sexta-feira, 22 de março de 2013

Memórias 3



                       Diante de mim: reexperienciando-me

"Pensei aqui me definir, mas toda definição, de certo modo, é uma tentativa de capturar o sentido; acontece que me defino pela própria indefinição; definir-me seria pretender enquadrar-me em alguma categoria de homens; não creio ser possível categorizar-me, pois o fundo de minha alma é o reverso da superfície rala do mundo". (BAR)

Experimento a inexpressividade concomitantemente com o ato de lançar sobre esta página estas tenras palavras. As inúmeras experiências de leitura de que me ocupo na maior parte do tempo de meu cotidiano, normalmente, fertilizam muitas ideias em minha alma; se não me apresso em imprimi-las por escrito, elas se perdem nas longínquas nebulosas de sentimentos de que aquela é feita.
Em meus textos, especialmente em poemas, está clara a minha inclinação romântica. O que significa, entretanto, ser romântico? Essa é a pergunta que me faço agora. Alfredo Bosi nos ensinará que o Romantismo, como movimento estético-literário que veio à cena nos fins do século XVIII, era a expressão dos sentimentos dos descontentes. Descontentes, no caso, eram aqueles que não estavam satisfeitos com as novas estruturas sociais de então.
Não é de Romantismo que tratarei aqui, evidentemente. A lição de Bosi foi trazida à cena, a fim de mostrar um aspecto do ser romântico que transcende o sentimento idealista que lhe é peculiar. O romântico é caracterizado, tradicionalmente, pelo sentimentalismo exagerado, pela efusão lírica, pela desmesura. Parece-me equivocado, no entanto, limitar o ser romântico a atitudes idealistas, à propensão ao imaginário utópico. Acredito que ser romântico é uma forma de projeção espiritual que abre caminhos imprevistos, que resiste ao status quo. Insatisfação é o ventre dos ideias românticos. O romântico não é piegas; não se identifica com alguém ingênuo que foge para seus universos imaginários em face da consciência da impermeabilidade das estruturas sociais a mudanças ( não nego as mudanças; elas existem em maior ou menor grau, dependendo do regime político de uma sociedade, é claro (sociedades totalitárias são engessadas, refratárias à mudança, por exemplo); na verdade, o que há, em vários momentos da história de sociedades (particularmente, as democráticas), é uma tensão dialética entre forças que tendem à transformação e forças que tendem à conservação). Pode-se ser um romântico engajado; aliás, esta me parece ser a condição do romântico pós-moderno: ser um romântico comprometido com os movimentos sociais de resistência.
Os caminhos que trilhei até aqui devem apontar para a ideia de que minha inclinação romântica impregna a totalidade dos meus atos existenciais. No magistério, ela é fundamental. Inicio cada período na faculdade onde leciono patenteando aos meus alunos o meu amor ao magistério. Se eu não amasse lecionar, não haveria motivação outra que me estimulasse a ser professor. Portanto, eu romantizo minhas experiências docentes. Disso não se segue que não reconheça os obstáculos que inviabilizam uma prática pedagógica orientada para uma finalidade emancipadora.
Vários de meus textos versam sobre temas bem variados; os mais marcantes são os de linguagem e de filosofia. É claro que, como minha formação acadêmica até o presente momento, em que faço doutorado, é na área dos Estudos da Linguagem, tecnicamente falando, na área de Linguística, evito fazer incursões densas nesse campo do conhecimento humano, visto que, se assim procedesse, acabaria por exigir uma classe de leitores especializados; na ausência destes, meus textos tornar-se-iam desinteressantes.
Como eu me considere um leitor híbrido, ou seja, um leitor que aprecia a leitura diversificada, conquanto cerceada pelos limites do engrandecimento intelectual, o que me faz excluir de meu escopo de interesses certos gêneros da literatura, acabo atrevendo-me a discutir sobre temas que não constituem alvo de estudos formais, isto é, acadêmicos. Não sou especializado em sociologia, em filosofia e em tantos outros domínios do saber humano em cujo interior meu espírito atrevido se aventura. Sinto-me, sinceramente, seguro nos estudos da linguagem. Isso, contudo, não me impede de alçar vôos sobre aqueles outros campos do saber, em cuja abundância posso colher flores.
Eu execro a vaidade acadêmica, comum a certos professores e pesquisadores de universidades. A titulação só importa em termos de aproveitamento do processo de ensino-aprendizagem. Na relação com os alunos, não importa se somos mestres ou doutores, ou se gozamos de prestígio na área de pesquisa científica; o que importa é o modo como conduziremos a prática pedagógica de modo a fomentar experiências de afetividade e de autonomia de pensamento tão caras ao sucesso do processo de ensino-aprendizagem.
A par de Paulo Freire, Rubem Alves é, para mim, o educador mais insigne de nosso país. Gostaria de convidar o leitor a ler o livro A alegria de ensinar (2008) deste grande educador, filósofo e intelectual de vanguarda que é Rubem Alves.  Neste livrinho, eu aprecio, especialmente, o capítulo intitulado de O Sapo. Entretanto, quero lançar algumas reflexões sobre um capítulo cujo conteúdo é pertinente ao desenvolvimento deste texto, a saber, Tudo o que é pesado flutua no ar.
Espero que o leitor apreenda a sensibilidade com que Rubem Alves propõe suas ideias. É esta sensibilidade que torna o elenco de textos de que se compõe este livro minas de conhecimento e de reconhecimento do papel do amor/alegria na atividade docente. Atentemos para o texto – Tudo o que é pesado flutua no ar.

“A mesa onde trabalho tem onze gavetas: cinco de cada lado e uma no meio. Nas gavetas laterais eu coloco as ideias que me aparecem, rabiscadas em pedaços de papel, cada uma delas no lugar que lhe pertence. Tem a gaveta da poesia, da psicanálise, das estórias infantis, da educação. Havendo tempo e desejo a gente vai lá, põe tudo em ordem, e a bagunça vira um livro. A gaveta do meio é diferente. Nela eu não arquivo ideias. Guardo objetos, os mais estranhos e inesperados. Por exemplo, um saquinho de bolinhas de gude. Para quê? Não sei. Faz tempo que não jogo bolinhas de gude.
Acho que eu as guardei lá pela mesma razão que os namorados de outros tempos colocavam uma flor entre as páginas de um livro: para preservar um momento de felicidade, perdido”.
(p. 71)

As gavetas de que nos fala o autor representam, em síntese, duas personas: a do intelectual-escritor, do homem habituado às letras e aos pensamentos; portanto, a do adulto que acumulou inúmeras experiências de vida; e a do “menino que só existe como saudade” (p. 72), ou seja, a da criança adormecida em sua alma. É na gaveta localizada na parte central da mesa que estão as bolinhas de gude, um brinquedo que remete aos tempos de infância. Ao se referir a essa gaveta, escreve o autor:

“De todas as gavetas, acho que essa é a que mais se parece com a nossa cabeça, baú entulhado com memórias de felicidade que tivemos. No mais das vezes tudo fica esquecido, na gaveta e no baú, pois as pressões da realidade deixam pouco tempo para o devaneio”.
(p. 72)

Note-se que ele nos convida ao rememorar nossos tempos de infância, tempos em que ele (e possivelmente muitos de nós, meninos) brincava com as bolinhas de gude. Entretido com as bolinhas, o autor-criança conhecia o mundo e este lhe aparecia como “um grande brinquedo”.

“E a culpada foi a Mariana. Acontece que ela começou a descobrir o mundo, e dentre todas as infinitas formas que a natureza esbanja, foi das bolinhas que ela se enamorou. Via bolinhas em tudo: ervilhas, moedas, brincos, botões, cerejas, lua, estrelas. Com o seu dedinho ia apontando enquanto a boca repetia a palavra mágica. Foi então que me lembrei das minhas bolinhas de gude. Escarafunchei a gaveta da saudade e fiz-lhe esta espantosa revelação: também eu brincava com bolinhas. Uma menininha e três bolinhas de gude. Ela brinca. Seus olhos e seus gestos revelam uma enorme alegria”.
(pp. 72-73)
Destacarei algumas ideias fundamentais do texto que o leitor, caso venha a lê-lo, poderá constatar por si mesmo. O autor entenderá o mundo como um grande brinquedo, donde se conclui que aprender deve ser uma atividade prazerosa, como uma brincadeira. A criança descobre o mundo e essa descoberta é feita de modo entretido. Para o autor, os professores devem ser como as bolinhas de gude: deve propiciar a criança o acesso ao mundo, não mediante esquemas pré-fabricados que engessam a sua criatividade, mas por meio de uma prática que estimule sua propensão ao lúdico e ao criativo. As disciplinas escolares não devem levar a uma finalidade prática, porque, segundo o autor,

“Brinquedo não serve para nada. Terminado, guarda-se as bolinhas de gude no saquinho e o mundo continua como era. Nada se produziu, nenhuma mercadoria que pudesse ser vendida, não se ganhou dinheiro, não se ficou mais rico. Pelo contrário: perdeu-se. Perdeu-se tempo, perdeu-se energia. Por isso que os adultos práticos e sérios não gostam de brincar. O brinquedo é uma atividade inútil”.
(p.72)

Apesar de sua inutilidade inerente, o brinquedo sempre nos é atraente; e isso se deve ao fato de ele propiciar alegria. Assim escreve o autor “felicidade é brincar (...) porque no brinquedo o corpo faz amor com objetos do seu desejo” (p. 74). A metáfora do ensino como brinquedo leva-nos a pensar sobre a prática pedagógica não como uma exigência do exercício do magistério, mas como uma experiência de alegria, já que

“Dizem que o trabalho enobrece. Poucos se dão conta de que ele embota, cansa e emburrece”.
(p. 74)

É claro que o autor não está sugerindo que deixemos de trabalhar para brincar; ensina-nos, na verdade, que devemos colher alegria em nosso trabalho e, como se dirige, particularmente, aos professores, reconhece que o trabalho destes é de ordem diferente do trabalho de outro profissional, digamos, de um funcionário público. Não estou depreciando o papel do funcionário público, evidentemente; estou apenas sugerindo que ensinar é um processo de formação de subjetividades que se abrem para o mundo e que nisto consiste a diferença entre o trabalho do professor e o trabalho de qualquer outro profissional. Não é possível ensinar se não cultivarmos alegria em nosso interior. Ensinar é doar-se, sem doação não há ensino. Para além de métodos, estratégias de ensino e conteúdos, deve haver a doação de humanidade a humanidades em qualquer ato de ensino.
Gostaria de destacar um momento do texto que me parece muito importante para a compreensão da proposta do autor, a saber, o momento em que Mariana passa a dominar a “varinha mágica” (palavra), graças à qual ela, enquanto indivíduo da espécie humana, levará extremas vantagens sobre espécies de animais que também brincam.

“O mundinho de Mariana é muito pequeno. Não vai muito além dos seus braços e da suas perninhas que mal aprenderam a andar. Ela brinca com coisas: bolinhas de gude, bonecas, panelinhas. Nisso ela se parece muito com os gatinhos, cães, potros, que também gostam de brincar. Mas ela já tem uma coisa que eles não têm – uma varinha mágica de condão que fará toda a diferença: ela está aprendendo a falar. A alegria não está só quando ela tem as bolinhas em suas mãos. Ela ri ao falar o nome, mesmo que não haja bolinha alguma por perto: ela brinca com as palavras”.
(p. 75)

O autor nos dá a saber, com muita sensibilidade, o que eu entendo como poder fascinante da linguagem, ou seja, a sua função de simbolização, pela qual tornamos o ‘ausente’ presente. A função do signo (palavra) é, justamente, esta: estar no lugar da coisa referida. O universo de Marina é, então, organizado conceitualmente graças ao poder das palavras; não viverá mais numa relação imediata com o meio; este será apreendido sob formas de simbolização. O mundo entrará em sua consciência pela força simbólica das palavras (em formas de “conteúdos”). Por isso, o autor nos ensinará que “pelo poder da palavra ela é capaz de brincar com coisas ausentes” e acrescentará “as palavras são brinquedos”.
Já tive a oportunidade de desenvolver este pensamento: as palavras são brinquedos. Alhures, externei quão entretido fico com as palavras. Escrever é, para mim, uma atividade lúdica, decerto. Brincar com as palavras é exercitar a prática do pensamento. O autor parece sugerir que é graças às palavras que podemos pensar, o que corrobora a ideia de que não há possibilidade de pensamento conceitual  fora dos quadros da linguagem.

“Pois é: ela aprendeu a pensar. E ao falar aprendeu a brincar com as palavras, ela aprendeu a brincar com coisas que não existem. E ao aprender a brincar com coisas que não existem aprendeu a pensar! Lembre-se do que disse Valéry: “O pensamento é, em resumo, o trabalho que faz viver aquilo que não existe”.
(p. 76)

Embora não seja possível fazer divagação neste terreno agora, a concepção segundo a qual pelo estudo da linguagem é possível compreender o modo como a mente humana se estrutura, enfim, como nós pensamos constitui uma tese a que me sinto decididamente inclinado. O psicólogo Steven Pinker, em seu livro Do que é feito o pensamento, mostrará como a língua fundamenta as nossas conceptualizações de mundo; as formas de pensá-lo, de compreendê-los são codificadas nas categorias que a nossa língua nos fornece. A linguagem é, certamente, um fenômeno sui generis, que perpassa todas as esferas de atividade humana.

Ensinar e ler

Ao longo desses quase dez anos de dedicação continuada aos estudos, conheci muitas teorias, li sobre muitos estudiosos da linguagem, muito embora ignore o pensamento de outros tantos. Atualmente, ensino algumas teorias, com vistas a contribuir para a formação teoricamente mais sólida dos futuros professores de português. Todavia, não abandonei a ideia de que o papel de todo professor de língua materna é desenvolver nos aprendizes as competências comunicativa e textual. Para tanto, ele deve promover uma prática pedagógica que contemple o ensino da língua em uso e que não se limite ao ensino da gramática tradicional orientado taxionomicamente. Este ou deve ser redimensionado, ou abandonado. Ainda que eu me sinta tentado a desenvolver essa proposição aqui, não o farei, porque ela implicará problemas que são de interesse de profissionais da educação, particularmente de professores de língua materna.
Sucede que, quando se dá aula a graduandos de Letras, está-se realizando uma atividade que visa à formação de professores que devem ser, antes de tudo, leitores e escritores (no sentido lato) atuantes. As aulas de português devem ser ministradas por leitores a futuros leitores. Ora, como ensinar a ler e a escrever, se quem o faz não está habituado a ler e a escrever? E no caso dos professores universitários, que ministram aulas de língua, como ensinar a ensinar a ler e escrever, se não se lê e escreve continuamente?
Em seu artigo Escrita, experiência e formação – múltiplas possibilidades de criação da escrita, que se acha no livro A experiência de leitura (2003), a professora Sonia Kramer, da PUC-Rio nos dá a saber

“A escrita do texto remete à escrita da história. Porém, muitos de nós, alunos e professores, não somos sequer leitores dos textos que escrevemos; outros, ao contrário, têm podido descobrir que reescrever o texto é reescrever a história das ideias que o geraram, registrando, transcrevendo, marcando o papel com esses traços, pontos, riscos. Ser leitor do próprio texto vincula-se à compreensão do que foi escrito em nós. Vemos, assim, que a escrita desempenha um papel central na constituição do sujeito.”
(p. 64)
(grifo meu)

Indagará, ao cabo desse parágrafo,

“Podemos tornar nossos alunos pessoas que lêem e escrevem, se não lemos e se temos medo de escrever?”

Entender a leitura e a escrita como experiências é permitir que se lance um olhar que as apreenda como formas de conhecimento constitutivo do que somos. Por isso, insisti, em alguns de meus textos, que a prática, ou melhor, a experiência de escrita deve ser uma forma de redescoberta de si mesmo, de autoconhecimento. Pensar a leitura e a escrita como experiências é compreender sua implicação no modo como nos relacionamos com o mundo, é inseri-las nas formas de nossas vivências. Ler e escrever deixa de ser um mero ato, uma atividade com finalidades pedagógico-burocráticas, para tornar-se espaços de reinterpretação de si mesmo e de nossas percepções de mundo. Ler e escrever são experiências constitutivas da sociabilidade.
A leitura silenciosa, feita individualmente, quando o espírito está recluso, permite-nos abstrair-nos do mundo e retornar a nós mesmos. Ler é, assim, permitir um encontro consigo mesmo e esse encontro é tão mais enriquecedor quanto mais perplexos ficamos em face das ideias e das percepções que nos são alargadas pelo texto. A leitura solitária exige-nos que coloquemos o mundo entre parênteses. É inegável que a escolha pelos livros seja um parâmetro de diferenciação (distinção) social. Formar leitores e indivíduos capazes de dominar a modalidade escrita da língua é um compromisso político ao qual não pode se furtar o professor. Isso se torna imperioso na medida em que reconhecemos a experiência de leitura como proclamadora da abertura do sujeito para o mundo. Ler é uma atividade telescópica, já que nos permite ver o que não nos é perceptível quando das vivências da cotidianidade. Vemos melhor quando estamos imersos em nossa solidão: a abstração de nosso espírito é fundamental para a compreensão mais aguçada e penetrante da realidade.
Sou um leitor-mosaico, visito e revisito o pensamento de autores bem variados. Figuram em minha agenda de leituras os pensamentos de Mx Weber, Émile Durkheim, Karl Marx, Sartre, Chomsky, Saussure, Rubem Alves, Leonardo Boff, entre outros muitos. Compreender a leitura e a escrita como experiências de vida que nos singularizam em meio à massa impessoal que compõe as sociedades modernas é o convite que faço ao leitor. Minha singularidade não está tanto no que sei ou no que penso saber, mas nas questões que suscito e no modo como as conduzo de modo a formar leitores cada vez mais experientes, perspicazes e capazes de reconhecer o valor desta faculdade que nos torna criaturas especiais: a faculdade da linguagem.

quarta-feira, 20 de março de 2013

"Ao falar, queremos sempre causar impressão em nosso ouvinte" (BAR)


                

        Autocrítica: as imagens de si no galanteio


Sócrates ensinou o caminho para a sabedoria: “conhece-te a ti mesmo”. Esse aforismo estaria, segundo a tradição, inscrito nos pórticos do Oráculo de Delfos. A frase teria sido proferida pela pitonisa desse oráculo, chamada Femonoe. Seja como for, o “conhece-te a ti mesmo” abre caminho para o autoconhecimento, como a primeira etapa para conhecer modos de existência social mais profundos. Tenho seguido esta recomendação socrática desde há muito, através da escrita. Especialmente, durante os anos em que precisei de tratamento psiquiátrico em função da depressão, a escrita serviu-me de exercício para o autoconhecimento.
A questão de que me ocuparei neste texto tem a seguinte forma: Qual é a origem de nossas decepções no galanteio? Embora a palavra ‘galanteio’ seja definida de modo a colocar o homem como o responsável pelas lisonjas e finezas, as ideias que desenvolverei aqui valem também para as mulheres. Eu preciso, contudo, dizer o que me motiva a escrever este texto. Vou contextualizá-lo, portanto.
Estou participando de um site de relacionamentos, não faz muito tempo. Não cuido sejam necessárias muitas justificativas, mas decidi participar por me possibilitar conhecer mulheres e lidar com as dificuldades comuns da conquista. Evidentemente, minha intenção é namoro, mas, até que o namoro aconteça, é preciso dedicar-se à conquista ou ao galanteio (palavra fora de moda, bem o sei). Neste site, os participantes precisam escrever/falar sobre si mesmos e sobre a pessoa que buscam, ou seja, precisam construir um ethos (grosso modo, uma imagem de si) e uma imagem da pessoa que lhes seria, de algum modo, interessante. Antes de me decidir pelo tema deste texto, me sorriu a ideia de escrever sobre esses ethos. É interessante compreender como as pessoas constroem um ethos com vistas a serem bem-sucedidas na busca pelo parceiro/parceira ideal. Todavia, protelo o tratamento deste tema.
De certo modo, é de ethos que vou falar. Na verdade, do meu ethos. Mas, como o conceito é problemático, tendo sido, tradicionalmente, tratado na retórica em Aristóteles, interessado aos pragmatistas da argumentação, como Oswald Ducrot e retomado por analistas do discurso, como Charaudeau, o termo sofreu variações de sentido e de valor teórico. Como eu não pretenda considerar essas variações e valor, tampouco me aprofundar nas discussões em torno deles, vou optar por adotar a noção de imagem de si; mas não porque ela seja menos problemática, mas por ser de uso corrente. O rigor com que me habituei a desenvolver minhas reflexões impõe-me que eu a defina.
A noção de imagem de si se prende à ideia de representação, cuja base é simbólica, ou melhor, discursiva. Mas é preciso afastar do campo semântico de imagem ideias ligadas à inautenticidade, à falsidade, à insinceridade, que orbitam o campo ético. É claro que na construção da imagem de si questões éticas tais como a necessidade de ser autêntico, de ser sincero (falar a verdade), etc estão implicadas. Mas quero, inicialmente, evitá-las para definir o conceito. O que é uma imagem? Remetendo-nos  à palavra imaginação, “imagem” tem a acepção de representação mental de algum objeto. Sartre, por exemplo, entendia que a imagem é uma certa maneira de a consciência colocar para si um objeto. 
Quando aplicada ao domínio do ‘eu’, ou seja, quando entra a fazer parte da expressão ‘imagem de si’, a palavra significa a representação que esse ‘eu’ faz de si mesmo. A toda representação subjaz uma interpretação. O ‘eu’ que se representa ou que constrói uma representação de si (uma imagem de si) o faz na base de atributos, ideias, valores, crenças que associa a si mesmo. Evidentemente, trata-se de uma imagem que ele quer seja valorizada pelos outros. Os “Outros” desempenham um papel importante nesse processo de construção da representação de si, visto que o ‘eu’ se define, se constrói e só existe como sujeito social na relação com os outros. É mister entender que esses outros também constroem uma imagem do ‘eu’ com quem interagem, além, é claro, de construir uma imagem de si mesmos, já que cada outro é um ‘eu’ também.
Importa ver que a representação de si ou a construção da imagem de si se dá no discurso, ou na interação com os outros. Portanto – repito – o ‘eu’ constrói uma imagem de si no momento em que está na presença dos outros, por meio do uso da língua. Ao falar, ele se representa (encena). Como os outros, além de construir uma imagem de si, constroem imagens do ‘eu’ com quem interagem, é correto falar em imagens recíprocas. Vamos facilitar um pouco as coisas. Imaginemos uma situação de interação face-a-face, em que dois e apenas dois interlocutores dialogam. Ambos se entendem como sujeitos sociais, que se reconhecem como um ‘eu’ (esse ‘eu’ é já uma imagem). Mas esse ‘eu’ toma forma ou se constrói (na relação com) no momento em que diz ‘eu’, no momento, portanto, em que se apossa da palavra. Ao falar, ele encena. Na encenação (na fala), ele (o eu) irá construir uma imagem de si que pretende seja reconhecida (valorizada) favoravelmente pelo parceiro de comunicação. O parceiro, que é, até então, o outro, constrói uma imagem (uma representação) desse ‘eu’, que pode ou não coincidir ou concordar com a imagem que o eu constrói de si mesmo. Nesse processo de construção interacional de imagens, os interlocutores estão, a todo momento, operando com base em hipóteses. Ao construir uma imagem de si, o eu está também formulando hipóteses sobre a imagem que o outro tem de si mesmo e sobre a imagem que o outro está construindo sobre ele (eu), sobre a imagem que ele- o outro- faz da imagem que o eu constrói para ele, e assim por diante. Em outras palavras, quando me represento, também penso sobre o que está pensando sobre mim o meu interlocutor, sobre o que ele pensa sobre o que eu estou pensando sobre ele. E a recíproca é verdadeira.
Os interlocutores – o eu e o outro – não só constroem imagens de si e uns dos outros, mas também do tema de que tratam. Sem pretender descer a pormenores teóricos (as teorias aí são muitas e os teóricos divergem), importa reter o seguinte: há três representações básicas. A primeira é aquela que o eu tem de si mesmo ou constrói para si mesmo; a segunda é aquela que esse ‘eu’ constrói para o outro (interlocutor); e a terceira é aquela construída sobre o tema tratado. Como o “eu” e o “outro” são sujeitos sociais, claro está que carregam em si uma herança sociocultural e histórica, de sorte que essas três representações se combinam com as representações culturais, aquelas forjadas nas experiências culturais de que participam. Trata-se de representações pré-construídas que são trazidas para interação.
Em suma, a construção da imagem de si é uma co-construção de base interacional, ou seja, que se dá pelo uso da língua. As imagens recíprocas são constantemente negociadas durante as práticas discursivas de que participamos.
Quero chamar a atenção para a importância das representações pré-construídas, as de base culturais. Como sejamos seres culturais, nossa representação de si se constituirá de uma herança de valores de nossa sociedade. É claro que os valores que assumimos podem entrar em conflito com os valores mais largamente disseminados e aceitos.  E é claro também que tais valores podem perdurar no tempo e provirem de uma dimensão mais universal, considerando-se a história da humanidade. Num mundo globalizado como o de hoje, é praticamente impossível não assumirmos valores produzidos por outras culturas com que a nossa cultura está em contato. Há mútuas influências culturais constantes.
 Como usamos, com bastante frequência, a palavra “valor” para referir-se a “valores culturais”, convém ter em conta o que significam “valores culturais”. Um valor cultural se define como uma ideia comum sobre como uma coisa deve ser classificada em termos de mérito, desejabilidade ou perfeição. Os valores podem ser empregados para classificar tanto abstrações quanto objetos concretos, bem como experiência, comportamento, características pessoais, estados de ser (por exemplo, estatura alta acima de estatura baixa, sadio acima de doente, etc.). Na noção de valor, o que importa é o fato de ser usado para categorizar as coisas umas em relação às outras em termos de importância. Os valores culturais diferem das preferências pessoais, na medida em que nestas o único árbitro é o indivíduo; para aqueles, a referência é a sociedade. Por isso, se consideramos a honestidade um valor cultural, é porque se trata de uma qualidade do modo de ser culturalmente prestigiada, desejada. Mas é sempre bom lembrar que, embora os valores culturais suponham um consenso, esse consenso nunca será completo ou total. Isso dá margem ao contraste ou ao conflito entre os valores que um indivíduo assume como componentes definidores de sua subjetividade e outros valores culturais geralmente aceitos por outros membros de sua cultura.
Não pretendendo me alongar sobre este tema, volto a considerar o problema da construção da imagem de si nas experiências de galanteio ou de conquista amorosa. Quando, neste momento, penso sobre esta questão, recordo como a imagem que construo de mim mesmo me levou a conclusões equivocadas, com base nas experiências de decepção que vivenciei.
Tenho conservado e negociado uma imagem de mim mesmo cujos atributos, evidentemente, suponho atraentes às mulheres de um modo geral. É importante a suposição aí, como vimos. Tendo experimentado decepções, conclui que elas são insensíveis ou incapazes de reconhecer os valores de que se compõe esta imagem. O erro, que vale para todos nós, homens e mulheres, está aí.
A imagem que construo de mim é a de um homem que é amante da linguagem, amante da leitura e da escrita, poeta e intelectual, idealista, romântico e fiel. Por alguns anos – e esta crença foi reforçada por familiares -, acreditava que estas qualidades eram as qualidades mais unanimemente apreciáveis entre as mulheres. Acreditava que essa imagem pudesse me acarretar a ventura amorosa. O erro está nesta suposição, ou melhor, na suposição de que devemos sempre agradar os outros. O erro está em buscar construir uma imagem de amante infalível e em supor que ela nos levará ao sucesso em todas as nossas tentativas de requestar as atenções de uma pessoa.
Não é porque eu me considere um poeta, um escritor competente, um intelectual que, pelo estudo, alcançou uma formação acadêmica sólida; não é porque eu seja fiel e delicado no trato, e romântico declarado, que devo estar seguro de que sou o candidato ‘ideal’ a conquistar o coração de uma mulher. E isso vale para as mulheres em relação aos homens. Se assim fosse, os poetas não seriam, como foram muitas vezes na história, infelizes no amor; se assim fosse, os filósofos e demais intelectuais não deveriam ter fracassados nos relacionamentos amorosos. Ser delicado pode, inclusive, dar margem a que se suspeite de nossa orientação sexual (não que isso seja um problema, de modo algum). Quero, apenas, dizer que a delicadeza num homem pode ser interpretada como um sinal de homossexualidade. Aliás, certa vez, na faculdade onde estudei, uma menina perguntou a uma amiga minha se eu era gay, com base em sua interpretação do modo gentil e carinhoso com que sempre tratei as minhas amigas de classe. Isso só corrobora essa ideia. Interessante é ver que, por um lado, não é verdade que todos os homossexuais sejam ‘delicados’ (portanto, ser delicado não seria um traço que define a orientação sexual num homem); por outro lado, não menos interessante é ver como se constrói, no imaginário coletivo, a partir da palavra ‘delicadeza’, a distinção do comportamento de gêneros: em nossa sociedade, as mulheres devem ser delicadas, mas os homens não. Não raro, homens rudes são mais apreciados. Estou pensando em delicadeza como ‘fineza’, ‘gentileza’ e ‘amabilidade’, e não no sentido de comportamento estereotipado de afetação ou de pieguice (que fique claro!)
Sabemos que os poetas cantaram suas dores; os filósofos, muitos deles, fracassaram no amor; os delicados podem ser considerados gays; e os fiéis estão fora de moda. Muitas vezes, os cafajestes é que prosperam; e, enquanto os mais eloquentes podem até atrair admiração, os que sequer conseguem formar uma frase, sem recheá-la de gírias ou empobrecê-la semanticamente, conseguem manter seu celular repleto de nomes de mulheres. Muitas vezes, são aqueles para quem Drummond é o sobrenome de seu último advogado que trabalhou para garantir os benefícios do segundo divórcio que prosperaram; muitas vezes, são aqueles para quem Azevedo e Varela eram os sobrenomes dos seus últimos patrões que conquistam todas as meninas da night.
Felizmente, hoje entendo que a suposição de que a imagem que construo de mim deva, necessariamente, garantir-me ventura amorosa é um engano. Muitas vezes, a inteligência afugenta; a poesia mela; o romantismo, além de também melar, deturpa; e ser fiel coloca-nos sob alguma suspeita; e as delicadezas nos estereotipam. Mas não há razão para desespero e desalento. Lembro novamente: não temos de agradar sempre e a todos (aliás, é uma ilusão pretender agradar a todos e, ainda que isso fosse possível, não vejo como seríamos mais felizes). É importante ser autêntico, é claro. Ser autêntico é construir uma imagem de si condizente com as formas como realmente nos comportamos e somos (ou com os modos de estar em cada situação). É sair da zona das aparências. Mas, cientes de que, ainda assim, corremos o risco de não agradarmos. Lembremos que os inautênticos(as) também são amados(as) e estão com seus celulares ( e iphones) repletos de candidatas/candidatos.

domingo, 17 de março de 2013

As páginas amareladas de amor de minha alma


                    


                        Rasuras e rascunhos de amores
                    
                               A minha breve ingênua história


Aquele copo de cerveja. A embriaguez fingida. A encenação cativante. E lá estava Ana Paula desejosa de se apossar de mim. Ana Paula tinha um corpo voluptuoso, mas meu coração não se inclinava a ela. Curiosamente, ele se enfeitiçara por outra Ana Paula. Por quem chorou. Era a época de minha adolescência.
Depois, já no segundo grau, conheci Marcelle, que me roubara um mês de serenidade, quando se despediu de mim para tomar aquele avião rumo a Portugal. Mal havia requestado sua afeição, precisou partir. Nos correspondíamos por cartas. Tendo voltado Marcelle, o fantasma do Dinho, do grupo Mamonas Assassinas, resolveu importunar-me as promessas de amor eterno que eu fizera a ela. Nos encontramos alguns dias depois de seu retorno. Dois encontros, e ela decidiu pôr um ponto final em nossa breve história de um amor promitente. Voltei para casa em pranto. Era 1999, e eu contava 17 anos.
No ano seguinte, já decidido entregar toda minha alma ao amor, tentei requestar a afeição de uma jovem professora. Eu, com meus 18 anos, e ela, talvez com os seus 25. Lhe ofereci margaridas e me ficaram justificativas. No entanto, para a minha felicidade, naquele mesmo ano, conheci Monique. A ela dediquei os três anos e sete meses mais liricamente intensos e inflamados de paixão de minha vida. A ela compus a maioria de meus versos. Fora um período de entrega e perturbações do coração. Foi quando se me aflorou o ultra-romântico que determinaria até então minha peregrinação amorosa.
Embora tenha resistido à ideia de que Monique não seria a mulher ao lado de quem gozaria uma tórrida noite de núpcias, tendo permanecido ao seu lado reprimindo minha pulsão sexual por amor (um amor castrador),  decidi deixá-la. E doeu, como doeu! Era 2004. E naquele mesmo ano, conheci Carolina, a quem não pude corresponder os mesmos favores e frescores líricos que me destinava. E a quem dediquei este poema, passado algum tempo de nosso rompimento - um poema de cuja existência ela sequer sabe.

Carolina

Hospeda lancinante n’alma,
Sobeja saudade soterrada,
De ti, Carolina, borboleta
Reminiscência pousada!

Devorados livros, um mogno de projetos,
As letras na mente adejando, tristeza...
Lamúria familiar, Carol se esqueça
Deste remido inquisidor dos mistérios

Ah! Bênção renegada! os lêmures visitantes
Já se riem do engano nímio daquele tempo,
Versos fartos, forjados à meia-luz no aposento
Versos vácuos: sombrios olhares ludibriantes!

Os projetos, Andorinha Cordial! são o inverso
Dos sonhos, que a este insulado homem confiou
Plasmam a corja de olhares que não me assaltou
São todos deveras reais como lápides de cemitério

Apenas de ti, já envolta aos braços outros, de fato
Sei, porque vi, Feição Inolvidável! sorrias junto aos
                                                                        [braços
Entregando-lhe, Gratuidade!, cada estrela que no quarto
Lembro: adeus!, vejo, acenando, Astro-lábio de meus
                                                                        [rastros

(BAR)


Estava terminando o curso de Letras e Carolina também compunha seus versos. Também era estudante de Letras. Mas não pude amá-la. O fantasma de Monique ainda jazia em minha memória. Os anos que se sucederam trouxeram-me à alma a depressão, mas também a prosperidade acadêmica. E durante todo esse tempo, a poesia ultra-romântica não cessava de romper-me da alma. E os versos pululavam no papel. Uma enxurrada de poemas compostos na verve do romântico maldito em que me transformei. Foi possuído de um estro lírico que me assaltava o descanso das noites, que me tomava as horas da tarde, e que tornava mais densa, mais pungente, embora também mais lúcida para a consciência, a depressão. Na depressão da alma, erigia meus versos de amoroso talante. E as mulheres que eu desejava amar, que não pude amar eram sombras a visitar-me à noite. Eram espectros a ocupar-me o espírito, conturbado e impregnado de um lirismo endoidecido e fatal. Fatal, porque me fazia morrer cada vez mais para o mundo.
Em 2007, após a ruína da alma, conheci Valquíria, a quem ofereci alguns versos e um buquê de rosas. Não preciso dizer que a Monique também oferecia muitos buquês de rosas. Mas Valquíria não me compreendia, não me atendia os apelos do coração. A ela ofereci estas linhas:









Dileta moça, a quem dedico estes poemas, aceite-os com o coração terno, pois que resultou da expressão de um coração inflamado, que anseia por acolher-te no seu recanto. Estes poemas são teu, só teu. Somente a ti ofereço, porque me foste amável, acolhedora.
Estes poemas são só teu. Lê-los desobrigada de testemunhar tua impressão sobre eles. Lê-los quando estiveres sozinha, ou quando uma tristeza te pousar no espírito. Lê-los a fim de lembrar-te de mim. Lê-los quando não te restar algum passatempo melhor. Lê-los para afagar teu espírito. Lê-los para acalentar teus sonhos. Lê-los para que nunca se esqueça de que existe um poeta que teu sono divinal deseja velar.
Querida Val, graças a ti, tenho estampado no semblante uma alegria que me foi furtada da alma, quando sobre mim recaiu o vento negro da solidão. Gostaria de que estes singelos poemas e tantos outros que escrevi perdurassem em sua vida... Gostaria de que tu os lesses no refúgio de teu quarto, à meia-luz... E meditasse por longas horas sobre minhas palavras... E com o coração acalentado por elas, detivesses-te a pensar em mim... Pousada em tua cama, com o espírito pululando de sonhos, se te afigurasse que por ti nutro um carinho inefável... Ah! Pudera contigo nestas horas estar!... Não obstante minha ausência, saberás que, no silêncio de meu quarto, ouvirei tua voz ecoando-me no coração... E em ti pensarei detidamente... Inundarei minha alma de fantasias de amor! Ah!, dileta moça, devotarei a ti meu desmedido lirismo!
Há muito, à meia-luz, em meu quarto, venho dispensando incomensurável esforço intelectual à idealização de um amor, que me escapa ao abrigo do coração, ainda que subsista em minha mente como um navio naufragado no oceano. Há muito, querida Val, venho-me esforçando por contentar a alma feminina, à semelhança de um príncipe, porém renegado, dos contos de fada. Ah! Ver na vida tudo quanto não se conta nas histórias da princesa e do plebeu faz-me debruçar sobre a cama em pranto convulso. Dói-me sentir o desamparo... Porém, estou bem... Estou mais otimista... Mais desejoso de experimentar a afeição feminina... De uma mulher bela, carinhosa, em cuja alma habite um mar de fantasias amorosas... Ah! Ter em meus braços a mulher cujas feições compuseram meu imaginário por longo tempo! E crer em que essa mulher és tu revigora-me o espírito e acalenta minha esperança.


Á Valquíria, com muito carinho!



Em 2008, foi outra moça, chamada Renata, que fez minha alma embebedar-se no lirismo novamente. Ela foi a motivação para estes versos.


Aromas de um Anjo

Virgem este teu cheiro o céu me torna próximo
Morrer em rubros lábios que incendeiam este viver!
Cemitério de sons cadavéricos que brinda o anoitecer
       Neste sonhar largo recôndito inóspito!

Meu coração emurchecido é desditosa nau
Que se lança às vagas de amoroso pranto
Dos goles de um amor que encarnou um mal
Faça embalar teu venturoso Canto!

Teus angélicos olhos quando fitando
Senti n’alma irromper clarões
De coxos sentimentos de prisões!

Paixões que me tornam tão pequeno
Como um grão de escuro esquecimento
Que teu cheiro devora impregnando!

(BAR)


Mas o texto que mais alento e tempo me tomou foi este, tecido em prosa e delírio, e também a ela dedicado.

A estrada de amor, a gente já está mesmo nela, desde que não pergunte por direção nem destino. E a casa do amor – em cuja porta não se chama e não se espera – fica um pouco adiante.

(Guimarães Rosa)

Meu coração está umbilicadamente unido ao seu

De um lado, o mar de esperanças que deita as escumas como cassas bordadas por Érato, acarinhando-me as bordas dos dedos dos pés; acima, a abóbada celeste, banhada em azul-ferrete, estampando seus pequenos diamantes cintilantes, envolve-me qual o manto da Virgem Senhora, concedendo paz e alento a este pegureiro dos versos. Do outro lado, o descampado que se estende a perder de vista sobre o qual repousa a treva; ermo, sombrio, pela sua superfície cálida e infértil, vagam almas atormentadas que a terra expulsou do túmulo... Espectros vadios a que a vida deu vertigens de amores sublimes, inalienáveis e intangíveis.
Após muito errar, detenho-me, nestas horas em que invoco as Musas, como o faziam os antigos amantes da pena, na extensão limítrofe com aqueles dois espaços; de um lado, o ressonar do mar plácido com suas vagas afagando rochedos, para o qual declina o lume da lua alva. Berço recôndito e sacro da lassidão é, pois, esse cenário – uma dimensão psíquica que me enreda o coração a imensos sonhos, com seus largos braços em que descansa a ternura divina; do outro lado, o uivo do vento que estremece a terra, o escarcéu dos espectros em divagação, o ranger do céu anuviado, metido, agora, numa densa atmosfera escarlate, que em desespero e loucura banha toda vida errante que ousa lançar a terra suas virtudes.
Estas palavras que arremesso à vida prematuramente são filamentos algodoados por que teço o vestido de amor que há de revestir sua alma. Dorme sua alma num mistério que me enternece e me extasia. Uma emoção indistinta me inunda o seio, detenho-me novamente em seu olhar – sacrário da ternura -, hesitante entre sua permanência angélica e seu ir-se sempiterno... Olhar que me escapa aos anseios da pena, que pena a esperar por uma gota de amor que o recrie nos versos.
Seu olhar tem a permanência das vagas que se derramam grávidas de candura e alento e se retraem levando consigo os suspiros servis de minha alma de amor endoidecida. Quando a fito, imersos seus olhos em eflúvios de Afrodite Urânia, noto-lhe a presença ausente em que meus olhares furtivos de amor se perdem.
Não sei que haja um sorriso que acarinha o Céu tão docemente, por vezes, pego-me a namorá-lo com este meu olhar lânguido que embala o mundo todo na pequenez do delírio humano. E neste sorriso que me influi um alento imaculado, que fecunda cada verso lavrado nos campos floridos e férteis do âmago, vejo estilhaçados outros olhares que a assaltaram, por ventura, sem que você lhes divisasse a embriaguez poética, sem que lhes sentisse a viração em que navegam as almas sonhadoras, insanas, que Deus à vida lança para se tornarem escravas da Lira dos Byrons, dos Azevedos, de toda sorte de gente desgraçada que negaram o mundo, cantaram um amor que as Alturas faz render.
Ah! E os cabelos num azul que exala a vida, deitadas as madeixas nas espáduas, quando recolhidos, deixando-lhe nu o toutiço! É neste átimo que o tempo oculta aos que ignoram os lírios-do-vale que sinto invadir-me a alma a mansidão a que se abandonam os benditos. Benditos, sim, os que, por generosidade de sua alma ou por um pestanejar descuidado dos olhos de Deus, tiverem entrelaçados aos dedos os dedos de sua mão que me visita os sonhos de ternura amorosa para acarinhar-me o seio. Benditos aqueles que, encerrados no peito, tiverem os segredos e as margaridas de seu coração. Benditos, sim, aqueles que lhe inspirarem o amor que a fez carne num dia santo, em que o Céu abriu os salões divinais para cantar, celebrar e anunciar, ao som de cítaras, flautins e clarins, o nascimento de um pedacinho do céu na Terra. Benditos, sim, os que se deleitam em amor tão santo, pois que, em outros corpos plasmados nesse amor, haverá de residir, ao menos, uma feição sua, uma parte que recobre tudo e que forja dimensões infindas que outros Arqueiros de Eros, quiçá, ousem visitar para desvendar as delícias de sua progênie, nos caprichos divinos sobre os quais essas dimensões repousam. Benditos, enfim, aqueles que se consumirem em densas meditações, na solitude, para, laboriosamente, edificar versos e frases, que à vida vêm, para beijar-lhe as orlas dos pilares que sustêm toda a pureza de que seu corpo está impregnado.
Não, agora cessarei de escrever. Estanco em qualquer caminho... Esta carta que me nasce das mãos, outrora, estivera a suplicar a existência em meu coração; provavelmente não pouse em suas mãos; não é digna de você. Fora-me extraída das entranhas da alma; inçaram-na sonhos fátuos, delgados e límpidos; mas não posso pretender que ela lhe caia nas mãos, após ter alçado vôos tão altos. Adarvada de ameias altas está sua alma e seu olhar, e minha alma, esmorecida, esgueirando-se como uma sombra mete-se por corredores obscuros da existência, que a levarão a lugares inóspitos, onde uma dor arquejante será seu solar.
Mas isso que lhe importa, se não nutrir por mim amor? A menos que seja o amor que mantém viva toda criatura; uma compaixão pelos mendigos, pelos enfermos; esse amor, então, de que eu não desdenharia, porque todo mendigo agraciado divide com pombos as migalhas do pão da misericórdia (crendo, assim, reconciliar-se com os Céus), tão-só me tornaria ainda mais pulsantes as palavras; e sua permanência indistinta, que justifica as linhas, que incita o balé da pena, que faz brotar-me da alma estas prematuras flores verbais, me legará a tristura maciça que, como pedra, arrastarei na alma.
Como, contudo, em Clarice se acha consolo, “por enquanto é tempo de colher morangos”.
Se o leitor chegou ao final deste texto, se não se sentiu nauseado pela sua doçura lírico-romântica veemente, deve ter sido capaz de inferir daí por que a moça a quem o destinei silenciou e foi indiferente aos apelos de meu coração. Que me cuidem excêntrico, mas não me neguem ser este texto um testemunho de vida de um autêntico ultra-romântico. Isso, sim, é a mais fidedigna expressão do que é ser romântico. Todo romantismo de que se ouve falar nestes tempos de amor líquido é balela. Tolices que ludibriam os corações que só conheceram o romantismo pelos textos da literatura clássica.
Alguns anos de análise me ajudaram a compreender por que estas expressões líricas me condenavam ao infortúnio, ao invés de conduzir-me pelas longas e floridas estradas do amor.
Este poema a seguir também fora escrito para essa moça:



Olhar de despedida

Longo olhar cuja delicadeza encerra
O mar de deleite em que me navega o seio
Ouso com uma lágrima cingir-te ao peito
Mas teu olhar inclemente depõe reza

Enlaçar-te um beijo, então, de chofre pudera
Com a loucura de Werther e o denodo de Fausto
Sem que este olhar que é de minh’alma o claustro
Deite caminhos que me consumirão a Primavera

Como anjinhos traquinas à sacada do Templo
Olores de mirra ao Cristo tomados
Lança-me a convidar a ceia dos abençoados

Mas quando a alma da esperança entra na balsa destemida
Faze rugir de teu olhar a tempestade e um sonho imenso
- Presságio sempiterno de um olhar de despedida.

(BAR)

E não poderia esquecer-me de Dani (chamava-se Daniele), para quem meu coração se inclinou naquele mesmo ano. Por um breve momento. A ela também enderecei alguns escritos, um dos quais foi esta carta desqualificada.
                                            
                                        

                                                Mais uma carta apenas

É só mais uma carta. Uma carta tecida por sentimentos venosos que se interpenetram, plasmando as dores que na alma arrasto. É só mais uma carta. Uma carta cujas palavras me foram lapidadas laboriosamente no espírito e embebidas no sangue vivaz de meu coração. É só uma carta a mais. Uma carta à qual se podem reunir tantas outras eventuais, escritas, quiçá, por pretensos amantes, homens estúpidos, que ostentam uma catadura insinuante e aos quais, porém, rendem lágrimas alguns corações. É uma carta apenas, nada mais. Uma folha de papel estéril, suscetível ao abandono, a estar confinada numa cesta de lixo, junto a resíduos orgânicos intoleráveis a nossa fisiologia humana. É só mais uma carta. Uma carta que, reunida àqueles resquícios orgânicos apodrecidos, também se putrefará; as palavras de que se compunha se tornarão pútridas e se esfacelarão, na força inexorável do tempo.
O tempo cuidará de consumar a dorida transfusão a que estará submetido aquele pedaço de papel... Pois é apenas um pedaço de papel... Um tumor verbal excretado pelo meu coração; é apenas uma excrescência que faz ficar combalida a harmonia sacra da pureza dos sentimentos benévolos que habitam seu coração. É só mais uma carta. Dentre as muitas escritas a custo de lágrimas, numa inquietude sobremaneira incomum, mais uma carta retalhada na indiferença e no silêncio. É só mais uma carta. Uma carta que não poderá relutar contra o fim a que será destinada, quando, talvez, outro atrevido, conquanto estúpido, pousar os olhos sobre seu templo imaculado, estampando, perfilados, os quartzos translúcidos e assaz polidos, que lhe ornam o limiar do céu da boca.
É uma carta apenas. Uma carta que Deus destina, impiedoso, à vacuidade fossilizada no coração humano. É apenas mais uma carta, uma folha de papel. Uma carta de emoções rasgadas e lançadas como areia à imensidão do céu; cada qual delas, dispersa ao vento, que as arrasta para os confins da treva, onde haverão de dormitar, relutando em obedecer à vontade dos fados, tentará, debalde, enlaçar-se a uma gota de misericórdia divina, que resvalará no anseio, diluindo-se em milhares de gotículas de esperança, que caem suavemente no sertão de meus sonhos.
As palavras que naquele pedaço de papel dormiam rangerão como range a carne sob uma vestimenta de espinhos... Os sons plangentes prantearão sua alma... Irromperão no seu silêncio, enquanto ouve Sozinho...
É apenas uma carta.


Também a Dani, dediquei este outro texto e este poema que destaco dentre os dois que lhe escrevi, tendo toda a alma empregado para cortejá-la:



Desarmonias verbais – Do outro lado do texto

Ante o computador... Entre os dedos, uma caneta esferográfica azul... Debruçado sobre um caderno comum, ponho-me a escrever, rejeitando lugares-comuns, aquietando as idéias que me pululam na mente, acarinhando os sentimentos que me incitam a continuar a escrever essas linhas sem destino e desamparadas... É, estão desamparadas, porquanto não defini, ainda, meu plano de produção textual. Todo aquele que escreve, ou melhor, produz um texto, oral ou escrito, o faz valendo-se de estratégias e procedimentos, com vistas a auferir êxito. Primeiramente, o produtor precisa ter a intenção de comunicar, ou melhor, de praticar uma “ação verbal”... Que pretendo eu com esse “universo semântico” lapidado na minha alma? Não se trata de um produto de introspecção... Escrevo porque viso a algum objetivo... Qual será?... Pretendo escrever sobre o cosmo feérico que a expressão poética me permite construir nos vastos dias que se transcorrem... No entanto, “cosmo feérico” tem alta carga conotativa e nada esclarece sobre o que vou, deveras, escrever... Tudo bem!... Vou escrever sobre... Sobre a paixão que cultivo pela linguagem... Escrevo porque admiro a forma das palavras, sua sinuosidade, seu “mistério semântico ou simbólico”... É... Por exemplo, a palavra “inefável”, enquanto unidade sonora (/i/, /n/, /e/, /f/, /a`/, /e/, /l/), é opaca, surda e muda. É “opaca” porque não nos permite “penetrar” na sua natureza semântica, para desvendar-lhe o significado; é surda, porque não é sensível à natureza (re)criadora do poeta, que está sempre ávido por acrescentar-lhe mais um “sentido”; é muda, enfim, porque não me representa nada... não me diz nada do mundo, das coisas do mundo, dos seres que nele habitam, do estado-de-alma dos seres... em suma, não me fala ao espírito.... No entanto, conhecendo seu significado convencional, posso valer-me dela para “expressar o inexprimível”. “Inefável” significa “indizível”. A linguagem é fascinante mesmo!... Até o que não significa comunica, significa, representa alguma coisa, mesmo que essa “coisa” seja o “nada”. Concluo que esse texto se reveste de idéias “inefáveis”. Na verdade, o texto está aqui... em minha mente, como uma estrutura significativa subjacente que vai tomando forma à medida que eu escrevo... À construção de um texto subjazem várias capacidades, uma das quais é a cognitiva... O texto é uma estrutura semântica mergulhada na mente, que se materializa por meio dos sinais lingüísticos... Há um texto boiando-me na mente... Não posso, entretanto, regurgitá-lo à fina força... Devo esculpi-lo no estado bruto do pensamento... Descreio, contudo, da existência de um pensamento pré-lingüístico; só há pensamento nos quadros da linguagem; não há pensamento sem linguagem... Controvérsia teórica...
Vou procurar determinar o destinatário desse texto. A quem escrevo?... O texto só pode “existir” para um leitor, que lhe conferirá a devida coerência... Que leitor é esse? Quais os meus pressupostos em relação a ele? O leitor é, deveras, uma leitora... Isso... Escrevo a uma moça... É uma mulher da qual sei pouco... No entanto, deduzo ser ela muito afeiçoada, ou melhor, dedicada ao estudo, ao desenvolvimento de sua capacidade cognitiva... Suponho, logo, que ela tenha inclinação para a leitura... Suponho ser ela uma leitora assídua... Creio em que ela é, pelo menos, sensível à expressão lírica... Talvez, idéie ela um mundo “romântico” também, onde o homem exalta a natureza verdejante e o amor se manifeste na unidade de duas almas pré-destinadas a viver a comunhão de seus templos... Talvez, a leitora ria-se deste mundo nosso que, à força da modernidade caótica, esvazia conceitos, tornando-os vácuos. Talvez, lamente a vacuidade das relações humanas... Talvez se ria dos falsos românticos, que, sequer, como diria o poeta Cazuza, são “exagerados”... Uma rosa não é um sentimento, ou melhor, um estado-de-alma... É um símbolo, esvaziado, esmagado por todo aquele que se diz romântico, sem o ser... O romântico é, em última instância, um estado-de-alma, e não uma atitude. Perdoe-me a leitora, porque insisto em reafirmar o que é ser romântico. É que todo romântico é, decerto, uma voz sufocada num tropel; é um grito ofegante no mundo que lhe é tão estranho quanto medonho. As páginas preenchem as lacunas amorosas que se fincam no âmago do poeta romântico... As páginas são a companhia na soledade... E muitos românticos erram pelos caminhos líricos que o levarão ao infortúnio ou à incerteza da ventura amorosa... Os românticos estão por aí... calados, taciturnos, preferindo negar a si mesmos, preferindo ser o que não são... Os românticos não vão à televisão... Não estão numa pista de dança... Estão, sim, envolto às palavras, num quarto, à meia-luz, meditando, profundamente, sobre Deus, sobre a existência humana, sobre a realidade sócio-cultural e econômica em que está mergulhada a sua classe social; chorando pelas vezes em que foi abandonado por amores esmeradamente nutridos... Expressando verbalmente suas angústias e frustrações... Dedicando-se ao bem-estar de sua família, estudando ou trabalhando como qualquer cidadão... A leitora, entretanto, não deve estar interessada na definição da natureza do romântico típico...
Eis o abismo de minha expressão lírica: não há leitores. Meus textos, poemas ou prosas, estão pré-destinados a um lugar vazio, escuro e oco, onde não há vozes, corações cândidos, joviais; onde só se ouve o gemido das palavras, ávidas por sentir a voz veluda que as acaricie... Sim, a voz de um leitor arguto, enamorado do simbolismo lingüístico, desejoso de explorar a ductilidade da sua língua materna...  As palavras murmuram, lacrimejantes, à espera de uma leitora que as acolha em sua alma, que as embale no berço do coração... Não há, entretanto, voz doutro lado... Nossa relação com a linguagem verbal é tão íntima, intrínseca, que esses adjetivos não qualificam adequadamente essa relação; tal relação – entre homem e linguagem – é tão “una”, que não é comparável à relação entre mãe e filho, que é naturalmente sólida, quando se observa o longo período que se estende da gestação aos primeiros estágios da vida escolar da criança... Todavia, eventualmente, essa relação pode ser rompida... Só mesmo a morte pode separar o falante de sua língua. Ora, uma determinada língua perece, enquanto realidade oral, só se todos os falantes nativos morrerem...
Não, não quero uma leitora experimentada em Lingüística... Tampouco, escrevo a uma leitora versada em Literatura... Escrevo a uma moça que idéio, mas que não é perfeita... Pois a perfeição é uma qualidade de Deus apenas...
Há urros de sentimentos passionais naquele labirinto a que são destinadas as minhas composições escritas...
Com efeito, escrevo a uma leitora a quem talvez nunca tomará conhecimento desse texto... Não ousarei transpor os limites da aparência do leitor idealizado. Por ora, esse texto progride, porque idéio um leitor cujos olhos perpassarão por essas páginas e cujo coração se embeberá em emoção, quer seja alegria, quer seja júbilo, quer seja simpatia, quer seja repugnância, ou experimentará uma sensação de incômodo, semelhante à que sentimos, quando alguém que não nos é afim, fita-nos à porta de nosso quarto. 
Chegam-me ao espírito estas idéias. O leitor a quem destino este texto – e o faço com o peito embebido de satisfação – deve ser uma pessoa que tenha por hábito sentar à frente de um computador a esmo, ou que esteja habituada a elucubrações. São 21h35 min. É domingo. Relutei em compor este texto... Mas as idéias e os sentimentos se inflamavam... Rugiam como leões aprisionados... Os sentimentos, deitados nesta folha de papel, agora adormecem, embalados pela esperança de todo escritor, ou melhor, aspirante a escritor: divisar, do outro lado do muro, uma voz que o chame: “Pule, pule! Venha!”. No entanto, o escritor, já mortificado pela indiferença do mundo, vacila nos seus juízos... Terá a leitora predisposição para acolher sua composição em prosa e, enfadonhamente, subjetiva e especulativa? Que pensará a leitora, ao final da leitura? Quiçá suponha ter sido o “eu” deste texto acometido de uma “loucura verbal”, que o coage a escrever sofregamente. É... talvez tivesse razão a leitora...
Por que escrevo? Não sei... A quem escrevo? Não sei... O texto é uma atividade de interação... O leitor é sempre uma construção do produtor do texto... Os sentimentos e as idéias desvendados sob o véu sonoro das palavras sintetizam minha natureza lírica, que jamais será plenamente conhecida, pois o material lingüístico não nos permite expressar o inexprimível, embora forje certos signos opacos, mudos e surdos. Felizmente, pode-se sempre rogar a Deus um átimo de reciprocidade na consciência e no coração de um leitor “curioso”.



Nossos destinos


Tão logo da madre brotaras – Pequenina!
Aos braços de outro destino foste levada
Pelo Vento! Em seu soprar, ó embalada!
No teu berço de ouro, sob a Luz Divina!

Teu destino – Um pai querido que te nutre!
Meu destino – Padrasto amigo que me pune!
Tu trazes em teus olhos de Deus a morada
      Eu sou como a figueira amaldiçoada!

Oh! Tu vives livre como as pombas do Éden!
Eu, na gaiola de paixões que não me esquecem
Tu és a Helena de Deus. Te inveja Nêmesis!
Eu sou como Prometeu: Sou dor que geme!

Oh! a que jardins, a que terras dás lume?
A que almas inebrias com teu perfume?
Oh! Teu destino suave brisa que me roça a face!
Ó destino: um sopro frio de amor que me arde!

(BAR)



No longo tempo que transcorria entre uma frustração e outra, eu dormia com a solidão mortuária (não a solidão que me é amistosa hoje, que hospedo com o alto custo que lhe arranco; hoje, ela me paga o aluguel mensalmente), e a tristeza ficava a arranhar-me a alma. Talvez não seja o poema mais emblemático deste período, que se estendeu de 2006 a 2008; mas é, decerto, o poema que mais claramente expressa a minha intimidade com a tristeza.


Senhora Tristeza

O pingo da noite cai-me morosamente
No tempo do coração
Os segundos são vastos
De ausência
Que inebria as estrelas
Sob um véu de fina esperança

A esperança de que é vinda
De regiões longínquas e ignotas
O destino que carregas no olhar
É vagaroso, alvo e escuro...
Inunda-me a alma de sonhos repisados
Vou amando-te entre versos fraturados
Mas acordo, sempre acordo...

Vens vindo aproximas-te indistinta
Disforme, os lábios constritos
Como se quisesses beijar o infinito
Infinito que minha alma aprisiona
Os dias são acres e ásperos...
E sua ausência reflui como as vagas
De um mar sombrio...
Que ressona solitário

Vens avançando sobre as emoções fugazes
Devorando-me o último alento...
És a imagem sem forma
Que tomba no último verso
Que morre na última letra
Que se enterra na loucura
De apaixonar-se por ti, Senhora Tristeza.

(BAR)

E Dani passou, e mais recentemente veio-me Jéssica, e com ela a oportunidade de experimentar a ingenuidade adolescente outra vez. Novamente, deixei exposta minha alma. Mas silencio, para não alongar ainda mais este texto, muito do que vivi neste período de fins de 2010 e inicio de 2011.
Eis resumida aqui a breve e avassaladora história de minha alma itinerante das experiências de paixão e amor, por vezes não correspondido, e por isso mais declaradamente romântico. Insisto nisto: o amor romântico é amor da impossibilidade. E este último poema, escrito em algum momento nos anos em que meu coração diligente aspirava à ventura amorosa e se entulhava de decepções, faz eco à literatura trovadoresca que exprimia a vassalagem amorosa – uma fonte de inspiração em que os românticos de antanho não deixaram de beber:



O Vassalo

Se prostrado a teus pés de anjo me deixo estar
E minha alma em refolhos te exalta assim
Se sou por isso mendigo de amor. Tem pena de mim!
Que não conheço outro jeito de amar!

Se ris da devoção deste amor promitente
E se profanas a santidade destes pálidos versos
Não sabes quanto Amor há em meus amplexos
Nem quanta ternura guardo n’alma fremente

Não conheces um querer que é bendito
Nem pousaste os lábios em boca tão cálida
Onde a ternura desabrocha como a crisálida

Nas noites quando de paixão consumido
O pensamento vai-te ao encalço em ardor
Não conheces as feições santas do Amor!

(BAR)