quinta-feira, 30 de maio de 2013

"Viver acima de tudo é necessário"



A Morte de Deus
Ou o seu reaparecimento?

O meu empenho, na produção deste texto, será o de aproximar a filosofia da vida. Este texto deve ser visto como um ensaio, e não como um artigo filosófico. Meu esforço consistirá em reduzir a formalidade linguística tanto quanto possível. Se eu conseguir com que, ao final da leitura, o leitor veja este texto como expressão da fórmula dos antigos segundo a qual “filosofar é aprender a viver”, já me darei por satisfeito e contente. Não escrevo do lugar em que se situaria um filósofo profissional, mas de um filósofo-aprendiz e dedicado ao exercício do próprio filosofar. Escrevo como um aprendiz de filósofo. O aprendizado é a meta de minha escrita. Ao escrever, eu reelaboro o que aprendi e reaprendo, ou mesmo desaprendo para aprender. A norma é o prazer na aprendizagem. A meta – eu repito – é sempre aprender.
Então, neste texto, eu retorno a Nietzsche. Eu revisitarei sua filosofia, sem pretender recobri-la totalmente. Meu ponto de partida é o seu postulado segundo a qual “Deus está morto” (que aparece em A Gaia Ciência e em Assim falou Zaratustra). Tomo para ponto de ancoragem de minhas reflexões a morte de Deus enunciada, ou melhor, retomada e reelaborada por Nietzsche. Até onde pude entender, a ideia de que Deus está morto já estaria, tacitamente, presente no pensamento dos modernos anteriores a Nietzsche, pelo menos desde o século das Luzes (XVIII). Mas o que é novo em Nietzsche é a sua compreensão da extensão do significado da expressão “Deus está morto” – extensão e profundidade, eu diria. Nisso consiste o que entendo por reelaboração da questão da morte de Deus, empreendida por Nietzsche.
Mas, antes de atacá-la, preciso dizer também que ela se prende a outros conceitos nietzschianos, como o do “além-do-homem” (traduzido por alguns especialistas comumente como “super-homem”) e do Eterno Retorno. Mas não para por aí. A morte de Deus também leva-nos a fazer incursão no seu projeto de “transvaloração de todos os valores”. No fundo, a morte de Deus implica um olhar sobre os valores tradicionais que precisam ser superados e, mais ainda, sobre a gênese dos valores. O problema que ela suscita é também o problema da verdade. A verdade, assumida pelos antigos gregos como um valor metafísico, passará à categoria de ficção, de ilusão, de metáfora em Nietzsche. Se Deus era a verdade e se a razão sempre foi a condição para alcançar a verdade, uma vez morto Deus, a verdade carece de fundamento e a razão passa a atrair sobre si muita suspeita como um caminho para atingir alguma verdade. Mas não vou me apressar.
É preciso, antes de prosseguir, situar Nietzsche. É preciso considerá-lo relativamente a um tempo marcado por profundas mudanças em todos os setores da vida. É urgente, então, considerar o que significa pós-modernidade. Não pretendo dar conta da complexidade envolvida nessa questão. O que se costuma designar como pós-modernidade é uma realidade histórica bastante complexa e, para alguns especialistas, pouco clara. Serei forçado a fazer referência a alguns aspectos dessa condição da existência do homem contemporâneo, com vistas a acentuá-los em conformidade com os meus propósitos.
A condição pós-moderna é caracterizada por convergências e divergências históricas em várias esferas (arte, cultura, política, economia, saber, religião, ensino, etc.). Recobre um período, cujo início pode ser datado na década de 1950 e cuja extensão abarca os dias atuais, que se caracteriza por múltiplas posições e profundas inquietações. O período pós-moderno inaugura uma série de mudanças em nossa cosmovisão e nas diversas maneiras como a realidade se organiza. O homem pós-moderno é um sujeito extremamente inquieto em face de uma realidade que muda incessantemente. Em meio à profusão de mudanças, em um espaço de tempo muito curto, esse homem se vê desorientado ou perdido, porque se dá conta de que o universo de referências em que a vida de seus antepassados se baseava e de que é herdeiro, diluiu-se. O pós-moderno deve ser entendido como superação do moderno. Tempos de crises são estes, decerto. Crise da razão, crise dos valores que tradicionalmente guiaram a vida das pessoas. O pós-moderno decreta o esgotamento do poder da razão, que tanto seduziu os modernos, especialmente os que viveram sob os auspícios das Luzes. E o Iluminismo (séc. XVIII) – vale dizer – compreendeu uma corrente radical do pensamento intelectual que liberou a filosofia das amarras teológicas. Os filósofos do século XVIII aproveitaram as ideias que animavam os avanços científicos para questionar a maneira como o governo era pensado, o modo como a sociedade era compreendida. Seus esforços foram orientados para a superação da superstição, da tirania e da injustiça, para o que eles se serviam do poder da razão. A Razão Iluminista ocupa, pois, a posição que, durante séculos, fora ocupada por Deus. A bandeira iluminista era desfraldada sobre a necessidade de tolerância e justiça. Somos herdeiros do século das Luzes. E, a despeito da crítica avassaladora de Nietzsche, ainda resiste, em nossa era, pelo menos no senso comum, uma confiança na racionalidade científica. É claro, contudo, que, na pós-modernidade, a ciência não é mais vista como o único saber legítimo; e a ciência de hoje é uma ciência que se coloca sempre em questão, que não cessa de revisar seus postulados, de avaliar o alcance de seus resultados e a validade deles. Não se admite mais que ela silencie as demais formas de saber.
A pós-modernidade é uma era afeita ao relativismo; é infensa à ideia de uma verdade absoluta; reina nela uma suspeita sobre o imperativo da objetividade. É verdade que, nela, a razão está em crise, mas não é menos verdadeiro que a crise lhe tenha sido companheira em quase todas as épocas.
Também gostaria de lembrar, nessa rápida revisão da condição pós-moderna, que, nela, a ideia de progresso, herdada da Modernidade (mais precisamente do período da Renascença), e vinculada ao surgimento do método científico-tecnológico, perde seu significado dentro de um projeto político-filosófico de emancipação do gênero humano. O homem pós-moderno suspeita da ideia de progresso; vê nela uma mentira que não pode mais ser sustentada como uma preciosa verdade. Como, então, situar Nietzsche em face desse contexto sócio-histórico? Comecemos por entender quem foi Nietzsche, atentando para o seguinte trecho, tomado a Antonio C. Braga, em Nietzsche – o filósofo do Niilismo e do Eterno Retorno (2011):


“Considerado por muitos como o maior filósofo dos tempos modernos e por outros como destruidor impiedoso de todos os valores conquistados pelo homem em toda sua história, Nietzsche causou espécie por seus posicionamentos radicais e inovadores no mundo da filosofia, da moral, da religião, da arte e da história. Não resta dúvida de que foi um crítico feroz do passado e um dessacralizador dos valores tradicionais, mas foi também como que um profeta de um mundo renovado e inteiramente novo, de uma história futura depurada dos entulhos de séculos e milênios, de um homem dessacralizado e embriagado de vida plena isenta de moralismos, o super-homem (...)”.

(p. 10)


Vejamos, então, como este dessacralizador dos valores tradicionais, atacou radicalmente o valor supremo do homem ocidental: Deus. Preciso aqui enfatizar que, ao declarar a morte de Deus, Nietzsche está declarando a morte da Verdade como valor metafísico. O que está, portanto, implicado na proposição “Deus está morto”? Dito douto modo, qual é a extensão e profundidade de seu significado no interior do pensamento filosófico de Nietzsche? De início, acho importante salientar que Nietzsche não conflita apenas com o Deus cristão, ou seja, não declara apenas que ele não pode mais servir de fundamento da verdade ou da moral; ele vai mais além: também rejeita qualquer fundamento divino supraterrestre, o que inclui o Deus de Platão (Demiurgo) e o de Aristóteles (Primeiro Motor Imóvel).
Em linhas gerais, a morte de Deus parece envolver:

a) o questionamento da verdade como valor metafísico;
b) a busca por superar a metafísica platônica;
c) a busca por suprimir o fundamento do sentido;
d) a afirmação da única e verdadeira vida no aqui e agora;
e) a rejeição como utopia de uma vida além-mundo.

Morto Deus, cai por terra a metafísica. A morte de Deus representa o esgotamento do sentido no coração do próprio universo. Uma vez morto Deus, o próprio universo deixa de ter um coração. A morte de Deus é a morte da oposição entre a vida no mundo e a vida além-mundo.
Mas cabe questionar se a metafísica definitivamente desapareceu, estando Deus morto. Nietzsche parece sugerir uma resposta negativa. Para compreender por que a metafísica não desapareceu de fato, Nietzsche nos pede que consideremos o fato de que a Ciência e a Filosofia, bem como a Verdade, foram transformadas em Deus na Modernidade.
Em Teologia e Pós-modernidade – novas perspectivas em teologia e filosofia da religião (2008), no artigo de Sousa, intitulado de A morte de Deus em Nietzsche: fim da metafísica?, compreendemos o que está envolvido na observação de que a metafísica não desapareceu totalmente, a despeito da morte de Deus:

“Nós, que matamos Deus, em nome da razão, daquela mesma razão que o construíra, em nome da ciência, em nome da filosofia. Tornamo-nos “ateus”, mas “ateus” graças a “Deus”, porque a metafísica continuou na ciência e na filosofia, e a metafísica chama-se “verdade”, Deus chama-se ciência e filosofia”.

(p. 64)


O novo Deus dos ateus modernos é a Ciência, é a Razão, é a Filosofia. Deus nunca foi completamente eliminado; ele ressurge na cena do pensamento ocidental, no espírito da modernidade com novas roupagens.
A pós-modernidade se nos apresenta como uma época ou um tempo em que se erige uma suntuosa e avassaladora crítica ao valor metafísico da verdade. Ao reconhecer a morte de Deus, Nietzsche declara a destruição do fundamento da Verdade. Se Deus é a verdade em sua forma suprema e transcendente e se a razão é a condição para atingir a verdade (desde Platão), então “a morte de Deus” é a morte do poderio da verdade.
Aprendemos com Nietzsche sobre quem estabeleceu a verdade como valor metafísico. Nossos antepassados, decerto. Eles erigiram a verdade como valor inquebrantável e inquestionável. Eles a impuseram a nós e, pressupondo-a como algo a ser desvelado, nos ensinaram o caminho para o seu desvelamento.
Costuma-se afirmar que Nietzsche é um antiplatônico, mas não convém depreender disso que ele não reconheça o valor da filosofia de Platão, que não veja em Platão o grande mestre da filosofia ocidental. Mas há aspectos da metafísica de Platão que precisam ser superados. Em oposição ao homem metafísico de Platão, Nietzsche ergue o “além-do-homem”. Compreendamos o lugar de Platão na crítica desenvolvida por Nietzsche à metafísica e à verdade como valor metafísico.
De início, é preciso reconhecer que a metafísica sistematizada tem sua origem em Platão, e a mentalidade do homem ocidental se formou com base na filosofia platônica. Um papel fundamental nessa formação do pensamento ocidental desempenhou a Alegoria da Caverna (que consta do Livro VII, de A República). Nesse texto, Platão introduz a concepção de que o mundo da experiência sensorial é um mundo ilusório, um mundo de aparências, ao passo que o verdadeiro mundo é o da experiência intelectiva, ou o mundo das Ideias perfeitas. Platão opera, portanto, uma inversão decisiva para a constituição e desenvolvimento de toda uma teologia cristã posterior: ele chama de ilusório o mundo tal como conhecemos por meio de nossa percepção sensorial e de verdadeiro o mundo acessível apenas à experiência racional, intelectiva. Está, então, estabelecida a base sobre a qual outros dualismos podem ser desenvolvidos, tais como “corpo” x “alma”. Aliás, a ideia de que o corpo é um cárcere da alma é uma ideia consagrada por Platão, na esteira de Pitágoras.
Na Idade Média, com a patrística, o cristianismo incorpora grande parte do platonismo, de tal modo que passa a ser uma espécie de platonismo para o povo. Ou seja, Platão passa a ser conhecido para os cristãos, muito graças aos esforços de Santo Agostinho (354-430 d.C), a quem devemos a elaboração de uma teologia de influência platônica que constitui o coração da doutrina cristã até hoje.
O Nietzsche de O Anticristo condena impiedosamente a condição servil a que o homem foi destinado no cristianismo. Assim,  ao homem é negada a possibilidade de tornar-se mais forte sem recorrer a subterfúgios supra-sensíveis. Para Nietzsche, a moral cristã condena a vida humana à decadência, ao niilismo resignado, porque eleva sobre esta uma outra vida a ser aguardada na fé e na esperança. O cristianismo, nota Nietzsche, é responsável também por desencorajar o homem a mudar sua própria condição de existência – marcada, não raro, por dor e sofrimento -, uma vez que lhe acalenta a esperança numa recompensa numa vida além-mundo.
Para a superação deste homem decadente e resignado produzido pelo cristianismo, Nietzsche postula uma transformação do próprio homem, que assumiria a forma de um além-do-homem. Trata-se de um homem que supera a metafísica e que avança convivendo com o desespero (perda de qualquer esperança numa vida no além). É um homem que, consciente da falta de sentido, torna-se ele mesmo o seu sentido. O além-do-homem é o estado do homem que superou o homem metafísico, cujas raízes se acham no pensamento platônico.
Nietzsche convoca, portanto, o homem a viver esta que é a vida verdadeira. Somente esta vida é eterna. Para Nietzsche, qualquer valor metafísico religioso que produz a crença numa vida além-mundo é uma farsa. Como era um grande estudioso da Bíblia, o filósofo alemão não deixou de notar, evocando a mensagem de Jesus Cristo, que o Reino dos céus é um estado do coração. Por isso, para ele, considerá-lo uma região transcendente é um erro grosseiro de uma interpretação posterior.
Nietzsche também reconheceu que “o verdadeiro cristão morreu na cruz”, numa clara alusão ao fato de que o cristianismo não foi fundado por Cristo e que coube a São Paulo trazer a “má-nova”, uma interpretação tendenciosa da mensagem de Jesus.
Contrariamente à crença cristã, para Nietzsche, sagrada é a vida aqui e agora, a vida do devir. Valor, em Nietzsche, é necessariamente o que torna esta vida, aqui e agora, mais forte – uma vida que precisa ser vivida. Qualquer valor que negue esta vida, na verdade, não é sequer um valor.
A filosofia de Nietzsche projeta o homem para um vir a ser. É uma filosofia do porvir. Nesse sentido, ela se opõe também a qualquer sentimento niilista, a ela erroneamente associado, muitas vezes. Nietzsche é, definitivamente, o contrário de um niilista. Sua máxima é: é necessário viver e viver mais.
O além-do-homem é o homem que vive num mundo que é dionisíaco – um mundo em que tudo nasce, tudo muda, tudo se transforma e morre. É um homem que vive e aceita o trágico. E o trágico, em Nietzsche, é um caminho para a aprendizagem. É o homem que ama a vida, que experiencia o amor fati (amor ao destino).
A morte de Deus, portanto, não significa, para Nietzsche, o fim da vida. É, ao contrário, o retorno a ela. O além-do-homem se realiza neste mundo, o verdadeiro, ao contrário do que ensinou Platão.
O além-do-homem não é escravo; ele não precisa de um sentido para viver, ou para crer na vida. Ele é o homem que ama o seu destino, que ama o devir, que é o real (Heráclito). Ele é o contrário de um niilista. É criador de valores. É homem da imanência. Se há transcendência, em Nietzsche, ela só é possível na imanência. O homem renovado é um homem que transcende a si mesmo no mundo dionisíaco nietzschiano. É o homem que transvalora todos os valores, que supera os valores empedernidos que herdou de uma longa tradição metafísico-religiosa (Sousa, 2008).
“Acima de tudo é preciso que se viva” (Sousa, 2008: p. 79). Eis a máxima de Nietzsche. E, anunciando-a aqui, quero, por fim, dizer algumas palavras sobre o seu conceito de Eterno Retorno que, como vimos, está intimamente ligado ao postulado segundo o qual “Deus está morto”.
O Eterno Retorno do mesmo recobre a ideia de Heráclito de devir, do vir a ser contínuo. Também envolve a ideia do além-do-homem, já que o além-do-homem, esse homem que superou o homem metafísico, vive como quem deseja reviver cada acontecimento infinitas vezes. Portanto, essa ideia supõe a infinitude do tempo e o retorno de vivências na infinitude do tempo.

O Eterno Retorno também se vincula à necessidade de dizer sim à vida infinitas vezes. É preciso viver sem arrependimentos e remorsos. O Eterno Retorno é um critério de avaliação, pelo qual o homem seleciona os acontecimentos que merecem ser revividos e que devem ser revividos (Ferry, 210, p. 118). É preciso dizer que esse reviver infinitas vezes os instantes de nossa vida inclui também os momentos de dor, os momentos de infelicidade, muita vez, incontáveis. É desejar reviver sem concessão. O que Nietzsche ensina aí é que devemos viver como quem tem necessidade de reviver, como quem deve desejar reviver. Devemos viver como alguém para quem desejar reviver se coloca como um dever. 

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