sábado, 30 de outubro de 2021

“Se deus queria que as pessoas acreditassem nele, por que então ele inventou a lógica?” ( David Feherty)

 



CONFISSÃO

 

 

Devo confessar que são duas as razões por que me tornei ateu: 1) a acuidade crescente de minha consciência do caráter cruel e doloroso da vida (consciência esta inconciliável com o modo de vida cristão, em cujo cerne repousa a crença num Deus criador infinitamente bom); e 2) minhas incursões cada vez mais frequentes, densas e extensas nos estudos sobre a constituição da Bíblia e sobre a história dos cristianismos primitivos. Tais estudos me tornaram cristalino e vigoroso o sentimento de que a minha fé perdera completamente os esteios que outrora a tornaram possível. Não me posso esquecer de mencionar, nesse processo de emancipação de minha consciência, a importância de meus encontros prematuros (há mais de quinze anos) com o pensamento de Schopenhauer e de Nietzsche (com quem tive os primeiros contatos lendo o seu Anticristo), que contribuíram sobremaneira para o abandono de meus hábitos de vida cristãos. Acho, honestamente, que as duas razões que me levaram a me libertar do peso asfixiante de décadas de doutrinação numa tradição religiosa são suficientemente fortes e consistentes para levar outras pessoas a abandonar também seus hábitos de vida religiosos. No entanto, uma grande maioria de pessoas no Ocidente ainda não ousou sequer considerá-las, não se dispõe sequer a cogitar delas, preferindo viver uma vida nutrida num embuste originário, ao qual o cristianismo deve sua existência: a ressurreição de Jesus. (talvez, porque, embora consistentes essas razões, raramente as pessoas abandonam suas convicções religiosas quando se lhes apresentam argumentos razoáveis). A lógica falha sistematicamente no cérebro de pessoas que foram expostas, desde tenra idade, a um sistema de doutrinação religiosa.

 Se a crença na ressurreição de Jesus nunca tivesse conseguido atrair seguidores, o cristianismo jamais teria existido. O cristianismo tradicional reza que a morte de Cristo trouxe a salvação à humanidade. Mas Cristo não poderia morrer verdadeiramente, se quisessem que alguém acreditasse que Deus trouxe a Salvação. Era preciso acreditar que Cristo ressuscitou dos mortos e que a sua crucificação não era um mal, mas um acontecimento planejado por Deus-Pai, cuja boa intenção (salvar os humanos) justificava o meio (permitir o martírio e a crucificação de seu filho). A ressurreição (este embuste de pouco mais de 2.000 anos) é o fundamento da religião cristã. Sem ela, Jesus não passaria de um profeta judeu apocalíptico (o que ele foi historicamente) que sofrera um fim trágico e imerecido. Mas, se Jesus nunca tivesse existido, ainda assim se teria desenvolvido alguma fé semelhante ao cristianismo? É provável que sim. No século I, época em que viveu Jesus de Nazaré, havia muitos outros candidatos a Messias, um dos quais era Apolônio de Tiana, que viajava com seus discípulos curando aleijados, expulsando demônios, recobrando a visão de cegos, etc. Muitos também acreditavam ser ele o filho de Deus. Apolônio pregava que as pessoas deveriam se preocupar com o destino de suas almas em vez de se preocupar com o conforto material. Ele também sofreu perseguição dos romanos, morreu e - para seus seguidores- ascendeu aos céus. A simetria com a vida de Jesus não é mera coincidência. Tanto quanto Jesus, Apolônio não sustentava uma doutrina de amor interétnico (ao contrário do que supõem os cristãos modernos, Jesus não pregava um amor universal). Na época em que viveu Apolônio, já tinham sido escritos os evangelhos cristãos. É possível que seus seguidores tenham construído suas narrativas da vida e do ministério de Apolônio a partir dos relatos sobre Jesus. Convergências desse tipo eram normais e frequentes. Os antigos catequizadores trabalhavam num ambiente competitivo, em que uma religião competia com outras a atenção das pessoas. Para que uma religião fosse bem-sucedida, era necessário que oferecesse, pelo menos, tantas vantagens quantas as que a concorrência oferecia. As religiões se desenvolviam acirrando a concorrência: os seguidores de Jesus odiavam os seguidores de Apolônio, e estes lhes retribuíam com a mesma moeda de ódio.

Este é apenas um dos muitos exemplos hauridos da investigação da história da formação do cristianismo que, uma vez conhecidos, tornam difícil legitimar a crença no Deus cristão como o único Deus verdadeiramente existente e em Cristo como o Messias que se identificou com a própria Verdade, levando Pilatos, tomado de perplexidade, a questionar: “Que é a verdade?” (João 18: 38).  

“Conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará”. (João 8: 32)

Mas, nesse caso, já não perguntamos nós hoje o que é a verdade, mas como seus efeitos (discursivos) se produzem na história.

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