
A existência como tarefa e criação
Considerações sobre o desespero em
Kierkegaard
Com este texto, inicio, neste ano de 2015, a produção do
conjunto de novos suspiros da alma. A frequência com que escrevo para publicar
neste blog tem sido cada vez mais embargada pelas flutuações de meu humor, que
não cessam de me alertar sobre a inutilidade desta inveterada prática. É
evidente que escrever me apetece e, não raro, me parece que esse hábito
rivaliza, em termos de importância, com outras atividades necessárias em meu
cotidiano. Isso, contudo, não é suficiente para me dissuadir da certeza de que
os textos que eu escrevo e que eu divulgo, neste espaço virtual, não carreiam
nenhum sentido transformador, não visam a transformar nada no mundo, conquanto
eu esteja convencido de que usar a linguagem é sempre, em todos os casos, agir
sobre o mundo e sobre os outros, com vistas a produzir algum tipo de
modificação em seu estado.
Receio que, se eu me detiver em longas
ponderações sobre meu desânimo costumeiro, que acompanha o labor da escrita,
acabarei por protelar a confecção deste texto. Engana-se o leitor que pensa não
ser custoso para mim construir meus edifícios verbais. Como eu persiga a
perfeição ao longo da atividade de tessitura do texto, isto é, como eu esteja
sempre preocupado em realizar as escolhas mais significativamente adequadas,
despendo uma quantidade considerável de potência orgânica quando me detenho
para decidir entre as possibilidades de realização lexical e sintagmática. Agora
mesmo me assombra o fantasma da escassez verbal.
É chegado o momento de me apressar. Que comece o
trabalho! Ele me tomará uma grande parte do dia!
1. O itinerário
No horizonte de minhas reflexões, que visam a
retornar ao pensamento de Kierkegaard, se topa o interesse por esclarecer o
tema do desespero em sua
antropologia, à luz da qual a existência é pensada em seu devir, em seus
paradoxos.
A essa tarefa que consiste em identificar e
esclarecer, no interior da antropologia de Kierkegaard, devem preceder algumas
considerações com as quais procurarei pôr em evidência a pertinência de uma
série de conceitos que, se não apresentados e iluminados de antemão, dificultam uma compreensão satisfatória do lugar
relacional que ocupa o desespero no desenvolvimento do pensamento
existencialista de Kierkegaard. Por conseguinte, impõe-se-me a urgência de
apresentá-los e esclarecê-los.
1.2.
O irracionalismo
Sören Kierkegaard (1813-1855) é
considerado um dos pensadores que integram o movimento do irracionalismo, marcante no final do século XIX. O irracionalismo
tinha como meta a crítica da supremacia da razão, a qual era entendida como o
único instrumento capaz de estabelecer a verdade, mormente depois de Hegel.
Os pensadores irracionalistas buscavam
reanimar a questão da verdade, tomando como ponto de partida o processo da
existência. Destarte, Kierkegaard afirmou a necessidade de viver uma verdade
que fosse verdadeira para o eu.
Kierkegaard advogava que a existência
humana tem por essência a auto-relação. Essa relação determina o modo de o
homem – o indivíduo humano – estar no mundo. Essa relação se dá em três estádios, designados por Kierkegaard de estético,
na qual o indivíduo assume uma posição de pura exterioridade; de ético, em que ele busca mediar o
exterior e o interior; e de religioso,
caracterizada por uma profunda interioridade, na qual o indivíduo se relaciona
com Deus.
Kierkegaard criticou a falta de
religiosidade do clero da Igreja Luterana e a influência negativa de Hegel no
meio intelectual.
1.3.
O devir do sujeito e a existência como tarefa
Destaco, inicialmente, que, ao se
debruçar sobre o devir real do sujeito, Kierkegaard antecipou e descreveu o
caráter dialético do que os psicólogos contemporâneos denominam de processo de subjetivação. Esse
processo foi pensado por Kierkegaard enquanto ele o vivia. Com efeito, sua
filosofia existencialista, resultando da união da inquietude humana com um
empirismo metafísico, opõe-se radicalmente às nossas contemporâneas “ciências
do homem”.
Ora, para Kierkegaard, não se trata de
pensar a existência como objeto; trata-se, na realidade, de tomá-la como a
origem a partir da qual cada indivíduo humano pensa e age. No homem e para o
homem, existir não se identifica com o ser ou com o possuir uma existência
objetiva, imediata. O homem é o único existente de fato; por isso, ele se
diferencia dos outros entes que têm uma existência empírica e ignoram quem são.
Por outro lado, para o homem (entendido
sempre como individuo, e não como a espécie), a existência é um trabalho, uma
exigência: o homem existe enquanto tem de vir a ser, enquanto tem de
edificar-se. O homem – sempre enquanto indivíduo – é um ente particular
porquanto está adiante de si mesmo, está perpetuamente ocupado consigo, e
interessado por si mesmo. É, ademais, um ente que se projeta para as suas
possibilidades, para o poder ser, embora sempre situado em face de suas opções.
O indivíduo se determina por meio de
seus atos, arrancando-se da imediatidade das coisas, impondo seu ato livre. Por
conseguinte, ele ek-siste, isto é,
mantém-se fora de si mesmo, em seu projeto, na relação com o que é. O existente
é o único ente capaz de existir na abertura ao ser. Isso suscita a pergunta: o
que significa existir para o homem?
Ora, segundo Kierkegaard, a existência,
não constituindo objeto de uma consciência imediata, vai-se revelando
progressivamente no curso do tempo como um apelo a que o existente se realize a
si mesmo na relação com a verdade eterna, que é de ordem ontológica. A
existência, para o homem, é ao mesmo tempo não ser Deus nem ser simplesmente
como os demais entes e coisas que apenas existem na inconsciência da
imediatidade e da coincidência consigo mesmo.
A antropologia de Kierkegaard assenta
no seguinte axioma: se o homem se faz
a si mesmo com liberdade, não o faz a partir do nada. Ora, ele está
numa condição específica, na qual se acha a necessidade de se arrancar de sua
animalidade, determinando para si a tarefa de realizar sua pessoa concreta.
O processo de subjetivação, na
perspectiva de Kierkegaard, consiste num tipo de trabalho ao longo do qual o
homem se faz a si mesmo, tomando consciência do eu que é, de sua liberdade que
o convoca incessantemente a apropriar-se desse eu, a escolher-se, a decidir o
que quer ser.
1.4.
O espírito: a emergência da reflexividade
Lançado no mundo sob a forma biológica
do corpo e de sua repercussão psíquica (a alma), o homem, sob a forma da
imediatidade, precisa desenvolver o espírito,
que é a faculdade de síntese reflexiva.
O homem é, assim, uma síntese entre a
alma e o corpo, e essa síntese não pode ser concebida, se tanto a alma
quanto o corpo não estiverem unidos no espírito.
No esforço por tornar claro o conceito
de espírito em Kierkegaard,
precisarei me ater à definição de existência como cisão entre opostos. Essa cisão precede à tarefa de estabelecimento
da sua síntese. Consoante Kierkegaard, a existência não se dá senão sob uma
tensão insuperável.
Platão já intuía ser a existência
atravessada por um tensão. Ensinava Platão que o homem se compõe de mortalidade
e imortalidade e que ele se esforça por se libertar da finitude, de sua existência,
que é representada pelo corpo mortal. E acreditava que o homem podia fazê-lo,
porque ele é, em sua alma, essencialmente, imortal. Quando, por meio de
Sócrates, Platão assevera que filosofar é “aprender a morrer”, estava a limitar
essa morte ao corpo, já que este era considerado o túmulo da alma ou sua
prisão.
A doutrina cristã se apressou em
acompanhar esse helenismo, quando se afastou de sua origem judaica. Assim é
que, para o cristianismo, o homem não se encontra em casa neste mundo; todavia,
o cristão crê que a fé permite ao homem escapar, de certo modo, ao mundo, na
esperança de que, no cumprimento da história, possa retornar à presença de
Deus.
Sublinhemos que o homem é marcado pela
clivagem entre a alma e o corpo, entre a interioridade e a exterioridade. É
justamente no momento em que se opera essa cisão que irrompe a autoconsciência
reflexiva, ou o espírito. O espírito
dissolve, num primeiro momento, a unidade pré-consciente do corpo com a alma
para, em seguida, unir novamente esta àquele.
Kierkegaard descreve esse estado de
imediatidade recorrendo ao relato do Gênesis. Adão e Eva não conheciam aquela
cisão quando habitavam o Paraíso. A separação entre aqueles elementos opostos –
alma e o corpo – se seguiria à desobediência deles ao mandamento de Deus. O
espírito, como sinal de liberdade, não só leva a efeito a cisão entre a alma e
o corpo, como também o relacionamento entre eles (“e viram que estavam nus”).
É tarefa do homem, doravante, efetuar a
síntese entre o finito (o corpo) e o infinito (a alma), e essa síntese é
precisamente a essência do homem. Kierkegaard reconhece o problema, que não é
mais o do ato de ascensão do espírito a Deus, pela desertificação do corpo ou
do mundo, mas o do como da relação do eu consigo mesmo, a qual constitui a
existência em sua divisão e em seu diálogo com Deus.
Kierkegaard não se cansou de lembrar
que aquela relação não é possível senão pela mediação de seu fundamento comum,
que é Deus. A síntese cristã demanda um esforço que não mais se pauta por um
dualismo: é necessário realizar uma síntese, a qual é uma complexidade
constituída de três termos – a alma, o corpo e o espírito.
A essência do homem consiste em lograr
sucesso nessa relação em cuja base está Deus; por isso, de modo algum, o homem
poderia furtar-se a ela. Kierkegaard não preconiza nenhuma fuga ao mundo e
identifica como fim do homem a apropriação da existência enquanto existência:
aqui e agora, em cada instante.
O espírito só advém com a referida
cisão. O espírito instaura a consciência reflexiva de si. O homem só pode tomar
consciência de seu corpo como corpo a não ser quando tem acesso ao espírito.
Uma observação se nos impõe, antes de
terminar esta seção. Se é certo que a obra de Kierkegaard, conforme deve ter
ficado claro, restitui ao indivíduo cartesiano uma proeminência ontológica, em
contraste com os pensamentos de Spinoza, Hegel e Marx, para quem o indivíduo é
subestimado em proveito do caráter determinístico do todo, não é menos certo
também que Kierkegaard não foi cartesiano, quando se considera a totalidade de
sua obra, que fundou na paixão a confiabilidade epistemológica. Um de seus
epigramas famosos reza que “as conclusões da paixão são as únicas confiáveis”. Kierkegaard
denunciou a carência de paixão em sua época.
1.5.
A angústia, segundo Kierkegaard
Mesmo em estado de inocência, argumenta Kierkegaard, mesmo experienciando a calma e o repouso a que se liga um estado de ignorância, o homem não é animalidade bruta. O espírito, mesmo nesse estado de imediatidade, experimenta angústia diante do nada.
A alma de Adão e de Eva estava em união
imediata com sua natureza. Eles ainda não existiam na modalidade do espírito,
mas tão-só como possibilidade de espírito, tal como sucede com cada um de nós
ao nascer. È apenas no momento em que tomam consciência de sua nudez que o
espírito se faz presente no estado de esboço que cinde a alma e o corpo,
circunstância esta que permite o surgimento da vida interior.
Kierkegaard entende que a angústia
irrompe na ação do espírito que simultaneamente realiza a clivagem e a síntese
entre a alma e o corpo, os quais passam a ser percebidos como separados pela
consciência reflexiva. O homem toma consciência de sua imediatidade corporal e
a vincula à exterioridade. Nesse momento, se experimenta a si mesmo como
interioridade capaz de se determinar. A angústia, segundo Kierkegaard,
prende-se a essa reflexividade nascente, à experiência originária que toca ao
fato de existir, o qual é experienciado como ato de existir. A existência deixa
de ter uma dimensão meramente factual para ser percebida como apelo a que ela
se realize em cada ato, em cada escolha operada pelo indivíduo.
A angústia se apodera da consciência em
face de todos os possíveis. Essa angústia decorre da intuição humana de que
aquela síntese a se realizar, na maioria das vezes, fracassa na própria tarefa
destinada à sua realização. A angústia é, pois, o lugar de emergência do si
mesmo. Ela é desprovida de objeto, diferentemente do medo que o supõe; tampouco
é intencional. Ela é o pathos
em cujo bojo o indivíduo começa a tomar consciência de si mesmo. A angústia se
põe na origem em que o indivíduo, confrontado com seu nada, com o abismo sem
fundo do possível, do virtual, toma consciência de sua situação.
Reforce-se, aqui, a ideia de que a
existência é o indivíduo livre, e não no sentido biológico. Esse indivíduo se
define pelo cuidado com o ser. Ele é o homem que lança seu destino no tempo, no
âmago da finitude e na presença da morte; é o homem que, por decisão sua, pode
perder-se ou ganhar-se, vir a ser ou fracassar. Esse poder de ser e de não ser
o abala profundamente, pois que esse indivíduo se descobre como “eu”. A
angústia é o rugido da liberdade que confere vida à realidade de cada um e que
leva cada um à condição de escolher, de se fazer responsável por si mesmo.
1.6. O eu como relação entre a alma e o corpo
Cumpre-me agora responder à questão O que é o eu para Kierkegaard? Começo
por notar que é a totalidade da finitude que deve relacionar-se com o infinito.
Essa finitude é complexa e estruturalmente fadada ao conflito interior, ao
desequilíbrio entre elementos – alma, corpo e espírito - que se tornaram heterogêneos
por força da consciência e pela divisão que ela, consciência, estabelece entre
a alma e o corpo, a interioridade e a exterioridade.
O eu, segundo Kierkegaard, não é uma
identidade abstrata ou um substrato substancial estático. O eu é,
essencialmente, relação e, sobretudo, relação viva consigo mesmo. O eu é a
reflexividade da relação entre a alma e o corpo, que se desdobra dinamicamente
no tempo, tornando possível a realização da síntese entre o infinito e o
finito, entre o temporal e o eterno, entre a liberdade e a necessidade, entre o
absoluto e o relativo, entre o incondicionado e a condição. Todos esses pares
constituem os polos assimétricos da condição humana.
O eu é a relação entre a alma e o corpo
que se relaciona reflexivamente por meio do espírito. A reflexividade constitui
o eu, que é a singularidade de cada um. Essa reflexividade arranca o indivíduo
à impessoalidade da espécie.
Adverte Kierkegaard que o homem não se
reduz a essa relação. A relação é estruturalmente mais complexa. O eu, enquanto
relação que se relaciona consigo mesma, ou deve ter sido posta por si mesma, ou
deve ter sido posta por outra coisa. Kierkegaard argumenta que o eu é incapaz
de se estabelecer por si mesmo, de modo que ele foi posto por aquilo que, não
sendo causado, é causa de toda a relação. Assim, o espírito se relaciona com o
que é responsável por toda a relação, a saber, com Deus. Segundo Kierkegaard,
resgatar de maneira consciente a relação com Deus da qual procedemos
inconsciente e originalmente é nascer para si mesmo de verdade. Esse resgate é
designado por Kierkegaard como uma espécie de segundo nascimento de um
indivíduo que, depois de enfrentar as agruras espirituais, se sente renovado e
é capaz de se renovar a cada novo dia.
Sucede, contudo, que essa alegria da
renovação não pode ser alcançada sem dor. Há, deveras, uma tensão na
interioridade, já que o eu não é determinado: ele se determina, ou seja, ele é
que se escolhe. Ser determinado é negar o ser eu. Esta liberdade é
responsabilidade, e existir é estar pleno de paixão pela liberdade, é estar
consciente de que cada um de nós é infinitamente responsável pelo que escolhe
vir a ser de modo definitivo. O eu só é eu quando assume sua própria
singularidade por uma decisão moral que consiste em escolher a contingência que
se é, que consiste em fazer da necessidade liberdade, contribuindo para a livre
criação de si mesmo, na relação com a força ontológica verdadeira – Deus.
É oportuno lembrar o drama de
Kierkegaard, que se expressou na forma do desequilíbrio entre o espírito e o
corpo. A educação austera que recebera foi decisiva para a hipertrofia de
espírito. Ainda que ele rejeitasse o asceticismo, acabou por se tornar um
penitente, após deixar uma tumultuária noite de bebedeira, na qual foi lançado
aos braços de uma prostituta por seus companheiros de embriaguez. Essa
experiência representa o ápice da cisão. A lembrança desse trauma lançou-lhe na
alma tormentos.
Dessa experiência traumática resultou
sua convicção de que a vida humana é um dever de encarnação no tempo daquilo
que Deus – a fonte eterna – doa ao espírito. Ele reconheceu que, abandonado a
si mesmo, fracassou. Não soube equilibrar em si o eterno e o temporal, o
infinito e o finito.
O processo de subjetivação, portanto,
passa pelo reconhecimento de que o sujeito existente é, ao mesmo tempo, ser-no-mundo (imanente) e ser-superior-ao-mundo (transcendente).
Ele é uma consciência que se desenvolve progressivamente quando descobre a sua
verdade e procura encarná-la. Assim, existir é simultaneamente devir e ser. É
por isso que a existência demanda a fé que, no fundo, é apreensão progressiva
da eternidade através do tempo.
Para Kierkegaard, acompanhando Hegel, a
fé é a certeza interior que antecipa a infinitude. Ela não se confunde com uma
fuga ao mundo, um enclausuramento numa subjetividade exaltada. A fé é um
esforço para descobrir o sentido da existência, ou seja, para viver uma vida
dotada de sentido. A fé é tanto mais indispensável quanto mais se reconhece que
a questão do sentido constitui um desafio filosófico que dá ao pensamento um
outro interesse que não é o simples conhecimento.
Enquanto confiança, a fé é, por
conseguinte, um caminho para o crescimento no ser, é abertura do tempo à
eternidade. Destarte, é possível ao homem nutrir-se dela para viver da própria
eternidade no tempo. A fé, sem jamais desarrancar o homem de sua condição
temporal, lembra-lhe a sua vocação para a experiência da eternidade.
2. O desespero e suas formas
O percurso que nos conduziu até aqui
foi trilhado com o propósito de assegurar o esclarecimento do conceito de desespero na antropologia
kierkegaardiana.
Retome-se, aqui, a visão segundo a qual
a existência é o aparecimento abrupto da liberdade em face do estado factual da
existência. Existir é encarado, a partir de então, como uma tarefa pela qual o
indivíduo assume a sua liberdade para se determinar a si mesmo no tempo,
nutrindo-se, no entanto, da eternidade, donde procede sua vida.
Deve-se enfatizar este pressuposto
básico: o desespero é uma
característica essencial do ser humano. O desespero é um sentimento que
o indivíduo experiencia em face da escolha de si mesmo.
A primeira forma de desespero liga-se à
experiência de angústia em face do peso da liberdade que tem o sujeito para
realizar sua tarefa mais autêntica, qual seja, a de ser humano, a de realizar a
síntese entre a alma e o corpo. Mas essa síntese não pode ser bem sucedida a um
ponto que se venha a dissipar a angústia. Ora, a angústia é angústia em face do
salto de liberdade para a liberdade, e a liberdade é a essência do espírito.
O desespero decorre dessa
impossibilidade de o homem esquivar-se de sua liberdade, para fugir à angústia.
A existência não se nos apresenta como algo acabado. A passividade é-nos uma
condição também desesperadora.
Outra forma de desespero prende-se ao
receio de fracassar na tarefa de vir a ser. Nesse caso, o homem que quer ser
mais teme não conseguir ser. O desespero é esse não conseguir ser. O desespero
é uma determinação do espírito que se relaciona com o eterno em nós. Vale dizer
que a impossibilidade de desfazer-se do eu é o desespero para o homem. A essa
forma de desespero Kierkegaard chama de pecado.
O desespero é pecado porque é o estado em que se encontra o homem que, em face
de Deus, não quer ser o eu mesmo que é. Kierkegaard vê também no pecado, por
extensão, o afastamento do homem em relação a Deus. O contrário do pecado não é
a virtude, mas a fé. A fé não pode ser provada e não se explica. O pecado por
si mesmo é a luta do desespero.
Se o desespero se vincula ao grau do
desenvolvimento da consciência do eu, ou seja, se é certo que o homem tende a ser mais
desesperado quanto mais consciente de si mesmo estiver, quanto mais o seu eu
estiver desenvolvido, o desespero permanece latente ou inconsciente também
naquele indivíduo cuja consciência é menos desenvolvida. Seu desespero é um
desespero inconsciente. Ele pode passar a vida inteira sem saber que está
desesperado, porquanto não tomou consciência de ser um eu que deve construir-se
a si mesmo em oposição às forças do “destino”. Tal é o caso do esteta, que vive
na inconsciência de seu desespero, entregue inteiramente aos prazeres da
sensualidade.
2.1. O desespero como doença mortal
Recapitule-se que o eu só existe quando
é auto-relação, quando se volta sobre si mesmo e a própria relação assume a
forma de um terceiro termo, de sorte que cada um desses termos passa a se
relacionar com o relacionamento do eu consigo.
Tendo em conta o que se expôs, o homem
pode, então, assumir duas atitudes: pode querer relacionar-se consigo,
independentemente de quem o pôs nessa relação, ou pode não querer
relacionar-se. Quando o homem se nega a relacionar-se consigo, posiciona-se no
domínio da ficção. Pretende, assim, em vão, escapar a si mesmo; ele só poderia
fugir de si mesmo, no entanto, matando-se.
Ora, essa impossibilidade de fugir de
si mesmo produz, no homem, o desespero. Kierkegaard chama a esse desespero de desespero que não quer. Trata-se da
forma de desespero que decorre da impossibilidade de o homem escapar-se a si
mesmo.
Pode ainda suceder que o homem, por
outro lado, deseje entrar em relação consigo, aceitando essa relação, mas
negando-se a reconhecê-la como uma relação fundada por um Outro, isto é, por
Deus. O homem exaspera-se por procurar uma origem para essa relação e o faz
identificando-a com um ídolo ou se divinizando na crença ilusória de que está
na origem dessa relação. O homem crê-se criador de si mesmo. Kierkegaard chama
a esse desespero de desespero de quem
quer ser por conta própria.
O desespero é uma doença mortal,
porque, na condição de afecção, altera continuamente o equilíbrio em que o eu
desejaria instalar-se. Destarte, o eu se manifesta continuamente como um
desequilíbrio que se estabelece na auto-relação entre o que é e o que ignora
que é.
O desespero se caracteriza pela
discordância que se instala nessa síntese interna – síntese do finito e do infinito
– de que resulta o eu enquanto auto-relação. Na origem, não existe tal
discordância, porque o eu é pura possibilidade de ser e de não-ser. A
discordância só existe na síntese, ou seja, a discordância entre o eu e si
mesmo só há na síntese estabelecida pelo eu.
O desespero é a consciência da luta
entre a vida e a morte, que martiriza qualquer indivíduo, ora brutalmente, ora
de modo mórbido, ora ainda de modo tênue, mas sempre acenando com uma presença indicativa
do fim. Afinal, o homem sabe que vai morrer, e esse é seu único e último
projeto determinante.
O homem bem instalado no mundo das
máscaras sociais, na lida cotidiana não percebe a face do desespero. Ele
imagina-se um outro, para poder evadir-se de si. A questão central que se impõe
a Kierkegaard, nesse ponto, é, portanto, o fato de o homem não poder
libertar-se de si. Quem se desespera quer, no seu desespero, ser ele próprio,
quer viver. Mas a vida não permite esperança.
A verdadeira face do desespero é, pois,
o dilaceramento entre a imagem (autossuficiência) que o homem constrói de si e
a sua origem (a de ser síntese). O desespero é a contradição que se depreende
do querer ser ele mesmo e, ao mesmo tempo, não querer ser a sua origem. O
desespero se assenta no solo da liberdade. O homem teme ser absurdamente o
nada.
2.2. A universalidade do desespero
Não há homem livre do desespero.
Sucede, contudo, que o homem é solicitado a viver de modo despreocupado em face
do mundo. O homem vive imerso na banalidade da vida, na qual encontra
satisfação imediata. Nessas condições, ele não se dá conta do desespero.
Tampouco se apercebe da flutuação entre saúde e doença que acenam com a
fragilidade da vida. Ele vive em segredo, e a vida lhe passa desperdiçada.
Kierkegaard nega que a felicidade se
encontre no prazer. A felicidade é uma miragem, enquanto busca de um bem
durável, no plano da finitude e do possível. Todo homem, por natureza, é
desesperado.
2.3.
O desespero e suas relações
O indivíduo humano é uma permanente
relação que se dá através da liberdade. A síntese que é o homem – síntese do
finito e do infinito – não é dada a priori, mas decorre de uma escolha. O eu,
como vimos, é liberdade. Mas a liberdade envolve a contradição entre as
categorias do possível e do necessário.
A consciência de si, no homem, é tanto
maior quanto mais intensa é a vontade: um homem sem vontade é esvaziado do eu.
Kierkegaard situa, pois, o desespero relativamente à dialética entre o finito e
infinito e às categorias do possível e da necessidade, tendo em conta a
consciência.
2.3.1. O desespero e as categorias de finito e do infinito
A análise do desespero, à luz das
categorias do finito e do infinito, implica a compreensão dessa síntese que é o
eu, dilacerado entre o desejo de se tornar concreto e o apelo a ser mais, espiritualmente.
O eu é livre na medida em que se
orienta por conta própria. Entanto, o homem vive oscilando entre o desejo de
viver na concretude da corporeidade e o desejo de ser mais espiritualmente.
Essa oscilação está sempre impregnada de desespero. Todo equilíbrio no tempo é
fugaz.
Na
sua relação com a infinitude,
o desespero leva o homem a escolher viver fora do real. Nesse caso, o indivíduo
se projeta no imaginário e neste se perde, e se torna, assim, privado do seu
próprio eu. Essa projeção no imaginário pode dar-se no domínio do conhecimento,
do sentimento e da vontade. Ele se projeta para fora de si infinitamente.
O homem que vive de imaginação ama
obstinadamente, de modo impessoal e sem vínculo. Ele vive privado de seu
próprio eu. Conhece sem ligar-se ao objeto que estuda. E sua vontade é a de um
eu que nunca realiza seus projetos. O isolamento no campo do imaginário também
leva ao impedimento da relação com Deus.
Na
sua relação com o finito, o desespero
atormenta aquele que não ousa ser plenamente si mesmo, em toda a sua
singularidade, assumindo sua inteira responsabilidade sobre a escolha entre os
contrários. Esse indivíduo se dilui na banalidade do cotidiano, se encarcera no
finito.
2.3.2. O desespero e as categorias do possível e da necessidade
Para que o eu se transforme e chegue a
ser ele mesmo, tem de viver tanto no domínio do finito quanto no domínio do
infinito. Essa necessidade é, fundamentalmente, dramática.
Na
sua relação com o possível, o homem,
como ser de possibilidades, só se realiza no domínio da necessidade. Mas,
sempre que não se dá conta dos limites impostos pela realidade à realização de
seus projetos, acaba por enlear-se nas teias da imaginação e do desejo.
Na
sua relação com a necessidade,
o eu não pode esperar nada além do que o real, visto que, do contrário,
falsifica a sua condição como ser inacabado e carente, que tende ao infinito. A
existência humana tem, segundo Kierkegaard, uma dimensão ou finalidade
espiritual.
2.3.3. O desespero e a categoria da consciência
Consoante observa Kierkegaard, à medida
que o indivíduo vai se desencantando das ilusões próprias ao mundo dos
sentidos, ele vai adquirindo mais consciência da existência nas suas profundas
contradições. Nem sempre, contudo, isso significa libertação. Pode suceder que
essa consciência intensifique o desespero.
Cumpre definir dois tipos de desespero
identificados por Kierkegaard.
a) desespero-fraqueza
(tipo passivo)
Esse tipo de desespero é próprio de
quem sabe o que significa ser existente – ser livre e determinado, mas não
aceita e não deseja ser essa realidade.
b) desespero-desafio
(tipo ativo)
Trata-se do tipo de desespero que afeta o homem consciente de si, que curte a sua solidão e aumenta progressivamente a consciência de seu eu. Para ser ele próprio, abusa desesperadamente da eternidade, inerente ao eu. Mas é precisamente por estar em face da eternidade que esse desespero se aproxima da verdade e, paradoxalmente, dela se vai afastando infinitamente. Isso se explica por que o homem deixar de reconhecer a força ontológica fundadora, em suma, não pode pretender ser como Deus. O indivíduo afetado por esse tipo de desejo quer dispor-se de si, fazer do eu o que quer ser. Como um estóico, um eu ativo, não reconhece nenhum poder acima dele.
Silencio sobre os três estádios em que
se desdobra a existência, momento do pensamento kierkegaardiano contemplado em
outro texto postado neste blog. Remeto o leitor à leitura desse texto, que
trata do tema da angústia em Sartre e em Kierkegaard como um meio de
integralizar sua compreensão.
Levando a cabo esta exposição, cumpre notar que Kierkegaard pretende que
alcancemos a compreensão de que o coração do drama humano repousa sobre a
relação da existência com uma transcendência que torna possível a abertura da
primeira para além de si mesma, ou seja, a existência significa poder de
decisão, possibilidade de ser e de nada, significa existência como dúvida e fé,
como uma ação interior da liberdade que se convoca a fazer escolhas decisivas.
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