quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

"A ideologia funciona muito mais por meio do bloqueio da percepção de outras possibilidades, de outras realidades..." (Silvio Gallo).





       O LOUCO e a MORTE

 

A morte é um escândalo! Acordem! A vida é nua e ostenta sua nudez pavorosa e abissal!

E não me venham com este papinho disfarce: “vivamos intensamente o dia de hoje porque amanhã tudo poderá acabar”!

Mas tudo já está acabado. O decreto foi emitido há 14 bilhões de anos. Vivemos como os desavisados (ou fingidos?) que não conseguem ver que “o rei está nu”. Nossa morte herdamos quando nascemos. Contraímos uma dívida e vivemos como endividados que protelam o tempo de saldá-la. O credor, no entanto, não dá aviso prévio e não admite calote.

Ao romper o ventre materno fomos condenados a ela. Não há meios para apelação!

Tudo é pó, tudo é pó! Cinzas, poeira estelar! O silêncio da imensidão que ignoramos e que nos ignora há de calar nosso burburinho. Deixamos em cada passo que damos o rastro de nossa sepultura, em cada passo alimentamos a avidez dos vermes que nos consumirão. A morte nos engravidou de si quando nascemos. Somos todos defuntos adiados, como bem escreveu o poeta.

A perspectiva de nossa morte como um destino implacável e inevitável dá a tudo que fazemos um aspecto de porosidade, de precariedade, de fragilidade, de uma vacuidade ritualística fúnebre. Em face do Inevitável e Insondável, todos os nossos esforços se tornam radicalmente desimportantes e nossos atos cotidianos se perfazem como pretextos para não encarar o horror de nossa condição existencialmente trágica. Realizamos meros atos cênicos de uma performática teatral cosmologicamente insignificante. Atuamos, quase sempre, ou por costume ou por fraqueza, ou por covardia.

Cumulamos coisas que durarão mais do que nós mesmos. E nos apegamos a coisas das quais necessariamente nos separaremos. Mortos, é como se nunca estivéssemos existido. A morte não concede memória, não faz inventário. Ela simplesmente revoga tudo, dá a tudo o caráter de inanidade. A perspectiva de nossa morte torna a vida semelhante a um sonho. Mas o despertar deste sonho não é outra vida (fantasia dos crédulos). É o nada que não podemos conceber, o nada que sequer podemos imaginar. O nada é o sussurro do túmulo a nos lembrar de que, num nível fundamental, não somos mais do que “fluxo de eventos, processos que por um breve tempo são monótonos”. Somos um vibrar de ‘quanta’ que, por um tempo, conserva uma identidade antes de se dissolver no seio da natureza.

A couraça da loucura normal impede-nos de nos apreender como os atores que encenam uma tragédia, cujo desfecho é reencenado há milhões de anos...

jogamos um jogo do qual somos necessariamente os perdedores... quem ousa dizer que venceu na vida não compreendeu absolutamente nada...

A crença de que os mortos habitam outro lugar, de que vivem em outro mundo é um sintoma de nossa incapacidade de lidar com o nada, com a injunção do nunca mais. Cremos na vida pós-túmulo, porque nos recusamos a aceitar a nossa finitude, porque não queremos aceitar que a morte é o fim definitivo, o maior de nossos tormentos. Todo viver cotidiano é uma fuga persistente à morte que nos persegue como nossa sombra. Pomo-nos em fuga no esquecimento de que somos passageiros com destino para o cemitério. Viver como quem está continuamente a se despedir para nunca mais retornar é esta a única maneira de não nos levarmos muito a sério, de aceitarmos que precisamos de uma dose de loucura para não sucumbir ao desespero total e paralisante.

 

 

“Se quiseres poder suportar a vida, fica pronto para aceitar a morte.”

Sigmund Freud

 

 

“A arte de ser louco é jamais cometer a loucura de ser um sujeito normal.”

Raul Seixa 






Gozem! Gozem! Gozem!

 

A “irracionalidade” do sucesso ou do fracasso do capitalismo de mercado oferece-nos um único benefício: permitir que percebamos nosso fracasso (ou nosso sucesso) como “imerecido”, contingente. A própria injustiça do capitalismo é uma marca essencial que o faz ser tolerável para a maioria das pessoas, dado que nós podemos aceitar nosso fracasso mais facilmente, desde que saibamos que ele não se deve às nossas qualidades inferiores, às nossas incompetências e fraquezas, mas ao acaso. Lacan comunga com Nietzsche e com Freud na tese de que a justiça, tal como a igualdade, está assentada na inveja: na inveja que sentimos do outro que tem o que não possuímos e que se deleita com isso. A demanda da justiça é, em última instância, a demanda de restrição ao gozo excessivo do outro, de sorte que, restringindo-se o gozo do outro, todos tenhamos igualmente acesso ao gozo. Mas essa demanda produz um resultado necessário: o ascetismo. Na impossibilidade de impor um gozo igual, resta impor uma proibição, igualmente partilhada, ao acesso ao gozo. No entanto, contraditoriamente, nossas sociedades do espetáculo atuais pedem a todos uma única coisa: Gozem! Essa é a injunção generalizada que está no cerne da espetacularização de toda vida nas sociedades contemporâneas de mercado. Gozem, Gozem, Gozem! Com a condição de que tudo que se ofereça ao gozo seja desprovido da substância que o torne perigoso.





A ordem simbólica: o sujeito suposto crer

 

 

“A verdade tem a estrutura de uma ficção” (Lacan)

 

As emoções que enceno através da máscara que visto (a falsa persona) contém mais verdade do que posso admitir em meu foro íntimo. A polidez ilustra muito bem isso. Se, ao encontrar um conhecido, lhe estendo uma das mãos, dizendo “É um prazer revê-lo! Como vai?”, fica claro para nós dois que eu não estou genuinamente falando sério (se o meu conhecido desconfiar de que estou genuinamente interessado, pode até se sentir incomodado com meu atrevimento em querer tomar par de sua intimidade). Não é que eu seja necessariamente hipócrita, já que realmente sinto prazer em revê-lo. Apenas celebramos a renovação de um pacto entre nós dois. Sinto prazer em revê-lo e finjo estar interessado em saber sobre sua vida, mas nem ele espera que eu insista em querer saber demais (e verdadeiramente) sobre a vida dele nem eu espero que ele desfie para mim tudo o que lhe aconteceu durante o longo tempo em que estávamos distante. No ciberespaço, é o próprio fato de eu estar ciente de que me movo num espaço de ficção que posso expressar meu “verdadeiro eu”. Nos “reality shows”, os participantes do programa representam a si mesmos tais como se representam na “vida real”. A lógica aparentemente absurda do modo como funciona a ordem simbólica é esta: a máscara social que um indivíduo usa importa mais do que a realidade mesma deste indivíduo. Freud chamou essa estrutura de “renegação fetichista”: “sei muito bem que as coisas são como as vejo, que a pessoa diante de mim é um covarde corrupto, mas mesmo assim eu o trato respeitosamente, porque ele usa a insígnia de um juiz, de modo que, quando ele fala, é a lei que fala através dele”. Acredito, de certo modo, nas palavras dele e não em meus olhos. Quando um juiz fala, há, de certo modo, mais verdade em suas palavras (palavras estas da instituição da lei) que na realidade de sua pessoa. O cínico falha justamente aí quando se detém a considerar os fatos incontestes. A cultura, portanto, nada mais é do que o nome que damos a coisas que praticamos sem, de fato, acreditar nelas, sem levá-las inteiramente a sério.






A BUSCA ILUSÓRIA DO “ser si mesmo”

 

 

Toda cultura produzida segundo a lógica do capital é cultura capitalista. Félix Guattari, aliás, considera descabido opor uma cultura erudita a uma cultura popular. Para ele, só há uma cultura: a cultura capitalista - etnocêntrico e logocêntrica. Toda sociedade territorializa os indivíduos, isto é, insere-os num território dentro do qual eles podem viver, estabelecer relações e produzir tanto como sujeitos da produção material quanto como sujeitos a serviço da canalização, da codificação e da recodificação dos fluxos desejantes. A essência do capitalismo reside na abstração: tudo é desorganizado para ser novamente reordenado segundo a lógica do capital. A única coisa que não se transforma continuamente é o capital. A moeda continua soberana impondo seu regime a todos os fluxos de desejo, transformando-os em mercadorias, em dinheiro abstrato. Os indivíduos experienciam ilusoriamente sua subjetividade como se ela correspondesse ao seu “si mesmo”, ignorando o fato de que a subjetividade é de natureza maquínica, porque produzida pelas máquinas de territorialização. O que Guattari chama de “produção de subjetividade” é o modo como os indivíduos são fabricados socialmente, são normalizados, inseridos em relações uns com os outros segundo sistemas hierárquicos, sistemas de valores, sistemas de submissão - estes não são visíveis e explícitos, mas sutis e dissimulados. A produção de subjetividade se dá em vários níveis da produção e do consumo, inclusive no nível inconsciente. Segundo Deleuze & Guattari, a máquina capitalista produz até aquilo que acontece quando sonhamos, quando fantasiamos, quando desejamos, quando nos apaixonamos e assim por diante. No capitalismo, a produção da subjetividade é mediatizada pelo capital. O homem se torna mais abstrato do que nunca; sua subjetividade é produzida por representações, por aparências vazias que alimentam o mundo das máquinas da megaprodução. É assim, portanto, que a sociedade “penetra” no indivíduo; é a assim que a ideologia fábrica o indivíduo de que a sociedade necessita para produzir e reproduzir a sua estrutura. Para Guattari, desde a infância, o indivíduo é fabricado por uma máquina de produção de subjetividade capitalista por meio de processos de inserção gradativa dele em seus modelos tanto técnicos quanto imaginários. A sociedade, portanto, fixa as referências, cria as coordenadas por meio das quais os indivíduos se orientam, se reconhecem facilmente e se produzem, reproduzindo, ao mesmo tempo, a maquinaria de produção que os fabricou como sujeitos. Portanto, a percepção que o indivíduo tem de si mesmo é socialmente fabricada. Situando a questão no âmbito da psicanálise, Zizek diria que o “si mesmo” não é nada mais do que a textura simbólica da identidade do sujeito, que é, em todo caso, um constructo. O sujeito puro, em psicanálise, é nada ou uma forma de nada. Em seu ponto zero, o sujeito é como uma casa vazia na qual “não há ninguém”. O sujeito só emerge quando o indivíduo se vê privado de seu conteúdo substancial (que é imaginário). Como uma ameba descomunal, a sociedade estende seus pseudópodes sobre cada indivíduo, fagocitando-o, digerindo-o e transformando-o numa de suas múltiplas partes.

 


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