quinta-feira, 24 de setembro de 2015

O caso da "superfluicidade" - considerações morfológicas

                      

                     


                            O uso e a gramática
                                  Desfazendo alguns equívocos

Ontem, numa aula de filosofia, por motivações discursivas, a professora fez uso, com manifesta hesitação, da forma “superfluidade”. Em certo momento de sua fala, ela se referia à “superfluidade da vida”. Imediatamente, um colega interveio para “resolver” a questão, que, àquela altura, poderia estorvar o curso normal da aula, por interessante que fosse (para mim, certamente!). O colega se apressou em reparar o “equívoco”, dizendo que “o “correto” é “superfluicidade”. Imediatamente estranhei, mas preferi manter-me calado, pois, afinal, a aula tinha de prosseguir. A professora deu-se por satisfeita, e o colega, depois de sentenciar sua profunda sabedoria linguística, pôde descansar em sua satisfação. Mas o que aprendi, nestes anos de dedicação aos estudos linguísticos e filosóficos, é que também os linguistas, tais como os filósofos, são indivíduos “insatisfeitos”, “irriquietos”; eles não se contentam com soluções simples, máxime quando claramente equivocadas. Cabe, então, considerar os fatos.
“A vida é supérflua”, dizia a professora. A certa altura, ela precisou formar um correlato morfológico a partir do adjetivo “supérfluo”. Lançando mão de seu conhecimento linguístico intuitivo, formou “superfluidade” a partir de “supérfluo”. É possível demonstrar que a forma “superfluidade” é a forma verdadeiramente usual e rejeitar como usual a forma “superfluicidade”, como recomendada pelo colega? Veremos que a resposta é “sim”.
A língua portuguesa dispõe do sufixo “-idade”, que entra na formação de substantivos abstratos que denotam qualidade ou estado a partir de adjetivos. São exemplos de formações em “-idade”: raridade, honestidade, sinceridade. Tais formas derivam, respectivamente, de “raro”, “honesto” e “sincero”. Esse padrão derivacional é extensivo à forma “supérfluo”, a partir da qual se forma “superfluidade”, pelo acréscimo do sufixo “-idade”. O acréscimo de “-idade”, nas formas consideradas, se acompanha de uma modificação morfofonêmica, já que a vogal temática “-o”é suprimida. Mas modificações desse tipo são  sistemáticas quando do acréscimo de sufixos. O que se dá com a formação “superfluicidade”? Em primeiro lugar, não cabe dizer que ela é “errada”. Também não se pode dizer que ela seja agramatical, porque o aparecimento do fonema /s/ (na escrita, marcado com “c”) é sistemático quando se anexa a certos adjetivos o sufixo “-idade”. Em que condições estruturais, é esta a questão que convém examinar.
Sem mais rodeios, as formas adjetivas terminadas em “-z”, quando recebem o sufixo “-idade”, sofrem alteração morfofonêmica na base. Fonologicamente, as formas “feliz”, “sagaz” e “capaz”, por exemplo, são transcritas como /feliS’/, /sagaS’/, /KapaS’/. Em final de sílaba, “z” tem som de /s/. Esse /s/ é uma fricativa alveolar surda. O fonema /s/ difere de /z/ pelo traço [sonoridade], presente em /z/, e ausente em /s/. Façamos o mesmo procedimento que fizemos com as formas anteriores: vamos anexar às formas “feliz”, “sagaz” e “capaz” o sufixo “-idade”. O resultado dessa operação é “felicidade”, “sagacidade”, “capacidade. Veja-se que, terminando o adjetivo em “-z”, o acréscimo do sufixo “-idade” produz uma forma terminada em “(c)idade”. Ora, a ocorrência da letra “c” é um fato de escrita, mas, fonologicamente, ela marca o fonema /s/, que vimos presente nas formas derivantes /feliS/, /sagaS/, /KapaS/. A alteração para “(c)idade” decorre da necessidade de preservar a sibilante surda /s/ presente nas formas derivantes. Posto isso, há uma condição fonológica para a formação em “-(c)idade”, a saber, a ocorrência de /z/ em sílaba final de palavra. Ora, o adjetivo “supérfluo”, como facilmente se vê, não atende a essa condição, donde não haver a necessidade de formar “superfluicidade” a partir de “supérfluo”.

Que os falantes nativos tenham a propensão a ser naturalmente linguistas é um fato inegavelmente atestado pelos verdadeiros linguistas, isto é, pelos que são linguistas de formação. Tanto aqueles quanto estes se valem de sua intuição linguística quando do uso de sua língua materna (no caso dos linguistas, essa  intuição está impregnada de pressupostos teóricos; é, não raro, iluminada por saberes explícitos sobre a estrutura e o funcionamento da linguagem). O recurso a essa forma de intuição é patente nos momentos em que há hesitação na escolha entre uma forma e outra, como no caso em que devemos escolher entre “preciso de fazer o trabalho” e “preciso fazer o trabalho”, ou ainda, quando a dúvida é mais tenaz, temos de escolher entre “supusesse” e “suposse”, num contexto sintático como “se ele____, (então)...”. No primeiro caso, o falante nativo, não sendo linguista, se valerá unicamente de sua intuição linguística calcada sobre a prática comum de sua língua num dado estado sincrônico, de modo que, provavelmente, escolherá a opção “preciso fazer o trabalho”, muito embora não haja nada no sistema gramatical da língua que desautorize o uso da preposição “de”, quando se articula o verbo “precisar” (ou “necessitar”) a um infinitivo. Notemos que as duas variantes são gramaticalmente aceitáveis, ou seja, são previstas pelo sistema de regras que governam os arranjos sintagmáticos da língua portuguesa, muito embora a ocorrência daquelas variantes pareça correlacionar-se com variáveis sociolinguísticas. No segundo caso, os falantes nativos, ao menos os mais escolarizados, poderão optar por “supusesse” com base no conhecimento, não necessariamente declarado, da constituição morfológica dessa forma, que tem na base a forma “pusesse” (pretérito imperfeito do subjuntivo) do verbo “pôr”. Aqui se impõe uma advertência que é ignorada pelos falantes nativos que não são linguistas de formação: a sistematicidade da língua é produto do uso. Dito de outro modo, a gramática, compreendida como ‘sistema de regras’, emerge do uso da língua, se constitui pelo uso - que é social - da língua. Trata-se, pois, de uma evidência que tem importantes implicações para o tratamento teórico da linguagem e para a lida intuitiva com ela no dia-a-dia. Mesmo não pretendendo enumerar tais implicações, é importante dizer que não há, como queria certa tradição linguística, de um lado a “estrutura da língua”; e, de outro lado, o uso da língua. Na verdade, a estrutura da língua é fixada pelo uso, o qual é sempre governado por regras, quer sejam elas gramaticais, quer sejam elas sociais. É o uso social e histórico da língua que produz as cristalizações que dão a evidência de que a língua é dotada de uma estrutura interna, isto é, de um sistema de unidades e de regras - uma gramática.
No entanto, é justamente porque esse uso é social, porque a língua é uma realidade social, que o uso não estabelece, de uma vez por todas, um sistema rígido ou inflexível de regras e unidades para a língua; esse sistema, que é produzido por força do uso social que fazemos da língua, é flexível, maleável, suscetível a reconfigurações, no entanto, previsíveis pela própria regularidade do uso. Ao produzir a gramática, ou seja, o sistema de regras e unidades da língua, o uso engendra, ao mesmo tempo, o domínio das atualidades e o das virtualidades. Antes de prosseguir, preciso sublinhar que, ao dizer que o uso “fixa a gramática”, não quero dizer que estabelece para além de si um sistema acabado cuja existência lhe é independente. A gramática, como já disse, emerge do uso, o que significa dizer que ela está em constante construção – a língua mesma está em constante construção, em constante fazer-se – no/pelo uso. Essa compreensão de gramática que se faz pela prática da língua é coextensiva à compreensão de que não existe língua fora do uso. Ora, a língua, enquanto sistema de signos abstrato, só tem lugar no trabalho teórico. A língua não se encontra nem nos dicionários (que só listam seus lexemas), nem nos manuais de gramática (que descrevem sua constituição e fixam seus padrões de uso). Também não se identifica com as frases que se tomam isoladamente para fins pedagógicos de análise de sua estruturação. A língua, portanto, é aquilo que os falantes fazem ao interagirem socialmente por meio de arranjos de signos de extensão e complexidade variáveis em contextos sociais determinados. A língua é uma atividade intersubjetiva, uma prática social governada por um conjunto variado de regras gramaticais e sociais.
Pois bem. Disse que o uso engendra os domínios das atualidades e das virtualidades. Cabe, agora, esclarecer o que significa isso. O uso fixa os padrões linguísticos. Tais padrões são atravessados pela tensão entre a flexibilidade e a inflexibilidade. A gramática, que emerge do uso, que é produto do uso, se constitui de domínios de regras, de padrões cuja flexibilidade se estende por um continuum em que é possível verificar os padrões inflexíveis, os quais constituiriam, por assim dizer, o “núcleo duro” da gramática, e os padrões claramente flexíveis. Entre esses dois extremos, há todo um espectro de padrões suscetíveis a restrições. Por exemplo, o falante nativo de português não dispõe da liberdade para usar o artigo depois do substantivo, como em “menino o”, tampouco pode usar a preposição “para” (ou outra qualquer), para introduzir o complemento verbal do verbo “gostar” (cf. * Eu gosto para chocolate). Ele também não pode suprimir a preposição “de” regida pelo verbo “gostar”, produzindo algo como “Eu gosto chocolate”. Esses padrões que não admitem variação, que não são flexíveis constituem, no entanto, parte do conhecimento intuitivo, quase inconsciente, que os falantes têm de sua língua materna. No extremo oposto, onde se situam os padrões variáveis, flexíveis, o falante nativo dispõe de alguma liberdade, senão vejamos. O falante de português pode escolher, tendo em vista influências contextuais, entre o uso de “Esse assunto é entre eu e você” e “Esse assunto é entre mim e você”. A tendência comum de coibir a variação inerente ao uso da língua não deixará de questionar a possibilidade de escolha – é verdade – formulando a pergunta: “Mas “entre eu e você” não é errado? (porque as gramáticas normativas nos ensinam que tal construção é errada; porque, na escola, o professor disse que é errada). A despeito disso, esse caso ilustra um padrão linguístico variável, flexível previsto pela gramática da língua que o uso fixou.
Os exemplos da posição do artigo e da regência do verbo “gostar” estão entre os casos de combinações que simplesmente não fazem parte da língua, o que significa dizer que não fazem parte do uso da língua, o que significa dizer que são simplesmente o tipo de coisa que nenhum falante nativo de português, independentemente do grau de escolarização, de sua classe socioeconômica faria, porque a anteposição do artigo ao substantivo (cf. o menino/ a bicicleta, a pipa) e o uso da preposição “de” com o verbo “gostar” (cf. gostar de chocolate) são já sabidos pelo falante nativo de português, são manifestações de sua competência linguística, de seu conhecimento intuitivo das regras de formação de enunciados do português. Ninguém ensina isso a ele.
O exemplo do “entre mim e você” e “entre eu e você” está entre os casos de padrões flexíveis. Eles se situam no domínio das atualidades do sistema. Os estudiosos - e os falantes nativos em geral - constatam a ocorrência de tais formas o tempo todo nas práticas de uso da língua.
Falta ainda apontar exemplos de padrões linguísticos que recobririam o domínio das virtualidades do sistema da língua, ou seja, daqueles padrões que, embora não sejam atualizados no uso, verificados no uso, não deixam de ser previstos pelo uso, ou pela gramática ou sistema de regras da língua. Os processos de formação de palavras fornecem bons exemplos de padrões que, embora constitucionalmente possíveis, não são usuais (o que não significa que, não havendo alguma restrição de ordem estrutural, não possam se tornar usuais). Vejamos alguns exemplos.
Tomem-se as formas “fixação” e “aleitamento”. Trata-se de formações usuais no português. Qualquer falante nativo as reconhece como bem-formadas. A descrição dessas formas se elucida como se segue. O sistema da língua dispõe dos sufixos “-ção” e “-mento” que servem à formação de substantivos nos quais se aproveita a noção de ação do verbo derivante na forma nominal derivada. Assim, com as formas “fixa-ção” e “aleita-mento”, categorizamos o evento ou processo verbal sem referência ao tempo, modo,  às pessoas envolvidas, etc. Importa ver que, em “fixação”, não há qualquer restrição estrutural que desautorize a ocorrência de “fixamento”. A única razão para que “fixamento” não ocorra é que já há disponível a forma “fixação” no uso da língua. A despeito de sua não-ocorrência, a forma “fixamento” constitui uma virtualidade do sistema da língua, ou seja, a forma “fixamento” é prevista pelo sistema de regras morfológicas do português. Temos também a forma “mapeamento” e, por isso, dispensamos o uso da forma “mapeação”, o que não significa dizer que “mapeação” não seja bem-formada e não esteja, por isso, prevista pelo sistema de regras. Mas a língua deve operar de modo a preservar sua dinamicidade e flexibilidade, evitando a sobrecarga da memória dos falantes. Por isso, exceto quando há especificidade estilística ou semântica de uso, quando dispomos de dois sufixos que satisfazem as condições de um mesmo processo de formação, a escolha por um deles implica a desnecessidade de uso do outro. Para “martelar”, temos as formas “martelagem” e “martelação”. Mas, em “martelagem”, o sufixo “-agem” especifica uma técnica da metalurgia; em “martelação”, forma comum nas variedades coloquiais, o sufixo “-ção” marca intensidade na repetição do ato de martelar. Os sufixos “-agem” e “-ção” se anexam a uma mesma base verbal, mas o que disso resulta comporta uma especificação semântica. Vejam-se também os casos de “jornalista” e “jornaleiro”.
Já, na forma “aleitamento”, a ocorrência do sufixo “-mento” é condicionada pelo processo de parassíntese que incidiu sobre a base. O radical primário é “leite”, do qual se derivou, por parassíntese, ou seja, pelo acréscimo simultâneo de um prefixo e um sufixo à base, a forma “aleitar”. Essa forma derivada constitui o radical secundário que dá origem à forma “aleitamento”. O sufixo “-mento” é a forma sistematicamente escolhida para as nominalizações a partir de bases formadas por parassíntese (cf. enobrecer/ enobrecimento; encarecer/encarecimento/ amolecer/amolecimento). Há, portanto, nesse caso, uma restrição estrutural: uma base previamente formada por parassíntese, que impede a anexação do sufixo “-ção”. Essa restrição estrutural é, em última instância, fixada pelo uso.
A título de conclusão, é bom desfazer alguns equívocos bastante comuns:

1o equívoco: supor que, pelo simples fato de uma forma não se verificar no uso da língua, deve-se considerá-la como não pertencente à língua, como inexistente. O próprio uso, ao fixar o sistema, produz também as condições de possibilidade de ocorrência de formas. Há, na língua, por isso, domínios de virtualidades. Formas como “livração” e “desfeliz” só  fere as sensibilidades porque o uso consagrou as correspondentes “livramento” e “infeliz”.

2o equívoco supor que os dicionários são autoridades soberanas no que diz respeito ao que é usual. Ora, os dicionários não registram todas as formas de uso da língua. A língua varia, muda, e os dicionários estão sempre atrasados em relação à produtividade lexical de uma língua, em relação à deriva da língua.

3o equívoco supor que os padrões que se situam no domínio das virtualidades não pertencem à língua. A rigor, isso não é verdade. O domínio morfológico-lexical das virtualidades recobre as formas que, embora não usadas, são previstas pelo sistema de regras – a gramática – da língua. Essas formas existem como virtualidades, porque se prestam a uso, atendem às exigências previstas pela gramática, a qual, como procurei argumentar, emerge do uso, é produto do uso. A língua, portanto, como sistema de signos, só pode ser abstraída do uso em condições teóricas.

Observação final



Outro equívoco eu ouvi a um professor que se referia ao fato de a Linguística pensar/trabalhar a palavra (o signo) sempre desvinculada do contexto de uso. Isso só é parcialmente verdadeiro, segundo uma reconstituição de sua história. Na verdade, já há muito não se admite fazer linguística com base no pressuposto de que a língua existe em si e por si mesma como um sistema de signos abstrato. A Linguística moderna surgiu, é verdade, com Saussure, a partir da publicação de seu Curso, em 1916, tendo como um de seus axiomas a existência formal da língua independente do contexto de uso; mas houve revoluções teórico-metodológicas no interior da Linguística desde então. 

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