Nosso comentário sobre o
tema do ressentimento no texto Das tarântulas recebe luzes do seguinte
pressuposto: o Assim Falou Zaratustra constitui
uma paródia dos textos bíblicos, em especial, dos Evangelhos canônicos da
Bíblia cristã. Enquanto paródia, o Zaratustra
nietzscheano rompe abertamente com o modelo retomado. Porque se constitui
enquanto paródia, o Zaratustra
funciona como um canto que desafina o tom conservador de uma dada prática
discursiva hegemônica no Ocidente. A paródia mantém uma relação de negatividade
com o texto-base, isto é, se produz com o objetivo claro de fazer-lhe oposição.
É à luz deste horizonte
de interpretação que se nos abre em função do pressuposto assumido que
desenvolveremos nosso comentário sobre a significatividade do ressentimento em Das Tarântulas. As duas regiões
semânticas do conceito de ressentimento, a saber, a que recobre um problema do
homem individual, fraco e incapaz de reagir em face das adversidades da vida e
de digerir o veneno produzido pela sua sede de vingança não realizada, e a que
abriga aspectos sociais, entre os quais uma concepção de ‘justiça’ e um modo de
intervenção na dinâmica social, se deixam revelar no trabalho interpretativo,
muito embora seja justamente como fenômeno social e como modus operandi do domínio da moral que o ressentimento, no referido
texto de Zaratustra, se encena.
Representado como um problema da moral, o ressentimento corresponde a uma
vontade de poder que opera em vista do domínio sobre outras vontades de poder.
Os desejos, nota Nietzsche, “em seu delírio tirânico” se disfarçam em palavras
que parecem sinais de virtude, quando na verdade, escondem o desejo de
vingança. Os desejos são tirânicos, porque há vontade de dominar. O texto não dá
margem à dúvida acerca do desejo de dominar, conforme lemos em ““Vingança vamos
praticar e difamação de todos que não são iguais a nós – assim juram os
corações das tarântulas””. (p. 95). E, em tom (quase) escatológico e/ou emblemático
do messianismo cristão, desejam as tarântulas (os pregadores da “igualdade”)
que “o mundo seja tomado pelos temporais de nossa vingança”. (ib.id.).
Dissemos que o aspecto
individual do ressentimento, isto é, sua dimensão fisiopsicológica também se
deixa reconstruir pelo trabalho interpretativo de Das Tarântulas, como se pode ver em “Vingança trazes na alma: onde
mordes, cresce uma crosta negra; com vingança teu veneno faz a alma girar!”
(ib.id.). O desejo de vingança, a inveja que está na origem da frieza e do refinamento
nos modos de ser e agir, o impulso para castigar são referências à dimensão
fisiopiscológica do ressentimento. No entanto, é em torno de certa concepção de
‘justiça’, que – poderíamos dizer – funciona como uma metáfora maliciosa para
vingança -, que o fenômeno do ressentimento nos é apresentado. O Zaratustra de Nietzsche é um intertexto
construído como antípoda da escritura evangélica, embora a retome em sua
estrutura enunciativa. Por sua filiação discursiva com os Evangelhos, pode-se
esperar que a interlocução se constitua em claro ataque ao discurso
moralizador, cuja constituição e desenvolvimento é inseparável (é parte de) das
condições sócio-históricas que culminaram com a vitória do homem do
ressentimento sobre o tipo nobre.
O que querem os
“pregadores da igualdade”? Querem ferir aqueles que detêm o poder e querem universalizar a pregação da morte; é
assim que fazem a justiça: suprimindo a diferença hierárquica. Eles querem
instilar sua vingança. As tarântulas são homens envenenadores; eles estão
plenos de mágoa e inveja, que atuam como fermento que faz crescer o desejo de
vingança (justiça) e faz disseminá-lo por toda a sua constituição fisiológica
cansada. A vingança, isto é, o ressentimento não tolera a diferença: “É a
vontade de igualdade – esse mesmo será doravante o nome para ‘virtude’, contra
tudo que tem poder levantaremos nosso grito”. (ib.id.).
Fazer justiça, para esses
inimigos da vida, é realizar a vingança. A vingança, isto é, o ressentimento, é
um mal contagioso, que precisa ser disseminado por todo o tecido vital. Diferente
é, porém, a ideia de justiça para Nietzsche. A justiça, para Nietzsche, jamais
pode realizar-se como forma de negação da vida. Nietzsche entende estar a
justiça fundada na inerente desigualdade dos homens. Se, na perspectiva do
homem do ressentimento, a atuação das forças antagônicas, em suas guerras sem
trégua, são sinais de degeneração da vida e razão, ipso facto, para a reparação da vida - reparação movida pelo
instinto de vingança; na perspectiva de Nietzsche, ao contrário, quanto mais
forças atuarem mais a vida se torna coesa. A vida são relações conflitivas,
agonísticas entre forças, sendo cada força uma vontade de poder. Assim, cada
força tem de se afirmar e tem de resistir. Em suma, a vida como vontade de
poder implica interação conflituosa entre forças com vistas à superação. A vida
necessita, na visão de Nietzsche, da hierarquia e da oposição entre suas
forças. A vida, pela oposição de suas forças, visa a superar a si mesma: “Que
há luta e desigualdade até na beleza e guerra pelo poder e predomínio (...)”.
(p. 97). Por isso, Nietzsche, reconhecendo que não há vida sem tensão entre
forças, sem intensificação de forças em conflitos, recomenda a coexistência ou
convivência dos inimigos. O antagonismo é inerente ao tecido vital; por isso
“sejamos também inimigos” e “divinamente pelejemos uns contra os outros”
(ib.id.), porque, assim, afirmamos a vida como vontade de poder, a saber,
podemos nos apropriar da alteridade sem anulá-la, podemos nos apropriar de
nossa singularidade pela tensão com a alteridade. O homem do ressentimento
deseja unidade pela supressão da pluralidade; mas Nietzsche nos ensinará que a
vida como vontade de poder realiza a unidade pela integração da pluralidade;
não há unidade fora do múltiplo. Somente nessa integração da unidade ao plural
é que se alcança a intensificação do poder vital (vida).
O modus operandi típico do ressentimento caracteriza uma moral ou um
ideal de justiça, ou de política marcado pelo ódio e pelo desejo de vingança.
Esse modus operandi se expressa como
afirmação da vontade de domínio do mais fraco que pretende tornar-se efetivamente
dominante. No Ocidente, o ressentimento tornou-se dominante, segundo a
interpretação de Nietzsche, com a “rebelião escrava da moral”. Destarte, o
ressentimento passou a ser perigoso não só para o homem cansado, mas também
para os homens saudáveis (e os homens em geral).
Nietzsche identifica dois
fatores que desempenharam um papel fundamental para que homem animal de rebanho
se saísse vitorioso: o primeiro fator é a memória peculiar ao homem do
ressentimento – memória que se prende à expansão de seu mundo interior. O
segundo fator é o tipo de razão que ele cultua e que, em última instância, assume
a forma de sagacidade. Assim, o fraco está estreitamente ligado ao passado,
razão por que sua capacidade mnemônica se acentua. Seja porque ele se volta
rancorosamente para as adversidades do passado, seja porque ele se consome numa
sede de vingança, permanece-lhe vibrante no íntimo a estreita relação com o
passado, o qual jamais o abandona. O passado a que o homem de rebanho tem
acesso pela memória o tortura e torna-se, por isso, determinante do curso de
suas ações.
O forte, por seu turno, é
aquele que esquece. O homem nobre tem, por assim dizer, menos memória, já que
nele o memorizar é equilibrado por sua capacidade de esquecimento. Em casos
extremos, ele sequer se recorda das adversidades que teve de enfrentar e das
injúrias sofridas.
Universalizada, isto é,
estendida sobre aqueles que não sofrem como o homem do ressentimento e que não
são, por isso, seus iguais, a sede de vingança recebe o nome de ‘justiça’. Essa
justiça institucionaliza o princípio de igualdade como massificação. Esse
princípio de igualdade penetra todo o corpo social como um veneno de uma
tarântula penetra sua vítima. No fraco, esse veneno funciona como um anestésico
que lhe possibilita suportar o seu sofrimento. No forte, por outro lado, esse
veneno funciona como um entorpecimento destinado a enfraquecê-lo. Em qualquer
dos casos, persiste o propósito de nivelamento dos homens. Nivelar os homens
pela instilação do veneno da igualdade é produzir o rebanho universal e a forma
de impedir o aparecimento dos tipos diferentes de homem.
_______________________________
[1] NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
Nenhum comentário:
Postar um comentário