quarta-feira, 25 de novembro de 2020

"Toda realidade social é precária. Todas as sociedades são construções em face do caos" (Berger & Luckmann)

                                   


                   O sentido como constructo social

                    A questão do sentido da vida à luz da sociologia do conhecimento

 

Introdução

 

O presente ensaio se constitui de duas partes. A primeira dificuldade que se me apresenta, desde o início, é determinar como articulá-las de tal modo, que uma das partes seja consistente com a outra, e não venha a constituir por si mesma outro texto completamente diferente. Em que pese à possibilidade de os temas discutidos nas duas partes parecerem um tanto díspares, duas questões basilares que norteiam todas as reflexões deste ensaio são suficientes para lhes garantir consistência, para lhes pavimentar um terreno sólido comum. As duas questões são as seguintes: faz sentido deveras falar em sentido metafísico? A vida tem sentido em si e por si mesma? Antes de me debruçar sobre o tema que será discutido na primeira parte deste ensaio, será necessário esclarecer as condições de produção desses dois enunciados que se tornaram questões filosóficas para mim. A primeira questão interessa-me especialmente por ocasião da releitura que vinha fazendo do livro Para que serve tudo isso (2008), do filósofo Julian Baggini. Esse livro foi escrito para “responder” à questão “qual é o sentido da vida”. O livro é interessante não  tanto pela resposta a que chega para uma questão fundamental e, aparentemente, complexa, mas pelas muitas outras questões que suscita. Após a releitura de um dos capítulos desse livro, se me impôs o seguinte problema: faz sentido falar em sentido metafísico? A expressão “sentido metafísico” foi cunhada por mim em outra ocasião. Empreguei-a durante a escrita de meu livro, ainda não publicado, sobre o suicídio. Com essa expressão me referia ao “sentido” que está pressuposto sempre que as pessoas se perguntam a si mesmas: qual é o sentido da vida? Nas sociedades ocidentais, em geral, perguntar sobre o sentido da vida é perguntar se a vida tem um sentido que é dado e garantido por uma instância metafísica, que compreende um Deus transcendente (o Deus da tradição cristã) e uma vida pós-morte. Portanto, o sentido desta vida aqui deve ser buscado em outro lugar além: em Deus e na vida pós-morte que ele nos promete.

A segunda questão importa menos pela resposta que dou a ela – resposta que assumo como um pressuposto compartilhado com Baggini – do que pela problemática teórica que ela descerra. Com Baggini, assumo também que a vida, tomada em si e por si mesma, não tem sentido algum. E, se pensarmos bem, até mesmo os religiosos devem concordar com esse pressuposto, já que eles acreditam que o sentido da vida não se encontra na vida em si, mas é dado por Deus, como fonte irradiadora de sentido, como instância metafísica à luz da qual o mundo e a vida de cada indivíduo que nele crê das profundezas terrificantes do absurdo assomariam à luminosidade de um sentido verdadeiro e superior. Mas, se o sentido da vida provém de Deus, significa dizer que a vida do ateu não tem sentido algum? Discutir esta e outras questões atinentes à suposição de que o sentido da vida depende da existência do Deus metafísico representado/imaginado pelas três religiões do Livro será o objetivo central da primeira parte deste ensaio.

A segunda parte deste texto deve ser encarada como um desdobramento das reflexões sobre a questão do sentido da vida ou da existência humana, desenvolvidas na primeira parte, mas consideradas à luz das contribuições de uma sociologia compreensiva. Essa segunda parte lança luz sobre alguns problemas que restarão ao cabo da primeira parte. Se, na primeira parte, o problema do sentido da vida pressupõe a existência de Deus, na segunda parte, esse problema não a pressupõe, mas a explica como efeito de um imaginário socialmente constituído. Mas não será a questão sobre a existência ou não de Deus que estará em primeiro plano. Certamente, - reitero - não será esta a questão de que me ocuparei. A questão precípua e comum às duas partes é a do “sentido” da vida. Na segunda parte deste ensaio, vou-me alongar sobre a referida questão abordando-a de um ponto de vista filosófico-sociológico, na expectativa de que ficará claro que todas as sociedades estão envolvidas em processos de produção de sentido. Veremos, pois, que, ao contrário do que supõe o senso comum, o “sentido” do mundo e o sentido de cada vida individual são um constructo social, é uma ficção (invenção) histórico-social, é produto da atividade humana.

 

 

                                                        PARTE I

 

 

Deveras, uma das razões por que me tornei ateu foi o ter meditado seria e cuidadosamente sobre as alegações da religião. No entanto, não escrevo para fazer uma defesa do ateísmo, mas para investigar se da crença num Deus criador e sumamente bom como o Deus cristão segue-se, necessariamente, que a vida tem algum sentido. Se feita a alguém que acredita na existência do Deus teísta a pergunta “qual é o sentido da vida?”, é muito provável que a resposta encerre alguma referência a Deus. De uma forma ou de outra, “o sentido da vida” tem em Deus uma instância metafísica à qual a questão remete e da qual ela obtém sua validade. Para uma grande maioria de homo sapiens, é simplesmente intolerável a ideia de que a vida seja apenas uma característica que tem certos fenômenos de se produzirem e se regularem por si mesmos, que a vida não envolva mais do que metabolismo, plasticidade, reatividade e reprodução; e, no caso da vida humana, que seja apenas trabalhar esforçando-se para ganhar dinheiro, comer, beber, fazer sexo e dormir, talvez com alguns períodos de descanso. Todas essas atividades não servem a propósito algum senão nos manter vivos. Para uma maioria de pessoas, é preciso que tenha algum sentido maior. E aqui, por ora, uso a palavra “sentido” na acepção de ‘propósito, finalidade’. Lembro que a questão do “sentido” será uma questão fundamental e permanente ao longo de todo este ensaio. Na segunda parte, o conceito de “sentido” será mais bem definido segundo pressupostos teóricos fundamentados filosófica e sociologicamente.

A maioria das pessoas se acostumou a concluir, apressadamente, que, se Deus não existir, então a vida não tem sentido algum ou não tem razão de ser. No entanto, muitas dessas pessoas não sabem bem dizer qual é o sentido pretendido por Deus. Em outras palavras, elas não sabem dizer, com certeza, qual é o propósito de Deus para o mundo e para a vida delas. Muitas assumem que é necessário um salto de fé, ou seja, admitem que é preciso crer que Deus não teria criado o mundo e cada um de nós se não tivesse um propósito em mente. Mas isso parece ser, na verdade, uma consequência da crença de que o universo foi criado (ou seja, que ele não surgiu do nada) por uma Inteligência Superior que, ao criá-lo, tinha um propósito. Recorrer à fé em Deus em face da questão “Qual é o propósito que Deus tem para o mundo e para a vida de cada um de nós?”, é admitir que desconhecemos esse propósito, é admitir que apenas esperamos que, na hora certa (possivelmente, depois da morte?), Deus no-lo revelará. Mas, nesse caso, os religiosos sabem tão pouco sobre o propósito de suas vidas quanto um ateu que rejeita a crença de que o sentido da vida provenha de Deus. Portanto, o salto de fé precisa ser explicado. O salto de fé parece significar confiança num Deus cuja existência nos é inacessível, num Deus que tem um propósito que não podemos saber e que nos promete uma vida após a morte não sabemos se acontecerá. Ademais, devemos ter fé em que esse propósito nos agradará. Se, por exemplo, o propósito divino revelado for o de combater hordas de demônios durante toda a eternidade ou se o propósito foi ter nos criado para a perseverança em face de muitas tribulações, talvez não fiquemos muito contentes com o fato de Deus ter um propósito para nós.

Há, entre os religiosos, aqueles que supõem que o sentido da vida tem a ver com uma missão dada a cada um de nós por Deus, muito embora essa “explicação” não seja satisfatória na tentativa de responder qual é o sentido da vida. As religiões, aliás, não nos esclarecem sobre qual missão seria essa. Alguns falam em “servir a Deus”, mas “servir a Deus” é subtrair à vida humana sua dignidade; ademais, tornaria Deus uma espécie de senhor tirano que necessitaria de servos (embora o próprio imaginário judaico-cristão represente a relação assimétrica entre Deus e seus fiéis em termos de Senhor e “servos”). O fato é que, se assumimos que devemos confiar em Deus, estamos dizendo que não sabemos por que estamos no mundo e que devemos deixar tudo “nas mãos do desconhecido”. Por conseguinte, acreditar que nossas origens estejam ligadas a um ser sobrenatural, a uma instância metafísica significa abrir mão de uma explicação razoável sobre o sentido e a razão de ser de nossa vida. Vamo-nos deter um pouco mais na questão da “fé”.

Toda fé legítima, já nos advertia Kierkegaard, envolve um risco. A fé, por definição, é não racional (o que é diferente de dizer que a fé seja sempre “irracional”, embora ela possa, algumas vezes, o ser). Quero apenas dizer que a fé, de alguma forma, nos desobriga da responsabilidade de fornecer provas ou evidências. A fé não só contraria, com frequência, as normas da razão, como também nos escusa da necessidade de fornecer provas ou evidências que a própria racionalidade exige. A fé é uma atitude, ou um compromisso com a desnecessidade de fornecer uma justificação racional. Assim, lemos, no Evangelho de João, que Tomé é censurado por seu ceticismo. A interpretação cristã canônica autoriza a conclusão de que Tomé estava errado não só por duvidar de que Jesus ressuscitou dos mortos, mas sobretudo por pedir provas disso. Por isso, Jesus adverte aos demais que, como Tomé, teimam em duvidar: “Bem-aventurados os que não viram e creram” (João 20:29). Ora, Tomé foi censurado pelos simples motivo de solicitar o que qualquer crença racional demandaria: boas razões, uma argumentação racional, evidências. A racionalidade pressupõe e exige a dúvida; afinal, sabemos, por experiência, que pessoas não ressuscitam. Assim, ao receber a prova de que precisava, Tomé fracassou em sua prova de fé. A fé deixa de ser necessária, quando dispomos de uma base racional.

No início do parágrafo precedente, referi-me ao fato de a fé envolver sempre um risco. Para evidenciar o risco da fé, tomemos a prova de fé de Abraão, em Gênesis 22. Kierkegaard se debruçou sobre essa passagem bíblica a fim de desvelar a nós que a fé não nos exime da angústia de ter de fazer escolhas. Deus pede a Abraão que sacrifique seu único filho, Isaac. Abraão não vê Deus, mas escuta o que teria sido a sua voz. Portanto, Abraão teve de decidir se foi mesmo Deus quem lhe pedira o sacrifício de Isaac, ou se fora um demônio, ou se estava ficando louco. Em segundo lugar, ele teve de decidir se obedecia ou não à ordem que lhe foi dada. A razão protesta, advertindo-o de que o pedido pode não estar certo; afinal, que Deus bom é este que exigiria o assassinato de uma criança inocente? Não obstante, Abraão ia agir em conformidade com o que lhe foi ordenado por Deus como prova de sua fé. Isso mostra como a fé nos leva a agir em desconformidade com a razão. Por isso, concordo com Baggini, quando escreve: “a fé é o que preenche a lacuna entre a crença racional e a certeza; ter fé é esquivar-se totalmente da racionalidade” (Baggini, 2008, p. 52). O risco da fé é, pois, abandonar a racionalidade como método mais confiável que temos para determinar o que é verdadeiro ou proveitoso. Em matéria de religião, é consabido que as convicções pessoais levam muitas pessoas a aderir às mais diferentes concepções de Deus ou do mundo sobrenatural. A fé pode-se tornar deveras nociva quando, através dela, as pessoas passam a acreditar cegamente que sabem qual é a vontade de Deus. Por isso, para quem, como Kierkegaard, pensa seriamente sobre a questão de Deus, a fé deve ser vivida com “temor e tremor”. Ao se debruçar sobre a narrativa de Abraão, que estava disposto a sacrificar seu filho por obediência à vontade de Deus, Kierkegaard descreve a agonia dessa personagem bíblica. Abraão não pode esquivar-se de fazer uma série de perguntas: será que é mesmo Deus quem está me pedindo isso ou será que é o diabo que me está enganando? Será que estou louco? E mesmo que seja Deus, será certo que eu cumpra o que ele ordena? Será que Deus é tão bom quanto eu pensava? A história de Abraão ensina-nos sobre o que significa ter fé. Significa delegar a responsabilidade pela busca de sentido da vida a Deus. Mas, se delegamos responsabilidade, então somos corresponsáveis pelo que a pessoa a quem a delegamos faz. Vê-se, portanto, que não é claro como Deus pode ser a instância metafísica doadora e mantenedora do sentido da vida, pois acreditar na existência de Deus nos desobriga de nos ocupar com o propósito ou sentido da vida. Afinal, não sabemos qual é esse sentido do qual Deus é uma fonte e garantia; ignoramos os propósitos de Deus; e precisamos evadir-se da questão do sentido da vida pelo recurso ao salto da fé, acolhendo, assim, o que nos pede o autor de Mateus (10: 28-31):

 

E não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei antes aquele que pode fazer perecer no inferno a alma e o corpo.

Não se vendem dois passarinhos por um ceitil? e nenhum deles cairá em terra sem a vontade de vosso Pai.

E até mesmo os cabelos da vossa cabeça estão todos contados.

Não temais, pois; mais valeis vós do que muitos passarinhos.

 

 

A fé não se sustenta na razão, mas em convicções pessoais ou no testemunho dos outros.  Ter fé é renunciar a produzir sentidos para a nossa vida e simplesmente confiar na divindade. Não obstante, como não sabemos qual é o sentido de que Deus dota a existência do mundo e de nossa vida em particular, mesmo a fé não deveria nos eximir da responsabilidade por dar sentido às nossas vivências ou da responsabilidade pelas ações que se seguem dos sentidos que conferimos à nossa vida. Assim, invertendo a aposta pascaliana, poderíamos dizer que é o fiel que se encontra numa situação arriscada. Quem acredita nas alegações do cristianismo e arrisca tudo na esperança de uma existência pós-morte não terá uma segunda chance, caso esteja errado, isto é, caso não haja nada para além do túmulo e do retorno ao inorgânico. O ateu, no entanto, pode, pelo menos contar com uma segunda chance – presumindo-se que Deus não seja vingativo e vil como o descreve, sobretudo, o Antigo Testamento, mas bom e misericordioso como dele nos fala Cristo.

Gostaria de me deter um pouco mais na questão da transcendência como fonte de sentido para a existência humana, antes de pôr termo a esta primeira parte de minha exposição. É possível que o Deus teísta exista sem que haja vida após a morte? Ou é possível que exista vida após a morte, mas não exista Deus como ente transcendente? Na tradição religiosa que é a nossa, isto é, na tradição judaico-cristã, parece-me que a resposta é não. Parece que a existência de Deus e a promessa de vida após a morte estão necessariamente implicadas. Mas gostaria, doravante, de considerar apenas a possibilidade de haver vida pós-morte e de como essa outra vida conferiria sentido a esta vida aqui e agora. Partindo-se da premissa de que a vida tem de ter um sentido metafísico ou transcendente, a maioria das pessoas pensa que, se não houver vida após a morte, então a vida física, material mesma não tem sentido algum. Mas, cabe questionar como uma vida pós-morte daria sentido a esta vida aqui? Em outros termos, como a minha existência só ganharia sentido se eu puder continuar existindo sob alguma outra forma e sob outras condições além da morte? Não só não temos nenhuma razão para acreditar na existência de almas imateriais, que sobreviveriam à morte do corpo, como também  é possível supor que essa forma de vida de almas imateriais seria muito diferente desta vida material e corpórea que conhecemos. É claro que o cristianismo nos promete uma vida eterna deste composto de corpo e alma que presumivelmente constituiria nossa identidade pessoal, de modo que não é a nossa alma apenas que habitaria um outro mundo, mas a nossa pessoa mesma. Isso, no entanto, pouco nos ajuda na tentativa de explicar como essa vida pós-morte conferiria sentido a esta vida aqui e agora. Basicamente, não está claro como esta outra vida poderia ser uma continuidade da vida que temos agora. É absurdo falar em existência corporal fora do tempo. E se continuamos a existir como almas corporificadas, se continuamos a existir como união de corpo e alma, como pensar que esta outra vida estaria livre dos processos de envelhecimento, sofrimento e mortalidade que esta vida terrena pressupõe? E quem dissesse que isso é um mistério de Deus dá razão ao meu argumento central segundo o qual a fé em Deus não resolve o problema do sentido da vida. Mas a questão que me importa desenvolver consiste na seguinte: como a duração da vida pode aumentar o valor da vida? Em outras palavras, como uma vida pós-morte, uma vida eterna garantiria o sentido desta vida mortal que é a nossa? Se a vida que conhecemos não tem valor, como desejar sua eternidade a tornaria mais valiosa? Ora, a vida eterna pode ser uma vida bastante sem sentido, talvez a que menos faça sentido. Se, quando morrêssemos, acordássemos noutro mundo, como estaria resolvido o sentido da vida? Pense um pouco, caro leitor. Se o sentido da vida é que essa vida pós-morte é a continuação da anterior, restar-nos-íamos a questão de saber qual é o sentido dessa segunda vida pós-morte. Além disso, imagine-se quão entediante e sem sentido poderia ser uma existência eterna.

É certo que, quando pensamos seriamente sobre a nossa condição como animais humanos, como seres corpóreos e mortais, temos muita dificuldade de imaginar como deveríamos ter uma vida diferente desta vida material. E se consideramos essa dificuldade conjuntamente com a montanha de evidências de que dispomos a favor de nossa condição finita e mortal, sobreviver à morte é mais uma ilusão, uma crença baseada no desejo (como diria Freud), do que uma possibilidade a ser concretizada. A partir de tudo que foi exposto, a conclusão mais razoável não pode ser outra senão a que nos dá Baggini: “tentar encontrar o sentido da vida em uma vida por vir parece, então, inútil”. (ibid., p. 58). Vemos, pois, que a racionalidade quer que reconheçamos aquilo que a fé nos impede de admitir, a saber, “a única coisa que permanece incerta é a duração da vida, e considerando tudo o que sabemos seria ilógico apostar que ela se estenderia além da morte do corpo”. (ibid., p. 60).

Estou de acordo com a conclusão de Baggini quanto à vanidade da busca pelo sentido da vida com base na crença numa vida pós-morte. O tal “sentido metafísico” a que me referi, se examinado à luz da filosofia, parece obscurecer a questão do sentido da vida. Mas discordo de Baggini quando diz que “o sentido da vida deve estar nela própria” e quando diz que “a expectativa da morte é necessária para fazer com que nossas ações valham a pena”. São estes dois pontos de desacordo com o autor que me levaram a estender as minhas meditações sobre a questão do sentido da vida, reorientando-as à luz de uma abordagem mais propriamente sociológica da constituição humana do sentido. Em primeiro lugar, o sentido da existência humana e do mundo não deve ser compreendido por apelo a uma instância metafísica produtora de sentido, no que estou de acordo com Baggini; mas esse sentido não está na vida em si mesma, como algo que os seres humanos podem “des-cobrir”. A ordem social é produto da atividade humana e também os significados das ações humanas, o sentido da existência humana e do mundo são componentes fundamentais da constituição humana da realidade social. Cuido também ingênua a suposição de Baggini de que a perspectiva da morte é necessária para assegurar o valor da existência humana e das ações humanas; é justamente o contrário que parece ser o caso. A perspectiva da morte inevitável provoca no homem o sentimento de vanidade, de nanidade de todas as suas ações, de seus esforços por dotar sua existência e o mundo de significado e sentido. A perspectiva do fim pela morte inevitável esvazia, esgota a pretensa solidez do sentido de que investem os seres humanos as suas vidas. O que pretenderei mostrar na segunda parte deste ensaio é que o que confere uma espessura de significado, de sentido às ações humanas, à existência humana é a criação humana de um mundo institucional responsável por prover de significação o mundo como um todo e a existência humana. A perspectiva de nossa destinação como seres mortais é corrosiva, é nadificante, razão por que as coletividades humanas dispõem de “universos simbólicos” que, entre as suas funções, está a de proteger os indivíduos do terror diante da certeza da morte. Todas as sociedades humanas fornecem um conjunto de legitimações da morte que atendem à necessidade de capacitar o indivíduo a continuar vivendo depois da morte dos outros que ama ou estima e de lhe permitir a antecipação da própria morte com o mínimo de terror, na quantidade suficiente para que não seja tomado de um desespero paralisante que o impeça de viver segundo as rotinas da vida cotidiana. Afinal, como ensina Schopenhauer, “a vida do homem é um combate perpétuo, não só contra males abstratos, a miséria ou o aborrecimento, mas também contra os outros homens. Em toda parte encontra-se um adversário: a vida é uma guerra sem tréguas, e morre-se com as armas na mão” (Schopenhauer, 2014, p. 26). Como pretender extrair algum sentido de tal condição vã e trágica?

 

 

                                                             PARTE II

 

O problema do sentido e, especificamente, do sentido da vida e dos significados de nossas experiências como indivíduos que coexistem com outros no mundo é um problema que só pode ser elucidado em toda a sua complexidade e profundidade se investigarmos como se dá o processo de autoprodução do homem como ser social, como construtor de uma ordem social à qual ele deve a possibilidade de sua subsistência como animal desnaturado e no interior do qual a sua própria existência se dota de significado. Para o bom encaminhamento de minhas reflexões sobre a questão do sentido da vida, será necessário dilucidar o significado de três termos que são semanticamente relevantes para as reflexões desenvolvidas ao longo desta segunda parte de meu ensaio. O primeiro termo, cujo significado deve ser definido, é o de vida. Falarei de vida como o conjunto das vivências de um indivíduo. A vida reside na autoafeção. Vida é viver-se, mas é também os diferentes modos de experienciar e de me compor com o caráter dinâmico das afecções que constituem a nervura da minha existência.  Por vivência, entendo, no sentido de Hurssel, o fluxo não passível de apreensão em sua unidade plena. Vivência é fluxo de experiências. Por fim, por experiência, que constitui uma forma de conhecimento direto, que implica as sensações, percepção, cognição, memória, imaginação, introspecção, e que tem como conteúdo as representações, entendo um pôr-se e dispor-se na abertura para relações com o mundo; experiência é compor-se com os fluxos devenientes da vida, é ser tomado fisiológico e afetivamente pela fruição compreensiva dos objetos, das pessoas, dos fenômenos, dos acontecimentos do mundo. Ademais, outro termo importante que, usado correntemente no senso comum, precisa ter seu significado definido com maior rigor é consciência. Segundo Damásio (2000, p. 46),

“(...) a consciência começa com o sentimento do que acontece quando vemos, ouvimos e tocamos. Em termos um tanto mais precisos, é um sentimento que acompanha a produção de qualquer tipo de imagem – visual, auditiva, tátil, visceral – dentro de nosso organismo”.

 

A consciência tem sua ancoragem no corpo ou no cérebro, embora não se reduza à mente. Ainda acompanhando o autor, “a consciência começa quando os cérebros adquirem o poder (...) de contar uma história sem palavras, a história de que existe vida pulsando incessantemente em um organismo”. (ibid., p. 51). Acresça-se que a consciência é o poder que o cérebro tem de reconhecer que os estados do organismo vivo, nos limites do corpo, estão sendo continuamente alterados por encontros com objetos ou eventos ou por pensamentos e ajustes internos ao processo de vida. Mas é de um ponto de vista fenomenológico, na esteira de Hurssel, que o conceito de consciência terá mais importância nesta exposição. Hurssel entende a consciência como uma corrente de vivências. A consciência, de um ponto de vista fenomenológico, é uma relação com um objeto. O que a define é a intencionalidade, ou seja, o referir-se a outra coisa: a consciência é sempre consciência de algo.

Tanto a definição proposta por Damásio quanto a que se inspira na fenomenologia de Hurssel, na qual tanto Schütz quanto Berger & Luckmann vão se basear para desenvolver suas teorias da construção significativa do mundo social, não fazem qualquer referência ao papel que as formas simbólicas e as práticas sócio-interacionais por meio da linguagem desempenham na constituição da consciência humana. É preciso, pois, preencher essa lacuna mantendo que a consciência, no homem, é povoada de signos, de modo que o encontro entre o organismo humano e o mundo exterior se dá no signo. Embora eu aceite o postulado de Schütz e de Berger & Luckmann de que o locus do sentido deve ser identificado com a consciência e entenda que a percepção, definida como processo de organização e interpretação das informações sensoriais que torna possível reconhecer objetos e eventos significativos, já nos permita produzir algumas articulações pré-verbais de sentido, o sentido socialmente relevante e decisivo na constituição da experiência humana é aquele que se produz com o concurso da linguagem simbólica. Assumo, pois, os seguintes postulados bakhtianos e vygostkyanos:

 

1. A linguagem e a percepção estão ligadas. A linguagem, juntamente com a percepção, constitui as experiências humanas;

 

2. O encontro do organismo (humano) com o mundo exterior se dá no signo;

 

3. A consciência é povoada de signos; ela se constitui em processos sociais nos quais as práticas discursivas desempenham um papel fundamental;

 

4. A linguagem é o ponto que articula a vida mental e a vida sociocultural;

 

5. O simbólico refere-se à construção de representações e a operação sobre elas, transformando a experiência com o real em “conceitos”, capazes de classificá-lo, categorizá-lo;

 

6. A transformação simbólica dos elementos da realidade ou da experiência em conceitos é o processo pelo qual se cumpre o poder de raciocínio do espírito;

 

7. O pensamento não é um simples reflexo do mundo, mas uma atividade que classifica a realidade, organiza-a; e a essa função organizadora está estreitamente associada a linguagem;

 

8. Resulta de 7 que a significação é a unidade do pensamento e da linguagem; é o que une entre si comunicação e representação;

 

9. A linguagem é a própria possibilidade de inserção do homem no mundo como “animal semiótico”;

 

10. A cognição humana tem natureza simbólica. Os processos cognitivos têm uma gênese sociocultural, não simplesmente biológica, pré-fixada;

 

11. Os processos cognitivos são objetos de consciência;

12. Os processos cognitivos são mediados por instrumentos culturais e simbólicos.

 

A linguagem é um processo criador, por meio do qual organizamos e dotamos de sentido nossas experiências. Mesmo que o mundo experienciado pelo homem não seja produto original da linguagem, esta desempenha um papel inestimável na construção desse mundo, conforme veremos mais adiante. A linguagem não é um mero instrumento que intermedeia a relação entre o pensamento e o mundo. Esta relação é mobilizada por uma série de condições: as propriedades biológicas das quais somos dotados, a qualidade intersubjetiva das interações humanas, as contingências culturais e ideológicas da vida em sociedade, as normas pragmáticas que presidem o uso da língua, os diferentes contextos linguístico-cognitivos nos quais as significações são produzidas, etc. Assim, mesmo na solução de problemas não verbais, a linguagem desempenha um papel no resultado. O mundo que é percebido pelo homem não é experienciado simplesmente em formas e cor, mas como um mundo dotado de sentido e significado.

A despeito do fato de Berger & Luckmann assumirem que “deve-se procurar na constituição subjetiva do sentido a origem de todo o acervo social do conhecimento, do reservatório histórico do sentido” (2012, p. 18), nesse nível primário de sua constituição, o sentido ainda não alcançou o poder estruturante suficientemente necessário para que a vida individual seja vivenciada como “currículos de vida” integrados à estrutura de significados da sociedade. Ademais, como mantêm os autores, o sentido de uma experiência ou ação pode até ter surgido “no trato consciente e “solucionador de problemas” do indivíduo com o meio natural e social”. (ibid.), mas, a menos que se esteja supondo aqui que esse “trato consciente” tenha acontecido num período da história humana anterior ao desenvolvimento da faculdade da linguagem, parece-me pouco sustentável que condições pragmáticas sejam fatores exclusivos na doação de sentido. A partir do momento em que a linguagem faz sua emergência na cena histórica, ela acarreta o grande salto cognitivo da espécie humana, de modo que, desde então, linguagem, percepção-cognição e práticas culturais se inter-relacionam intimamente na constituição significativa da experiência humana, liberando o animal humano das relações imediatas por motivos meramente pragmáticos com o mundo natural. Assim, com o desenvolvimento da faculdade da linguagem, o trato do animal humano com o mundo muda radicalmente, e o sentido de uma experiência ou ação individual se produz na atuação, no engajamento linguístico-perceptual-cognitivo do indivíduo no mundo biofísico-social em práticas sociointeracionais, ou seja, conjuntamente com os outros.

 

1. O subjetivo e o social na constituição do sentido

 

Longe de supor que seja simples dizer o que é o “sentido”, é inevitável começar considerando a questão, se  o que se pretende é mostrar como a existência humana em sociedade vai-se dotando de sentido. Schütz, em seu A construção significativa do mundo social (2018), dá-nos a saber a seguinte definição de “sentido”:

 

Sentido é antes (...) a designação de determinado direcionamento do olhar a uma vivência própria, que nós, imersos no simples viver no curso da duração, somente em um ato reflexivo podemos “destacar” ante todas as outras vivências na forma de uma vivência bem-circunscrita. Sentido designa, portanto, uma atitude específica do eu ante o curso de sua duração. (2018, p. 71, grifos meus).

 

Num primeiro momento,  Schütz sugere que o “sentido” é um fenômeno da consciência subjetiva. Ademais, o sentido só pode ser apreendido em retrospectiva, ou seja, no momento em que o “eu” retoma na reflexão uma vivência passada destacando-a das vivências no curso da duração. Outro aspecto importante do sentido, segundo Schütz, é a sua relação com o tempo. Segundo o autor, “o problema do sentido é um problema referente ao tempo”. (ibid., p. 32). Mas não se trata do tempo divisível e mensurável, tampouco do tempo histórico. O sentido refere-se  “à consciência interna do tempo, à consciência da duração própria ao ego, na qual para o vivenciante, constitui-se o sentido de suas vivências”. Ainda que, até aqui, o sentido esteja sendo definido da perspectiva estritamente subjetiva ou individual, está claro que o sentido tem relação com as vivências do indivíduo humano no mundo, e nada tem a ver com uma instância metafísica “doadora” de sentido (embora essa “instância metafísica”, enquanto constructo social, ficção sócio-histórica, seja parte integrante de sistemas de valores superiores que preenchem a vida e a conduta humanas de sentido).

Ainda segundo Shütz, quando estamos imersos no simples viver e em atitude natural com relação ao mundo, vivemos sob a vigência de nossos atos doadores de sentido. Assumo habitualmente a objetualidade “sentido objetivo” constituída neles.

 

“Somente quando me distancio – como diz Bergson, “em árduo esforço” – do mundo dos objetos e me volto à minha corrente interna da consciência, apenas quando (na terminologia de Hurssel, ponho o mundo natural “entre parênteses” e, em redução fenomenológica, tomo em perspectiva somente as minhas vivências mesmas de consciência, apercebo-me desse processo de constituição”. (ibid., p. 64).

 

 

A despeito do fato de cada indivíduo atribuir sentido ao seu agir e de apreender seus atos individuais como dotados de sentido, uma vez que o mundo social se constitui e se constrói, em sua vida diária, pelo concurso da atividade dos outros indivíduos, cada indivíduo se depara com um sentido objetivado, já dado. Ao mundo social pertencem nossos atos de compreensão e posição de sentido, bem como nossas representações atinentes ao sentido do nosso comportamento e ao do comportamento alheio; ademais, a esse mundo social pertence também o sentido das objetivações culturais. Schütz não ignora a dimensão intersubjetiva do fenômeno do sentido, conforme se observa no trecho abaixo:

 

“A construção do mundo social tem caráter significativo para aqueles que o habitam; mas, por outro lado, também para as ciências sociais, que interpretam o mundo social que lhes é pré-dado. Vivendo no mundo social, vivemos com e para outros indivíduos, pelos quais orientamos nossa atividade diária. Ao vivenciá-los como “os outros”, como consociados ou contemporâneos, predecessores ou sucessores, ao nos vincularmos a eles em comum operar e efetivar, ao instigá-los a tomadas de posição, compreendemos o comportamento desses outros indivíduos e pressupomos que compreendem o nosso. Nesses atos de interpretação e de posição de sentido, se constrói, para nós, em distintos graus de anonimato, em maior ou menos proximidade vivencial, em variadas perspectivas de apreensão que se cruzam, a estrutura de sentido do mundo social, o qual é tanto nosso mundo (a rigor, antes de tudo, meu mundo) como também o dos outros indivíduos”. (ibid., p. 28, grifo meu).

 

 

Portanto, a construção da estrutura de sentido do mundo social é trabalho conjunto e cooperativo das ações individuais. O mundo social é vivenciado como significativo pelos atores sociais. Os fenômenos do mundo social não têm sentido apenas para mim, ou para um indivíduo B ou C, senão para todos os indivíduos que, juntos, vivem neste mundo, e os quais encontram, ao nascer, como pré-constituído, previamente dado, esse mundo externo. Por isso, segundo Shütz, “toda doação de sentido desse mundo por mim realizada toma como referência original a doação de sentido feita pelo tu em seu vivenciar, e assim se constitui sentido enquanto fenômeno intersubjetivo”. (ibid., p. 59).

É preciso aprofundar estas reflexões sobre a questão da constituição do sentido em seu nível elementar. Segundo Berger & Luckmann (2012), o sentido se constitui na consciência humana, mas essa consciência é constituída em processos sociais. Para os autores, “sentido é a consciência de que existe uma relação entre as experiências”. (ibid., p. 15). As vivências constituem, portanto, o solo sobre o qual se constituirá o sentido; mas elas mesmas ainda não são significativas. As vivências (lembre-se que elas são apenas fluxos) só se tornam experiências quando sobre elas recai a atenção do eu. Mas somente quando as experiência assim delineadas se separam da base da vivência, e a consciência estabelece a relação dessa experiência destacada com outras experiências, o sentido se torna possível e apreensível. Consoante os autores, “a experiência atual em dado momento pode ser relacionada com uma experiência já acontecida há pouco ou num passado remoto” (ibid.). Mas, geralmente, a experiência atual é relacionada com um tipo de experiência, com um esquema de experiência, uma máxima comportamental, uma legitimação moral, etc, todos derivados de muitas experiências armazenadas no conhecimento subjetivo ou no acervo social do conhecimento.

Nesse nível elementar da constituição de sentido, também Berger & Luckmann não fazem qualquer alusão ao papel desempenhado pela linguagem na constituição do sentido do mundo social. Eles atribuem à consciência do indivíduo a capacidade de doar sentido às suas experiências.  Veremos que os autores não deixam de considerar o papel fundamental da linguagem na fabricação social da realidade; mas penso que não deveria ser negligenciada a influência da linguagem simbólica na constituição da própria consciência à qual se atribui o papel de doar sentido às experiência humanas. O agir é, por si mesmo, investido de sentido para cada ator social. A todo agir é atribuído um sentido pelo indivíduo. Mas essa atribuição de sentido não é feita por uma consciência desamparada de qualquer simbolismo. Berger e Luckmann mantém que o sentido do agir é prospectivo, pois que é orientado por um objetivo a ser alcançado; mas reconhecem que a ação realizada é retrospectivamente significativa. O sentido do agir que está para ser realizado se constitui na relação de cada etapa da ação com o objetivo pretendido. A ação já concluída, bem-sucedida ou fracassada, segundo os autores, “pode ser comparada com outras, pode ser entendida como o cumprimento de máximas comportamentais, ser explicada e justificada como execução de leis, ser desculpada como violação de normas, ser negada a outros  e – em caso extremo – também a si mesma” (ibid., p. 17). Não se vê, pois, como é possível que todas as articulações de sentido possam ser possíveis sem a intervenção da função de simbolização da linguagem. Ora, a própria possibilidade de explicar e justificar uma ação como execução de leis pressupõe o uso de signos como meios de expressão. Num nível elementar de sua ocorrência, o agir pode derivar seu sentido de sua relação com o fim a que visa, mas, à medida que o agir vai assumindo uma espessura social, vai tomando parte de uma rede de relações e ações sociais; quando o agir se torna, enfim, agir social, o seu sentido se estrutura e se sustenta numa rede simbólica (instituição). Somente postulando o investimento simbólico do agir é possível falar, como pretendem os autores, num agir social “direcionado a pessoas presentes ou ausentes, a mortos e não nascidos”.

 

 

“O agir social pode ser direcionado a pessoas presentes ou ausentes, a mortos e não nascidos; pode querer abordá-los em sua individualidade, ou como tipos sociais de diferentes graus de anonimidade, ou mesmo como simples membros de grupos sociais. Pode visar a uma resposta ou não. Pode ser intencionado como único, ou visando à repetição regular ou prolongação no tempo. Nessas diferentes dimensões de sentido é que se constrói a significância complexa do agir e das relações sociais”. (ibid., p. 17).

 

Segundo os autores, é no agir social que se constitui a identidade pessoal do indivíduo. Além disso, “vivências puramente subjetivas são o fundamento da constituição do sentido: estratos mais simples de sentido podem surgir na experiência subjetiva de uma pessoa” (ibid., p. 17-18). Berger & Luckmann também aqui acompanham Schütz ao assinalar o caráter fundamental das vivências subjetivas na constituição do sentido, mas lembram que as vivências subjetivas só fornecem “estratos mais simples de sentido”. Ao contrário, estratos superiores de sentido, com base nos quais o indivíduo pode fazer “conexões lógicas complicadas, dar início e controlar sequências diferenciadas de ação e recorrer ao tesouro disponível de experiências em seu ambiente” (ibid.), já pressupõem a existência de objetivações de sentidos subjetivos no agir social. O subjetivo e o social estão numa relação dialética na constituição do sentido, porque mesmo os estratos inferiores de sentido abrigam também elementos de sentido historicamente produzidos como herança de antigas formas do agir social, a que se pode chamar de tradições. Assim, tipificações, classificações, padrões de experiência e esquemas de ação são componentes do acervo subjetivo do conhecimento, os quais são tomados, por sua vez, de um acervo social do conhecimento. Aqui cabe precisar o que significa conhecer. Conhecer é organizar, estruturar e explicar a realidade a partir daquilo que se vivencia nas experiências com os objetos, com as coisas. O conhecimento socialmente relevante é já textualmente fundado; portanto, constituído, organizado e comunicado pela linguagem simbólica.

Para que possamos examinar com mais vagar e acuro de que modo o sentido da existência humana é uma dimensão essencial do trabalho de edificação do mundo social, é preciso enfatizar que a ordem social existe unicamente como produto da atividade humana. Não é razoável lhe atribuir qualquer outro estatuto ontológico sem mascarar as evidências Como ensinam Berger & Luckmann, “tanto em sua gênese (ordem social resultante da atividade humana passada) quanto em sua existência em qualquer instante do tempo (a ordem social só existe na medida em que  a atividade humana continua a produzi-la) ela é um produto humano”. (2007, p. 76). A autoprodução do homem é sempre e necessariamente um trabalho social. São os homens que, conjuntamente uns com os outros, produzem um mundo histórico-social – portanto, humano -  com a totalidade de suas formações socioculturais e psicológicas. Nenhuma dessas formações pode ser considerada produto da constituição biológica do homem, a qual apenas fixa os limites externos da atividade produtora humana. Segue-se daí que a) a sociedade é um produto humano; b) a sociedade é uma realidade objetiva; c) o homem é um produto social.  São estes os três momentos dialéticos da constituição da realidade social. Cada um deles corresponde a uma caracterização essencial do mundo social. No viver cotidiano, cada indivíduo experiencia o mundo institucional como uma realidade objetiva. Esse mundo de instituições tem uma história que antecede o nascimento do indivíduo e não é acessível à sua lembrança biográfica. Já existia antes de ele ter nascido e continuará a existir depois que morrer. Essa própria história, tal como a tradição das instituições existentes, tem caráter de objetividade. A biografia do indivíduo é apreendida como um episódio efêmero localizado na história objetiva da sociedade. As instituições são facticidades históricas e objetivas, com as quais se defronta o indivíduo, que as assume como fatos inegáveis. As instituições estão aí, exteriores a ele, persistentes em sua realidade, queira ele ou não. Elas resistem às tentativas de alterá-las ou de evadir-se delas. Elas exercem um poder coercitivo sobre ele, tanto pela força de sua facticidade, quanto pelos mecanismos de controle geralmente ligados às mais importantes delas. A realidade objetiva das instituições sociais não se enfraquece ou perde espessura se o indivíduo não compreende sua funcionalidade ou seu modo de funcionamento. Nas seções subsequentes, estará sob escopo de minhas considerações o que são as instituições, como elas se originam e de que modo elas são responsáveis por processos sócio-históricos e individuais de produção de sentido. Os autores não deixam de reconhecer, no entanto, que os problemas a serem solucionados surgem no “agir social interativo”, de sorte que “as soluções sejam encontradas em comum”. (ibid.). Ademais, os problemas que se colocam para um indivíduo são relevantes intersubjetivamente, já que são problemas comuns à vida de outras pessoas.

 

2. As instituições: as origens de sua constituição

 

Pode-se definir as instituições como hábitos de grupos, que se desenvolvem de modo independente da vontade e consciência dos indivíduos e sem planejamento. Esses hábitos vão sendo generalizados, à proporção que certas formas de agir, pensar e sentir são largamente adotadas e reiteradas ao longo do tempo, até que se tornam comportamentos rotineiros e axiomáticos. Constituem exemplos de instituições a propriedade privada, a família, o contrato, a lei, a democracia, a cidadania, a religião, a escola, a polícia, a Constituição, etc. As instituições também podem ser concebidas como aglomerados de normas ou expectativas sociais que se generalizam como obrigatórias e que se sustentam por rigorosas sanções, as quais asseguram a conformidade dos indivíduos a essas normas. As normas de que se constituem as instituições definem os papeis sociais e as relações entre eles. A concepção do que são instituições que merecerá minha atenção, mais adiante, é a que nos dá a saber Castoriadis, em A instituição imaginária da sociedade (1982). Por ora, interessa-me dispensar atenção sobre o modo como as instituições se originam, se tornam realidades objetivas, como operam na constituição do amálgama de significados que formam a ordem social. Outrossim, interessa-me examinar como elas estocam, controlam e transmitem os sentidos que integram o reservatório histórico de sentidos.

Consoante ensinam Berger & Luckmann, “ toda atividade humana está sujeita ao hábito” (2007, p. 77, grifo meu). Portanto, o hábito é um elemento indispensável na formação das instituições. Toda ação humana frequentemente repetida torna-se moldada em um padrão, o qual pode, em seguida, ser reproduzido com economia de esforço. Este é um dos papéis importantes desempenhados pela instituição: elas foram criadas com vistas a aliviar o indivíduo do peso de ter de reinventar o mundo a cada dia e de ter de se orientar dentro dele. O hábito também pressupõe que a ação individual pode ser novamente executada no futuro da mesma maneira e com a mesma economia de esforço. As ações que se tornam habituais conservam seu caráter significativo para o indivíduo, mas o significado delas é estocado como parte de um acervo geral de conhecimentos na forma de rotinas. Quando consideramos os significados atribuídos pelo homem à sua atividade, é importante frisar que o hábito “torna desnecessário que cada situação seja definida de novo, etapa por etapa” (ibid., p. 78). Destarte, uma grande quantidade variada de situações pode estruturar-se sob suas pré-definições. Como assinalam Beger & Luckmann, “estes processos de formação de hábitos precedem toda institucionalização”. (ibid.).

A instituição começa, quando se dá uma tipificação recíproca de ações habituais por tipos de atores sociais. Na verdade, qualquer uma das tipificações é uma instituição. O que é decisivo na institucionalização é a reciprocidade das tipificações institucionais e o caráter típico não somente das ações, mas também dos atores sociais nas instituições. As tipificações das ações habituais que constituem as instituições são sempre partilhadas. São acessíveis a todos os membros de um grupo social, e a própria instituição tipifica os atores individuais, assim como as ações individuais. Portanto, a instituição pressupõe que ações do tipo X serão executadas por atores do tipo X. Por exemplo, a instituição da Lei postula que certo tipo de crime receberá certo tipo de sanção, a qual deverá ser aplicada por certos tipos de atores cujos papéis são definidos institucionalmente. As instituições, portanto, implicam historicidade e controle. As tipificações recíprocas das ações são constituídas no curso de uma história compartilhada. As instituições têm sempre uma história da qual são produtos.

Quando se diz que a realidade social ou institucional é objetivada ou é dotada de objetividade, quer-se dizer que as instituições são experimentadas como existindo por cima e além dos indivíduos que passam a internalizá-las. Em outras palavras, as instituições são experienciadas como se possuíssem realidade própria, realidade com a qual os indivíduos se defrontam na condição de fato exterior e coercitivo. No processo de transmissão às novas gerações, a objetividade do mundo institucional se torna espessa e endurece, e entra a fazer parte das estruturas da consciência em toda a sua firmeza. A objetivação é, portanto, o processo através do qual os produtos exteriores da atividade humana adquirem o caráter de objetividade. Assim, o mundo institucional é atividade humana objetivada. A relação entre o homem, que é o verdadeiro produtor, e o mundo social, o seu produto, é e permanece sendo uma relação dialética, isto é, o homem em coletividade e o seu mundo social agem reciprocamente um sobre o outro, de sorte que o produto (a sociedade) reage sobre o seu produtor (o homem). O que me causa espanto não é só o fato de que as instituições humanas, enquanto criações da atividade humana, ajam sobre os homens, seus criadores; mas também a “servidão voluntária” habitual do homem comum que o torna dócil ao fato de que são os próprios membros de sua espécie animal que cria realidades que os oprimem e que os controlam. Mas a explicação para o conformismo do homem comum deve ser buscada no fenômeno da reificação (coisificação) da realidade.

A questão que se impõe, portanto, no processo de objetivação, é a seguinte: até que ponto uma ordem institucional ou uma parte dela é apreendida como uma facticidade não humana? A reificação é a apreensão dos fenômenos sociais humanos como se fossem coisas, isto é, realidades humanas como se fossem realidades não humanas ou sobre-humanas. A reificação é a apreensão dos produtos da atividade humana como se fossem algo diferente de produtos humanos, como se fossem fatos da natureza ou manifestações da vontade divina. Na reificação, o homem produz e continua a produzir uma realidade que o nega. Eis o paradoxo da condição humana que o homem comum, cuja consciência já se estruturou e opera sob o domínio da reificação, não pode reconhecer e em face do qual sequer é capaz de “espantar-se” (sentimento eminentemente filosófico!) ! O homem, o produtor de um mundo que saiu de suas mãos e cabeça, é apreendido como produto deste mundo, e a atividade humana como um epifenômeno de processos não humanos. Para a consciência reificada, os significados humanos não são mais compreendidos como produzindo o mundo, mas como sendo produtos da natureza das coisas. A reificação é, pois, uma modalidade da objetivação do mundo humano levada a efeito pelo homem.

Todas as instituições, portanto, dão “corpo” a um sentido “primário”, “primitivo” da ação que se tornou habitual na regulamentação definitiva do agir social, numa área funcional determinada. Há instituições que desempenham a tarefa, especialmente importante, de reprocessamento social do sentido. As mais importantes delas são as que se destinam a controlar a produção e a transmissão do sentido. Segundo Berger & Luckmann, “tais instituições existiram em quase todas as sociedades arcaicas”. (2012, p.  22). Em sociedades antigas mais avançadas, nas sociedades do início da modernidade e, por exemplo, em várias sociedades do Oriente Próximo, atualmente, as instituições religiosas com seus códigos morais estiveram e estão ligadas intimamente às esferas de poder. Elas podiam aspirar (em alguns casos, ainda aspiram), com êxito, tanto ao controle da produção quanto ao controle da distribuição de uma hierarquia relativamente coerente de sentido estruturante da sociedade global. O que me parece importante sublinhar aqui é que o sentido desta ou daquela ação ou experiência, ou mesmo o que o homem comum acostumou-se a denominar de “o sentido da vida” já foi produzido, reprocessado, administrado e distribuído pelas instituições sociais antes que ele pudesse ser integrado à sua biografia. O sentido que um indivíduo atribui a sua vida já foi organizado, reprocessado e é administrado e colocado à sua disposição pelas instituições. Segue-se daí que é possível falar em uma economia doméstica do sentido. Esta economia supõe que há condições histórico-sociais de produção e distribuição social do sentido e um mercado consumidor aberto. Por conseguinte, segundo Berger & Luckmann, “concorre então uma grande quantidade de fornecedores de sentido para obter o favor de um público que se vê confrontado com a dificuldade de escolher entre uma infinidade de ofertas a mais adequada”. (ibid., p. 23).

 

 

2.1. As instituições e seu poder de controle: as comunidades de vida e de sentido

 

 O modo como as instituições exercem controle tanto sobre a conduta humana quanto sobre a produção, administração e comunicação do sentido conservado é o que me ocupará doravante. O controle das instituições sobre a conduta humana se dá pelo simples fato de elas existirem, já que elas estabelecem padrões previamente definidos de conduta. Tais padrões determinam uma direção para a conduta entre tantas outras direções teoricamente possíveis. Como já vimos, as instituições foram criadas para aliviar o indivíduo do peso da necessidade de reinventar o mundo a cada dia. Acresça-se que, para tanto, as instituições criam “programas” que orientam a realização da interação social e a realização de “currículos de vida”. Elas fornecem, pois, padrões comprovados segundo os quais um indivíduo pode orientar seu comportamento. Uma vez que se comportam segundo esses modos de comportamento estabelecidos institucionalmente, os indivíduos aprendem a cumprir as expectativas relacionadas a certos papéis como casado, pai, empregado, contribuinte, transeunte, consumidor, etc. Sempre que as instituições funcionam normalmente, o indivíduo exerce os papéis a ele atribuídos pela sociedade na forma de esquemas institucionalizados de ação e conduz sua vida sob a forma de currículos de vida assegurados institucionalmente e com alto grau de autoevidência. É da conservação da “autoevidência” que as instituições obtêm toda a sua força vital. Todavia, uma instituição se vê ameaçada quando os membros que vivem dentro dela começam a refletir sobre os papéis institucionais relevantes, as identidades fixadas, os esquemas de interpretação, os valores e as visões de mundo pelos quais ela é responsável.

As instituições vêm preencher a carência de instintos no homem, possibilitando um agir para o qual nem sempre é necessária cuidadosa ponderação sobre alternativas. Por isso, como fazem ver Beger & Luckmann, “muitas interações sociais importantes do ponto de vista da sociedade são realizadas de forma quase automática”. Cumpre ainda salientar que os programas institucionais são internalizados na consciência do indivíduo, guiando-o no seu agir e tornando-o um experienciador de um sentido do qual ele passa a acreditar que é autor. Os programas institucionais são organizados na consciência em processos de camadas múltiplas. Na socialização primária, fixam a base fundamental da construção da identidade pessoal; posteriormente, na socialização secundária, fazem o ajustamento do indivíduo aos papéis que lhes são atribuídos na realidade social e, sobretudo, o introduzem no mundo do trabalho. Todos esses momentos do controle institucional vão possibilitar que as estruturas da sociedade se tornem as estruturas da consciência, para o que a linguagem simbólica desempenhará um papel fundamental, conforme veremos. Assim é que escravos e senhores, trabalhadores e capitalistas comportam-se em conformidade com seus papéis, como também pensam, sentem e se consideram a si mesmos de modo correspondente à conduta própria do seu papel. Mas é claro também que a subjetividade do indivíduo não precisa estar conformada plenamente com a realidade objetivamente definida pela sociedade. No processo da socialização dele, haverá pequenas fissuras, ou pode haver grandes rupturas.

Passo, doravante, a discutir como as instituições controlam a produção, a administração e  a comunicação do sentido que integra o reservatório histórico do sentido. Mas, antes, é necessário compreender como se forma esse “reservatório histórico de sentido”. Dada a complexidade do tema que venho discutindo, faz-se mister lembrar que, através do estudo de que este ensaio é um testemunho, tenho procurado mostrar que o sentido que atribuímos às nossas experiências na vida diária, bem como as camadas totalizantes de sentido reunidas sob o rótulo “o sentido da vida” não são achados individuais, ou “criações” de consciências individualizadas; se o indivíduo diz encontrar sentido em suas ações, em suas atividades, em sua vida, isso é possível porque antes dele e para além dele operam processos institucionais geradores de sentido. Portanto, todas as sociedades estão envolvidas em processos destinados a produzir sentido, mesmo que não tenham instituições especializadas na produção dele. As instituições, quer sejam especializadas, quer não, controlam a recepção dos elementos de sentido por meio de estoques sociais de conhecimento e organizam as reservas históricas de sentido, tornando possível aos membros da sociedade o acesso a elas. Uma vez que os indivíduos aproveitam as reservas históricas de sentido, eles as adaptam às novas necessidades. Por meio de suas instituições, as sociedades humanas conservam as partes essenciais de sua reserva de sentido. O momento fundamentalmente importante é este: as instituições sociais comunicam sentido ao indivíduo e às comunidades de vida em que esse indivíduo cresce, trabalha e morre. Elas determinam o sentido subjetivo em amplas esferas de seu agir, enquanto o sentido objetivo desse agir é organizado e prescrito pelas grandes instituições de poder e economia. Para Berger & Luckmann, a crise estrutural de sentido experienciada pelo homem moderno e tão fartamente estudada pelos especialistas é consequência do pluralismo moderno. Assim, propõem os autores que “o pluralismo moderno leva a um enorme relativismo dos sistemas de valores e da interpretação. Em outras palavras: os antigos sistemas de valores e de interpretação são “descanonizados”. (2012, p. 52). Nas sociedades modernas, há diferenças no grau de coerência dos sistemas de valores, bem como na competividade interna e externa na produção, comunicação e imposição de sentido.

A fim de que se esclareça o modo como as instituições exercem controle sobre a produção, administração e comunicação do sentido, preciso definir os conceitos, tomados a Berger & Luckmann, de comunidade de vida e comunidade de sentido.

Comunidades de vida são agrupamentos sociais caracterizados por um agir que se repete com regularidade e com reciprocidade em relações sociais duráveis. Seus integrantes demonstram uma confiança institucional, uma confiança na durabilidade da comunidade. A forma básica universal das comunidades de vida são as comunidades em que se nasce. Mas pode haver também comunidades de vida de que alguém entra a fazer parte por adoção ou por casamento. Há comunidades de vida que exigem uma iniciação, como as Ordens religiosas. Há comunidades de vida que se formam em decorrência de uma modificação da vida, como lares de idosos, prisões, etc. As comunidades de vida precisam ter o mínimo de sentido, mas o contrário não é necessário.

Vimos que as reservas de sentido objetivadas e processadas pela sociedade são conservadas em reservatórios históricos de sentido e são administradas pelas instituições. Assim, ao controle da produção de sentido se associa a comunicação do sentido. Por meio da educação ou de processos de doutrinação orientada, os indivíduos habitua-se a só pensar e fazer o que corresponde às normas da sociedade. Busca-se, por meio do controle do sentido, censurar tudo o que é publicamente dito, ensinado e pregado; impede-se a difusão de opiniões divergentes. Assim, o sentido do agir e o sentido da vida é já determinado como regra óbvia de conduta de vida, a cuja adoção todos se sentem obrigados. Por exemplo, define-se inquestionavelmente o relacionamento entre os casados e entre os pais e os filhos. Os pais e os filhos, geralmente, se conformam; os desvios são claramente definidos como “desvios de norma” ou “desvios de conduta”. Decerto, nas sociedades modernas, há diferenças no grau de coerência dos sistemas de valores, bem como na competitividade interna e externa na produção, comunicação e imposição do sentido.

O agir social do indivíduo é moldado pelo sentido objetivo, colocado à disposição pelos acervos sociais de conhecimento e comunicado pelas instituições, mediante a pressão que elas exercem para que sejam acolhidos. Considere-se a situação da criança, a fim de que compreendamos como se constituirá a significação da estrutura intersubjetiva das relações sociais.

Desde o seu nascimento, a criança está inserida numa relação social: com seus pais e com outras pessoas relacionalmente importantes para ela. Essas relações se desenvolvem através de ações regulares, diretas e recíprocas. A criança pequena, conquanto não seja ainda capaz de agir propriamente, é um organismo individualizado dotado das capacidades sensório-motoras e cognitivas inerentes à espécie humana. Ela as emprega em seu comportamento nas relações com os outros. Por outro lado, o agir dos outros em relação à criança é determinado, em grande medida, por esquemas de experiência e ação que se originam do reservatório de sentido de sua sociedade. A criança, por seu turno, vai aprendendo, progressivamente, a entender o agir do seu interactante e a compreender o sentido dele. É nesse momento que ela passa a entender as reações do outro como um campo de referência para seu próprio comportamento. Ela pode compreender seus modos de proceder como ações típicas à luz dos padrões historicamente dados de experiência e ação. A criança mesma se posiciona em relação às reservas sociais de sentido. São nesses processos formativos que se vai desenvolvendo sua identidade pessoal. Uma vez que tenha compreendido o sentido do seu agir, compreende também que lhe cabe assumir responsabilidade por ele.

Se, numa situação ideal, os pais e os outros significativos de referência para a criança tenham formado suas identidades pessoais em consonância com os padrões do reservatório histórico de sentido, o comportamento da criança irá se moldar coerentemente com o agir dos outros. A maioria das crianças nasce em comunidades de vida que são também comunidades de sentido, mesmo que em graus bastante distintos. Disso se segue que, na ausência de uma reserva de sentido compartilhada universalmente e ajustada a um sistema de valores único e fechado, concordâncias de sentido podem-se desenvolver no interior de comunidades de vida ou podem ser “importadas” do reservatório histórico de sentido. Por fim, essas concordâncias de sentido poderão também ser comunicadas às crianças de maneira assaz coerente.

Por seu turno, as comunidades de sentido podem-se tornar, em alguns casos, comunidades de vida, mas são construídas e mantidas exclusivamente por meio de um agir comunicável e recíproco. Comunidades de sentido são formadas em diferentes níveis de sentido, não diretamente baseados na experiência de vida, e podem se referir a diferentes campos de sentido, como por exemplo, o filosófico, tais como os círculos humanísticos dos inícios da modernidade, o científico, etc.

É possível que a comunidade de vida e a comunidade de sentido coincidam tanto quanto são as expectativas da sociedade. Nesse caso, a vida social e a existência do indivíduo se desenvolvem de maneira habitual e quase de forma autoevidente. Isso não significa dizer que o indivíduo não possa experienciar problemas existenciais. É possível mesmo que, a despeito da coincidência entre a comunidade de vida e a comunidade de sentido, o indivíduo não se sinta muito satisfeito com o seu destino. Todavia, nessas condições “normais”, ele “sabe”, ao menos, como o mundo é, como deve ser seu comportamento nesse mundo, o que pode esperar, etc. O pluralismo que caracteriza os modos de vida das sociedades modernas suspeita desse “conhecimento” autoevidente. Mundo, sociedade, vida e identidades são continuamente problematizados com mais vigor, e podem ser submetidos a várias interpretações, cada uma das quais está relacionada às suas próprias expectativas de ação. Nenhuma interpretação, nenhuma perspectiva podem ser assumidas como únicas em validade ou serem consideradas inquestionavelmente corretas.

 

3. O papel da linguagem na institucionalização

 

Já aludi, alhures, ao papel que a linguagem simbólica desempenha na constituição das experiências humanas. Entretanto, é preciso descer a pormenores sobre como a linguagem simbólica e como o simbolismo contribuem fundamentalmente para a constituição significativa da ordem social. A linguagem objetiva as experiências partilhadas e as torna acessíveis a todos os que vivem numa comunidade linguística. A linguagem é a base da constituição do acervo social do conhecimento. A linguagem fornece os meios indispensáveis para a objetivação de novas experiências, permite que elas sejam incorporadas ao estoque já existente de conhecimento. A linguagem é o meio mais importante mediante o qual as sedimentações objetivadas são transmitidas na tradição da coletividade.

Tendo em vista a necessidade de compreender o papel que a linguagem desempenha na construção de uma realidade social significativa, de um mundo humano comum dotado de significados, é preciso reiterar o fato de que o animal humano é um animal semiótico que se expressa no mundo por meio de objetivações, isto é, ele manifesta a si mesmo nos produtos de sua atividade. Tais produtos estão à disposição tanto dos produtores quanto dos outros indivíduos como elementos integrantes de um mundo comum. Essas objetivações servem de índices mais ou menos duradouros dos processos subjetivos de seus produtores. A produção humana da significação é a produção de signos ou símbolos. A linguagem não somente permite aos homens dispor de símbolos bastante abstraídos da experiência diária, como também povoa a vida cotidiana desses símbolos e os apresenta como elementos objetivamente reais. A linguagem simbólica e o simbolismo são, pois, componentes essenciais da realidade da vida cotidiana. Como bem pontuam Berger & Luckmann, “vivo em um mundo de sinais e símbolos todos os dias”. (2007, p. 61).

A linguagem, portanto, longe de se reduzir a um meio de comunicação, opera a objetivação da experiência, ou seja, a sua transformação em objeto de conhecimento acessível a todos. Assim, permite que essa experiência transformada em conhecimento seja incorporada ao conjunto amplo de tradições por via de instrução moral, da alegoria religiosa, dos sermões, etc. Toda a experiência humana e suas significações mais amplas podem ser ensinadas a todas as gerações, ou mesmo difundidas para uma coletividade inteira.

A linguagem permite-me a imediata objetivação de minha experiência atual. Ela também tipifica as experiências, possibilitando-me agrupá-las em amplas categorias na base das quais elas têm sentido não só para mim, mas também para os outros. A linguagem também torna anônimas as experiências; elas podem ser repetidas por qualquer pessoa definida pela categoria fornecida pela linguagem. Por exemplo, se brigo com minha sogra, esta experiência subjetivamente única e concreta tipifica-se linguisticamente sob a categoria [ABORRECIMENTO COM MINHA SOGRA]. Esta tipificação torna a experiência dotada de sentido para mim e para os outros e, possivelmente, para a minha sogra. Assim, essa mesma tipificação ganha anonimato. Qualquer pessoa (na categoria de genro) pode ter aborrecimento com a sogra. Destarte, minhas experiências biográficas estão sendo continuamente categorizadas em ordens gerais de significados, objetiva e subjetivamente reais. A linguagem, portanto, vai constituindo a significação da realidade do mundo na medida em que constrói esquemas de classificação ou campos semânticos, que são zonas de significação linguisticamente circunscritos dos quais fazem parte o léxico e a gramática. Assim, construindo esquemas de classificação ou campos semânticos, a linguagem permite diferenciar objetos em gênero e em número; disponibiliza formas para realizar enunciados de ação por oposição a enunciados de “ser” (estado), modos de marcar grau de intimidade social, etc. É assim que se vai constituindo um mundo com uma rica coleção de significados que me serão úteis e indispensáveis para a ordenação de minha experiência social. Por exemplo, a soma das objetivações linguísticas referentes à minha ocupação constitui outro campo semântico que ordena de maneira significativa todos os acontecimentos de rotina que encontro em meu trabalho diário. Nos campos semânticos assim construídos, a experiência tanto biográfica quanto histórica pode ser objetivada, conservada e acumulada. A acumulação é seletiva, pois os campos semânticos determinam aquilo que será retido e o que será tratado como parte da experiência total do indivíduo e da sociedade. Por força dessa acumulação de experiências objetivadas, um acervo de conhecimento social se constitui e é transmitido de uma geração a outra. Ademais, ele torna-se utilizável pelo indivíduo na vida cotidiana. Assim, se forma o que chamamos de senso comum de uma sociedade ou cultura:

“Vivo no mundo do senso comum da vida cotidiana equipado com corpos específicos de conhecimento. Mais ainda, sei que outros partilham, ao menos em parte, deste conhecimento, e eles sabem que eu sei disso. Minha interação com os outros na vida cotidiana é por conseguinte constantemente afetada por nossa participação comum no acervo social disponível do conhecimento”. (ibid., p. 62).

 

É extremamente importante sublinhar a propriedade que tem a linguagem simbólica de estabelecer relações, de edificar pontes entre diferentes zonas dentro da realidade da vida, integrando-as em uma totalidade dotada de sentido. A linguagem tem a função de tornar presente uma grande variedade de objetos que estão espacial, temporal e socialmente ausentes do “aqui e agora”. Em virtude da função de simbolização da linguagem, uma vasta acumulação de experiências e significados podem ser objetivados no “aqui e agora”, ou seja, nos espaços de vivências atuais dos indivíduos. Os signos e os símbolos fazem o homem habitar num mundo significativamente estruturado distinto do mundo da experiência diária e de outros mundos nos quais vivem outras espécies de animais. Assim, segundo Berger & Luckmann,

 

“A linguagem constrói, então, imensos edifícios de representação simbólica que parecem elevar-se sobre a realidade da vida. A religião, a filosofia, a arte e a ciência são os sistemas simbólicos historicamente mais importantes deste gênero”. (ibid., p. 61).

 

 

Processos simbólicos são justamente “processos de significação que se referem a realidades diferentes das pertencentes à experiência da vida cotidiana” (ibid., p. 131). A “magia do símbolo” consiste em criar um mundo outro de signos, símbolos, palavras, significados que se sobrepõem ao mundo de nossa experiência sensível; um mundo “ficcional” (inventado), mas nem por isso menos “real”. Ao contrário, esse mundo estruturado pelos processos simbólicos tem uma concretude, uma materialidade histórica que se impõe a todos como a única realidade verdadeiramente acessível e experimentável.

 

3.1. Linguagem e legitimação

 

A legitimação não apenas diz ao indivíduo por que ele deve realizar uma ação e não outra; diz-lhe também por que as coisas são o que são, são como são. O conhecimento precede, pois, os valores na legitimação das instituições. A função da legitimação é produzir novos significados que servirão para integrar e organizar significados já produzidos e ligados a instituições diferentes. A função da legitimação consiste em tornar objetivamente acessíveis e subjetivamente aceitas as objetivações que já foram institucionalizadas. A legitimação só se torna necessária quando as objetivações da ordem institucional histórica têm de ser transmitidas a uma geração seguinte. Como o caráter evidente das instituições não pode mais ser conservado pela memória e pelos hábitos do indivíduo, como a unidade de historia e biografia foi rompida, faz-se mister restaurá-la, elaborando explicações e justificações que tornem inteligíveis ambas as dimensões dessa unidade. A legitimação consiste nesse processo de explicação e justificação da ordem institucional e de validação cognoscitiva de seus significados. A legitimação não envolve apenas “valores”, mas sempre “saberes”, “conhecimento”.

Graças à linguagem, é possível assegurar a superposição da lógica sobre o mundo social. O edifício das legitimações erige-se sobre a linguagem e dela se utiliza como seu principal instrumento. Daí se segue que a “lógica” atribuída à ordem institucional integra o acervo socialmente disponível de conhecimento, o qual é tomado como natural e certo. Na medida em que o indivíduo bem socializado “sabe” que seu mundo social é uma totalidade sólida e coerente, ver-se-á obrigado a explicar o funcionamento dele nos termos desse “conhecimento”. Não surpreende que seja comum, consequentemente, que quem quer que atente para qualquer sociedade admita que suas instituições efetivamente funcionam e se articulam de modo tal como presumivelmente devem ser.

A legitimação se constitui em diferentes níveis. Já se pode encontrar uma legitimação incipiente, tão logo um sistema de objetivações linguísticas da experiência humana seja transmitido. Por exemplo, a aquisição do vocabulário de parentesco legitima a estrutura do parentesco. Em outras palavras, o vocabulário de parentesco inclui explicações legitimadoras que tornam possível que uma criança aprenda que outra criança é primo. Essa informação, por sua vez, imediatamente, legitima a conduta dela com relação aos “primos”. Como disse, a legitimação se dá em diferentes níveis. Para os fins desta exposição, será suficiente considerar o quarto nível da legitimação, a saber, o dos universos simbólicos.

 

3.1.2. Os universos simbólicos

 

Os universos simbólicos consistem em “corpos de tradição teórica que integram diferentes áreas de significação e abrangem a ordem institucional em uma totalidade simbólica” (ibid., p. 131). Como se pode depreender dessa passagem, a propriedade essencial dos universos simbólicos é a de serem uma matriz de significados objetivados totalizantes da ordem social. O universo simbólico é a matriz de todos os significados socialmente objetivados e subjetivamente reais. Por força de seu poder totalizador, todos os setores da ordem institucional acham-se integrados num quadro de referência global, que constitui, então, um universo no interior do qual toda a experiência humana – é preciso frisar – é concebida como se realizando, se efetivando, se manifestando. Portanto, como observam Berger & Luckmann, “a sociedade histórica inteira e toda a biografia do indivíduo são vistas como acontecimentos que se passam dentro desse universo”. (ibid., p. 132).

O universo simbólico é evidentemente construído por meio de objetivações sociais. Não obstante, sua capacidade de produção de significações excede em muito o domínio da vida social, de tal sorte que o indivíduo pode “situar-se”, “posicionar-se, “localizar-se” nele mesmo em suas mais solitárias experiências. Por isso, o indivíduo que acredita que cumpre única e exclusivamente a si a tarefa de “dar sentido à sua vida” encontra-se num estado de habitual autoengano, porquanto os significados de suas experiências subjetivas mais solitárias já estão disponíveis como componentes integrantes de universos simbólicos em cujas redes de significação elas já foram “capturadas”. Essa condição é inescapável a todos nós, incluindo os religiosos que acreditam que o sentido da vida provém de Deus. O universo simbólico desempenha funções legitimadoras extremamente importantes, tais como oferecer uma ordem para a apreensão subjetiva da experiência biográfica, ordenar as diferentes fases da biografia, ordenar a história e, de especial interesse para meus propósitos, proteger os indivíduos contra o temor da morte. Vou-me ocupar do esclarecimento dessas duas funções legitimadoras do universo simbólico: a de proteger contra o terror da morte e a de ordenar a história.

  

3.1.2.1. O universo simbólico e o terror da morte

 

Consoante notam Berger & Luckmann, “a morte estabelece (...) a mais aterrorizadora ameaça às realidades asseguradas da vida cotidiana”. (ibid., p. 138). Ora, se a morte ameaça de modo terrificante o sentimento de segurança infundido em nós pela concretude significativa da vida cotidiana, como poderia “a perspectiva da morte”, como sugere Baggini, dar sentido à nossa vida? Quando tomamos a morte como experiência da morte dos outros, do desaparecimento definitivo e irrevocável deles da convivência com os demais indivíduos num mundo a cuja chegada é vivida subjetivamente como “uma queda no inquietante”, como bem descreveu Sloterdjik, a morte é concebida pelo indivíduo como uma situação limite, por excelência. Por isso, todas as legitimações da morte – e aqui devemos pensar, sobretudo, nas narrativas mitológicas, metafísicas, religiosas, mas também nas narrativas filosóficas, literárias, etc. – cumprem a mesma tarefa essencial de equipar o indivíduo com as crenças e consolações necessárias para que ele leve adiante uma vida psicologicamente bem ajustada às demandas da sociedade, mesmo depois da morte de outros significativos, como um filho, um pai ou amigo querido. Além disso, as legitimações da morte atendem a necessidade de garantir que o indivíduo antecipe a inevitabilidade de seu destino mortal, sem que seja tomado por um desespero profundo e paralisante que venha a perturbar seu desempenho contínuo nas rotinas da vida cotidiana de sua sociedade.

Do que precede segue-se que o fenômeno da morte é integrado a um universo simbólico, é assimilado nas malhas de seus significados, de modo que o universo simbólico possa defender o indivíduo do lancinante terror da morte. É na legitimação da morte que o universo simbólico exibe mais claramente o seu poder de transcendência, garantindo o primado das objetivações sociais sobre o fato biológico e inescapável da morte; primado da contingência sobre a necessidade. Portanto, por meio de seus significados, a ordem institucional representa a couraça que protege o indivíduo contra o terror dilacerante da morte. Essa proteção institucional contra o terror da morte pode realizar-se pelo recurso a interpretações mitológicas, religiosas ou metafísicas da realidade, ou no caso de um indivíduo ateu, pode expressar-se na forma de elaborações políticas sobre o progresso da humanidade, a história revolucionária, etc. Também muitas formas de expressão artísticas servem bem a esse propósito de nos proteger contra o assalto do desespero mortificante.

 

3.1.2.2. O universo simbólico e a história

 

O universo simbólico também cumpre a função de ordenar a história, ou seja, de localizar todos os acontecimentos coletivos em uma unidade de sentido, que inclui o passado, o presente e o futuro. Em referência ao passado, o universo simbólico constrói uma “memória” que é compartilhada por todos os indivíduos socializados numa coletividade. Em relação ao futuro, fornece um quadro de referência comum à luz do qual ações individuais se projetam. Assim, o universo simbólico “liga os homens com seus predecessores e seus sucessores numa totalidade dotada de sentido, servindo para transcender a finitude da existência individual e conferindo significado à morte individual”. (ibid., p. 140). Todos os membros de uma sociedade, portanto, por força da função de integração totalizadora do universo simbólico, consideram-se participantes de um universo que possui um sentido, que existia antes de terem nascido e que perdurará depois de eles morrerem (o que não significa que muitos não venham a sofrer um profundo abalo se lhe invadirem a consciência o sentimento de sua insignificância na vastidão desse universo que perdurará depois da sua morte). Segundo Berger & Luckmann, “ a legitimação da ordem institucional enfrenta também a contínua necessidade de manter encurralado o caos. Toda a realidade social é precária. Todas as sociedades são construções em face do caos”. (ibid., p. 141, grifo meu). O universo simbólico integra e unifica todos os processos institucionais separados. A sociedade inteira, de agora em diante, se dota de sentido. Instituição e papéis particulares são legitimados em um mundo compreensivamente dotado de sentido.

Considerando-se tudo que se expôs até aqui, convém assinalar as seguintes conclusões:

 

1) As origens de um universo simbólico repousam sobre a capacidade do homem de autoprodução;

2. O homem, em sociedade, é construtor do mundo, porque é constitucionalmente aberto para o mundo;

3) A abertura do homem para o mundo acarreta um conflito entre ordem e caos;

4) O homem, exteriorizando-se, constrói o mundo no qual vive e se exterioriza a si mesmo;

5) No processo de sua exteriorização, o homem projeta na realidade seus próprios significados;

6) Os universos simbólicos, uma vez que se apresentam como a totalidade da realidade humanamente dotada de sentido, apelam para o cosmo inteiro, para dar validade significativa à existência humana. Assim, os universos simbólicos constituem as extensões máximas da projeção humana dos significados humanos.

 

Por fim, gostaria de sublinhar a conclusão central a que nos conduzem toda essa trama de reflexões que dá corpo a este ensaio: o sentido da vida é já um momento dos processos de objetivação da ordem social e um elemento das reservas históricas de sentido. O sentido da vida não é elemento da jurisdição da vontade de uma divindade. Tanto “o sentido da vida” quanto Deus e o “sentido metafísico” são ficções (invenções) da engenhosidade desse animal semiótico e fabulador que é o homo sapiens.

Não posso levar a cabo este texto, sem que antes dê a conhecer a contribuição, bastante relevante, do filósofo Castoriadis para elucidação da problematicidade dos temas que me ocuparam até aqui.

 

4. Castoriadis e a instituição imaginária da sociedade

 

Em seu A instituição imaginária da sociedade (1982, p. 159), Castoriadis define a instituição como “uma rede simbólica, socialmente sancionada, onde se combinam em proporções e em relações variáveis um componente funcional e um componente imaginário”. Ele adverte que as instituições não se reduzem ao simbólico, mas admite também que elas só podem existir no simbólico, porque “são impossíveis fora de um simbólico” (ibid., p. 142). Cada instituição constitui sua rede simbólica.

A instituição da sociedade resulta da interação entre dois domínios: o simbólico e o imaginário. O imaginário significa tanto que uma coisa é inventada quanto que envolve a possibilidade de deslocamento, de deslizamento de sentidos. Assim, em função do imaginário, símbolos já disponíveis podem receber significados outros diferentes de seus significados “convencionais”, “usuais”. Tanto num caso quanto no outro, o imaginário se separa do real. O imaginário não pode existir sem o simbólico: o imaginário deve se servir do simbólico não só para exprimir-se, mas também para “existir”. Inversamente, o simbólico pressupõe a capacidade imaginária, ou seja, a capacidade de ver em uma coisa aquilo que ela não é, de vê-la diferente do que é. Ora, quando pensamos no símbolo, pensamos numa relação permanente entre dois termos, numa relação em que um dos termos (o símbolo) representa (está no lugar de) outra coisa. O que mantém a fixidez e, ao mesmo tempo, a flexibilidade do vínculo entre o significante e o significado, no símbolo, o que mantém a rigidez do vínculo, na maior parte do tempo, entre o símbolo e a coisa, é o imaginário efetivo. O simbólico não se identifica totalmente com o imaginário, já que encerra um componente real-racional: o simbólico representa o real – ou é indispensável para pensar e para agir. Todavia, esse componente é “tecido inextricavelmente com o componente imaginário efetivo”. (ibid., p. 155).

Portanto, para Castoriadis, as instituições encontram sua fonte no imaginário social. É no imaginário que a sociedade “procura o complemento necessário para a sua ordem” (ibid., p. 156). O recurso ao imaginário atende a necessidade de produzir significações que invistam de sentidos e fundamentos a ordem social. Esse imaginário se imiscui com o simbólico, como condição necessária para a ordenação da sociedade, para a constituição de sua ordem, e com o econômico-funcional, sem cuja relação não poderia sobreviver. Não custa lembrar que a economia, a política e a ciência são os grandes campos funcionais da sociedade. As instituições não são simplesmente redes simbólicas; elas, de fato, formam uma rede simbólica, mas essa rede, por definição, remete a algo que não é o símbolo.

Se o homem é o construtor do mundo social, segue-se, necessariamente, que ele é criador. Portanto, no processo de constituição da ordem institucional da sociedade, há criação! A criação “pressupõe (...) a capacidade de dar-se aquilo que não é (o que não é dado na percepção ou o que não é dado nos encadeamentos simbólicos do pensamento racional já constituído).” (ibid., p. 161). Por isso, como bem nos chama a atenção Castoriadis, “o essencial da criação não é “descoberta”, mas constituição do novo; a arte não descobre, mas constitui (ibid., p. 162). A história, portanto, não seria possível sem a imaginação criadora, que cria um imaginário radical, que se manifesta indissoluvelmente no fazer histórico, e um universo de significações. Por isso, estou de acordo com Castoriadis, quando diz:

 

“A instituição da sociedade é toda vez instituição de um magma de significações imaginárias sociais, que podemos denominar um mundo de significações. Porque é o mesmo dizer que a sociedade institui cada vez o mundo ou o seu mundo como mundo e dizer que ela institui um mundo de significações, que ele se institui instituindo o mundo de significações que é o seu e correlativamente ao qual somente um mundo existe e pode existir para ela.” (ibid., p. 404, grifo meu).

 

 

 

4.1. Imaginário efetivo e imaginário radical

 

O mundo social é cada vez constituído e articulado em função de um sistema de significações. Essas significações existem, uma vez constituídas, na forma de um imaginário efetivo (o imaginado). Essas significações configuram o quadro de referência em relação ao qual cada sociedade institui o seu simbolismo, sobretudo seu simbolismo institucional, e em relação ao qual ela determina os fins aos quais subordina a sua “funcionalidade”.

A funcionalidade obtém seu sentido fora de si mesma; e o simbolismo refere-se, necessariamente, a alguma coisa que não é o simbólico, e que também não é somente o real-racional. Assim, é o imaginário que dá à funcionalidade de cada instituição seu modus operandi específico, que sobredetermina a escolha e as conexões das redes simbólicas. O imaginário é um estruturante originário, criação de cada época histórica; é a singular maneira de viver dessa época, a singular maneira de ver e fazer sua própria existência, seu mundo e suas relações com ele. O imaginário é o significado-significante central, fonte de tudo que se dá cada vez como sentido indiscutível e tacitamente aceito. É também o suporte das articulações e das distinções do que vale, do que importa e do que não vale, do que não importa. É a origem da ampliação da existência dos objetos individuais e coletivos de investimento prático, afetivo e intelectual. Certamente, nenhuma sociedade pode existir se não organiza a produção de sua vida material e sua reprodução enquanto sociedade, mas essa organização material não poderia conservar-se e funcionar sem o suporte do componente imaginário-simbólico. Por isso, vale salientar:

 

“Tudo o que se nos apresenta no mundo social-histórico está indissoluvelmente entrelaçado com o simbólico. Não que se esgote nele. Os atos reais, individuais ou coletivos, o trabalho, o consumo, a guerra, o amor, a natalidade, os inumeráveis produtos materiais, sem os quais nenhuma sociedade poderia viver um só momento, não são (nem sempre, não diretamente) símbolos. Mas uns e outros são impossíveis fora de uma rede simbólica”. (ibid., p. 142).

 

Como nota Castoriadis, todo simbolismo é “diacrítico”, ou seja, um signo só pode emergir como signo sobre o fundo de alguma coisa que não é signo ou que é signo de outra coisa. Mas isso não nos esclarece sobre como determinar corretamente por onde deve passar a fronteira de cada vez: “nada permite determinar as fronteiras do simbólico”. (ibid., p. 144). É certo, contudo, que um símbolo não se impõe como uma necessidade natural, tampouco pode deixar de fazer referência ao real. Segundo o autor, “o histórico só existe cada vez em uma estruturação trazida por significações cuja gênese nos escapa como processo compreensível, visto que ela pertence ao imaginário radical” (ibid., p. 184). Se o imaginário efetivo recobre as significações institucionalmente já existentes, o que é o imaginário radical?

imaginário radical é a redução do imaginário à capacidade elementar e irredutível de evocar uma imagem. Em outras palavras, o imaginário radical é o momento de dominância da imaginação como matriz criadora e fundadora da ordem social. O imaginário radical é o imaginário reduzido à faculdade originária de pôr ou dar-se, sob a forma de representação, uma coisa e uma relação que não são (que não são dadas na percepção ou nunca o foram). É nesse sentido que podemos falar de Deus como um imaginário religioso, ou como uma ficção do imaginário radical religioso; uma “ficção” que integra, no entanto, o imaginário efetivo da ordem social.

Também Castoriadis se refere à reificação da ordem institucional, mas o faz usando o termo alienação. A alienação é, para ele, a autonomização da dominância do momento imaginário na instituição que enseja a autonomização e a dominância da instituição relativamente à sociedade. A autonomização da instituição encarna-se na materialidade da vida social, nela se exprime, mas supõe sempre que a sociedade vive suas relações com as suas instituições ignorando no imaginário das instituições seu próprio produto. No trecho abaixo, Castoriadis, por meio de um encadeamento de questionamentos, convida-nos a meditar procurando suscitar-nos certo ‘admirar-se’ em face do fato de que o mundo ocidental e a vida individual de cada habitante desse mundo histórico encontram um solo firme de significados “perenes” que foram produzidos na confluência de duas matrizes de imaginário cultural. E até hoje sentimos as influências do sonho judaico-cristão e do sonho greco-romano. Para o bem ou para o mal, os seres humanos são adoradores de suas “ficções”; e, em nome delas, eles, ao longo da história, vêm lutando para conservá-las contra a voracidade do tempo, ou contra as intempéries da ordem natural; em nome das ficções desse imaginário fundante da vida social, dessas criações de sua imaginação, os homens travaram guerras, cometem homicídios, infanticídios, feminicídios, deicídios. Loucura da condição humana: adorar suas ficções até o ponto de oprimir, escravizar e matar em nome delas! E em nome dessas ficções judeus foram massacrados, cristãos mataram e foram mortos, cabeças ainda são decapitadas, impérios dizimaram civilizações inteiras, grupos humanos perseguem, torturam e matam outros grupos divergentes politicamente, ou depredam lugares onde se cultua uma religião diferente, etc. Todo um mar de sangue e de genocídios inunda a história humana em nome da necessidade doentia de conservar, da prática insana de impor significações imaginárias, ficções da imaginação criadora de um animal desnaturado e excêntrico que arrasta sua existência embebida num profundo torpor, que vive “aprisionado” no esquecimento de que vive numa rede de símbolos e significados que ele mesmo teceu.

 

“Por que, de todas as tribos pastorais que erraram no segundo milênio antes de nossa era no deserto entre Tebas e Babilônia, somente uma escolheu expandir ao Céu um Pai inominável, severo e vingativo, fazendo dele o único criador e o fundamento da Lei e introduzindo assim o monoteísmo na história? E por que, de todos os povos que fundaram cidades na bacia, mediterrânea, somente um decidiu que existe uma lei impessoal que se impõe até aos Deuses, estabeleceu-a como curso coerente e quis fundamentar sobre o Logos as relações entre os homens, inventando, assim, e em mesmo gesto, filosofia e democracia? Como explicar que três mil anos depois, sofremos ainda as consequências do que sonharam os Judeus e os Gregos? Por que e como este imaginário, uma vez estabelecido, ocasiona consequências próprias, que vão além de seus “motivos” funcionais e mesmo às vezes os contrariam, que sobrevivem durante muito tempo após as circunstâncias que os fizeram nascer – que finalmente mostram no imaginário um fator autonomizado da vida social”. (ibid., p. 156).

 

Segundo Castoriadis, como toda religião, a religião mosaica instituída está baseada num imaginário. Enquanto instituição, deve munir-se de sanções; enquanto religião, deve instituir ritos. Mas ela não pode existir nem como religião, nem como instituição, se, em volta do imaginário central, não começa a expandir um imaginário secundário. Assim, quando imagina que "Deus criou o mundo em sete dias”, aproveita uma determinação terrestre (talvez “real”, mas talvez já imaginária), exportada para o Céu, sob a forma de sagração da semana. O sétimo dia torna-se agora o dia da adoração de Deus e do repouso obrigatório. Daí seguem inúmeras consequências. Basta referir uma delas: o apedrejamento do pobre homem que apanhava lenha no dia do Senhor.

 

Uma nota final

 

Ao cabo deste longo trabalho, sinto-me combalido por um enfado corrosivo, radicalmente diferente do sentimento de efusão e espanto que me mobilizava, inicialmente, para escrever este texto. As pesquisas que fiz e que precederam à elaboração deste ensaio fizeram-me imaginar-me como alguém que, à semelhança de Freud em viagem aos Estados Unidos, poderia dizer “lhes trago a peste”. Eis então que lhes apresento a peste niilista: ela corrói, carcome subterraneamente as ficções instituídas pela imaginação humana, para que, conclamando os homo sapiens ao esclarecimento, à Lucidez, ao “despertar de seu sono dogmático”, eles se redescubram na história como os verdadeiros “criadores”, inventores das significações de um mundo artificial que se edifica “em face do caos” e num ponto insignificante da densa escuridão da “imensidão dos espaços” que os ignoram.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Trad. Guy Reynaud. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

 

BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

 

_______________. Modernidade, Plueralismo e Crise de sentido: a orientação do homem moderno. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

 

DAMÁSIO, António. O mistério da consciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.


sexta-feira, 30 de outubro de 2020

"Para escrever, estar sempre um pouco aquém na expressão (mais do que além). Sem tagarelice, em todo caso" (Camus).

 




Pensamentos dispersos e outras impertinências

 

Os gregos denominavam Kairós a boa ocasião, o momento oportuno, a circunstância favorável; kairós é o tempo fugaz que deve ser aproveitado no momento certo, porque, senão, a ação pode não lograr êxito ou pode fracassar. Será este o momento oportuno, pois, para escrever? Hesito... O que é certo é que adiei, protelei, posterguei, procrastinei o início da escritura deste texto. Por alguns dias, me deixei arrastar por minhas obsessões, ou por uma delas, a saber, meu apego irrestrito à verbosidade, à pretensão ilusória de dizer “tudo” rompendo com a incompletude da linguagem (o que sei ser impossível!); essa obsessão pelo “cheio”, pelo “excesso”, que pretensiosamente saturaria as possibilidades de dizer (o que é uma ilusão!), me leva a consumir horas e dias a garimpar os livros, a encher folhas de papéis com excertos alheios, com comentários pessoais, a anotar tudo que me parece relevante, a transcrever trechos de livros diversos. Só este trabalho obsessivo-compulsivo é suficiente para tornar o resultado, para o qual aquele trabalho é um simples meio, uma empreitada hercúlea e desestimulante. Minha obsessão com a precisão da forma, com a fecundidade e a profundidade do conteúdo e com o refinamento do estilo é infensa aos sentimentos iniciais que me incitavam a escrever. O presente texto deve ser um sintoma de leveza na expressão e de intensidades anímicas, de tremores e terrores fisiológicos, de inquietações de meu espírito filosófico, de cumplicidade intelectual-afetiva com autores e seus pensamentos. A leveza na expressão significa renúncia ao academicismo estilístico. Basta! São desnecessárias mais justificativas! Apenas acrescento que este texto não versa sobre um assunto definido, não tem sequer uma ideia geral em que se pudessem apoiar seus arranjos sintáticos. Escreverei como um navegante à deriva no mar, que não sabe aonde chegará e ignora os reveses que o espreitam ao longo de um curso onduloso, tortuoso, tormentoso. O perigo do naufrágio é inevitável, inelutável. Não há rotas, não há qualquer sinalização de um começo. Escrevo para apascentar meu desespero congênito, que tem, ultimamente, se tornado mais agressivo, mais fustigante, mais espinhoso, mais insurreto. Aqui é necessário um esclarecimento: não me refiro ao desespero apenas no sentido de “desorientação perturbadora, grande aflição em face da perda de uma rede de referências, afetiva e axiológica, que dava sustentação à existência”; refiro-me, sobretudo, ao desespero como disposição afetiva que nos reconcilia com a crueldade do real. O desespero a que me refiro é renúncia a qualquer fé num sentido metafísico da existência, é também dispor-se para o viver reconciliado com o real, com o caráter trágico, ou absurdo da existência (como prefeririam os filósofos pessimistas, dos quais me sinto mais próximo intelectual e afetivamente). Como escreveu o poeta estadunidense David Thoreau, “a maioria dos homens vive uma existência de tranquilo desespero”. Esta é a minha primeira citação; e preciso dizer que não será a única; na verdade, por não ser um produto de um plano global de escrita, este texto se constituirá, predominantemente, como um tecido dialógico explícito e repleto de uma série de costuras polifônicas; citando autores e seus pensamentos, pretendo confrontá-los, alinhá-los, para compor minha fala como uma fala constitucionalmente polifônica. Meu discurso não tem em mim a sua origem – anotem isso!

É justamente esse “tranquilo desespero”, do qual está impregnada a existência da maioria dos seres humanos, que só conquisto, talvez, em alguns breves momentos em que me deixo estar fora do alcance do vigilante pensamento para entreter-me com a futilidade do mundo. Mas, na maior parte do tempo inutilizável de minha vida inempregável e ociosa – Baudelaire, aliás, escreveu, em seus Diários Íntimos, “ser um homem útil sempre me pareceu algo muito horrendo” - , tal “tranquilo desespero” me é tão estranho e desconhecido quanto estranhos são os rostos que se apinham e se confundem na multidão de indivíduos que, ignorando-se mutuamente, atravessam, cotidianamente, as  grandes avenidas de nossas metrópoles. O meu desespero é de outra natureza; é congênito, é efeito de um estado de crise permanente e parturejante (em grego, aliás, krisis se diz do momento decisivo, de súbita mudança); é, em suma, efeito de uma implacável indisposição para a existência comum e sua banalidade assombrosa. O romancista russo Vladimir Nabokov expressou aquilo de que o “tranquilo desespero” da maioria a protege: “nossa existência não é mais que um curto-circuito de luz entre duas eternidades”. Como eu entendo esse “tranquilo desespero”? Como uma espécie de mecanismo de defesa narcotizante que foi implantado em nós pela seleção natural como parte de nossa herança filogênica. A natureza trabalha no sentido de garantir a sobrevivência da espécie. Como ensina Schopenhauer, ela é indiferente à sorte dos indivíduos; mas precisa garantir que eles funcionem bem, para que dediquem sua vida à preservação da espécie. Não haveria vantagem evolutiva alguma se fosse grande o número de indivíduos que, existencialmente atormentados, aturdidos com a insignificância radical da existência, vindo a se encontrar, frequentemente, em condições de extrema tensão de seu mundo afetivo, pulsional, pusessem fim aos seus dias suicidando-se. Como observa bem Nietzsche, “não importa se contemplo os homens com olhar bom ou ruim, sempre os vejo ocupados numa só tarefa, todos e cada um em particular: fazendo o que ajuda à conservação da espécie humana. E não por um sentimento de amor a tal espécie, mas simplesmente porque nada, neles, é mais antigo, mais forte, mais inexorável, mais insuperável do que esse instinto – porque ele é essencialmente a linhagem e rebanho que somos”. Schopenhauer vem aqui fazer coro a Nietzsche: a maioria dos animais humanos se esforça diariamente em vista senão da “manutenção da existência mesma, manutenção obtida diariamente às custas de fardo incessante e cuidado constante, numa luta contra a necessidade e tendo a morte em perspectiva”. Ou ainda: “a vida individual transcorre numa luta incessante pela existência mesma; porém, a cada passo é esta ameaçada pela queda no abismo”.

 E por falar em suicídio, Nietzsche nos diz, em A Gaia Ciência, que “(...) o suicídio é uma ação perfeitamente natural e próxima, que, sendo uma vitória da razão, deveria suscitar respeito: e realmente o suscitava, naqueles tempos em que os grandes da filosofia grega e os mais valentes patriotas romanos costumavam recorrer ao suicídio”. E é também Nietzsche que sentencia: “Viver – é continuamente afastar de si algo que quer morrer”. “As religiõesainda é Nietzsche quem ensinasão ricas em expedientes contra a necessidade do suicídio: com isto elas se insinuam junto aos que são enamorados da vida”. Em geral e comumente, as pessoas se apiedam de um suicida; julgam-no um fracassado, um covarde, ou até mesmo um egoísta. Não o tenho nessa conta; se o suicida é egoísta por querer pôr fim a um sofrimento que se  lhe tornou intolerável e por não se preocupar com a dor que sentirão aqueles que o amam, após sua morte, são igualmente egoístas aqueles que, não querendo sofrer a dor da morte voluntária do amado, insistem em desejá-lo vivo de qualquer jeito. Na verdade, o suicídio é um ato que desperta em mim profunda admiração e respeito. O suicida rompeu, mediante um ato que Schopenhauer deveras não recomenda (mas isso não vem ao caso), a tirania da vontade de vida; isso sobre o qual Cioran, fazendo eco tacitamente ao próprio Schopenhauer, soube bem se interrogar: o apego irracional à vida que nos leva a prolongá-la a despeito da pressão das razões que nos convenceriam a pôr fim a ela. O suicídio é-me tentador; chego a flertar com ele em imaginação; mas sinto-me dilacerado por um congênito esgotamento que me demove de realizá-lo. Preferi, por fraqueza, escrever um livro em coautoria (ainda não publicado), para aproximar-me do ato sob um modo sublimado. Tornando-o tema filosófico, convertendo-o em objeto de reflexão filosófica, libertei-me de sua sedução, resisti às suas falsas promessas. Sem condenar o suicídio, estou convencido de que ele é bastante razoável como meio de nos libertar de um sofrimento intolerável, como um meio de nos aliviar de um sofrimento pesado e pungente que decorra de condições existenciais tão precárias, que tornam o viver irrespirável, insuportável. Por isso, a eutanásia é um ato de amor, de misericórdia, a despeito do que pensa a Igreja e seus prosélitos cagadores de regra. É verdade, no entanto, que “as religiões são ricas em expedientes contra a necessidade do suicídio: com isto elas se insinuam junto aos que são enamorados da vida (Nietzche). Os que se dizem enamorados da vida me parecem ou descaradamente ingênuos, ou são indecentemente hipócritas, mas também podem sofrer de uma imbecilidade crônica e irreversível (Tamanho fastio sinto só de lembrar que, neste país, a cada dia, se multiplicam aos borbotões, por outras razões, esses tipos humanos doentes, idólatras da imbecilidade oficial!). Mas o suicídio não pode ser e não é a salvação. É que não há Salvação. Não a creio possível! Como diz Bataille, “nada de salvação: ela é o mais odioso dos subterfúgios”. O que nos resta então? – perguntar-me-iam aqueles que resistem a dobrar-se diante dos sonoros apelos da experiência. Respondo: resta-nos ou viver como a maioria num tranquilo desespero, ou viver como combatentes de um desespero que se quer lúcido e controlado. Viver um desespero controlado é reconhecer que “a única verdade do homem, finalmente entrevista, é a de ser uma súplica sem resposta(Bataille). De fato, tem razão Bataille: “não somos tudo. Aliás, só temos duas certezas neste mundo: esta e a de morrer”.

Não me apetece muito o curso que tomaram estes desalinhos verbais. Acabei por me desviar assaz do que tinha em vista antes de pôr-me a escrever. Este texto carece de uma densidade lírica; não pretendo com ele elaborar um arrazoado filosófico. Estou de acordo, pelo menos em parte, com Nietzsche, quando diz "não quero converter ninguém à filosofia: é necessário, é talvez também desejável, que o filósofo seja uma planta rara. Nada me é mais repugnante do que a propaganda doutrinal da filosofia, como em Sêneca ou mesmo em Cícero. Filosofia tem pouco a ver com virtude.". Digo, em parte, porque não me repugna a filosofia helenística e seu ideal de sabedoria libertadora. Como sentir aversão às lições preciosas que podemos colher da pena de Sêneca, quando escreve ao amigo Lucílio: “Podes me indicar alguém que dê valor ao seu tempo, valorize o seu dia, entenda que se morre diariamente? Nisso, pois, falhamos: pensamos que a morte é coisa do futuro, mas parte dela já é coisa do passado. Qualquer tempo que já passou pertence à morte”? Novamente o tema da morte aparece como se me solicitasse que dele me ocupe. Da morte falarei depois. Estou em consonância com Nietzsche no tocante à crença de que ninguém pode ser convertido à filosofia; ensinar filosofia é tão sem sentido quanto ensinar língua materna. Mas Sêneca, como Epicuro, a quem aquele reconhece como um mestre, se fez tanto apelo à superioridade da vida filosófica, é porque sabia que a maioria dos homens, vivendo apartados da filosofia, vive na condição de escravos, sem o saber. Por isso, Sêneca evocava a injunção de Epicuro: “Consagra-te à filosofia se desejas ser verdadeiramente livres”.

A esta altura, sinto-me como um escritor que fracassou. Não consegui cumprir com o que prometi, se bem que nada prometi. Melhor será dizer que descumpri o intento que tinha de escrever pouco, de tornar o texto mais fluido, de expurgar sentimentos corrosivos, de me liberar dos efeitos nocivos de meus desertos. Mas, como dizia Nelson Rodrigues, “na vida, o importante é fracassar”. Ou como escreveu Cioran, “apenas uma coisa importa: aprender a ser um perdedor”. Sinto-me, portanto, coagido pela necessidade de ir até as últimas consequências de meu fracasso. Só levarei a termo este texto quando tudo que se assemelha a entulho represado puder ser escoado. Se o texto terminasse aqui, estaria amputado. Prossigo, então... E espero que, antes do término, eu consiga dar a este texto uma nervura mais sentimental, sem sentimentalismo piegas.

Não é nem de liberdade nem da morte que pretendo tratar. Limito-me a evocar, por meio do testemunho de autores, a pertinência desses temas. Camus, por exemplo, escreveu, em seus Cadernos: “a única liberdade possível é uma liberdade em face da morte. O homem verdadeiramente livre é aquele que, aceitando a morte como é, aceita ao mesmo tempo as consequências – isto é, a inversão de todos os valores tradicionais da vida. O “Tudo é permitido” de Ivan Karamozov é a única expressão de uma liberdade coerente. Mas é preciso ir até o fim da fórmula”. Mas uma liberdade total e irrestrita, se fosse possível ao homem, significaria sua autodestruição ou sua loucura derradeira e insuperável. A cultura, que é o lugar onde os hominídeos se fizeram “homens”, nasce de um interdito: a proibição do incesto. Daí em diante, a cultura tratou de colocar o homem sob a mira de um arsenal de interdições, de proibições e de valores falsificadores, a fim de educá-lo, moldá-lo, domesticá-lo, com o pretexto de “civilizá-lo” e protegê-lo, alimentando seu narcisismo ontológico, de algumas verdades aterradoras. E assim se fabricaram as ficções mais danosas, as mentiras que, em vez de libertar o animal humano, o tornou escravo, doentio, iludido; o homem tornou-se um animal fabulador e mentiroso; e em nome de suas mentiras, das mentiras que lhes foram inculcadas, o homem tornou-se o animal “mais periclitante” e cruel. Tem razão Schopenhauer: “Pois o homem não é apenas um animal vil e repugnante (digo isso a contragosto, quem dera a experiência não tivesse manifestado clara e repetidas vezes e não continuasse a fazê-lo) mas também danoso, volúvel, pérfido, ambíguo, feroz e cruel”. E pior: surpreendentemente, o homem se tornou um animal otimista! Não raro seu otimismo beira à completa falta de bom senso, a ponto de ignorar como sonâmbulos que ignoram, quando despertos, que vagueavam repetindo ações rotineiras, o que nos ensina Schopenhauer: “as pessoas comparativamente felizes o são na maioria das vezes apenas aparentemente, ou são, como ocorre no caso das pessoas de vida longa, raras exceções, cuja possibilidade teria de existir – ao modo da isca. A vida apresenta-se como um engodo constante, tanto nas pequenas quanto nas grandes coisas” Opondo-se veementemente ao otimismo, Schopenhauer notou que ele é “não apenas falso, mas também uma doutrina perniciosa. Pois ele nos apresenta a vida como um estado desejável e a felicidade do ser humano como a meta do mundo”. Mas como poderia ser desejável algo que, como notara Heráclito, aporta o nome de vida, mas sua obra é a morte?” É assim que se comporta a maioria dos seres humanos, diariamente: “a grande maioria dos homens suporta a vida sem muito resmungar, e acreditar então no valor da existência, mas precisamente porque cada um quer e afirma somente a si mesmo (...). Portanto, para o homem comum, cotidiano, o valor da vida baseia-se apenas no fato de ele se tomar por mais importante no mundo”. (Nietzsche).

Sinto-me, devo confessar, bastante indisposto para entabular qualquer conversa com quem se habitou a viver num autoengano relativamente à morte. Enfada-me o simples fato de ter de lhe chamar a atenção para o caráter banal e absurdo da morte (e da vida!). Para compor este texto, busquei fazer encontros fugidios com livros que li, pela primeira vez, no tempo em que ainda era graduando em Letras. Já se vão quase 20 anos... Dois, em especial, me comoveram por dar voz lírica à precariedade da condição humana e ao absurdo da existência. Trata-se dos livros A Hora da Estrela e A paixão segundo GH., ambos de Clarice Lispector. A Hora da Estrela é um livro sobre o desamparo característico da condição humana. Nele, descobrimos que contamos apenas com o consolo da linguagem para dar a ela algum sentido, frágil, para nutrir esse desamparo de uma dignidade sombria e indefinível. A narradora nos fala da banalidade da morte, depois que a protagonista Macabéa morre: “a morte é um encontro consigo. Deitada, morta, era tão grande como um cavalo morto. O melhor negócio é ainda o seguinte: não morrer, pois morrer é insuficiente, não me completa, eu que tanto preciso”. Noutro lugar, a narradora, como se saísse de um sono letárgico comum à vida diária, dá-se conta de que “só agora me lembrei que a gente morre”. Assim, vive o homem do cotidiano, o homem comum: vive sob o domínio do esquecimento de que pode morrer. Ele, definitivamente, é incapaz de uma experiência filosoficamente decisiva, que se formula nestes termos, para Clarice Lispector, em seu A paixão segundo GH: “toda compreensão súbita é finalmente a revelação de uma aguda incompreensão”. Revisitar, mesmo que de modo apressado e disperso, as páginas desses dois livros de Clarice Lispector trouxe-me lembranças aveludadas de um tempo passado prenhe de promessas de um futuro fértil de grandes colheitas. Mas o passado não é lembrado, não! Jamais! A memória tem por objetivo produzir continuamente novas experiências de pensamentos, emoções, a fim de desenvolver a personalidade e a inteligência como um todo. Engana-se quem pensa que há lembrança de informações contidas na memória. O que há é reconstrução dessas informações, de modo que o trabalho da memória não é reproduzir originalmente as experiências do passado, mas realizar uma reconstrução delas. Em outras palavras, o que é lembrado já foi interpretado pela memória. A memória é o sinal em nós de que estamos continuamente morrendo; de que o tempo vivido é um instante que sucumbe para dar lugar a um outro que, por sua vez, “morre”, para dar lugar a outro, e assim sucessivamente. O que chamamos de “presente” “morre” e se registra (se enterra) na memória – nosso primeiro cemitério, já destinado a nós em vida (daí também ter razão Fernando Pessoa: “somos defuntos adiados”). Aqui também vale a verdade: “tudo que vive tem de perecer”. Morrendo as vivências do presente, abre-se (e não “abrem-se”, como insistem impertinentemente os gramatiqueiros!) espaços para novas leituras da memória e para a produção de novos pensamentos e emoções. Enfim, a memória é sempre repetição da diferença, e nunca reprodução do mesmo! Penso, porém, a despeito do que pensa o senso comum, que é Bergson quem tem razão: tempo como memória, tempo e memória como duração; e o passado se prolonga no presente, jamais “morre”...

Filosoficamente falando, o que me incomoda nas pessoas em geral, nas que vivem uma vida anestesiada pelo jugo da esperança, é a presunção de saber o que é o mundo, o que é a existência e qual “o sentido” de nos encontramos aqui neste mundo. Elas simplesmente não reconhecem que “este mundo é dado ao homem como um enigma a resolver”, como nota Bataille. É extremamente difícil esclarecer as pessoas sobre o papel emancipatório, sobre o caráter desmitificador e libertador do pessimismo filosófico, já que elas se acostumaram, por força de suas experiências culturais que lhes inculcam crenças e representações coletivas que lhes dizem como o mundo “é” ou deve ser, a acreditar que o pessimismo se reduz a um estado de espírito assentado no sentimento e na crença de que tudo caminha para o pior; mas ao encará-lo de modo tão rasteiro, limitado e superficial, ignoram a profundidade de sua Lucidez. Também Einstein se admirava do caráter enigmático da vida: “o mistério da vida me causa a mais forte emoção. É o sentimento que suscita a beleza e a verdade, cria a arte e a ciência”. É bem verdade que Schopenhauer teve a pretensão de decifrar o enigma do mundo, que não é uma obra de um Deus criador, mas a objetividade de uma Vontade cega e eterna: “Desperta da noite da sem-consciência para a vida, a vontade encontra-se como indivíduo num mundo sem fim e sem fronteiras, entre inumeráveis indivíduos, todos se esforçando, sofrendo, vagueando; e, como possuída por um sonho agitador, precipita-se de novo na velha sem-consciência”. Como é possível que se ignore com tamanha impassibilidade e sonolência que “a vida da maioria das pessoas é breve e calamitosa”? Ou ainda que “tudo na vida nos ensina que a felicidade terrena está destinada a desvanecer-se ou ser reconhecida como uma ilusão”? Confesso ser a morte uma dos objetos de minhas obsessões. Quem diz não temer a morte me parece um farsante, um mentiroso, só desculpável se alegar que sofre de uma estupidez crônica. Estupidez que o impede de apreender fisiologicamente, de expor-se afetivamente como um ser orgânico cosmologicamente insignificante à dramaticidade e à tragicidade de sua condição mortal e à finitude de sua condição humana. Como diz Schopenhauer, “a morte decerto deve ser considerada como o fim propriamente dito da vida: no momento em que a morte se dá, decide-se tudo o que no curso inteiro da vida fora apenas preparado e introduzido. A morte é o resultado, o résumé da vida”. Quem vive tendo sempre em seu horizonte de vivências a finitude de sua condição humana encontra na perspectiva da morte, que é um evento constitutivo da dinâmica da vida, ocasião para instruir-se. Como diz Schopenhauer, a morte nos instrui na medida em que nos esclarece sobre aquilo que a vida mesma já buscava elucidar, a saber, que ela “foi algo vão, fútil, contraditório consigo mesmo”. Cioran comunga desse sentimento com Schopenhauer: “quanto mais vivemos, menos útil nos parece termos vivido”. Mas, por favor, não se apressem em tirar conclusões que desabonam essa perspectiva sobre as coisas. O pessimismo filosófico não é algo que se deve rejeitar sem alguma detida e paciente ponderação sobre suas lições. É preciso ruminá-las, à noite sobretudo quando os homens adormecem e a escuridão se estende sobre o mundo, silenciando-lhe o burburinho costumeiro, o falatório vazio. É na escuridão da madrugada que melhor contemplamos abismos, que as profundezas abissais da absurdidade do mundo se revelam (ah! Eu bem o sei!). Dizia Cioran que “ninguém alguma vez se persuadiu tanto como eu da futilidade de tudo, tal como ninguém terá tomado como trágicas tantas coisas fúteis”. Preciso, todavia, abandonar este ponto de minhas reflexões. Antes, contudo, vale frisar que as mentes mais lúcidas e sábias da humanidade reconheciam que a vida não vale muito, como reconhecia Sêneca, ao assinalar que “viver não é uma grande coisa (...) pensa que há muito tempo fazes a mesma coisa: comida, sono, libido – a vida se resume a isso”. Schopenhauer diz, por sua vez, com razão a meu ver, que “a vida é um negócio que não cobre os custos do investimento”. E acrescenta com a vocação poética que o torna proficiente no trabalho com as imagens que tingem de vivacidade o mundo literário: “ a nossa vida assemelha-se antes de tudo a um pagamento que alguém recebeu centavo por centavo de cobre, pelos quais deve, no entanto, dar uma quitação: os centavos de cobre são os dias; a quitação é a morte”. Embora Schopenhauer afirme que o sofrimento é a destinação da existência humana, ele também acredita que a própria vida é um processo de purificação e que a solução purificante é a dor. Sim, para Schopenhauer que, embora ateu, não deixou de incorporar em seu pensamento elementos da tradição mística cristã (e oriental!), “o sofrimento é de fato o meio de purificação, único através do qual, na maioria dos casos, o ser humano é salvo, isto é, abandona o caminho errado da Vontade de vida”.

Já que tenho procurado dar a conhecer meus agenciamentos, os autores e pensadores graças aos quais devo minha formação humana e intelectual, pois, como diz Libânio, “somos o que lemos, somos o que escrevemos, somos o que pesquisamos, somos o que ensinamos” – no que estou de acordo -, é, para mim, extremamente difícil não anuir ao que diz Schopenhauer neste excerto que tomo como uma máxima existencial: “num mundo em que pelo menos cinco sextos das pessoas são canalhas, néscias ou imbecis, é preciso que o retraimento seja a base do sistema de vida de cada indivíduo do outro sexto restante – e quanto mais ele se distanciar dos demais tanto melhor. A convicção de que o mundo é um deserto, em que não se pode contar com companhia, deve se tornar uma sensação habitual”. Nietzsche, por seu turno, pondera que “(...) no conjunto a humanidade não tem objetivo nenhum e, por isso, considerando todo o seu percurso, o homem não pode nela encontrar consolo e apoio, mas sim desespero. Se ele vê, em tudo o que faz, a falta de objetivo último dos homens, seu próprio agir assume a seus olhos caráter de desperdício. Mas sentir-se desperdiçado enquanto humanidade (e não apenas enquanto indivíduo), tal como vemos um broto desperdiçado pela natureza, é um sentimento acima de todos os sentimentos. – Mas quem é capaz dele? Claro que apenas um poeta, e os poetas sempre sabem se consolar”. Mas, como a maioria de nós não é poeta, talvez possamos encontrar algum consolo na sabedoria estoica de Sêneca, que nos ensina: “Não temos exatamente uma vida curta, mas desperdiçamos uma grande parte dela. A vida, se bem empregada, é suficientemente longa e nos foi dada com muita generosidade para a realização de importantes tarefas”. Anotem: uma vida longa e plena não é mensurável cronologicamente, mas qualitativamente. Viver longa e plenamente é viver uma vida cujo fim é a sabedoria – é o que nos ensinou Sêneca. Reitero aqui o que já escrevi em outro lugar, porque é necessário enfatizá-lo: a brevidade é um conceito intensivo, de modo que uma vida será breve ou longa dependendo do modo como a vivemos. Ter uma vida longa, mesmo que venhamos a morrer com 30 anos, é ter uma vida intensa, isto é, uma vida ocupada consigo mesma. Uma vida dispersa que durou 100 anos é uma vida breve. Numa vida dispersa, numa vida desperdiçada, em tudo que eu  realizo, eu não me realizo. Ora, Sêneca censura o modo de vida do homem da multidão. A multidão é tudo que eu realizo sem me realizar. Na multidão, não somos quem somos e somos os outros; mas os outros não é ninguém. A vida escrava da multidão experimenta a brevidade de tudo; é vida que se perde a si mesma. Se eu vivo, vivo segundo o que acontece. A vida do sábio é vivida segundo o que acontece. Mas a maior parte dos seres humanos – ensina Sêneca – vive acordada como se estivesse dormindo.

Longe de acreditar que trazer sempre estampados no espírito o entendimento e o sentimento de nossa condição existencial cosmologicamente insignificante e desprovida de propósito seja um caminho descerrado para o desespero total e excruciante e para o perigo implacável do suicídio, cuido que, amparada e conduzida pela educação filosófica, tal atitude pode arrefecer, temperar nosso egoísmo habitual, nos libertar da tirania de nosso narcisismo e, mormente, nos descerrar o horizonte elucidativo à luz do qual nos podemos tornar criadores de hierarquias de valores que potencializem a vida, que nos orientem na determinação do que torna abundante e fecunda a vida, bem como nos instruam sobre como devemos evitar o desperdício do tempo de vida que temos, cujo instante do fim, sempre iminente, desconhecemos . Por isso, é preciso atender séria e demoradamente nas palavras de Hannah Arendnt: em relação ao universo, a Terra é um ponto; que importa o que nela acontece? Em relação à imensidão do tempo, os séculos são apenas instantes, e o esquecimento recobriria tudo e todos; que importa o que os homens fazem? No que se refere à morte, que é igual para todos, tudo o que é específico e distinto perde seu peso; se não existe nenhum além – e a vida após a morte, para Cícero, não é um artigo de fé, mas uma hipótese moral -, não tem a menor importância o que fazemos ou o que sofremos. (...) A filosofia é invocada para compensar as frustrações da política e, de uma maneira geral, da própria vida”.

Mesmo não estando completamente satisfeito – e como poderia estar, se o estado de insatisfação permanente é constitutivo de nossa condição humana? -, preciso operar uma digressão definitiva para dizer algumas palavras sobre as atividades de escrever, ler e pensar.

 

 

Escrever constitui uma questão importante para mim em dois sentidos: 1) no sentido de que, como lembra Sponville, “escreve-se sozinho, mas é para ser lido”; e 2) no sentido de que não creio que se possa ensinar a escrever com receitas “prontas”. Aprende-se a escrever escrevendo, o que não significa dizer que sejam vãos os esforços da escola e dos professores nas práticas de letramento. Suspeite sempre quando alguém promete que você conseguirá aprender a escrever bem seguindo certo conjunto de procedimentos que o orientarão na composição de um gênero textual ou de um tipo textual, na maioria das vezes um artigo de opinião ou outro gênero textual em que predominam tipos textuais argumentativos. Mas uma atividade de escrita só se aprende e se aperfeiçoa pela conjugação de duas atividades: ler e escrever. Ler, escrever e rescrever... A leitura é importante não só porque nos permite conhecer mais sobre o mundo e adquirir, como se diz comumente, mais vocabulário, mas também e sobretudo, porque, expondo-nos aos diversos gêneros textuais, permite-nos conhecer os diversos modos como eles se estruturam. Gabriel Perissé diz que “escrever muito e sempre é o único modo de aprender a escrever, de despertar o escritor que cada um é, dentro e a partir de suas circunstâncias e limitações”. Embora não seja tão otimista quanto o autor, pois não acho que exista um escritor em cada um de nós, acolho a sugestão dele de que é escrevendo muito que se aprende a escrever. Ainda segundo Perissé, “escrever é também uma fuga, mas uma fuga para a realidade! Amar as palavras é sinal de vitalidade”.

 Mas o primeiro sentido da questão é para mim o mais grave, o que se põe como motivo de minha constante indisposição e desânimo com a prática da escrita. A questão permanece a mesma ainda hoje, para mim: por que escrever, se não há uma comunidade de leitores que realmente lerá o que escrevo? Fernando Pessoa, em seu Livro do Desassossego, confessa que: “para mim, escrever é desprezar-me mas não posso deixar de escrever. Escrever é como uma droga que repugno e tomo, o vício que desprezo e em que vivo”. E ainda: “Escrever sim, é perder-me, mas todos se perdem, porque tudo é perda”. E neste trecho seguinte encontro profunda ressonância de sentimentos: “pasmo sempre quando acabo qualquer coisa. Pasmo e desolo-me”. Eu só diria um pouco diferente: pasmo sempre quando acabo de escrever. Pasmo e desolo-me.

Concordo com Perissé, quando afirma que “escrever e viver são trabalhos que se entrecruzam”. Mas dele me afasto quando mantém que escrever é conhecer-se. Não acho que somos totalmente transparentes a nós mesmos (a julgar pelo que nos dizem os psicanalistas). Talvez, melhor seria dizer que, escrevendo, vamos perturbando o desconhecido, o suposto saber (que é um não saber) sobre o qual vamos formando um sentimento de “eu” ao longo da vida. Estou, no entanto, de acordo com ele em outras afirmações interessantes que faz sobre a atividade da escrita. No entanto, não posso ignorar que escrever não é fácil, como diz Drummond: “escrever hoje para mim é mais difícil do que quando eu tinha 20 anos”. Como Perissé, também penso que escrever é libertar-se. E isso, só, bastaria para justificar a prática da escrita. Também o essencial foi dito por Perissé, quando considera a relação entre ler, pensar e escrever: “O ler conduzirá ao pensar e o pensar conduzirá ao escrever. Ler e pensar. Escrevendo, pensar. Pensar e ler. Pensando, escrever.”. Georges Picard, por sua vez, se pergunta “é preciso ter algo a dizer para escrever?” e responde: “Eu mesmo inverti o sentido da fórmula, começando por notar que é preciso, antes de mais, escrever para ter algo a dizer”.

Não é tanto a atividade da escrita como técnica ou arte que me interessa; mas a escrita como vivência – a vivência da escrita. Nesse sentido, escrever é expor-se, mas também propor-se a ser legível e interrogado. Mario Quintana, em entrevista, disse, certa feita, que “eu nunca escrevi uma vírgula que não fosse confessional. Quando o camarada faz uma coisa cavada, por encomenda, não dá. Tem que ser um sentimento absolutamente sincero. Senão sentir nada, não deve escrever. Eu tenho tido períodos de deserto. Não vem nada e eu não escrevo”.

Perissé afirma que “ a leitura cura tudo se for leitura pensante. É bom para tudo, tudo ajuda, faz de tudo. Exercita-nos a memória recente, a conexão entre fatos e experiências passadas, a linguagem, a imaginação, a capacidade de prever, a capacidade de interpretar, a intuição.” Schopenhauer diverge, contudo. Para ele, “a leitura não passa de um substituto do pensamento próprio”.  Para ele, “uma pessoa só deve ler quando a fonte de seus pensamentos próprios seca, o que ocorre com bastante frequência mesmo entre as melhores cabeças”. Deveria dizer que, por princípio teórico, estou, nessa matéria, em desacordo com Schopenhauer? A leitura não é um substituto do pensamento próprio, porque não há, a rigor, um pensamento próprio. O pensamento reflexivo, que se constitui discursivamente, é sempre dialógico. O meu pensamento é sempre pensamento de um outro, um pensamento de que me aproprio reformulando-o, ressignificando-o na diferença, fazendo falar seus silenciamentos, dando espessura verbal aos seus implícitos.

Schopenhauer considera que existem três tipos de autores: os que escrevem sem pensar; os que pensam enquanto escrevem; e os que pensaram antes de pôr-se a escrever. Os mais numerosos, segundo o autor, são os primeiros: os que escrevem sem ter pensado antes, sem ter ponderado sobre o que escreveriam. Os mais raros são os últimos: os que pensam antes de escrever. Camus, por sua vez, considera que “para escrever, estar sempre um pouco aquém na expressão (mais do que além). Sem tagarelice, em todo caso”.

Mas, afinal, o que é pensar? Não se espante: nem todos são capazes de pensar verdadeiramente! Quando alguém, não habituado ao convívio com a filosofia, me pergunta para que serve o pensamento, eu fico tentado a lhe dizer que a pergunta em si não faz sentido, porque acompanho os gregos, para quem o pensamento tem seu fim em si mesmo. É o que nos ensinava Aristóteles. E como ensina Arendt, “todo pensar é um re-pensar”. Arendt acrescenta que “o pensamento está fora de ordem, interrompendo todas as atividades ordinárias, e sendo por elas interrompido”. E o pensamento está fora de ordem justamente porque “não produz qualquer resultado final que sobreviva à atividade, que faça sentido depois que a atividade tenha chegado ao fim.Mas como ousar dizer que nem todos pensam? É que o pensamento, no significado estritamente filosófico, como “contemplação do invisível, do que está para além das aparências”, “como atividade do intelecto em contraste com os sentidos”, como “visão direta do inteligível” (intuição), é de natureza diferente do pensamento que nos orienta na vida diária. Perissé tem razão quando diz que “pensar é virar a realidade do avesso, é “desrealizá-la”, recriá-la”. Pensamos para nos desabituar de nossas maneiras habituais, rasas, estereotipadas de “ver” o mundo, de significar as ocorrências do mundo. E Arendt, inspirando-se na tradição grega, observará que o pensar começa quando “dessensorializamos qualquer coisa que tenha sido dada aos nossos sentidos”. O pensamento tem como condição sine qua non o fato de ter um caráter niilizante, porque corrói aquilo que tomamos como evidências, nadifica as certezas, nadifica aquilo que consideramos como verdades sobre o mundo, subverte os códigos que fixam comportamento, que promovem e justificam toda sorte de violência (sobretudo, a violência simbólica). Como diz Libânio acertadamente, “a reflexão abala as evidências fáceis e não discutidas”.  O pensamento não se confunde com opinião de comentaristas de futebol,  tampouco com o falatório do impessoal, com os juízos de valor correntes, com a mera produção de atos de fala locucionários (proposicionais). Por isso, nem todas as ocasiões e modos de enunciação são propícias ao pensamento. As redes sociais, por exemplo, tendem a ser espaços onde colidem diversas opiniões, preconceitos, clichês, mas jamais – ou quase nunca – favorecem o exercício do pensamento. Para Arendt, o pensamento é busca do significado: “o pensamento pensa o significado. O pensamento não pergunta o que uma coisa é ou se ela simplesmente existe, porque sua existência é tomada como certa, mas o que significa para ela ser”. Pensar, para Arendt, é entrar no significado do acontecimento. E Deleuze diz  que “o modo do acontecimento é problemático. Não se deve dizer que há acontecimentos problemáticos, mas que os acontecimentos concernem exclusivamente aos problemas e definem suas condições”. “O acontecimento é, por si mesmo, problemático e problematizante”. Portanto, o pensamento pondera, pensa o significado da problematicidade do acontecimento. E acontecimentos, como pensavam os estoicos, não são corpos, mas são os incorporais, são efeitos, e não coisas ou estado-de-coisas.

E uma vez que o pensamento está fora de ordem, deve-se então concluir, com os gregos e com Arendt, “que pensar significa seguir uma sequência de raciocínios que eleva aquele que pensa a um ponto de vista exterior ao mundo das aparências e à sua própria vida”. Num mundo que é caos, como acreditava Nietzsche, ou absurdo, como pensavam Schopenhauer, Camus e Cioran, não podemos  recusar um fato que torna nossa condição humana desconcertante e assombrosa. Como diz Lya Luft, “o mundo não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui forma, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem”. Guardarmo-nos de acreditar que o mundo tem, em si mesmo, alguma ordem, alguma finalidade, algum sentido metafísico é já  começar a libertar-se daquele “tranquilo desespero” habitual que acostumou a maioria dos homens a não reconhecer que, como diz Cioran, “apenas tem convicções aquele que nada aprofundou”. E digo eu: aquele que nada pensou realmente.

 

É chegado o tempo de represar o fluxo verbal, evitando, assim, o esgotamento das forças do espírito e do corpo. Já posso sentir insinuar-se o gosto acre da desolação, da frustração por não ter conseguido externar os meus outros tantos declives e outras tantas nuances de minhas inquietudes, aflições, angústias, que tingem de nervura e coloração rubra os subterrâneos de minha alma. Este texto deveria ter sido destinado para falar de reminiscências, para acordar o poeta adormecido em mim, o poeta que um dia cuidei ser. Era para ser destinado à reflexão sobre a condição dos excluídos – condição esta da qual faço parte há oito anos-, dos que foram forçosamente postos à margem pela tirania do Capital e pela inaptidão da política para controlar a voracidade e os abusos do mercado. Como escreve Viviane Forrester, “um desempregado, hoje, não é mais objeto de uma marginalização provisória, ocasional, que atinge apenas alguns setores; agora, ele está às voltas com uma implosão geral, com um fenômeno comparável a tempestades, ciclones e tornados, que não visam ninguém em particular, mas aos quais ninguém pode resistir. Ele é objeto de uma lógica planetária que supõe a supressão daquilo que se chama trabalho; vale dizer, empregos.” Publicado, originalmente, em francês em 1996, este texto é bastante atual; mas quem se surpreender com sua atualidade é que não entende nada de capitalismo. Onde o capitalismo estendeu suas presas dilacerantes dificilmente nascerá igualdade e justiça. Mas fiquemos aqui com Pessoa, que nos legou esta nota de sabedoria: “Todos somos iguais na capacidade para o erro e para o sofrimento”. Ao que podemos acrescentar, citando Clarice Lispector: “viver é luxo”.

 

 

 

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

"Mafalda - Oi, como você é pequenininha. Qual é o seu nome? - Liberdade." (Mafalda)

 

                                                                       


             


                                                                   As caricaturas da política

 

... Uma pausa na leitura para concatenar breves reflexões... Ontem, assisti ao debate entre os candidatos ao cargo de prefeito do Rio de Janeiro. E confesso que foi uma ocasião para a diversão. Mas não foi uma diversão típica daqueles que a buscam para desanuviar-se de suas preocupações e aborrecimentos diários ( aliás, não sei como um debate eleitoral poderia servir a um tão nobre fim!)... Foi uma diversão oportunamente perquiridora do ridículo político, das caricaturas da cena política, onde a seriedade da ocasião se disfarça com a veste bufônica do artifício e do ofício, perquiridora também do burlesco da encenação política e de seu discurso estereotipado e ritualístico. A cena política, reencenada inúmeras vezes segundo um padrão que se superficializa em cada repetição, é bem conhecida do eleitor médio: políticos fazendo promessas, ressaltando seus feitos políticos pretéritos, e adversários políticos (dispostos sempre a acordos segundo as conveniências do momento) fazendo acusações maneiradas com um decoro do qual não temos mais notícias quando o então candidato é eleito. Confesso também que a diversão, a certa altura, se fez acompanhar de um enfado, e este foi imediatamente sufocado por certa inquietação: terei eu de votar em um destes que aspiram ao cargo de prefeito, que não fazem senão diante das câmeras uma encenação de um tipo político bem conhecido – o tipo eleitoreiro?

 

Eu gostaria de que a todo político e, mormente, a cada um dos candidatos que lá estavam diante das câmeras a pleitear o cargo de prefeito do Rio de Janeiro, fosse dirigida uma questão (im)pertinente: QUAL É O SIGNIFICADO DA POLÍTICA? Uma questão filosófica, decerto, e que sei não é da alçada da política, ou, não é oportuna, conveniente a um político “profissional”. Mas, como toda questão filosófica, tão urgente quanto fundamental! É que me parece que os políticos - a maioria esmagadora deles- não sabem bem qual é o significado da política (tampouco o eleitor médio o sabe, é claro.). E é porque ignoram o significado da política que a experiência política que se realiza diariamente na sociedade brasileira é a redução da política a uma relação alienada entre administradores da coisa pública (quase sempre péssimos administradores) e pagadores de impostos que detestam os administradores mas amam subservientemente o Estado. É jocoso e intrigante o modo como se dá essa relação quase edípica entre governados e governantes na sociedade brasileira, uma relação que foi descrita com uma imagem fabular por Garschagen nos seguintes termos “[os brasileiros] desconfiam das raposas – mas, ao mesmo tempo, querem mais raposas tomando conta do galinheiro”. E, nas próximas eleições municipais, milhões de eleitores escolherão novamente as suas novas e velhas raposas que, por mais quatro anos, ficarão a tomar conta de seu galinheiro, enquanto contam uma fábula política para eles (pagadores de impostos) dormirem letargicamente.

 

Não é possível a experiência de liberdade fora da política, como já sabiam os antigos gregos; e uma sociedade política livre só pode sê-lo verdadeiramente se governada por leis, e não submetida aos caprichos momentâneos e aos interesses espúrios dos homens. Por fim, a questão “qual é o significado da política?” importa mais como questão do que como pergunta que solicita uma resposta acabada (resposta que, aliás, definitivamente, não há). Como questão, sua validade consiste em ser provocadora, perturbadora do sono habitual da consciência coletiva. Mas, se querem saber como podemos pensá-la, eis o que se nos descortina como caminho: a política, na medida em que diz respeito à convivência humana, aos modos de organização da vida em sociedade, possibilita (ou, deveria possibilitar) aos indivíduos perseguir seus próprios fins sem serem importunados pela própria política – e aqui pouco importa se os fins são, como pensavam os gregos, tornar possível a uns poucos o exercício da filosofia, uma vida dedicada à filosofia, ou, se são, como pensamos nós na modernidade, garantir a subsistência e um mínimo de felicidade.

 

Deixo a quem teve paciência para ler estas improvisadas ponderações até o fim o dever de tirar suas próprias conclusões.

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

"Um político divide os seres humanos em duas classes: instrumentos e inimigos." (Nietzsche)

                                                           



      

Bios theoretikós e bios politikos

 

Ocorreram-me agora as minhas insistentes indisposições para com os colegas que, em vez de se ocuparem com temas filosóficos, em razão dos quais nossas trocas verbais encontravam plena justificação, preferiam tagarelar sobre temas de nossa política nacional. O que me enfadava não era tanto a política como assunto, mas a lengalenga que subtraía ao tema "política" toda a sua problematicidade filosófica. Agora, pensando bem, minhas indisposições encontram apoio na tradição filosófica.

No início de nossa tradição de filosofia política, encontramos o desprezo de Platão pela política. Platão considerava que os assuntos práticos e as ações do homem não deveriam ser levados a sério. A única razão por que o filósofo interessava-se por esses assuntos repousava no reconhecimento de que o exercício da filosofia, infelizmente, dependia da boa condução deles, já que eles dizem respeito à convivência entre os homens. No começo da tradição, a política existe porque os homens vivem como mortais; mas a filosofia ocupa-se das questões eternas. Como o filósofo é também mortal, ele acaba por se interessar pela política também. Mas seu interesse não vai além da necessidade de garantir a boa condução dos negócios humanos, a fim de que o exercício da filosofia não seja perturbado ou impedido. 

O termo grego "scholè" não designa o ócio em geral, mas o ócio relativo à obrigação política. Por conseguinte, a liberdade do espírito para ocupar-se do eterno (aei on) só era possível se as necessidades básicas da vida mortal estivessem atendidas. Já com Platão, a política começou a abranger as atividades destinadas ao atendimento das necessidades básicas da vida. Assim, ao desprezo dos filósofos pelos assuntos fugazes da vida prática dos mortais, pôde-se acrescentar o desprezo especificamente grego por tudo que é necessário à mera subsistência. Em suma, quando os filósofos começaram a se preocupar com a política de maneira sistemática, ela passou a ser encarada como um mal necessário (e suspeito de que a maioria dos brasileiros hoje consentiria nesse juízo, sobretudo quando a relação entre o sistema político brasileiro e o homem comum, privando-o dos direitos de cidadania, o posiciona num lugar de mero pagador de impostos).

Decerto, não estou sugerindo que os filósofos de hoje devessem seguir a atitude grega e, especificamente, platônica, em face da política. Mas recordar essa herança filosófica de desprezo com a política contribui para advertir aos que, tendo pendor para a filosofia, preferem, no entanto, ocupar-se com a tagarelice diária sobre os assuntos políticos que o filósofo não é o político e nem o militante político e, quando o é, não ocupa mais, mesmo que por um breve momento, o lugar do filósofo. Em suma, recordar o desprezo dos antigos gregos para com a política é lembrar que a filosofia, como observa Arendt, está mais próxima da poiesis que da praxis.