domingo, 14 de novembro de 2010

Amo quando me sinto significado no coração do outro

 

                          Amar o próximo como a si mesmo?


No capítulo quinto do livro O mal-estar na civilização (2010), Freud convida-nos a refletir sobre a lição evangélica de sentido universal que, para ele, é anterior ao próprio cristianismo, Amarás o próximo como a ti mesmo. Sua argumentação se estriba em alguns pressupostos que convém conhecermos, pois que eles dão sentido ao desenvolvimento dela. São eles:
a) Os seres humanos são naturalmente agressivos; há uma inclinação natural do homem à agressividade;
b) A vida civilizada ou aculturada constitui um meio de que se serviram os homens para coibir seus instintos agressivos;
Tais pressupostos podem ser confirmados, se atentarmos para os dois excertos a seguir tomados a Freud, no referido trabalho.
“O ser humano não é uma criatura afável e carente de amor que, no máximo, é capaz de se ofender quando é atacada, mas que ele pode contar com uma cota considerável de tendência agressiva no seu dote de impulsos. Por esse motivo, o próximo não é apenas um possível objeto sexual, mas também uma tentação para se satisfazer nele a agressão, explorar sua força de trabalho sem recompensá-lo, usá-lo sexualmente sem seu consentimento, apropriar-se de seus bens, humilhá-lo, causar-lhe dor, torturá-lo e matá-lo”.
(p. 124)
“A cultura precisa fazer de tudo para impor limites aos impulsos agressivos do homem, para deter sua manifestação através de formações psíquicas reativas”
(p. 125)
Freud, ao cabo deste último excerto, cita o famigerado pensamento do filósofo inglês Hobbes – “O homem é o lobo do homem”, com vistas a avalizar a sua tese. O autor também nos lança um desafio, ao nos perguntar:
“quem, a partir de todas as experiências da vida e da história, terá coragem de contestar essa máxima?”
(idem).
Decerto, a História da humanidade está repleta de exemplos do poder destrutivo dos instintos agressivos dos seres humanos; escusa elencá-los; mas também não rareiam os casos em que são patentes os sentimentos de caridade, de filantropia, de amor desinteressado. Poderíamos argumentar que a perspectiva de Freud é reducionista ou unilateral. Sucede que o que está em questão aqui é: por um lado, a crença de Freud em que a agressividade está alicerçada na estrutura psíquica humana; portanto, essa agressividade é universal; por outro lado, a crença em que nossos instintos agressivos são domados mediante os mecanismos repressores e disciplinadores da cultura. Na perspectiva de Freud, as práticas de amor são experiências a que somos induzidos, com repressão. Destarte, segundo o psicanalista
“(...) o emprego de métodos que têm o propósito de estimular os homens a identificações e relacionamentos amorosos de meta inibida, daí as limitações da vida sexual e daí também o mandamento ideal que ordena amar o próximo como a si mesmo, e que realmente se justifica pelo fato de nenhuma outra coisa se opor tanto à natureza humana original”.
(p. 125)
Enquanto escrevo, o Fantástico exibe reportagens sobre casos de agressão a idosos e a bebês (estes últimos são vitimados, não raro, pelo próprio pai). Em outra ocasião, assisti, pela televisão, a grupos de estudantes desferindo socos e pontapés uns nos outros, numa cena de selvageria lastimável . Certamente, esses fatos constituem fortes argumentos para validar a tese de Freud; mas, ainda assim, devemos levantar uma questão: os homens são, como Freud acreditava, naturalmente, agressivos ou, senão toda, grande dose de sua agressividade poderia ser colocada na conta da sociedade? Essa é uma questão que o autor nos suscita. Deixemo-la em aberto, por ora.
Volvamos ao amarás o próximo como a ti mesmo e nos detenhamos na interpretação que Freud faz dessa máxima. De um modo geral, o argumento de Freud consiste em fazer ver que o amor é um bem muito valioso que não pode ser desperdiçado. Para Freud, a consciência de que entre mim e o outro há uma relação filogênica, ou seja, de que ambos somos seres humanos, ambos compartilhamos da mesma dignidade humana, não é suficiente para que eu possa amá-lo. Escreverá Freud:
“O meu amor é algo valioso para mim, que não devo desperdiçar sem prestar contas. Ele me impõe deveres, que devo estar disposto a cumprir com sacrifício. Se eu amar uma pessoa, ela deve merecê-lo de algum modo (...). Ela o merece se, em aspectos importantes, for tão parecida comigo que eu possa amar a mim mesmo nela; ela o merece se for mais perfeita do que eu, de modo que eu possa amá-la como ideal de minha própria pessoa; tenho de amá-la se for filho de meu amigo, pois a dor de meu amigo, quando algum sofrimento o atinge, também seria a minha dor, e eu teria de partilhá-la”.
(pp. 119-120)
O autor preconiza que não podemos amar um estranho, alguém com quem sequer temos afinidade, com quem sequer compartilhamos uma história afetiva, experiências de sentimentos de benquerença. Convém destacar dois aspectos na argumentação de Freud, como fora desenvolvida no excerto acima: por um lado, parece-me clara uma disposição narcísica para manifestar amor, ou seja, o que amo não é o outro, o que procuro amar no outro não são as suas qualidades, os seus atrativos, mas a mim mesmo refletido nele; por outro lado, de maneira paradoxal, a disposição para amar é motivada por um sentimento de solidariedade, como no caso do filho do amigo, a que o autor se referiu.
O cenário que nos apresenta Freud é caracterizado pelo egoísmo, pelo individualismo: o estranho, segundo o autor, antes de merecer amor, merece desprezo e mesmo ódio, visto que ele mesmo não parece demonstrar amor por seu “próximo”. Os homens, na perspectiva de Freud, tendem à imoralidade; estão sempre dispostos a tirar proveito de alguma situação que se lhes apresente favorável. Não obstante sua posição, o autor confessa-nos:
“Se esse grandioso mandamento dissesse “Amarás o teu próximo como o teu próximo te ama”, eu não protestaria”.
(pp. 121-122)
Aqui, ele abre-nos mais um caminho longo para cultivar férteis reflexões, pois que, implicitamente, nos diz que amar implica reciprocidade. Cabe lembrar que, até o momento, sequer levantei a dúvida acerca do conceito de amar entrevisto na máxima em torno da qual venho desenvolvendo este discurso. Decerto, não se trata do amor sexual, tampouco do amor maternal ou paternal. Trata-se de um amor que pode ser definido como um sentimento que nos inclina a fazer o bem e jamais prejudicar quem quer que seja. A medida desse amor se avalia na quantidade de lágrimas que derramamos, caso o objeto de nossa benquerença morra. Decerto, a dor que sinto pela morte de um mendigo ou de qualquer outro estanho não é comparável à dimensão da dor que experimento na morte de um ente querido. Há laços afetivos cuja intensidade e solidez a máxima do Amarás o próximo como a ti mesmo não é capaz de recobrir.


O social está em nós


Em face do universo frio e insensível de Freud, o que dizermos ao nos deparar com as seguintes palavras, colhidas do livro A sociedade individualizada (2008), de Zygmunt Bauman?


“Aceita”, “compartilha”, “dignifica” – dignificada pelo ato de compartilhar e pelo acordo franco e tácito de respeitar é o que é compartilhado. O que chamamos de “sociedade” é um grande aparelho que faz apenas isso; “sociedade” é outro nome para concordar e compartilhar, mas também o poder que faz com que aquilo que foi acordado e compartilhado seja dignificado”.
(p. 8)




Decerto, não é possível existir sociedade sem acordo, sem compartilhamento; ao mesmo tempo, cabe à própria sociedade dispor de mecanismos que garantam a sustentação desse acordo. Bauman nos ensinará serem as sociedades “fábricas de significados” (idem), donde se segue que todas as nossas experiências sociais são fundadas em significados e se orientam por eles. Nossa condição humana sofre, contudo, de um embaraço: por um lado, somos arremessados a uma sociedade que veio antes de nós, ou seja, que pré-existia à nossa própria existência e que continuará a existir após a nossa morte; por outro lado, nossa condição é autotranscendente; somos seres que se inclinam à transcendência e que não encontram outro modo de viver, senão pela busca de transcendência, que consiste numa forma de desafiar a própria vida. Diferentemente dos animais, somos seres conscientes da morte; sabemos que vamos morrer. Não há possibilidade de sentido e de felicidade fora da sociedade. Se, por um lado, ela se nos apresenta como uma entidade supra-individual infensa à realização de nossa felicidade, não há possibilidade de experienciá-la fora de seus limites. Nossa felicidade depende, fundamentalmente, dos vínculos sociais.
Em Amor Líquido, no capítulo intitulado de Sobre a dificuldade de amar o próximo, Bauman retoma a reflexão de Freud sobre a máxima do Amarás o próximo como a ti mesmo e a orienta no sentido de enfatizar o amor a si mesmo. Vou apresentar, de imediato, a tese do autor, que se exprime nas palavras seguintes:


“(...) para termos amor-próprio, precisamos ser amados. A recusa do amor – a negação do status do objeto digno do amor – alimenta a auto-aversão. O amor-próprio é construído a partir do amor que nos é oferecido por outros. Se na sua construção forem usados substitutos, eles devem parecer cópias, embora fraudulentas, desse amor. Outros devem nos amar primeiro para que comecemos a amar a nós mesmos”.
(p. 100)
(grifo meu)



O amor-próprio, segundo Bauman, constitui um fundamento para a própria sobrevivência humana. O autor nota que os animais não precisam dele para viver. É esse fundamento que torna a vida humana diferenciada. Assim, fazendo eco a Freud, escreverá: “o preceito do amor ao próximo desafia e interpela os instintos estabelecidos pela natureza, mas também o significado da sobrevivência por ela instituído, assim como o do amor-próprio que o protege” (p. 99).
Para Bauman, “aceitar o preceito do amor ao próximo é o ato de origem da humanidade” (p. 98). Está clara a importância conferida pelo autor à moralidade. Lançando outro olhar sobre o preceito, Bauman buscará nele a expressão da importância de considerar “a singularidade de cada um” (p. 101).
Depois de encerrar o capítulo anterior, ensinando-nos sobre a influência reificadora do mercado consumidor no modo como experienciamos nossas relações afetivas, o autor nos convida a pensar no valor do amor como ingrediente indispensável à força de vida, à vontade de sobreviver, de existir. Suas ideias vêm em socorro de minha tese, já esposada em outros textos, segundo a qual amar é estar vulnerável. Para mim, há dois ingredientes que tornam o amor um sentimento que vai na contramão de qualquer pretensão individualista: a reciprocidade e a vulnerabilidade. Lêem-se as palavras de Bauman:


“Se os outros me respeitam, então obviamente deve haver “em mim” – ou não deve? – algo que eu lhes posso oferecer. E obviamente existem esses outros – não existem? – que ficariam satisfeitos e gratos por isso lhes ser oferecido. Eu sou importante e o que penso e digo também é. Não sou uma cifra, facilmente substituída e descartada. Eu “faço a diferença” para os outros além de mim. O que digo e sou e faço tem importância – e isso não é apenas um vôo da minha fantasia. O mundo à minha volta seria mais pobre, menos interessante e promissor se eu subitamente deixasse de existir ou fosse para outro lugar”
(p. 101)



O prazer de sentir-se amado decorre da consciência de que nossa singularidade é reconhecida, admirada e desejada pelo outro. É a consciência de que fazemos a diferença na vida daquele que é nosso objeto de amor que nos torna felizes.
A proposição de Bauman – vale reiterar, segundo a qual só posso amar a mim mesmo na medida em que me sinto amado pelo outro – semeou-me algumas ideias. Uma delas é que o autor lança-nos um desafio; deveras, um desafio à ideologia individualista que reza a necessidade de valorizar a si mesmo em detrimento do outro, de reservar a si mesmo o posto mais alto das prioridades da vida. Sucede que, em matéria de amor, não há espaço para a centralidade do ego. Se todos assumirem o amor-próprio como um fundamento para se precaver contra as desilusões das experiências amorosas, viveremos uma vida emocionalmente miserável; cheios de brio, encouraçados num sentimento de auto-suficiência, fazendo nossas emoções orbitarem em torno do ego, mas arrastando uma existência atolada num lamaçal de solidão.
Não é possível amar com armadura; para amar, é preciso despir-se; não de nossas roupas, que vestimos e retiramos com facilidade; mas dos sentimentos que nos enganam, pois que semeiam em nossa mente a crença de que evitar os vínculos afetivos basta; no entanto, não basta, é como uma anestesia, seu efeito há de passar. Superado o estado de anestesiamento, sentimo-nos dispostos a beber da fonte inesgotável do amor, pois só ele é capaz de nos restituir a alegria inocente e cândida, que residia em nossos sonhos de infância.
A pessoa cheia de si é vazia e se perde em seu vazio, porque, simplesmente, se esquiva ao fato de que nossa condição de seres mortais e de seres desejosos de sentido impõe-nos o desafio da transcendência. Estar consciente da morte é também estar consciente do envelhecimento – uma das vias de acesso a ela. Quem haverá de querer envelhecer sozinho? Se a morte é inevitável e inexorável, e se ela arrebanhará a todos, inclusive aqueles a quem tanto amamos e com os quais compartilhamos nossas experiências afetivas mais densas, mais significativas, mais viscerais, que homem ou mulher não desejará percorrer o breve caminho de sua existência encontrando, em toda noite, fria ou estrelada, enluarada ou sombria, nos braços de um amor, o conforto de sua lassidão, o recôndito de sua angústia, o jardim florido de sua tristeza?
Decerto, aprendo a amar a mim mesmo, porque fui amado por outros, com quem construí uma existência significativa. Esses outros são, evidentemente, nossos pais, nossos irmãos, nossos tios; enfim, todos aqueles que compõem a nossa família. Amo-me, porque fui amado nos seios de minha mãe, porque fui neles nutrido, porque eles proveram meu alimento e dele aproveitei a energia necessária para que eu suportasse uma existência que não fora escolhida por mim.
Bauman nos leva a pensar sobre o amor que não se encerra nos limites do ego, sobre um sentimento transcendente que proclama a comunhão de singularidades; o amor pressupõe dois; se concentrado no desejo centrípeto do ego, converte-se num sentimento ardiloso, pois que nos convence da ideia de que o regime ditatorial do ego nos basta.
O amor talvez seja isto: uma nau que nos permite navegar nos mares da existência cujas ondas se derramam e beijam a morte. E não queremos que esse beijo sele uma vida desencantada!

2 comentários:

  1. Olá Bruno!
    Mais um belo texto, que traz inúmeras reflexões e faz questionar nossas próprias inquietudes...
    Amar é isso... doação, entrega, amparo, cuidado.
    Bjusss

    "O amor verdadeiro começa lá onde não se espera mais nada em troca."
    (Antoine de Saint-Exupéry)

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  2. sabe... questiono muito essa questão do amar ao outro e amar a mim.
    muitas vezes, cheguei a pensar que me amava de menos - porque me amavam pouco? - e que, na verdade, nem ao outro eu amava!

    quando comecei a ler, não tinha ideia dessa relação de 'amar a si mesmo pelo amor do outro [que nos é dedicado]'. achei muito curiosa...

    mas, no fundo, no fundo, acredito mesmo é que só amamos o outro [e não a nós mesmos] porque fomos amados! [embora - como consequência/ônus? - amemos alguém que pode não nos amar...]
    mas isso, deixa para lá.

    beijo, querido
    obrigada pela riqueza do blog - sempre!

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