sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

"O homem, com suas nobres qualidades, ainda carrega no corpo a marca indelével de sua origem modesta." (Charles Darwin)

 


Manual contra a megalomania humana em uma lição

 

E pensar que, estando eu diante de outro ser humano enfatuado e crente de sua ancestralidade divina, exibindo seu ego hipertrofiado, vejo diante de mim apenas uma forma orgânica complexa que evoluiu, ao longo de milhões de anos, a partir de uma célula bacteriana.

 

 




A LUCIDEZ NIILISTA

 

No meu esforço por pensar o niilismo como campo hermenêutico, como um fenômeno histórico-antropológico que diz respeito à constituição social do homem como ser alienado de sua condição natural e animal, tenho como escopo o modo como as significações instituídas, geradas na instituição do imaginário-simbólico, produzem o homem, cunham seu modo de ser imaginário, um modo de ser que se representa na ilusão de sua superioridade em relação aos demais seres vivos. É necessário, para tanto, compreender como as significações, como a linguagem simbólica, sem a qual aquelas não seriam possíveis, constituem o homem como um ser à parte, como um ser que se acredita divorciado do resto da vida natural e animal, da totalidade cósmica. Como lembra Castoriadis, a significação apenas parece estar ligada a algo - ser natural, objeto material fabricado, entidade lógica. Esse “algo” só tem “ser” para uma sociedade que o investe de significado. Fora da significação, esse “algo” simplesmente não existe para a sociedade em questão. As signifcações imaginárias centrais ou primárias - ensina-nos Castoriadis - é que criam os objetos que se dão à cognição humana. Essas significações primárias organizam o mundo - mundo “exterior” à sociedade e o mundo social propriamente dito, estabelecendo entre eles uma relação recíproca. Um exemplo de um objeto criado pelas significações instituídas no social-histórico é Deus. Lembra Castoriadis que Deus carece de referente. Deus tem apenas um significado como Deus; e esse significado aparece cada vez que é reproduzido, reativado, “posto” pela sociedade - e eu diria - em suas práticas discursivas. O que me interessa, especialmente, enquanto questão fundamental da abordagem do niilismo como processo de desmitificação do homem, está bem resumido no seguinte passo de Castoriadis:



“ O “referente” que seriam as representações individuais de Deus (ou dos deuses) é criado mediante a criação e a instituição desta significação imaginária central que é Deus. A significação Deus é ao mesmo tempo criadora de um “objeto” de representações individuais e elemento central da organização do mundo de uma sociedade monoteísta, posto que Deus é colocado como ao mesmo tempo fonte do ser e ente por excelência, norma e origem da Lei, fundamento último de todo valor e pólo de orientação do fazer social (...)”. (p. 407).

 

 

Entendo que “ser colocado como fonte do ser e origem da Lei” quer dizer é criação do imaginário-simbólico instituído pela sociedade. É nesse sentido que falo de Deus como ficção tanto quanto é ficção a ordem jurídico-legislativa. Tanto um quanto a outra são efeitos, produtos do magma de significações imaginárias sociais que forma, por assim dizer, as “entranhas” do próprio fazer social.

Importa, tendo em vista o exemplo da instituição de Deus como objeto de um imaginário social, pensar o niilismo como um fenômeno inerente ao trabalho genealógico (de inspiração nietzscheana) que se interroga sobre as origens da significação e sobre seu funcionamento como dimensão essencial do mundo experienciado pelo homem. Bem entendida essa ligação inerente entre niilismo e projeto genealógico que interroga o modo de se dar a significação, é fácil estabelecer uma continuidade de sentido (coerência) entre a minha proposta de interpretação do niilismo e o que Giacoia diz acerca do modo como Nietzsche o entendeu, a saber, como “experiência histórica da ausência de fundamento”. Se o niilismo expressa a ausência histórica de fundamento, é porque o niilismo desvelou o caráter de constructo, de ficção, de significação fabricada do próprio fundamento cujo valor a tradição metafísica postulou como transcendente ao homem e ao mundo. O que chamo de Lucidez niilista nada mais é, portanto, do que a exposição, o desvelamento dos mecanismos imaginário-simbólicos que estão na origem de tudo aquilo que o homem concebe e trata como algo que se originou de uma instância estranha a ele, quer seja esta instância a objetividade de uma ordem social que se impõe a ele como já pronta, definida e rígida desde sempre, quer seja esta instância um ‘lugar’ metafisicamente imaginado.

 









SEDUÇÃO VERBAL

 

Do latim seductio -onis, sedução significa ‘separação’ ‘tomar à parte’. Dutcio formado a partir de ducere, forma arcaica de dūcō, que significa ‘conduzir’, ‘levar’, ‘puxar’, ‘atrair’, tem também o sentido poético de ‘escrever’, ‘compor’. O verbo ou a linguagem verbal seduz, portanto, quando nos aparta, nos separa do mundo comum do trabalho, da cotidianidade mediana. Ela nos seduz porque nos conduz para outros lugares simbólico-imaginários, porque nos leva para longe deste mundo das ocupações que compartilhamos com os demais seres humanos ( mundo das contas que nos fazem ser sempre endividados até o túmulo, da azáfama do dia a dia, que nos põe na condição de operários a cumprir prazos de um tempo fugidio). A sedução verbal é o deleite com a concatenação dos signos, com a articulação de significantes pelos quais vazam significados imprevistos, escorregadios, não totalmente controlados . Na sedução verbal, experiencia-se o êxtase da incompletude que constitui a linguagem, o êxtase da impossibilidade de esgotar o sentido, mesmo com a pretensão de gozá-lo. A linguagem nos constitui como animais excêntricos, extravagantes, não fixados, como animais que se habituaram a crer que o mundo da linguagem é coextensivo à realidade como um todo, que este mundo do discurso totaliza tudo que há. Paul Veyne, referindo-se à noção de discurso em Foucault, comparava os discursos a aquários: o homo loquens é como peixes no aquário. Somos prisioneiros desse aquário (discurso) cujas paredes sequer percebemos. Não temos acesso à verdade “verdadeira”, a um mundo já ordenado atrás e para além do discurso.

Mas há os que, cientes disso, jogam o jogo da sedução verbal como a criança que forja mundos imaginários pelo puro prazer de brincar; e há aqueles que, compondo a maioria dos animais simbólicos, creem que a sedução verbal os levará a acocorar-se junto à verdade. Estes se deixam seduzir pelos trajes metafísicos que insinuam a nudez da linguagem. Mas, tão logo se detenham a examiná-la, descobrem que a linguagem nada tem a desvelar, que um signo tem como interpretante outro signo num processo semiótico ad infinitum, no qual “a coisa” mesma que se esconde sob máscaras, sob disfarces, não é ela mesma, mas outro signo; estamos sempre em busca de um objeto perdido que, na verdade, nunca existiu; buscamos algo por trás da semiose que insiste a furtar-se a nós, porque não há este algo que surpreenderíamos por trás da trama simbólica. A sedução verbal é uma promessa de completude, de deleite pleno lá onde o que nos aguarda é a incompletude e o fracasso de quem busca o impossível.

 

 





NIETZSCHE COMO ANTIMETAFÍSICO

 

UM DIÁLOGO

 

De acordo: pode-se ser ateu e, não obstante, pensar Deus como problema filosófico. Mas, nesse caso, Deus é pensado como ideia ou conceito. Nietzsche negou todas as objetividades da metafísica, Nietzsche negou a metafísica e sua pretensão de absolutizar os valores, de tomar como coisas existentes em si e por si mesmas o que é da ordem das ficções humanas. Para Nietzsche, o homem inventou a metafísica porque não suporta a sua finitude, porque não suporta o efêmero, porque teme a própria morte. Divino, Deus, Sagrado são ideias, ou ficções humanas, ficções (no sentido etimológico de “criação, fabricação”) de cuja origem o homem não se reconhece como agente. O sagrado é um valor que o imaginário-simbólico constitutivo da ordem social objetivou, de modo que os seres humanos não mais o reconhecem como valor instituído pela própria atividade deles. Nietzsche, nesse sentido, foi o grande desmitificador do homem, aquele que pretendeu levar o homem a se aperceber de que aqueles supremos valores em que até então acreditaram como existentes independentemente de si e em nome dos quais a existência humana se orientava, se normatizava eram criações suas; e não só: - eram criações que enfraqueciam a vida, que a negavam. O Deus cristão bem como a moral cristã para Nietzsche, eram a antítese da vida. Nietzsche foi um antimetafísico contumaz: em sua crítica corrosiva da metafísica platônico-cristã, ele nos fez ver duas coisas: 1) que tudo aquilo que a metafísica tomava como dotado de caráter de substância, de essência, ou seja, como coisas que existem por si e em si mesmas, são ficções simbólico-imaginárias, são produtos da atividade humana; 2) que aquelas ficções da metafísica se instituíram contra a vida, que aquelas ficções levaram ao adoecimento do animal humano e ao enfraquecimento da vontade de potência ou da própria vida. Em nome daquelas ficções em cuja origem o animal humano não se reconhece como criador, o homem se pensou como um ser superior na natureza, o homem se acreditou como ser dotado de algum privilégio metafísico, o homem negou em si a animalidade e a vida mesma. Portanto, a metafísica edificou catedrais como signos da elevação metafísica do homem, como signos da crença humana em sua superioridade em relação ao todo natural existente. As catedrais são signos da megalomania metafísica humana. Em suma, eu diria a você, que também em nome do sagrado o homem se sacralizou, se distanciou de suas origens animais, se compreendeu como o ser superior em relação aos demais seres, negou a vida instintiva. E isso Nietzsche não perdoou. Se Nietzsche disse só acreditaria num deus que soubesse dançar, é porque um deus dançarino é a antítese do Deus metafísico, o deus da dança é deus da potência, da alegria, é deus do movimento, do devir, é deus da leveza que quebra a tirania do ressentimento, que supera o dualismo entre o mundo verdadeiro e o mundo aparente. O Divino, em Nietzsche, só poderia ser pensado nesse registro da superação da forma-homem cunhada pela tradição metafísica. Toda tentativa, meu caro amigo, de conciliar, de algum modo, Nietzsche com a metafísica e suas criações é não só não compreender profundamente Nietzsche, como também distorcer sua obra. Até hoje, não ousamos realizar a grande transfiguração pretendida por Nietzsche no modo de ser do homem, até hoje não ousamos dar à luz este novo homem que Nietzsche imaginou, que Nietzsche desejou: um homem verdadeiramente livre e conciliado com a vida e com sua existência mundana.

 

 

 

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