos ativos estrangeiros e coloniais e das dívidas públicas – tema que, no entanto, não será contemplado neste texto.

Ocupar-me-ei, doravante, da contribuição dos dois referidos fatores para a chamada “grande redistribuição”

 

1.   A invenção do Estado social

 

No período que se estende de 1914 a 1980, houve uma expansão, sem precedentes, da importância do Estado tributário e social em todos os países ocidentais. En passant, pretendo mostrar que o fortalecimento de um Estado social e tributário não é, como afirmam os conservadores, os reacionários, os liberais da extrema-direita e grande parte da imprensa brasileira, um inimigo a ser combatido, mas um mecanismo, historicamente, eficaz para a promoção de maior igualdade socioeconômica. Importa sublinhar, desde já, que vários estudos patenteiam que o fortalecimento do Estado tributário contribui sobremaneira para o processo de desenvolvimento econômico (Piketty, 2022).

No fim do século XIX, as receitas tributárias totais, compreendido aí o conjunto das taxas, impostos, cotizações e alíquotas obrigatórias, representavam menos de 10% da renda nacional na Europa e nos Estados Unidos. O cenário fiscal e econômico mudaria radicalmente entre 1914 e 1980, período em que o peso da tributação triplicou nos Estados Unidos e mais que quadriplicou na Europa. No Reino Unido, na Alemanha, na França e na Suécia, as receitas tributárias recobriam, entre os anos de 1980 e 1990, 40-50% da renda nacional. Novas receitas permitiram o financiamento de despesas que se mostraram indispensáveis não só à redução das desigualdades, mas também ao processo de impulsão do crescimento econômico.

É notável constatar o fato de que foi o investimento massivo e relativamente igualitário na educação e na saúde que possibilitou o desenvolvimento das infraestruturas de transporte e de equipamentos coletivos, bem como das rendas da previdência social, fundamentais ao enfrentamento do envelhecimento e à estabilização da economia e da sociedade em um contexto de recessão.  Consoante salienta Piketty (ibid., p. 135) “é preciso insistir na importância decisiva das despesas com educação, ao mesmo tempo como fator de igualdade e motor do desenvolvimento”.  Conquanto não seja possível discorrer, neste texto, sobre as razões que explicam a insistência com que o Brasil negligencia historicamente esta lição, o leitor habituado à reflexão crítica, muito provavelmente, comungará com o autor deste texto do sentimento de indignação perante o atraso social, político e econômico brasileiro na consolidação de um Estado de bem-estar social e no investimento em Educação.

No fim do século XIX e no início do século XX, persistia um sistema escolar bastante elitizado e hierárquico em grande parte do mundo. Naquele tempo, apenas uma minoria da população mundial poderia aspirar a completar o ensino fundamental e ir além dos primeiros anos do ensino médio. Os gastos com Educação eram irrisórios e dificultavam, por isso, qualquer avanço na escolarização da maioria da população; no entanto, entre os anos de 1870 e 1910, houve uma tímida progressão no investimento em Educação, que girava em torno de 0,5 e 1% da renda nacional. Nesse setor, os Estados Unidos estavam mais avançados do que a Inglaterra.

Foi ao longo do século XX que o investimento em Educação foi multiplicado em dez vezes, até atingir a marca de 6% da renda nacional em todos os países ocidentais nos anos de 1980 a 1990. Esse massivo investimento em Educação viabilizou o financiamento do acesso quase universal ao ensino médio e de um acesso progressivo ao ensino superior de grandes parcelas da população. Nesse contexto histórico caracterizado pela expansão educacional, o avanço dos Estados Unidos é particularmente notável, em meados do século XX. Note-se que, nos anos de 1950, a proporção de crianças na faixa de 12 e 17 anos (tanto meninos quanto meninas) no ensino médio, naquele país, atingira quase 80%. Nesse mesmo período, a taxa de escolarização secundária situava-se entre 20% e 30% no Reino Unido e na França. Na Alemanha e na Suécia, essa taxa chegava a 40%. Esses países, comparados aos Estados Unidos, tiveram de esperar os anos de 1980-1990 para alcançar as taxas de escolarização de 80% do ensino médio. Fora do mundo ocidental, o Japão se notabilizou pela expansão educacional acelerada entre 1880 e 1930, num contexto histórico marcado pela concorrência exacerbada com as potências ocidentais. No Japão, a escolarização secundária atingiu 60% nos anos de 1950 e ultrapassou os 80% no início dos anos de 1970.

Consoante se vê, foi a partir da década de 1950 que a Europa, onde os alicerces de um Estado social já estavam estabelecidos, ampliou e diversificou as despesas sociais e educacionais, que passaram a absorver dois terços do total da renda nacional. Essa ampliação do investimento em Educação prosseguiu entre os anos de 1950 e 1980. Nas palavras de Piketty (ibid., p. 137), “de modo geral, os governos começaram a se dar conta, no fim do século XIX, de que a formação era uma questão de força e não apenas de igualdade e emancipação individual”.

Por força da segunda Revolução Industrial, que se propagou entre 1880 e 1940 nos campos da química, da siderurgia, da eletricidade, dos eletrodomésticos e automotivos, a qualificação cada vez maior dos trabalhadores se tornou uma exigência incontornável. Diferentemente do que sucedeu na primeira Revolução Industrial, quando era possível, nas indústrias têxteis e de carvão, absorver uma mão de obra relativamente mecânica e submetida à supervisão de alguns engenheiros, na segunda Revolução Industrial, tornou-se essencial que uma parcela cada vez maior da classe trabalhadora passasse a dominar os processos de fabricação, dispondo de um mínimo de cultura técnica e numérica.

O avanço educacional norte-americano explica, em grande medida, a considerável distância entre os Estados Unidos e o restante do mundo, no que tange à produtividade da mão de obra em meados do século XX.  Consoante ensina Piketty, o avanço norte-americano e sua disparidade em termos de produtividade foram compensados, nas décadas seguintes, pela equiparação do produto interno bruto por hora trabalhada com o da Alemanha e da França. Assim, o PIB é quase o mesmo nesses países desde as décadas de 1980-1990.

 

O fato de ignorar o tempo de trabalho nesse tipo de comparação (escolha bastante discutível e infelizmente bastante difundida) representa silenciar o imenso movimento histórico de progressão do lazer e das férias remunerada e da redução da jornada semanal de trabalho, quando essa questão esteve no centro das mobilizações sindicais e populares ao longo dos dois últimos séculos. (Piketty, ibid., p. 138).

 

Convém salientar a profunda diferença entre o primeiro grande avanço do Estado social e tributário e o segundo. Entre 1700 e 1850, ocasião em que se deu o primeiro avanço, as potências europeias elevaram suas receitas tributárias de 1% e 2% da renda nacional para 6-8%. Esse aumento das receitas correspondia aos gastos com serviços militares e administrativos gerais. O Estado era controlado pelas elites nobiliárias e burguesas e estava inserido num contexto de concorrência interestatal e de expansão colonial e comercial. Entre 1914 e 1980, os gastos sociais ganharam proeminência. Conforme nota Piketty, essa expansão, sem precedentes, do papel do Estado ocorreu em benefício das classes médias e populares, e, em larga medida, sob seu controle e, em alguns casos, sob o controle dos movimentos políticos que as representavam e cujos atores elas elegeram, “em condições totalmente inéditas na história”! (ibid., p. 138).

Em vários países europeus, graças ao fortalecimento do Estado social, cresceu a representação política das classes populares. No Reino Unido, por exemplo, o partido trabalhista obteve a maioria absoluta das cadeiras nas eleições de 1945 e implementou um serviço mensal de saúde – o National Health Service (NHS)- e um amplo sistema de proteção social. Não se pode passar insensível ao fato de que o país mais aristocrático da Europa, governado pela Câmara dos Lordes até a crise de 1909, tenha se tornado um país onde um partido genuinamente popular e representado por trabalhadores chegou ao poder e conseguiu implementar suas reformas.

Na Suécia, país onde os proprietários dispunham de cem direitos de voto até 1910, os sufrágios trabalhistas alçaram ao poder os sociais-democratas de modo quase contínuo a partir de 1932. Na França, por seu turno, a Frente Popular fixou as férias remuneradas em 1936, e a forte presença de comunistas e socialistas no Parlamento e no Governo tornou possível a instituição de um sistema de Seguridade Social em 1945.

 

2.   A dupla Revolução Antropológica

 

Nos últimos parágrafos, descreveu-se o primeiro grande aspecto da Revolução Antropológica: os gastos sociais se elevam em comparação com os gastos militares e relacionados à soberania. O segundo aspecto dessa Revolução consistiu no fato de o Estado, pela primeira vez na história, deixar de ser controlado exclusivamente pelas elites econômicas. Isso representou a consagração do sufrágio universal, da democracia representativa e parlamentar, do processo eleitoral, da alternância politica, e tudo isso foi impulsionado por uma imprensa independente e pelo movimento sindical. Disso se colhe um ensinamento fundamental: é possível não só abandonar o poder censitário, mas também o capitalismo e a mercantilização generalizada.

O fortalecimento do Estado social, então representativo das demandas sociais e a serviço dos interesses das classes populares, permitiu que vastos setores da economia, como a educação, a saúde e uma parte significativa dos transportes e energia, se organizassem fora da lógica comercial. É bem verdade que isso só foi possível porque foram criados diversos sistemas de empregos públicos, estruturas mutualistas ou não lucrativas e realizados subvenções e investimentos financiados pelos impostos. Como nos ensina Piketty, esse modelo não apenas funcionou, como também foi muito mais eficaz do que o setor privado capitalista.

Aos que, no Brasil, ainda hoje, ignoram os ensinamentos históricos, urge dizer, com o devido destaque, que o Estado social e o imposto progressivo constituem fatores poderosos e eficientes que permitem transformar o capitalismo. Sem que essas duas instituições – o Estado social e o imposto progressivo – sejam objeto de uma ampla mobilização e apropriação coletiva, o movimento rumo à igualdade não poderá ser retomado. Vale citar as palavras de Piketty: “(...) o Estado social e o imposto progressivo constituem de fato uma transformação sistemática do capitalismo”. (ibid., p. 170, grifo meu).

Organizadas em torno de uma lógica que deve ser levada até as últimas consequências, aquelas duas instituições representam uma etapa fundamental para a efetivação de uma nova forma de socialismo democrático, descentralizado, autogestionário, ecológico e diversificado, à luz do qual outro mundo, mais emancipador e igualitário, pode ser construído. Essa nova forma de socialismo não só é possível, como necessária em face da crise humanitária e dos efeitos ambientais devastadores causados pelo capitalismo. Veremos, mais adiante, em linhas gerais, como esse socialismo democrático e descentralizado se organizaria. Por ora, descerei algumas considerações sobre o imposto progressivo, destacando seu importante papel social e econômico. Ao fazê-lo, começarei por distingui-lo do imposto regressivo.

 

3.   O imposto progressivo: um mecanismo eficaz de redistribuição de renda e propriedades

 

Até o início do século XX, quase todos os sistemas fiscais do mundo eram regressivos, ou seja, impostos mais pesados recaíam sobre a renda dos mais pobres. Este ainda o sistema de arrecadação vigente no Brasil hoje. A despeito do que dizem certos lobistas norte-americanos, é um fato histórico que os sistemas de saúde pública de padrão europeu são menos dispendiosos e mais eficientes na promoção do bem-estar e da expectativa de vida que as empresas privadas americanas. Nos países em que se desenvolveu, ao longo do século XX, o Estado social e tributário, não há um movimento político de envergadura que proponha o retorno à situação anterior a 1914, quando as receitas tributárias chegavam a menos de 10% da renda nacional.

Segue-se, pois, a definição de imposto progressivo. É um tipo de imposto que se caracteriza pelo fato de que a alíquota da tributação efetivamente paga pelos diferentes grupos ou classes sociais aumenta proporcionalmente ao aumento da renda e do patrimônio. Por outro lado, impostos regressivos baseiam-se em taxas sobre o consumo e em impostos indiretos, que representam uma carga tributária proporcionalmente mais pesada para os mais pobres do que para os mais ricos. O caso mais extremo de imposto regressivo é a capitação, isto é, a cobrança de uma taxa de mesmo valor para todos, o que representa uma proporção de renda dez vezes maior para um salário baixo do que para outro dez vezes mais bem pago. Toda vez que um deputado de direita ou um jornalista alinhado com a agenda da direita ou da extrema-direita falar em imposto proporcional ou defendê-lo, esteja ciente o leitor de que se defende a permanência de um imposto que representa uma mesma porcentagem da renda ou do patrimônio para todas as classes sociais.

Debates sobre a implementação do imposto progressivo já existiam no século XVIII (Revolução Francesa), muito embora a Revolução não tenha impedido a adoção de impostos proporcionais ou regressivos pelos principais países europeus. A recusa do imposto progressivo contribuiu para a alta concentração da propriedade até 1914. No início do século XX, no entanto, o imposto progressivo foi adotado por quase todos os países no Ocidente e fora dele. Nos Estados Unidos, a taxa superior do imposto federal sobre as rendas mais altas passou de 7%, em 1913, para 77%, em 1918. Essa taxa atingiu a impressionante marca de 94% em 1944. A média de 1932 a 1980 ficou em 81%. Avanços espetaculares no sistema de tributação também se observaram no Reino Unido, na Alemanha, na França, na Suécia e no Japão. Tais avanços são relativos tanto ao imposto progressivo sobre a renda quanto sobre as heranças. (O leitor interessado em saber como esses avanços se representam matematicamente pode consultar o gráfico que consta do livro Uma breve história da igualdade (2022), de Thomas Piketty). Mais importante, para os meus propósitos, é dar a conhecer as condições e os fatores que impulsionaram a adoção do imposto progressivo em diversos países do mundo no período compreendido entre 1914 e 1980.

Os conflitos da Primeira Guerra Mundial, a pressão do regime bolchevique sobre as elites e uma progressiva mobilização social acompanhada de um movimento reivindicatório permanente impulsionaram a adoção da progressividade tributária. Na França, foi a ameaça socialista e comunista que levou as elites a consentirem no imposto progressivo pesado, temendo uma alta expropriação, se o recusassem. O Bloco Nacional, formado por grupos de direita, tendo-se recusado a aprovar um imposto de 5% antes da guerra, cedeu à aprovação de uma alíquota acima de 60% no início de 1920, num contexto sociopolítico e econômico marcado por destruição, salários baixos e ameaça de greves. Na Suécia, a ascensão dos sociais-democratas foi determinante da adoção do imposto progressivo. Na Inglaterra, o fator determinante foi a queda da Câmara dos Lordes. Nos Estados Unidos, um longo processo de revisão constitucional, impulsionado pela mobilização popular e pela exigência de justiça fiscal, levou à instituição de um imposto federal sobre a renda em 1913. A crise de 1929 forçou Roosevelt a elevar a progressividade fiscal a níveis inéditos nos anos de 1930 e 1940.

A partir da década de 1980, houve, todavia, um retrocesso na marcha rumo à igualdade. Antes de me deter no exame das condições e das razões desse retrocesso, cumpre reiterar os ensinamentos colhidos da “grande retribuição” ocorrida entre os anos de 1914 e 1980. A principal lição é que tanto o Estado social quanto o imposto progressivo são instrumentos bastante eficazes na transformação do capitalismo, muito embora a superação desse modo de produção dependa da instituição de uma nova forma de socialismo. Outra lição, não menos importante, é que um novo movimento rumo à igualdade só pode ser deflagrado se o Estado social e o imposto progressivo estiverem no centro de uma vasta mobilização social e apropriação coletiva.

Segundo Piketty, se quisermos compreender adequadamente o porquê do contramovimento que gerou uma hiperconcentração de renda e propriedade a partir dos anos de 1980, devemos avaliar tanto os limites das conquistas daquelas instituições no século XX quanto determinar as razões que conduziram ao seu enfraquecimento a partir de 1980. O desenvolvimento e o recrudescimento da racionalidade neoliberal, que levou à liberalização financeira e à live circulação de capitais desempenharam um papel fundamental no enfraquecimento tanto do Estado social quanto do imposto progressivo. Recorde-se com Brown (2019, p. 28-29) que o neoliberalismo “reduz radicalmente o Estado, amordaça o trabalho, desregula o capital e produz um clima de impostos e tarifas amigáveis para investidores estrangeiros”.  Passo, pois, a examinar como se deu o recuo da marcha em direção à igualdade.

 

4.    O retrocesso: a persistência da hiperconcentração de renda e propriedades

 

O limite de todo o processo que, entre os anos 1914 e 1980, vinha tornando o mundo mais igualitário, em vários países, na Europa e fora dela, é a hiperconcentração da propriedade tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. Na Europa, observou-se a emergência de uma “classe média patrimonial”, cujos privilégios foram muito duradouros. Os 40% da população europeia entre os 50% mais ricos e os 10% mais pobres detinham pouco mais de 10% do total de propriedades em 1913. No ano de 2020, a concentração de propriedades chegou a 40%, sob a forma de bens imobiliários. Nesse mesmo ano, no continente europeu, os 10% mais ricos possuíam 55% do total, enquanto os 50% mais pobres quase nada possuíam. 

Se, na Europa, por um lado, o crescimento da desigualdade foi menos acentuado (quando comparado com o aprofundamento da desigualdade nos Estados Unidos), houve, por outro lado, um enfraquecimento gradativo da posição dos 40% da classe média e, sobretudo, dos 50% mais pobres.  A desregulamentação financeira em curso desde 1980 (uma herança das políticas econômicas neoliberais) beneficiou o mercado financeiro, cujos agentes viram seu lucro aumentar exponencialmente com o endividamento da população.  As desigualdades de renda também aumentaram no pós-1980, sobretudo nos Estados Unidos. Como pondera Piketty, a restrição do imposto progressivo, mormente nos Estados Unidos, acarretou o ressurgimento das fortunas mais altas e a explosão das vultosas remunerações dos executivos. Comparada aos Estados Unidos, a Europa logrou mais sucesso na contenção do aumento da desigualdade. Os 10% mais ricos viram seus privilégios caírem de 52% do total da renda nacional, em 1910, para 28% em 1980, antes de alcançar o patamar de 36% em 2020. Na faixa dos mais pobres, observa-se que os 50% passaram de 13% do total da renda, em 1910, para 24% em 1980, antes de declinar para 21% em 2020.  Nos Estados Unidos, a desigualdade de renda e propriedades é mais alarmante. Em 2020, os 50% dos mais pobres possuíam apenas 2% do total da renda nacional, ao passo que os 10% dos mais ricos detinham 72%. Assim, em 2020, os Estados Unidos ocupavam uma posição intermediária entre a Europa de 1913 e a Europa de 2020, em termos de concentração de riqueza, mas com uma clara tendência para a se aproximar da situação europeia de 1913.

Se quisermos retomar a marcha rumo à igualdade, o caminho a ser trilhado já foi definido no século XX: é necessário aperfeiçoar e intensificar as instituições que conduziram grandes parcelas da humanidade a um mundo mais justo socialmente, mais próspero e igualitário, quais sejam, o Estado social e o imposto progressivo. Evidentemente, o movimento rumo à igualdade social e econômica não deve estancar aí. O Estado social e o imposto progressivo são etapas para o desenvolvimento de um socialismo democrático, descentralizado e diversificado. Claro está também que, sem uma mobilização social e coletiva poderosa, a retomada do movimento rumo à igualdade nas próximas décadas não será possível.

Vou tecer algumas poucas considerações sobre a revolução conservadora da era de Reagan e Margareth Thatcher. Sob foco de minha atenção está, portanto, o neoliberalismo. Ele representou a confluência das ideias da Escola de Chicago com as políticas de Ronald Reagan e Margareth Thatcher. A doutrina neoliberal, cuja robustez teórica alcançou seu auge nos movimentos pelos direitos civis no início dos anos de 1970, trouxe ao processo de globalização a desregulamentação econômica, a privatização, o livre-mercado, a financeirização e securitização (processo de transformação de dívidas em papéis negociáveis no mercado de capitais). Com a extensão da lógica neoliberal para todas as esferas da vida social, houve um aumento contínuo da pobreza e da concentração de riqueza em grande parte do mundo.

Como mostra Piketty, o sucesso do neoliberalismo não decorreu somente do apoio amplo das classes dominantes, mas também das debilidades da coalização igualitária, que fracassou na sustentação de uma narrativa alternativa ao modelo neoliberal e na mobilização popular suficientemente forte em defesa do Estado social e do imposto progressivo.

 

5.    Rumo a um socialismo democrático, descentralizado e diversificado

 

Nesta última seção, esforçar-me-ei por apresentar, didaticamente, o conjunto de medidas propostas por Piketty com vistas à superação do aumento da concentração da riqueza observada no curso da institucionalização das políticas neoliberais. O que se segue é o delineamento do caminho rumo a um socialismo democrático e descentralizado, distinto, portanto, da experiência socialista da União Soviética.

Deve-se partir, em primeiro lugar, do ensinamento histórico: a implementação e manutenção do imposto progressivo é o fator fundamental para a construção de um Estado social, sem o qual não é possível a transformação sistemática do capitalismo. Sem o imposto progressivo e o Estado social, não há meios de pôr fim às mais altas rendas e ao processo de mercantilização da vida social. O imposto progressivo, conforme lembra Piketty, não apenas permitiu a repartição mais justa dos impostos, como também limitou fortemente as desigualdades antes dos impostos. Em outras palavras, o imposto progressivo é um mecanismo de intervenção no cerne do processo produtivo, se bem que acompanhado do direito sindical e da presença de trabalhadores nos conselhos administrativos das empresas. De qualquer forma, o imposto progressivo permite a redução significativa da escala de salários, pela aplicação de alíquotas entre 80% e 90% sobre as rendas mais elevadas. A luta, em pé de igualdade, contra o setor mercantil depende desses mecanismos de sobretaxação.  Reconduzir a diferença salarial de uma escala de um a vinte ou de um a cem não é uma questão apenas de justiça distributiva; é uma questão de eficiência na regulamentação pública e no desenvolvimento de formas alternativas de organizar a economia.

Segundo Piketty, ao estabelecimento de novos sistemas de renda básica (os atuais em vigor na maioria dos países europeus são muito ineficientes), deve-se acrescentar a igualdade de acesso à formação e a igualdade de poder de negociação para os assalariados e seus representantes. No tangente à importância da criação de um novo sistema de renda básica como uma das medidas para a retomada do movimento de promoção da igualdade, vale atender nas palavras de Piketty (ibid., p. 172):

 

(...) é essencial estender a renda básica às pessoas com salários e rendimentos mais baixos, com um sistema de depósito automático nos contracheques e nas contas bancárias, sem que elas precisem solicitá-lo, em conjunto com o sistema de imposto progressivo sobre a renda (igualmente descontado na fonte).

 

As propostas atuais de renda básica fixada em metade e ¾ do salário mínimo em tempo integral representam uma tentativa ainda insuficiente de combate das desigualdades. Embora permitam estabelecer um piso, essas propostas não são bastantes. Como complemento da renda básica, pode-se instituir um sistema de garantia de emprego, que foi objeto de discussão no contexto do Green New Deal. Trata-se aqui de oferecer um emprego em tempo integral com um salário mínimo fixado num nível decente a todas as pessoas que o desejassem. O financiamento ficaria a cargo do Governo Federal e os empregos seriam ofertados por agências públicas de emprego no setor público e associativo. Para Piketty, tal sistema poderia contribuir sobremaneira para o processo de desmercantilização e para a redefinição social das necessidades, mormente em termos de serviços prestados à população.

A construção de um socialismo democrático e participativo envolve ainda a redistribuição da herança (a partir de um sistema de herança para todos) e o aumento do poder de negociação das classes trabalhadoras. Vou-me deter na discussão desses pontos, antes de pôr termo a este texto.

 

5.1. A redistribuição da herança

 

Tudo que se expôs até aqui deve ser compreendido num quadro de referência das condições sócio-históricas da Europa e, particularmente, da França. As propostas de Piketty não podem ser diretamente estendidas à realidade social, política e econômica brasileira, sem que se levem em consideração nossa formação cultural, nosso sistema jurídico e nossa Constituição. Ainda que fiquemos com a impressão de que os mecanismos promotores da redistribuição da riqueza e da propriedade propostos por Piketty encontrem obstáculos institucionais e ideológicos para a sua implementação no Brasil, não devemos, por isso, ignorar que eles descortinam um caminho para a superação do capitalismo e para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

Consideremos como se desenha a proposta redistributiva de Piketty, baseada na herança para todos. O autor adverte-nos de que ela poderá ser redefinida em níveis mais ambiciosos.

Aqueles que absolutamente nada herdam e que perfazem aproximadamente os 50% mais pobres receberiam 120 mil euros (quase 750 mil reais), enquanto aqueles que herdam 1 milhão de euros, valor correspondente à herança médica recebida pelos 10% mais ricos, com enormes disparidades, receberiam 600 mil euros ( aproximadamente 3 milhões e 800 mil reias), depois que se aplicasse o sistema de tributação e de dotação. O leitor, quiçá, tenha se dado conta de que ainda não estaríamos nem perto de atingir a igualdade de oportunidades, condição esta que “as classes privilegiadas temem tanto quanto a peste, tão logo se cogita um início de aplicação concreta” (ibid., p. 177). Para Piketty, em teoria, não só é absolutamente possível, mas também desejável, intensificar ainda mais a redistribuição de herança.

O sistema de financiamento proposto pelo autor não é inédito na história. Ele repousa sobre tabelas de tributação semelhantes às já adotadas ao longo do século XX. Nelas, as alíquotas variam de alguns por centro para os patrimônios e as rendas inferiores à média 80-90% para os patrimônios e as rendas mais elevadas. A principal novidade da proposta, no entanto, é valer-se de uma tabela similar que contemple o imposto anual sobre a propriedade, juntamente com o imposto sobre a renda e o imposto sobre as heranças. Esse novo modelo de tributação, com foco nas heranças, é essencial, se quisermos superar a redistribuição de propriedade realizada no século XX. Com a aplicação correta e o controle adequado,  o imposto anual sobre propriedades permite a arrecadação de receitas mais elevadas do que as do imposto sobre heranças; além disso, permite equilibrar melhor os esforços em função da capacidade de contribuição de todos. O autor não ignora que uma tabela específica também deveria ser aplicada às posses de fundações e órgãos com fins não lucrativos, evitando, assim, uma concentração excessiva de poder em um pequeno número de instituições. Assim se poderia permitir o desenvolvimento de estruturas sociais menos abastadas. A esta altura, devemos rechaçar a suposição de que a redistribuição da propriedade é suficiente em si mesma para a superação do capitalismo. Não se trata de substituir grandes proprietários por pequenos e médios proprietários igualmente ávidos de lucro e indiferentes às consequências sociais e ambientais de suas ações. Atenda-se no seguinte passo de Piketty:

 

A redistribuição da propriedade é acompanhada de tabelas de tributações bastante progressivas que impedem que as pessoas acumulem ou poluam sem limites e que, se necessário, podem ser endurecidas. (ibid., p. 178).

 

Uma regulamentação do uso da herança para todos poderia ser implementada com vistas à limitação desse uso a projetos que se destinassem à aquisição de moradias ou à abertura de empresas com vocação social ou ambiental. Conforme assinala Piketty, “a discussão é legítima, desde que, contudo, sejam aplicadas as mesmas regras a todas as heranças e a todos os herdeiros e não apenas às classes populares que se beneficiam da herança mínima” (ibid.). O autor insiste em que a implementação do sistema de renda básica e da garantia de emprego deve ser prioridade. Um sistema de herança para todos não faz sentido sem que, antes, aqueles dois sistemas se tornem vigentes. Para ele, a herança para todos deve ser um elemento adicional, inserido num sistema de Estado social finalisticamente organizado para a desmercantilização da economia. Piketty é taxativo neste ponto: os bens e serviços fundamentais em setores como educação, saúde, cultura, transporte e energia podem e devem ser oferecidos no âmbito de estruturas públicas, municipais ou de instituições sem fins lucrativos. Urge, portanto, retirá-los da esfera mercantil.

A herança para todos poderia ser investida em um número limitado de atividades que perfariam o setor lucrativo, tais como a moradia e as pequenas empresas, sobretudo aquelas voltadas para o artesanato, o comércio, a hotelaria, consertos, consultoria, etc. Portanto, se quisermos evitar que o sistema de herança para todos gere, a médio e longo prazo, novas castas de proprietários com excessiva concentração de poder, necessário se fará que as rendas da herança sejam propriedades sociais e temporárias, e não propriedades estritamente privadas. Em outras palavras, para Piketty, as propriedades pequenas e médias geradas pela herança para todos devem inserir-se numa estrutura legislativa baseada na divisão do poder com os diferentes usuários do capital e numa estrutura fiscal que limite drasticamente as possibilidade de acumulação e perpetuação da riqueza.

Volvo olhares sobre a importância do aumento do poder de negociação dos trabalhadores, doravante.  Acompanhando a proposta de Piketty, tentarei mostrar que dar aos trabalhadores mais poder de negociação no interior da empresa em que trabalham não é só mais uma condição para retomar a marcha rumo à igualdade, mas também a condição para o exercício da verdadeira liberdade individual. Além de Piketty, economistas renomados como Joseph Stiglitz, Karl Polanyi e Anthony Atkinson, ensinam que o livre mercado sozinho não é capaz de distribuir equitativamente a riqueza. O crescimento econômico em si não propaga a riqueza. Segue-se daí que é mais razoável conceber um sistema de redistribuição de herança que permita à  população beneficiar-se de uma herança mínima. Segundo Piketty, essa herança mínima poderia corresponder a 60% do patrimônio médio por adulto, ou seja, 120 mil euros, tendo em conta o fato de que o patrimônio na França, em 2021, era da ordem de 200 mil euros. Destarte, essa herança mínima estaria acessível a todos os indivíduos quando completassem 25 anos. Resta saber como isso poderia ser financiado. A esse respeito, esclarece-nos Piketty que o financiamento desse capital poderia ser feito por meio de uma combinação de imposto progressivo sobre as riquezas e sobre as heranças, que corresponderia a 5% da renda nacional, com um sistema unificado de imposto progressivo sobre a renda, inclusas aqui as cotizações sociais e um imposto sobre as emissões de carbono. Essas duas formas de imposto financiariam o Estado social e corresponderiam a 45% da renda nacional. Importa ser sublinhado o seguinte:

 

O primeiro objetivo da herança para todos é aumentar o poder de negociação daqueles que não possuem quase nada (ou seja, cerca da metade da população). (ibid., p. 174, grifo meu).

 

Dirijo-me, agora, a cada um de meus potenciais leitores – trabalhadores, em sua maioria -, e lhes pergunto: quem dentre vocês não gostaria de poder recusar um emprego que oferecesse uma baixa remuneração e condições precárias para a realização de suas tarefas? Ora, é justamente por não possuir nada, ou por possuir só dívidas, que uma pessoa se vê obrigada a aceitar qualquer salário e quaisquer condições de trabalho. Consoante pondera Piketty, “a renda básica e a garantia de emprego com salário mínimo constituem ferramentas preciosas para modificar essa situação e reequilibrar as relações de força” (ibid). É claro que isso não basta, e o autor o reconhece. O aumento do poder da classe trabalhadora tem como pré-condição também a garanta dos direitos associados ao Estado social mais amplo possível, tais como educação e saúde gratuitas, aposentadorias e seguro-desemprego redistributivos, direito sindical, etc. Ora, o que está em jogo nessas conquistas das classes trabalhadoras é, especialmente, o exercício de uma liberdade concreta, bem diferente da liberdade limitada e enganosa preconizada pelos liberais e neoliberais. Um indivíduo é tanto mais livre e emancipado social e economicamente quanto mais poder tiver de recusar certas ofertas de trabalho, de adquirir moradia, de lançar-se num projeto pessoal, de montar uma pequena empresa. Como enfatiza Piketty, “essa liberdade tem tudo para assustar os empregadores e os proprietários, cujos funcionários perderiam a docilidade, e alegrar os demais” (ibid.,p. 175-177).

 

5.2. Um socialismo participativo

 

A adoção de um sistema de socialismo participativo é a condição para alcançar uma equidade na divisão do poder no interior das empresas privadas. O socialismo participativo prevê o compartilhamento 50-50 dos direitos de voto entre os assalariados e os acionistas e “uma rígida limitação dos direitos de voto dos acionistas individuais em função do porte da empresa” (ibid., p. 179). Destarte, um único assalariado poderia concentrar a maior parte dos votos numa empresa de tamanho reduzido, mas perderia esse direito, se a empresa contratasse mais de dez assalariados. Os direitos de voto de um assalariado poderiam depender de seu tempo de serviço: ele acumularia tanto mais direitos quanto maior fosse seu tempo de serviço.

Nota Piketty que debates sobe a instituição de fundos salariais, de que participaram integrantes da Federação Sindical Sueca nos anos de 1970-1980, vêm sendo reanimados recentemente. O sistema de fundos salariais prevê que as empresas de grande porte depositem todo ano uma parte de seus lucros num fundo salarial que permita aos trabalhadores controlar gradualmente 52% do capital ao final de vinte anos. Como era de esperar, essa proposta suscitou forte rejeição por parte dos capitalistas suecos e acabou por não ser implementada. Não obstante, segundo o autor, a adoção de fundos salariais voltou a ocupar, recentemente, o debate público, tornando-se uma pauta na agenda dos democratas norte-americanos, entre os quais está Bernie Sanders, e no programa oficial do Partido Trabalhista britânico. Outras propostas inovadoras que visam a possibilitar o desenvolvimento de fundos de investimento público em nível local e comunal também vêm sendo elaboradas recentemente. Para Piketty, “o objetivo aqui não é encerrar a discussão, mas muito mais mostrar toda a sua abrangência: as formas concretas de poder e da democracia econômica devem ainda e sempre deverão ser reinventadas”. (ibid., p. 180).

Procurando levar a bom termo este artigo, cumpre ainda examinar de que modo se poderia desenvolver um socialismo democrático. Em primeiro lugar, a condição para a sua efetivação é o aprofundamento da democracia. Em segundo lugar, o socialismo democrático (que no Brasil é um regime abominável, para grande parte da população, incluindo-se aí a elite de rapina e muitos atores políticos conservadores e reacionários, iletrados em matéria de história mundial e sociologia), sendo descentralizado e democrático, opõe-se radicalmente ao socialismo estatal, centralizado e autoritário experienciado no século XX no bloco soviético. O socialismo democrático é o resultado do desenvolvimento pleno do Estado social e do imposto progressivo. Essa forma democrática do socialismo esteia-se na circulação permanente do poder e da propriedade. Atente-se para a lição de Piketty nesse tocante:

 

Esse novo socialismo democrático se situa, em larga medida, no prolongamento das transformações socais, tributárias e jurídicas empreendidas em inúmeros países ao longo do século transcorrido, sob a condição de lembrar que essas transformações foram feitas ao custo de relações de força, de mobilizações populares e de múltiplas crises e momentos de tensão. (ibid.)

 

Piketty admite que o socialismo democrático de cuja descrição ele se encarrega é um esboço e abriga “múltiplas fraquezas e limitações”. (ibid.) Uma dessas limitações e fraquezas é que a admissão da subsistência de uma forma limitada de propriedade privada dos meios de produção no âmbito das pequenas empresas e da moradia significa que, na prática, haveria risco de as mudanças alcançadas pelo modelo redistributivo do Estado social serem efêmeras. Pode também constituir uma fraqueza do socialismo democrático a estrita limitação das disparidades de riqueza, já que sua sustentabilidade seria constantemente ameaçada pela insistência de grupos e atores políticos em alterar as alíquotas das tabelas. Piketty, malgrado não subestimar todas as limitações ou fraquezas do modelo, entende que elas não devem ser tomadas como motivos desencorajadores. Foram receios dessa ordem que levaram as autoridades soviéticas “a criminalizar toda forma de propriedade nos anos de 1920, inclusive para as empresas muito pequenas que empregavam um número diminuto de assalariados”. (ibid., p. 181). Insistindo na “gangrena do capitalismo”, os soviéticos afundaram o regime na deriva autoritária e burocrática que conhecemos.

Para que a nova experiência socialista não sucumba ao mesmo erro, é preciso que se aprofunde a experiência democrática, não somente por meio de sistemas de redistribuição de propriedade, mas também pela criação de um sistema de financiamento igualitário das campanhas políticas, da mídia e dos think tanks, “a fim de evitar que a democracia eleitoral seja confiscada pelos mais abastados”. (ibid.).

Segundo Piketty, não há dúvida de que revisões constitucionais profundas sejam necessárias para que o regime de redistribuição da propriedade e de divisão de poder se tornem uma realidade. Para evitar ou, ao menos, inibir possíveis tentativas de desmonte desse regime de promoção de igualdade, Piketty advoga a alocação do produto do imposto progressivo sobre a propriedade e as heranças em um fundo destinado à herança para todos, semelhante à alocação de cotas para os fundos de previdência social.

 

A experiência histórica nos mostra que isso complica a tarefa dos que gostariam de mudar suas escolhas (por exemplo, prometendo diminuição de impostos ou cotizações), pois os obrigaria a explicitar as privações de direitos a que aspiram. (ibid.).

 

Como se pode depreender do exposto até aqui, Piketty não propõe um socialismo democrático radical, que se insurja contra todo tipo de propriedade privada. No entanto, acredita serem discutíveis propostas como a do sistema de socialismo salarial defendida por Bernard Friot. Segundo esse economista francês, dever-se-ia estender a toda organização socioeconômica o modelo de fundos de previdência que valeram sobretudo para a aposentadoria e o seguro-saúde desde 1945. Disso derivaria a criação de um fundo de salário e de um fundo de investimento, o primeiro dos quais encarregado de classificar as pessoas de acordo com suas qualificações em diferentes níveis de salário vitalício (numa escala de 1 a 4); e o segundo destinado a conferir créditos de investimento e direitos de uso do capital imobiliário e profissional às diferentes unidades de produção e aos múltiplos projetos individuais e coletivos envolvidos.

Uma vez que esses fundos sejam administrados segundo um regime participativo e democrático e sob formas bem definidas, eles carreiam muitas potencialidades. Piketty admite que o desenvolvimento de novas formas de organização socioeconômica baseada na propriedade comum e na propriedade de uso do capital deve ser estimulado como complemento do sistema de propriedade social e temporário por ele proposto. Todavia, mantém o autor certa reserva no que toca à proposta redistributiva baseada em fundos salariais, como a de Friot. Vejamos em que termos se expressa a ressalva do autor:

 

[esses fundos de salários ou de investimento] concentram em seu âmbito um poder considerável sobre milhões de existências e decisões cotidianas (no que diz respeito aos níveis salariais e ao uso do capital e, em particular, à moradia e às pequenas empresas), e a questão da organização interna e de um funcionamento realmente democrático e emancipador dessas instâncias quase estatais e extremamente centralizadas nada tem de evidente. (ibid., p. 182).

 

 

Em outros termos, a proposta de Friot não lograria, na opinião de Piketty, a realização de um socialismo democrático, descentralizado e autogestionado, cujo princípio basilar é justamente evitar uma grande concentração de poder numa entidade ou setor estatal. Atendo-se ao estado atual dos conhecimentos e das experiências disponíveis, Piketty prefere trilhar o caminho mais moderado política e economicamente, admitindo certa durabilidade para a pequena propriedade privada, social e temporária, mas sem descurar de encorajar o aprimoramento de estruturas coletivas e cooperativas, sempre que isso estiver alinhado com as necessidades dos agentes envolvidos.

Não podemos deixar que a fé excessiva na capacidade de as grandes organizações centralizadas articularem, em seu âmbito, a deliberação e a decisão democrática leve-nos a subestimar o poder emancipador de dispositivos institucionais como a pequena propriedade privada, desde que – adverte Piketty -corretamente regulada e limitada em sua magnitude e nos direitos que confere.

Finalmente, cumpre acrescentar que o imposto progressivo também não pode estar submetido a decisões em escala centralizada, porquanto isso redundaria em destituir seu regime e progressividade de qualquer valor social. Em suma, damos a saber qual é a forma desse socialismo democrático, diversificado e autogestinado que, instituído e aperfeiçoado no transcurso histórico, acarretaria a destruição do capitalismo:

 

Em contrapartida, se admitimos o princípio de uma organização socioeconômica duravelmente descentralizada, que colocaria em jogo uma grande diversidade de agentes, de coletividades e estruturas mistas, as formas concretas do imposto são importantes: elas contribuem para determinar a repartição do valor ao lado de outros dispositivos institucionais, como, por exemplo, os sistemas de direitos de voto dentro das diferentes estruturas. (ibid. p. 183).