Indo além do texto
Este
texto é mais um testemunho de minha obstinação docente no trabalho com o ensino
da leitura. A confecção deste texto assenta no pressuposto de que a eficiência
do processo de produção da leitura depende muito da capacidade de o leitor
atuar cognitivamente nas camadas de sentidos subjacentes à superfície textual.
Ademais, nesta exposição, assumo que o texto é um evento
sociocognitivo-interacional complexo para o qual convergem diversas competências
e/ou estratégias que são ativadas ou mobilizadas tanto pelo produtor, por
ocasião da atualização do seu projeto de dizer, quanto pelo interpretante, por
ocasião da interpretação/compreensão dos enunciados então produzidos.
O
leitor experiente é aquele suficientemente habilitado a ir além da superfície
do texto, no processo de interpretação, que visa à compreensão dos atos de
linguagem.
Como
eu esteja preocupado com a questão da leitura, limito a noção de texto à
modalidade escrita, muito embora ‘texto’ seja toda e qualquer entidade
linguística produzida num contexto determinado e preenchendo funções
sociocomunicativas determinadas. Todo texto é, assim, uma unidade de
comunicação, de modo que os enunciados produzidos na fala nada mais são do que
textos.
Tendo
em vista o exposto, meu objetivo será mostrar como o leitor pode se tornar mais
competente, ao conseguir, com base no processo de inferenciação (processo básico e indispensável a toda prática
linguageira) reconhecer pressupostos e produzir subentendidos. Além disso,
também será minha preocupação aqui oferecer uma proposta de leitura de alguns
trechos do texto de Sponville, em Amor à
solidão (2006), orientada por um método que pode ser enunciado com as
seguintes formas performativas:
1)
Preste atenção nas palavras;
2) Vá
além das aparências.
Bem
sei que, tal como os formulei, os enunciados não esclarecem muito sobre como
deve proceder o leitor. Vou então desenvolver um pouco esses dois comandos
metodológicos. Em 1), solicita-se que o leitor atente para certas palavras que
ativam processos de inferenciação. Essas palavras podem também estabelecer
relações significativas importantes para a compreensão do texto como um todo.
Elas podem sugerir associações com outras palavras num mesmo campo semântico. Grosso
modo, podem ser palavras que “lançam” o leitor para fora do texto, num
movimento cognitivo que, tendo início no texto, envolve a ativação de saberes
de ordem vária que ele tem armazenados em sua memória. Muitas palavras servem
como marcadores de pressuposição, ou seja, são índices que sinalizam para
conteúdos não explícitos nos enunciados, embora intrinsecamente ligados a eles.
Acredito que o princípio 1) ficará claro quando da análise dos textos de
Sponville.
Em
2), pede-se que o leitor não se prenda à significação produzida na superfície
textual. Nesse caso, está implícita a ideia de que, ao falarmos, ao produzir um
discurso, instauramos, consciente ou inconscientemente, silêncios. O silêncio é
sempre fundante dos sentidos. Não há sentidos sem o silêncio. Pelas palavras
vazam silêncios. O silêncio é constitutivo da linguagem, porque a linguagem é
insuficiente (ela não diz tudo). Conforme ensina Orlandi, em As formas do silêncio (2007):
“Com
efeito, a linguagem é passagem incessante das palavras ao silêncio e do
silêncio às palavras (p. 70)”.
Há,
portanto, um jogo constante entre palavras e silêncios nas atividades
linguísticas. É mister dizer, no entanto, que por silêncio não devemos entender
ausência de palavras. O silêncio é onde se pode significar. As palavras
transpiram silêncios; o silêncio está nas palavras, e não na ausência delas.
Porque a linguagem não diz tudo, ao se dizer
fica sempre algo por ser dito, domínio este do silêncio, do possível, do
múltiplo. É aí que o sentido faz sentido.
Para
efeito de análise, em minha proposta de leitura dos textos de Sponville,
levarei em conta os conceitos de pressuposto
e subentendido, que passo a definir
doravante. Ambos os conteúdos são implícitos. No entanto, há diferenças entre
eles, como veremos.
O pressuposto está envolvido no processo
de pressuposição, que é o processo
através do qual o interpretante, por meio de inferência, e levando em conta uma
base de conhecimento comum (com seu interlocutor), recupera um ou mais
conteúdos implícitos, mas inscritos no enunciado. O pressuposto é, portanto,
uma informação implícita que, não estando presente no enunciado, é dele
dependente. Todo enunciado deve ser visto, nesta perspectiva, como constituído
de dois níveis de sentido: o posto,
que é o conteúdo proposicional, por exemplo, em “Maria ainda não chegou”,
“põe-se” ‘Maria não chegou’; e o pressuposto,
que é o conteúdo não explícito, mas inscrito no enunciado – o que significa
dizer que pode ser recuperado com base numa palavra que o sinaliza ou o marca
(marcador de pressuposição). No enunciado em tela, é a palavra “ainda” que
marca a pressuposição, ou seja, que indica o pressuposto, inferido pelo
interpretante, com base no enunciado, ‘Maria vai chegar’. Em outros termos, é o
“ainda” que me permite inferir ‘Maria vai chegar’ (pressuposto).
Duas
observações são fundamentais sobre o pressuposto: em primeiro lugar, o
pressuposto é imposto, ou seja, é um conteúdo veiculado pelo enunciado, de modo
implícito, evidentemente, para ser aceito. O pressuposto é assumido como
inquestionável e, nesse sentido, da sua aceitação depende a continuação do
discurso. Disso não se segue que não se possa questioná-lo, mas isso
acarretaria sérias consequências para a interação. Num caso extremo, quando os
pressupostos não são aceitos, o discurso pode ser interrompido (não há acordo
sobre a validade dos pressupostos). Por exemplo, se alguém ousasse dizer algo
como “Só a Grécia antiga produziu grandes filósofos”, provavelmente atrairia a
objeção do seu interlocutor ao conteúdo pressuposto segundo o qual ‘em nenhum
outro lugar se produziram grandes filósofos’. Evidentemente, nesse caso, o
locutor não foi bem sucedido, já que pretendeu “impor” um pressuposto frágil,
facilmente refutável por quem quer que conheça um pouco sobre a história da
filosofia. Claro é que esse é um exemplo extremo; há situações que gerará
controvérsias. De qualquer modo, importa entender que todo conteúdo pressuposto
é colocado à margem da argumentação, de tal modo não que se encadeia sobre ele, ou seja, os enunciados
subsequentes não se relacionam ao pressuposto. Vejamos um exemplo:
(1) Meu
pai ainda não chegou, mas minha mãe está em casa.
Imaginemos
que (1) fosse produzido numa situação em que alguém estivesse procurando o meu
pai e eu supusesse que essa pessoa poderia querer falar do que se trata com uma
pessoa responsável. O pressuposto “contido” em “Meu pai ainda não chegou” não é
“afetado” pelo encadeamento por meio de “mas...”. Portanto, ele está à margem
do desenvolvimento da argumentação. No caso, eu reconheço que frustrei,
inicialmente, o desejo do interlocutor de falar com meu pai, ao comunicar-lhe
que ele não está em casa, mas tento evitar sua total frustração procurando
sugerir que ele dê o recado à minha mãe, de modo que ela possa transmiti-lo a
meu pai.
O subentendido, por outro lado, é
particularmente dependente do contexto de comunicação e também supõe uma base
de conhecimentos que se supõem partilhados pelos interlocutores. Mas difere
fundamentalmente dos pressupostos porquanto é de inteira responsabilidade do
interpretante. Aliás, o enunciador pode, inclusive, insistir com o enunciatário
que não disse o que ele achou que disse. O enunciador, assim, não assume a
responsabilidade pelo que disse (de fato, ele não disse), transferindo-a ao
enunciatário. É este que, por inferência, com base no contexto de comunicação e
no conhecimento partilhado, produz uma interpretação não prevista ou não
desejada pelo enunciador. Veja-se o caso abaixo:
(2) A
- Você conhece esta música?
B - Não é da minha época.
A - Está me chamando de velha?
Em
(2), a parte “está me chamando de velha?” não é de responsabilidade do
enunciador B. Seu enunciado não
permite ou não autoriza a suposição do enunciador A. De fato, o enunciador B
não disse “você é velha”; foi o enunciador A
que assim o inferiu. Ele faz uma interpretação, portanto, não autorizada
pelo enunciado como ato de linguagem; no entanto, a interpretação do enunciador
A é justificável com base num
conjunto de hipóteses que ele formula. Essas hipóteses se baseiam em
conhecimentos partilhados e pressupostos na situação de comunicação. Assim,
quando pergunta “você conhece esta música?”, há a suposição por parte do
interlocutor de que a música é antiga; e realmente é o que ele diz: “não
conheço (está implícito), porque não é da minha época”, ou seja, “porque a
música é antiga”. O conhecimento partilhado de que o enunciador A é uma pessoa mais velha do que o
enunciador B favorece a produção do
subentendido por A.
Chamo
atenção para o fato de que o fenômeno dos implícitos (como o do pressuposto e
do subentendido) ilustra a concepção de linguagem ou discurso como arena de
conflitos. De fato, em muitos contextos, a produção de subentendido pode
acarretar desentendimentos, discórdias ou mesmo brigas entre pessoas.
Um caso
interessante de subentendido é o que envolve uma asserção em que um elemento de
informação reconhecido como indiscutivelmente verdadeiro não é pertinente ao
contexto, de modo que o interlocutor é levado a inferir a pertinência com base
na informação veiculada. Para tanto, ele leva em conta o contexto.
(3) A – Você gosta do presidente Lula?
B – Cara, eu gosto do Brasil.
O
enunciador A, reconhecendo que a resposta não é pertinente à pergunta, é levado
a subentender que o enunciador B não gosta do Lula. É possível que A rejeite a
inferência de B, e busque se explicar, o que desencadearia toda uma discussão
subsequente sobre se faz algum sentido gostar de um país sem se preocupar em
avaliar o trabalho do presidente.
Essa
breve exposição e explicação dos fenômenos da pressuposição e do subentendido
sugere a sua importância no processo de leitura, porque o torna mais criador e
o leitor mais eficiente. Do reconhecimento do leitor dos pressupostos depende o
seu sucesso interpretativo durante a atividade de leitura, na medida em que ele
consegue atuar cognitivamente nas camadas subjacentes de sentido. Não menos
importante, é claro, para o aperfeiçoamento da competência de leitura ou, para
ser mais preciso, da competência comunicativa dos enunciadores, é a produção de
subentendidos. Mas, nesse último caso, é necessário sensibilidade do enunciador
para reconhecer quando a produção do subentendido é desejável e pertinente, sob
pena de lhe trazer alguns prejuízos sociocomunicativos.
Tomarei,
de agora em diante, para análise os textos de Comte-Sponville, a fim de
produzir uma leitura que patenteie não só a importância dos conteúdos
pressupostos para o processo mesmo de leitura, como também a importância de
superar práticas que prendem o leitor à superfície do texto.
“Quantos fogem da solidão, ao contrário,
e são capazes de um verdadeiro encontro? Quem
não sabe viver consigo, como saberia viver com outrem? Quem não sabe morar com sua própria solidão, como saberia
atravessar a dos outros?” (p. 30).
Destaquei
as formas “quantos “ e “quem” porque elas sinalizam conteúdos pressupostos.
Elas levam o leitor a inferir informações que o enunciador supõe como
indiscutíveis. Assim, o uso de “quantos” sugere que há pessoas que fogem da
solidão, sugere que são muitas pessoas. A pergunta, como um todo, já prevê a
resposta, ou seja, a resposta está pressuposta na pergunta. O enunciador já a
pressupõe quando formula a pergunta. E a pergunta visa a suscitar a adesão do
leitor à argumentação desenvolvida. A resposta esperada pelo enunciador é
alguma coisa como “muitas” e o enunciador, ao formular de tal modo a pergunta,
coloca o leitor numa posição de consentimento. O leitor não tem saída. O modelo
de mundo proposto e suposto como partilhado leva o leitor a aceitar que “há
muitas pessoas que assim se comportam”.
Em
seguida, o enunciador, ao formular a pergunta encetada por “quem”, sugere que
qualquer pessoa que não consiga viver bem consigo mesma dificilmente conseguirá
conviver com alguém. O pressuposto aí é: quem
são consegue viver bem consigo não conseguirá conviver com alguém.
O
raciocínio elaborado até aqui vale para a última pergunta. Chamo atenção, no
entanto, para a ocorrência da palavra “atravessar”, que suscita associação com
“travessia” (“fazer a travessia”). Evidentemente, não devemos interpretar
“atravessar” no texto com base no Núcleo
metadiscursivo (Nmd) (Charaudeau, 2010, p. 35), isto é, com o significado
sedimentado, constante e dicionarizado da palavra. Lembro que o sentido ou a
significação é construída no discurso. O significado literal não existe.
Charaudeau nos ensina sobre como se constrói o Núcleo metadiscursivo, ou seja,
o que se chama comumente de “significado literal”:
“Tudo
se passa como se o signo nascesse em um primeiro contexto – mas, é possível
determinar um primeiro contexto? – e recebesse um primeiro emprego que tornasse
esse signo dependente das circunstâncias que presidiram seu nascimento (a
expectativa discursiva). Em seguida, este primeiro emprego seria explorado através de uma atividade de
abstração que manteria certos componentes do primeiro emprego para
reutilizá-los em um segundo emprego que dependeria de novas circunstâncias. A
partir da existência desses dois empregos e de sua possível comparação, se
construiria uma primeira sedimentação semântica que constituiria um primeiro
saber metacultural sobre o funcionamento dos signos: isso nos levaria à
determinação de um núcleo metadiscursivo. (p. 38)”
Em
resumo, o uso é que vai cristalizando o significado, tornando-o um saber
partilhado culturalmente.
Voltando
à palavra “atravessar”, claro é que não ativamos o significado sedimentado
‘passar através de’ do domínio cognitivo ‘espacial’. Isso nos leva a operar
associações com outras palavras ou expressões pertencentes ao campo semântico
de “travessia” ou que guardem com ela alguma afinidade semântica. “Atravessar”
ou “travessia” sugere a ideia de ‘movimento’, ‘esforço para ir além’,
‘ultrapassar’. Na travessia, há também o imprevisto, o contato com o
desconhecido. A solidão do outro é o desconhecido para mim. E atravessá-la
supõe que eu esteja disposto a aceitá-la, a conhecê-la, a aprender a lidar
com ela. Portanto, a conviver com ela.
A
conclusão que o texto de Sponville encaminha e quer que o leitor aceite é a de
que viver bem com a nossa solidão é condição necessária para que nos
relacionemos bem com o outro. Considerando-se a hipótese lacaniana segundo a
qual o “eu é o lugar do desconhecimento”, o esforço dispensado na busca pelo
autoconhecimento é indispensável para a construção de relacionamentos bem
sucedidos. A experiência do desconhecido de si é precondição para a experiência
do desconhecido do outro. Assim, propõe Sponville que é necessário aceitar a
minha solidão, conviver bem com ela, para que eu consiga conviver bem com a
solidão do outro.
Devo
dizer que, em momentos anteriores, Sponville assume que a solidão é inerente à
condição humana. Dirá ele que a solidão “ é o quinhão de todos nós” (p. 30). Na
vida humana, segundo ele, “a solidão é a regra”.
Consideremos,
finalmente, os dois excertos abaixo:
“(...)
o amor, em sua verdade, é solidão”. (p. 30)
“O
amor não é o contrário da solidão; é a solidão compartilhada, habitada,
iluminada – e às vezes, ensombrecida – pela solidão do outro. O amor é solidão sempre, não que toda solidão seja amante,
longe disso, mas porque todo amor é solidão. (p. 31)”
As
duas palavras importantes aqui são “amor” e “solidão”. Não há oposição entre
eles. O amor supõe a solidão. Ou ainda, é solidão. E não poderia ser diferente,
já que cada um de nós é ser de solidão. É claro que o amor supõe a relação com
o outro; o amor pede-nos que aceitemos o outro em sua solidão, ou como solidão
em si mesmo. No amor, há o encontro de solidões que desejam proteção mútua.
A
palavra “solidão” sugere uma associação com “deserto”, não pela sua aridez, mas
por não ser geralmente habitável. Lugar de solidão, portanto. E o amor é o
encontro de dois desertos. O drama do amor consiste em desejar unir dois
desertos formando um só deserto de solidões.
Chamo
atenção para a ocorrência das palavras “habitada”, “compartilhada”, de um lado;
e “iluminada” e “ensombrecida”, de outro. Todas são adjetivos que modificam
“solidão”, mas a solidão do amor, a solidão que é amor. O amor supõe o milagre
do encontro, especialmente se dermos razão a Sponville ao sugerir que a
sociedade se estabelece sobre “ o dinheiro, o interesse, as relações de força e
poder, o egoísmo e o narcisismo” (p. 32). O amor não é suficiente para
construir uma sociedade. Para Sponville, e me parece que com ele está a razão,
nas grandes cidades, predominam a indiferença e os egoísmos.
O
amor é quando um mora no outro, ou ainda, quando um mora na solidão do outro. É
o que nos sugere a palavra “habitada”. Interessante é o contraste sugerido
pelas palavras “iluminada” e “ensombrecida”. No amor, a solidão de um pode
iluminar a solidão do outro, mas também pode escurecê-la ou embaçá-la, o que supõe a
insuficiência do amor para permitir a travessia da solidão do outro. Não raro,
o que fica para o amante em sua solidão é o sentimento de não ser devidamente
compreendido como ser de solidão pelo amado. Daí a sombra que o amor pode
lançar sobre a solidão dos amantes. É a natureza antitética do amor: ele
ilumina e ensombra. Ele não resolve completamente a solidão dos amantes, visto
que não cabe ao outro resolvê-la. Cada qual deverá confrontar-se consigo mesmo
em sua solidão, o que não exclui a partilha, a travessia dos dois pela solidão um do outro.
Assim como o amor, a solidão é um latifúndio inalienável.
Nenhum comentário:
Postar um comentário