sexta-feira, 19 de outubro de 2012

"Reza a voz do povo que 'mente vazia é oficina do diabo'; ao que replico: mente vazia é internato da Igreja" (BAR)







O abuso teológico


“Por que será que todo pseudointelectual, torna-se ateu? Seria mais interessante fazer o caminho inverso. A ciência tenta explicar as leis que regem o universo, mas não consegue explicar quem as criou. Somos e seremos sempre responsáveis pelos nossos atos, atitudes, escolhas, ações e omissões perante a vida." Aquilo que VOCÊ plantar, também ceifará." Mas por falta de sabedoria ou por vaidade, orgulho, narcisismo é fácil por na conta de Deus.”

(Anônimo)


O leitor que acompanha meus textos desde que decidi trazê-los a lume neste blog sabe que um dentre os meus interesses intelectuais é o estudo da linguagem. Sabe que venho desenvolvendo há três anos minha pesquisa de doutoramento em Linguística. Portanto, sabe também que me dedico à leitura de textos vinculados a essa área do conhecimento humano. No entanto, esse mesmo leitor sabe que me interesso por outras áreas do conhecimento humano também, entre as quais está a filosofia e – surpreendentemente ou não – a teologia.
Estava eu, então, lendo prazerosamente um livro de teologia. O livro traz na capa o título Teologia para todos – Manual de iniciação teológica a partir de seus principais temas (2009). O autor chama-se Celso Pinto Carias e é doutor em teologia. A leitura prosseguia sem muitas interrupções a que se seguem, normalmente, notas de questionamento, até que comecei a ler a seção intitulada de O problema do mal e do sofrimento – um problema que ocupou a mente dos antigos judeus e  dos proto-cristãos (séc. I a.C) e que frequentou largamente a pena dos autores bíblicos. O próprio autor reconhece que:

“A angústia diante do sofrimento e da realidade do mal no mundo sobretudo quando não se encontra alguma justificativa para explicar o sofrimento de alguém (ex. “está pagando o mal que fez”), tem acompanhado o ser humano desde tempos mais distantes. Na Bíblia, o livro do Gênesis possui 11 capítulos sobre isto. Temos também na Sagrada Escritura o livro de Jô. Em toda história da Igreja encontraremos alguém preocupado com esta questão. Santo Agostinho, por exemplo, que formulou a doutrina do pecado original tendo esta preocupação como pano de fundo”.

(p. 29)


No que se segue ao trecho acima transcrito, o autor nos lembra que a dor e o sofrimento de Jesus Cristo deve nos inspirar a enfrentar nossos próprios sofrimentos. Ele prefere não se deter no desenvolvimento deste ponto, adiando a tarefa para outro capítulo. Seguirá lembrando a limitação da natureza humana e adverte sobre o erro, produto da vaidade humana, de pretender igualar-se a Deus. Escreverá “a busca da igualdade com Deus é o pecado dos pecados (...)” (ibid.id.).
Até aqui, contentei-me em me situar na retórica teológica cristã que insiste em nos convencer de que Deus e homem são ontologicamente distintos. Contemplada mais de perto a questão da relação entre Deus e homem, não será difícil concluir que Deus e homem é uma coisa só. Convido o leitor a ler Feuerbach, em A Essência do Cristianismo. Insisto, com Feuerbach, que Deus não é senão a essência do homem projetada para fora de si e adorada como Deus.
Chegara o momento em que precisei pôr freio ao meu espírito e ponderar. Após lembrar o pecado original extensivo a toda humanidade (uma doutrina esdrúxula cunhada por Santo Agostinho, sob cujo jugo vivem simbolicamente todos os seres humanos; afinal, somos culpados por um ‘crime’ inventado, fantasioso, que, na verdade, não cometemos - digo nós, que pertencemos a gerações posteriores aos primeiros humanos, representados nas personagens mitológicas Adão e Eva. Do ponto de vista moral, é uma bela doutrina indecente!), eis o que nos escreve a o autor:

“E o pecado não deixa perceber que a questão fundamental não é o sofrimento, e sim quais são as condições humanas para enfrentá-lo”.

(p. 30)

Já havia notado, alhures, que o conceito de ‘pecado’ serve de expediente para flagelação psíquica e manutenção da obediência do rebanho. Não é difícil entender essa concepção de pecado. Teologicamente, e Carias insiste nisto, o pecado leva à desumanização, mesmo quando por desumanização entendemos a tentativa do ser humano de igualar-se a Deus (que é, segundo o autor, o maior dos pecados). Compreendido neste domínio discursivo, o pecado é todo ato que contraria a vontade de Deus. Estar em condição de pecado impede que nos aproximemos de Deus. O pecado é uma criação teológica e, por ele, busca-se captar as inclinações más de nossa natureza. Não obstante a aparente coerência do conceito quando considerado no interior da totalidade doutrinária, se contemplado criticamente, percebe-se que ele é um poderoso instrumento ideológico, ou seja, de dominação, de submissão, mediante o qual uma classe que detêm o poder espiritual (as autoridades eclesiásticas) mantêm obediente toda uma imensa comunidade de indivíduos devotos. Ora, a lógica subjacente é a seguinte: ‘é preciso sentir-se pecador, reconhecer-se pecador para lograr a graça de Deus’. Por isso, o brio, a autonomia intelectual, a busca por emancipação da consciência são vistos de modo negativo aos olhos da Igreja. A aceitação da condição de pecado leva à aceitação da relação de dependência para com Deus ou a Igreja.
Dispensando olhares sobre o trecho acima referido, claro me parece que o autor se esquiva a tratar da questão do sofrimento, à luz de uma doutrina que reza a existência de um Deus infinitamente bom. Note-se bem que ele escreve “a questão fundamental não é o sofrimento, e sim quais são as condições humanas para enfrentá-lo”. Para o autor o fato inegável da intensidade e extensão do sofrimento no mundo não constitui uma questão séria para a teologia ou para a fé. E de modo sub-reptício, tenta justificar a cegueira para o reconhecimento da “questão fundamental” usando-se do expediente ideológico do pecado. Para o autor, não vemos qual é a questão a ser enfrentada porque estamos imersos em pecado. Segundo ele, o pecado nos impede de discernir entre o que é dispensável e o que é fundamental. É evidente que encontrar os meios para enfrentar as dores e os sofrimentos é tarefa que cabe a todos nós e constitui matéria para longas reflexões filosóficas, sociológicas, antropológicas, etc. Os especialistas têm de se ocupar em discutir sobre os meios mais eficazes para enfrentar o sofrimento e os teólogos até podem tomar parte nessa discussão, mas não podem furtar-se a pensar sobre o problema do mal ou do sofrimento, visto que tal problema põe, ao menos, sob suspeita sua própria disciplina. Quem teoriza sobre a existência de um Ser bom e onipotente e defende essa teoria como uma verdade inabalável tem de enfrentar a grande e extenuante questão do sofrimento. Notem bem que eu escrevi “põe sob suspeita”, apenas para atenuar o impacto que esse problema causa no sistema teológico. Na verdade, esse problema atinge o núcleo do sistema. Abalando o núcleo, tudo o mais desmorona. Se não se é capaz de oferecer um bom argumento para explicar como é possível conciliar a crença na existência de um Deus bom, amoroso, providente e todo-poderoso com as evidências da grande quantidade de sofrimento no mundo, tudo o mais que se diga sobre Deus soará como estrídulos enfadonhos e nauseantes.
E quando não se imagina que as coisas podem piorar, elas pioram. O parágrafo seguinte, que transcrevo integralmente, traz-nos boas razões para refletir sobre quão desonestos, intelectualmente, podemos nos tornar ao tentar sustentar uma visão de mundo fantasiosa e incompatível com o que sabemos sobre o modo como é a realidade:

“Com os olhos fechados pelo pecado, introduzimos no mundo o mal. Introduzimos o mal na ânsia de, utilizando o poder da inteligência, querer ocupar o lugar de Deus. Assim, criamos uma rede de distribuição do mal, uma concorrência na procura de estarmos acima de tudo e de todos. É o ser humano, e não Deus, o autor do mal. O mal não é sofrer. O mal não é ver uma criança sofrendo. O mal é não sermos capazes de nos ajudar diante da dor e do sofrimento. Não sermos capazes de reconhecer que o caminho humano é a busca constante de superação de si mesmo, pois isto nos capacita para o encontro definitivo com Deus”

(p. 30)
(grifo meu)

Tenho insistido que a emancipação intelectual em face da doutrinação religiosa depende de que apreciemos com acuro os discursos religiosos. Todo discurso é um momento entre outros momentos da prática social. O discurso  não só constitui elementos de outras práticas sociais, como também é influenciado por eles. Analisando um discurso, pode-se perceber como são internalizados e articulados outros momentos da prática social, tais como relações sociais e ideologias (entendidas aqui como 'construções/ representações da realidade que servem para a produção, reprodução e transformação de relações de dominação'). Todo discurso reconstrói o real. Vejamos como o discurso do teólogo, tendo em conta o trecho citado, constrói um modelo de realidade que pretende servir como uma forma, entre outras tantas, de interpretar e compreender o mundo.
O parágrafo inicia-se com a crença de que o pecado é que nos levou a “introduzir o mal no mundo”. O pecado nos cega. O autor responsabiliza o ser humano pela existência do mal no mundo. Nesse sentido, ele é um continuador da retórica do aviltamento da condição humana, da culpabilidade que pesa sobre a alma de todos os homens, mulheres e crianças; de uma retórica que perpassa toda a tradição cristã. Assim, reproduz-se a crença de que somos culpados pela existência do mal no mundo. O autor não define o conceito de mal, não faz alusão, por exemplo, à distinção filosófica entre mal moral e mal natural. O primeiro infligido por certos seres humanos uns aos outros; o segundo proveniente da natureza (terremotos, furacões, tsunamis, bactérias, vírus, etc.). Também desqualifica a inteligência, atribuindo a ela um papel negativo. O homem é culpado por fazer mal uso da inteligência. Decerto, empregar a inteligência para construir armas nucleares é fazer mal uso dela. O século XX nos legou as dolorosas e aterradoras consequências dessa verdade. Todavia, a mesma inteligência que pode ser usada para aniquilar toda a vida no planeta, também é usada em nosso benefício, pela produção de mais conhecimento sobre o mundo, conhecimento indispensável à nossa sobrevivência num planeta, não raro, hostil (p. ex., é a inteligência que nos permitiu a construção de instrumentos que  tornam possível prever a chegada de furacões). 
No entanto, o que preocupa o teólogo é o uso da inteligência orientado para destronar a Deus. Também o autor censura a competição egoísta e sem peias, que leva as pessoas a desejar mais poder, sucesso e status. A questão da competitividade num mundo do capitalismo tardio, caracterizado, mormente, pela concorrência e consumismo, é uma questão que deve ser vista à luz da filosofia (Ética) e, especialmente, da sociologia, sem que seja necessário procurar os culpados. Um biólogo evolucionista também poderia propor uma explicação para tal comportamento, remontando às condições de existência de nossos antepassados, nas quais havia a necessidade de competir cada vez mais por recursos escassos, dado o aumento vertiginoso da população, o que seria uma explicação mais próxima da verdade do que a explicação teológica baseada na culpabilidade pelo pecado. Tendemos à competição porque a seleção natural nos programou para lutar pela sobrevivência num tempo em que corríamos o risco constante de nos tornar comida de outros animais. Disso não se segue que devemos ignorar a influência que sobre nós exerce, nesse tocante, um sistema econômico que estimula práticas de competição. Por isso, como disse acima, acredito que a questão da competitividade entre os seres humanos pode ser mais bem contemplada pelos filósofos, sociólogos, aos quais se pode acrescentar os antropólogos, psicólogos, economistas e historiadores. 
O teólogo, seguindo uma linha de argumentação já consagrada neste domínio discursivo, e fartamente propalada pelos leigos religiosos (‘leigos’ porque não formados em matéria teológica), desculpa a Deus pela existência do mal no mundo, fazendo recair a culpa sobre o homem. O trecho em negrito é bastante claro. Escreve o autor “é o ser humano, e não Deus, o autor do mal”. Eis a pedagogia da culpa claramente sustentada aqui. Lembro que o autor não distingue entre as duas categorias de mal, a que me referi anteriormente: se o mal moral ou o mal natural. No que toca ao mal moral, a tendência é dispensar sobre os seres humanos toda a culpa, desresponsabilizando a Deus (tal concepção da natureza humana como pecadora tem uma longa tradição no cristianismo, e encontra sua forma teórica na teologia de Santo Agostinho). O argumento do livre-arbítrio ganha aqui terreno. Assim, argumenta-se que o homem tem o poder de escolher entre praticar o bem e o mal, tendo escolhido fazer o mal, não fez senão uso do seu livre-arbítrio. Um mal uso, diga-se de passagem. A questão do livre-arbítrio, quando considerada na problemática teológica, não se coloca em termos de escolhas ordinárias entre tomar uma xícara de café e uma xícara de chá (embora estudos neurocientíficos sugiram que o cérebro escolha por nós http://veja.abril.com.br/noticia/ciencia/o-livre-arbitrio-nao-existe-dizem-neurocientistas). Recorre-se ao argumento do livre-arbítrio para desculpar a Deus pelos maus atos perpetrados pelos seres humanos. O livre-arbítrio é trazido à cena do debate, geralmente, para explicar, com cômoda simplicidade, os maus atos humanos.
Parte-se do pressuposto de que temos realmente livre-arbítrio. Mas esse pressuposto pode ser questionado. Aqui no Brasil não podemos nos negar a participar como mesário nas eleições, caso sejamos intimados a exercer esta função.  Viver em sociedade pressupõe viver em condições caracterizadas por coerção, pressupõe viver segundo regras, convenções e leis estabelecidas. Quando atentamos para a composição da palavra “livre-arbítrio”, reconhecemos aí a ideia de que podemos agir livremente segundo a nossa vontade. Tal concepção de comportamento é incompatível com o que acreditamos ser necessário à boa convivência em sociedade. Toda vontade sofre algum grau de coerção.
O problema do mal moral tem mobilizado especialistas de diversas áreas (neurocientistas, biólogos, psicólogos, psiquiatras, sociólogos, filósofos...) na tentativa de compreender as motivações que levam as pessoas a infligir sofrimento, inclusive a matar. Querer explicar o problema sugerindo que o mal moral é mera consequência do mal uso do livre-arbítrio é esquivar-se a pensar seriamente sobre um dos aspectos mais intrigantes da natureza humana: a prática do mal voluntariamente. A razão é antes uma forte aliada do que um obstáculo. No que toca à influência de nossa capacidade racional na manifestação de comportamento agressivo, Zillmann (Grandes questões da ciência (2010)) advoga:


“(...) a racionalidade não só deixa de proporcionar um antídoto eficaz contra a violência, como é também a causa direta de inúmeros atos de violência perpetrados por seres humanos uns contra os outros. É nossa capacidade de raciocinar que nos diz que usurpar os valores de terceiros, de um modo que consiga minimizar ou contornar inteiramente as repercussões, é uma fórmula vitoriosa. Em consonância com isso, nossas aptidões antecipatórias são utilizadas para construir estratégias que tornem compensadora a violência. Elas não apenas deixam todos os indivíduos expostos ao risco de coagir outros por meio de atos agressivos, como também inspiram a violência organizada e a guerra”.

(p. 227)

Um exemplo de como nossa capacidade de raciocinar pode nos auxiliar no cometimento de ações atrozes contra outrem é o caso de crimes premeditados. A razão permite ao homicida planejar os meios pelos quais matará sua vítima. Pela razão, criminosos podem planejar como assaltarão um banco monitorado por câmeras de vigilância e ocupado por seguranças armados. 
O autor lembra ainda que o próprio senso de justiça pode imbuir-nos sentimento de agressividade, desencadeando em nós atos de violência:


“Os conceitos morais de equidade e retaliação constituem grandes fontes de agressividade. As comparações em termos de justiça social que nos situam no extremo desfavorecido das recompensas, a despeito de envidarmos esforços equiparáveis, causam enfurecimento e, por isso, instigam à agressão. A violação de nosso senso de justiça exige retaliação. Se formos injustiçados, devemos “ir à forra”. O desejo de retaliar, para corrigir o que está errado, frequentemente leva a choques interpessoais. Muitas vezes, as guerras são travadas porque alguém convence a população de que as humilhações sofridas no passado não podem ficar impunes. Vez por outra, até a perpretação das mais vil atrocidades é interpretada como uma imposição moral, habitualmente referida à autoridade divina”.

(p. 228)


      Sabe-se que nossas crenças orientam nossos comportamentos. Crenças exercem um intenso poder sobre nosso componente emocional. Para cada emoção que somos capazes de sentir, existe uma crença capaz de acentuá-la ou inflamá-la (Harris, 2009). Ter em conta a influência direta que nossas crenças exercem sobre nossas emoções é fundamental para que compreendamos por que as pessoas são capazes de cometer atos hediondos de violência, como, por exemplo, atentados com carros-bomba. Ajuda-nos também a entender como é possível que se cometam crimes em nome de Deus. Em A morte da fé (2010), Sam Harris adverte-nos sobre as consequências nefastas que podem ser produzidas por nosso comportamento, quando orientado por crenças que resistem a alguma forma de argumentação que vise a evitá-las:


“A relação entre crença e comportamento aumenta consideravelmente a importância do que está em jogo. Algumas premissas são tão perigosas que o ato de matar pessoas que acreditem nelas pode até se tornar ético. Isso pode parecer uma afirmação extraordinária, mas apenas enuncia um fato comum sobre o mundo em que vivemos. Certas convicções posicionam as pessoas que as adotam além do alcance de qualquer forma pacífica de persuasão, ao mesmo tempo que as inspiram a cometer atos de extraordinária violência. Na verdade, não há como argumentar com certas pessoas. Se elas não puderem ser capturadas, e em geral é o que acontece, alguém que normalmente é tolerante pode se sentir justificado a matá-las em legítima defesa. Foi o que os Estados Unidos tentaram no Afeganistão, e é isso que nós e outros poderes ocidentais tendemos a repetir em outros lugares do mundo muçulmano, a um custo ainda maior para nós e para os inocentes em outros países. Continuaremos a derramar sangue devido a algo que é, no fundo, uma guerra de ideias”.

(p. 59)
(grifo meu)


       Vê-se que não podemos subestimar a importância das convicções e das crenças como fatores que determinam o comportamento humano, especialmente o comportamento que engendra violência. Harris nos mostra que o grau de intensidade com que tais convicções  atingem as pessoas pode ser tal, que elas se tornam resistentes a alguma forma de diálogo ou argumentação que vise a evitar as prováveis consequências indesejáveis previstas num comportamento prefigurado em seu conjunto de crenças. Da argumentação desenvolvida por Harris nesse trecho, pode-se depreender, sem dificuldade, que as guerras qualificadas de "religiosas" são, na verdade, um exemplo de guerra de ideias. 
    Não se pode negar o fato de que, uma vez admitindo que nossos comportamentos são desencadeados pelo grau de influência que nossas crenças exercem sobre nossas emoções (emoções nos movem), a afirmação de que agir de forma a provocar o mal é tão-só uma questão de livre-arbítrio torna-se uma maneira superficial e cômoda de entender a natureza humana.
       Para mim – e nesse tocante, acompanho Freud, Nietzsche e toda uma comunidade de biólogos , neurocientistas e psicólogos – o livre-arbítrio é uma ilusão. Por um lado, porque nossas ações, que são sociais, se dão em espaços coercitivos (elas precisam pautar-se por um código moral e jurídico). Por outro lado, o reconhecimento da influência da hereditariedade, das crenças e convicções e a descoberta do inconsciente puseram sob suspeita a ideia, disseminada pela mentalidade teológica, de que atuamos de modo totalmente livre e voluntário.
  Quando se põe em cena a figura de Deus, é necessário lidar com algumas implicações que, do contrário, não existiriam. Por exemplo, se Deus criou os seres humanos, que responsabilidade tem ele sobre os atos dos psicopatas? Podem eles escolher não infligir sofrimento a outrem? Ora, sabemos que a psicopatia torna seu portador incapaz de restringir ou controlar certos impulsos anti-sociais. O psicopata é incapaz de se compadecer do sofrimento de sua vítima. A psicopatia parece ter uma base genética. Novas técnicas de mapeamento cerebral permitem reconhecer diferenças entre o cérebro de um psicopata e de uma pessoa que não tem pré-disposição à psicopatia.
  Uma pessoa que rouba um alimento, dada a sua condição de extrema pobreza, é compelida pela fome, ao fazê-lo. Sua ação de roubar é motivada por uma pulsão: ela precisa sobreviver; não tem escolha. E aproveito para considerar duas questões: a moral e o livre-arbítrio. Considere-se o caso de termos de decidir o que fazer, caso presenciássemos um psicótico estuprando nossa irmã e dispuséssemos de uma arma capaz de matá-lo. Se obedecermos ao mandamento “Não matarás” (embora esse mandamento tivesse validade tribal, não incluindo os demais povos), deveríamos nos abster de usar a arma, para não corrermos o risco de matá-lo? Talvez, fosse preferível atirar-se sobre ele, mesmo sabendo se tratar de um homem mais forte e sabendo que ele poderia nos sobrepujar? Diante de situações como esta, mesmo teólogos especularam sobre a possibilidade de matar, em certas condições, como quem mata por legítima defesa. Vê-se, logo, que o “não matarás” parece ser um preceito que excede disposições da natureza humana que servem à auto-preservação e sobrevivência. Ele não especifica em que condições não deve ser seguido. Em tal circunstância, é difícil sustentar o livre-arbítrio; a pressão psicológica, a revolta instintiva que sentiríamos ao ver nossa irmã sendo estuprada, ou a necessidade de sobreviver em face de um atentado contra nossa própria vida nos impeliriam a tomar providências nem sempre escolhidas. Portanto, agimos também devido a pressões do meio sobre nós.
Em face de um crime hediondo, ficamos aterrorizados com a frieza e crueldade do assassino e nos perguntamos como foi capaz de cometer tamanha atrocidade. Perguntamo-nos pelas razões (ciúme, desejo de possuir a riqueza do outro, sublevação contra alguma forma de opressão...?). A ciência tem procurado investigar as causas, para, assim, talvez  tentar tratar quem se comporta de modo criminoso.
Os homens são dotados de liberdade em alguma medida; não são eles totalmente livres – outra ilusão! Mas podem exercer sua liberdade dentro de certos limites, hereditariamente delineados ou culturalmente fixados. O problema está em pretender pensar a liberdade como livre-arbítrio. O termo é perigoso, porque nos leva a pensar na possibilidade de atuarmos sempre de modo absoluto, fazendo-nos senhores de nossas ações. Basta que um outro se coloque diante de mim para que o exercício de minha liberdade seja limitado pela consciência do direito do outro de exercer a sua liberdade.
É equivocado pensar que o mal seja consequência do livre-arbítrio conferido por Deus aos homens. Sendo onipotente, Deus poderia ter criado um mundo onde os homens só fizesse o bem,  porque não haveria o mal.
O teólogo rejeita a ideia de que Deus é autor do mal. Mas me pergunto o que fazia a serpente no paraíso quando tentou Eva? Se o mal não provém de Deus, donde provém? Se do homem, ou provém naturalmente, ou ele o adquiriu de algum modo. Se provém naturalmente, então Deus deve ser responsabilizado por ter criado seres humanos cuja natureza é inclinada à maldade. Se, ao contrário, o mal foi adquirido pelo homem, onde estava o mal então? É notável que na história de Jó, satanás não era um adversário propriamente dito de Deus, mas um competidor com ele, na tentativa moralmente reprovável de testar a fé do homem justo. Se o mal está no diabo, por que Deus não o elimina de uma vez por todas, extirpando o mal? Aliás, a cumplicidade entre Deus e o diabo sempre me pareceu insuportavelmente incrível. Mas milhões de cristãos não se dão conta de que manter a crença num Ser benevolente e todo-poderoso e, ao mesmo tempo, admitir a existência de um ser como o diabo é um contra-senso. Se Deus é bom, não pode permitir a "existência"  do diabo; se ele tem poder infinito, deveria ser capaz de aniquilá-lo. Mas o diabo continua atazanando a consciência de muitos cristãos. E como se não bastasse, ousando possuir seus corpos, tendo Deus como mero espectador. E o ridículo piora: Deus não evita as supostas possessões; ele permite e tem de ser convocado a resolver o problema, por meio de rituais de exorcismos feitos pelos funcionários da fé.
Uma crítica contundente aos que defendem o livre-arbítrio é o reconhecimento de que o argumento não soluciona o problema do mal natural, isto é, do mal que experimentamos quando sofremos o efeito dos fenômenos naturais (terremotos, erupções vulcânicas, tsunamis, etc.) ou doenças. Sendo onipotente, Deus poderia ter criado outras leis naturais que não redundassem em sofrimento. Deus poderia criar um mundo onde não houvesse bactérias e outros microrganismos nocivos à saúde.
Vejam-se os terremotos. O que são eles? São tremores que ocorrem na superfície terrestre. O que os desencadeia? Eles podem ser desencadeados por alguma atividade vulcânica, por falhas geológicas ou pelo choque de placas tectônicas. A crosta terrestre constitui uma camada rochosa fragmentada, ou seja, formada por vários blocos chamados placas tectônicas. Essas placas estão em movimento constante. Quando se encontram em zonas de convergência, pode dar-se a colisão entre elas, do que resulta um acúmulo de pressão e descarga de energia, que toma a forma de ondas sísmicas, produzindo, assim, o terremoto. Esta é uma explicação bastante simples do que é um terremoto, mas suficientemente adequada à argumentação que venho desenvolvendo. O leitor poderá se perguntar por que Deus não poderia ter dado uma nova ordem a esse estado-de-coisas, por que não poderia ele ter criado um planeta sem esse fenômeno, muita vez, desastroso e nefasto? Sua onipotência, por definição, torna sua escolha isenta de qualquer coerção; Deus é o único ser que seria dotado de livre-arbítrio ou de liberdade absoluta.
Vejamos as doenças, agora. São elas incontáveis. Pensemos nos vírus, que são os principais agentes causadores de doença nos seres vivos. É verdade que os virologistas estudam os vírus não só para curar doenças, mas também para servir-se deles na produção de vacinas, em pesquisas com células (por serem organismos muito simples, auxiliam na compreensão da própria vida, que surgiu de organismos simples) e no combate a insetos (há vírus que atacam insetos, e os cientistas os estudam para que possam ser úteis na aniquilação de insetos que atacam as plantações). No tocante à importância dos estudos de vírus em pesquisas com células, pesquisas feitas com vírus que atacam bactérias permitiram aos cientistas compreender os genes e o DNA. No entanto, não é porque a “chave” para a solução de nossos problemas parece estar nos vírus (e bactérias) que os causam, que um mundo sem a presença desses organismos patogênicos não seria preferível. E não podemos nos esquecer que além desses agentes exteriores que podem causar sérios danos a nossa saúde, há também um distúrbio interno no próprio organismo, que consiste no crescimento anômalo de células desproporcionalmente ao crescimento harmonioso dos órgãos vizinhos, ou seja, o câncer. E sem levar em conta as doenças congênitas (defeitos em certas partes ou na estrutura do corpo herdados pelo bebê). Esses defeitos podem se manifestar na forma de disposições para desenvolver determinadas doenças. Há mais de mil tipos conhecidos de defeitos congênitos e as descobertas de outros defeitos não cessam. A consciência de que podemos nascer com tais problemas leva-nos a concluir pela fragilidade da vida, mas também deveria ser suficiente para rechaçar a hipótese da existência de um Deus benevolente. Não há nada que justifique o sofrimento de um ser humano que nasce, por exemplo, com uma doença conhecida como coréia de Huntington, que se acha latente no bebê quando do nascimento, mas que se desenvolverá na fase adulta, acarretando problemas na fala e nos movimentos e levando a pessoa à morte. Deus, sendo nosso criador, é responsável pelos males genéticos com que nascemos, como também é responsável por infestar este planeta de microrganismos prejudiciais à nossa vida e à vida de outras espécies. É também responsável por distribuir injustamente as condições climáticas no mundo. Veja-se, por exemplo, que, em várias regiões interioranas do nordeste brasileiro, a seca castiga homens e animais. Bois viram cadáveres no solo cálido castigado pela seca. Também esse Deus foi responsável por produzir um sistema de carnificina conhecido como cadeia alimentar. Nesse tocante, em Deus e outros inconvenientes (2011), observa Ventós:

“Essa religião [o cristianismo], pensada para explicar o mal ou justificar a dor humana, não faz o menor esforço para dar alguma justificativa para a dor animal. Nada que justifique a necessidade dessa aterradora carnificina que é a Criação (aliás, “cadeia alimentar), segundo a qual toda espécie foi criada para viver da destruição e do sofrimento das que estão abaixo dela. Uma divina carnificina da qual todos os seres animados serão vítimas enquanto não chegarem os tempos profetizados por Isaías, quando coexistirão pacificamente o lobo e o cordeiro, o bezerro e o leão, a criança e a serpente”.

(p. 31)
(ênfase no original)


A cadeia alimentar é um aspecto da realidade natural que passa despercebido quando pensamos o mundo como uma obra perfeita de um ser infinitamente bom e perfeito chamado Deus. É difícil sustentar algum propósito benéfico subjacente à criação dessa cadeia de carnificina. Não há por que perdermos nossas noites de sono para elucubrar sobre um possível propósito. Basta que retiremos Deus de cena e compreendamos que, na natureza, os animais podem ser distribuídos hierarquicamente segundo relações entre predadores e caça.


Relendo o trecho citado do trabalho de Carias, claro está que o sofrimento não constitui um obstáculo para a fé. E essa ideia está também presente neste trecho final da seção.

“Irmãos e irmãs, ninguém tem uma resposta definitiva me face da dor e do sofrimento. Porém, podemos ter certeza de uma coisa: Deus não é um carrasco, ou sádico que nos quer ver sofrer. No entanto, se somos a sua imagem e semelhança, certamente deve existir algo no sofrimento que esteja próximo da própria realidade de Deus. E, pela criação livre de Deus, somos convidados(as) a reconhecer, em nós mesmos, a capacidade de ir ao seu encontro, mesmo no meio da dor. Não façamos da não explicação de tal realidade humana um pretexto para causar sofrimento aos outros introduzindo o mal para aliviar o meu sofrimento, não reconhecendo que esta é uma escolha de destruição de si e do mundo criado”.
(p. 30)
(grifo meu)

Em que pese a dor e o sofrimento inexplicáveis, mesmo sob a ótica teológica, devemos persistir na busca por aproximarmos de Deus. O trecho que destaquei em negrito chama-nos atenção para a crença segundo a qual o sofrimento participa da natureza de Deus. Tal argumento ressoa no discurso de alguns teólogos que defendem que Deus sofre tanto quanto nós. A solidariedade de Deus para conosco em sofrimento levanta suspeitas sobre sua onipotência. Um Deus que sofre também é um Deus frágil e, portanto, incapaz de superar seu próprio sofrimento. Além disso, a crença em que Deus possa sofrer tanto quanto nós significa assumir, com honestidade, embora contrariamente ao que ensina a doutrina, a natureza antropomórfica do Deus judaico-cristão. Um Deus que sofre é um Deus que se humaniza.
Se Deus sofre tanto quanto nós, de que nos vale ele, senão como mais um a engrossar a grande massa de sofredores? Um Deus impotente em face da dor e do sofrimento é dispensável.
Vê-se que o problema do mal continua insolúvel para os apologistas da fé cristã. Todas as tentativas de dar conta desse problema são argumentativamente invalidadas. Na tentativa de conservar a crença na existência de Deus, teólogos buscam modificar as representações de Deus, sem dar-se conta de que tais modificações entram em conflito com outras maneiras, tradicionalmente, estabelecidas de conceber a Deus. Por exemplo, se Deus é sofredor tanto quanto nós, ele deixa de ser onipotente; ele se torna impotente.
Lamento que toda essa argumentação não encontre eco favorável nos espíritos de muitos religiosos. É provável que encontrem meios de escapar ao problema do Mal, quando o assunto é justificar a crença em um Deus onipotente e bom. Sinceramente, não vejo meio de escapar a ele. Para mim, continuar crendo na existência de um Ser tão fantástico, tão poderoso, que foi incapaz de produzir um mundo com menos quantidade de mal, que é incapaz de ver que o sofrimento de uma criança com câncer não pode servir para qualquer reforma moral, ou para qualquer  propósito escuso, é um Deus desprezível e indigno de seres capazes de transcender as suas raízes naturais. Mas, após muito estudar sobre religião, após convencer-me de que tinha de voltar ao meu estado inato de ateu (porque nenhuma criança nasce crendo em Deus), percebo que não estou combatendo a Deus, que não é senão uma ideia abstrata forjada no caldeirão de angústia da alma humana e que serve de consolo a muitos, mas também de instrumento para manipulação uns dos outros. A rejeição a Deus não é senão rejeição a toda forma de subserviência intelectual a uma instituição autoritária que vê na inteligência uma ameaça ao seu poder.
É porque estou ciente de que não há nada que combater senão as imposturas dos próprios homens, que preciso responder aos que, comumente, vomitam a ideia de que os ateus, quando metidos em grandes dificuldades, hão de apressar-se em socorrer-se de Deus. Não há, de minha parte, nada mais tolo. Pessoas há que abandonam sua fé por muitas razões. Muitas podem abandoná-las por ter sido vitimada por um sofrimento atroz, pelo qual não foram responsáveis. Podem ter perdido um filho que lutava contra um câncer. E os que a censuram, deveriam reconhecer que restituíram a sua coragem de se libertar da submissão ao absurdo. Agiram segundo o imperativo racional. Não havendo razões suficientes para acreditarem num deus benevolente e onipotente incapaz de poupar-lhes o sofrimento e ao do filho, restituem a dignidade humana, antes aviltada pela fé. Pessoas, assim, são dignas de meu respeito. Reconheço nela a mesma humanidade que pulsa em mim. Por que continuaríamos acreditando num ser que, supostamente dotado de todo poder para usar em nosso benefício, permitiu que sucumbíssemos ao sofrimento? Nenhuma filosofia cristã dá conta disso. Nenhuma lógica é capaz de explicá-lo. Simplesmente, porque não há o que explicar.
Quando alguém afirma “Deus criou o mundo” (além de pressupor a existência de Deus, para a qual não dispomos de evidências), se compromete com a sua implicação: se Deus criou o mundo, criou também as condições naturais hostis à vida.
Como podem os religiosos serem indiferentes quando assistem a um noticiário que lhes informa que uma criança morreu por causa da dengue e ainda assim orar à noite antes de dormir? Se Deus criou o mundo, ele também criou o vírus da dengue e o mosquito hospedeiro que, no Brasil, é o Aeds aegypti. A crença em Deus – isso, para mim, tornou-se bastante claro – torna muitos religiosos ignorantes do modo como o mundo funciona: a natureza não é perfeita, nada parecido a uma obra de arte.
Posso agora responder ao comentário de um leitor anônimo, estampado no limiar deste texto. Não está bem claro para mim o que quis dizer com “fazer o caminho inverso”. Nasci ateu, como qualquer bebê; em certa altura da vida, me vi fazendo catequese (muito embora com a displicência típica de um menino de dez anos). Fui educado e cresci em um meio familiar católico. Não obstante o sofrimento de que fui acometido nos primeiros minutos de vida, que se estendeu até os sete anos, aproximadamente, eu vivi uma adolescência ainda muito imbuído de sentimento religioso. No entanto, nunca me deixei seduzir completamente pela fé cristã. Para mim, como parece a muitas pessoas, era possível separar Deus da religião. Esta era, para mim, censurável sob vários aspectos, mas Deus nada tinha que ver com isso. Ele estava isento de culpa. Mas, não sendo um pseudointelectual (embora tendo a humildade de reconhecer que há pessoas mais capacitadas do que eu em muitos temas), sou, na verdade, um amante do saber. Descobri a filosofia, e com ela o ateísmo. Descobri-o, porque estava latente em mim.
Qual não é minha indignação ao saber que pessoas religiosas são capazes de propalar despautérios tais como “o HIV é um castigo de Deus às pessoas sexualmente promíscuas ou aos homossexuais”! Eis aí um exemplo de como a doutrina religiosa envenena tudo, incluindo, é claro, a capacidade racional das pessoas. E dizem isso sem se dar conta de que, entre outras coisas, contradizem o que pregam, pois que não podem afirmar “Deus é bom” e admitir “Deus enviou o HIV para punir as pessoas que se comportam sexualmente de modo contrário à sua “lei””. A sua maldade é evidente e deve ser combatida com toda a força do coração: o vírus HIV também infecta bebês (ou, pelo menos, infectou no passado). E esses bebês, quando conseguiram sobreviver,  adultos, vivem até hoje com o vírus; e, apesar de terem uma boa qualidade de vida (porque podem se beneficiar de um tratamento bastante eficaz, graças ao programa de combate ao HIV/AIDS do governo brasileiro, considerado o melhor do mundo), precisam tomar remédios duas vezes ao dia em horários fixados.
É verdade que a ciência não explica tudo. E provavelmente nunca venha a explicar. Mas eu, como muitos na minha condição, estou sobrevivendo e posso gozar de uma boa qualidade de vida graças aos avanços científicos, graças aos antirretrovirais e à competência do médico que me assiste. A vida é um mistério. Contente-se com ele! Quando se levanta a pergunta “quem criou o Universo e suas leis”, e se dá a ela a resposta “Deus”, além de se comprometer com a implicação que já mencionei, dever-se-á também explicar quem criou Deus. É tão absurdo supor que Deus é um ser incriado ou eterno (ou ainda que se criou a si mesmo, embora isso não faça sentido, já que o ato de criar pressupõe um agente externo) quanto supor que o Universo é incriado e eterno. As leis naturais a que se referiu podem ter sempre existido, tal como você poderia supor não ter Deus um criador. E mais: por que deveria ser o seu Deus o criador delas, e não outra divindade qualquer, dentre as milhares que são cultuadas pelos homens? De que argumento pode se valer para provar que o Deus em que acredita é o Deus verdadeiro, o que criou o Universo e os seres que há nele?

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Sobre viver e morrer


                     


                              Ponderações sobre o pós-morte

Este texto foi produzido nesta triste semana em que vovó nos deixou.



A vida humana inclui a experiência com a morte. Ao atingir a faixa etária entre 9 e 10 anos, toda criança torna-se capaz de reconhecer a morte como um acontecimento natural da vida. Antes dessa fase, entre 5 e 9 anos, ela encara a morte como um acontecimento distante e chega a acreditar na impossibilidade de ela ou um ente querido morrer.
Dizer que todo ser humano tem experiência com a morte significa dizer que todo ser humano é consciente da morte. Todo ser humano sabe que vai morrer um dia e experiencia a morte alheia. Para muitos, a consciência da morte é aterrorizante e fonte de angústia. O drama humano representado na consciência de um indivíduo em face da certeza da morte se complica quando reconhece não poder escapar não só ao fato de que vai morrer, mas também ao fato de que ignora o que há depois da morte. O saber sobre a sua condição finita convive com a ignorância sobre o que lhe acontecerá depois da sua morte.
O drama, contudo, pode complicar-se ainda mais. Acontece que a vida humana é também um acontecimento que inclui a experiência com o sentido. Os seres humanos são caçadores de sentido. A necessidade de dar sentido ao mundo e à vida parece estar na raiz do desenvolvimento da capacidade de linguagem no homo sapiens. Não há possibilidade de construir sentidos, de estruturar as experiências de mundo, tornando-as dados da consciência, sem linguagem. Os homens usam a linguagem para produzir significados nas suas mais diversas experiências de mundo. Nossas relações com o mundo e uns com os outros são construídas simbolicamente.
Dar sentido à vida e à morte é uma necessidade inerente ao ser humano. O sentido preenche o vazio legado pela angústia decorrente de nossa consciência de seres mortais. Mas ele não resolve o problema da ignorância sobre o pós-morte. Tampouco consegue dar conta da ignorância sobre a finalidade da existência (diga-se de passagem, de quão árdua e dolorosa existência para muitos!). Em suma, não sabemos o que acontece depois que a luz dos olhos  de outrem se apaga, bem como não sabemos as razões por que viemos a conhecer a luz da vida. Vivemos imersos no Mistério. Nossa vida se desenvolve entre dois extremos de uma ignorância visceral: o não saber sobre a finalidade da vida e o não saber sobre o que há depois da morte.
Os materialistas dogmáticos dirão que não há nada para saber, porque não faz sentido falar em “depois da morte”. Não há nada depois da morte. O nada é o não-ser, a ausência de consciência, a supressão da funcionalidade orgânica. Segundo esse ponto de vista, morrer é simplesmente deixar de ser, retroceder ao estado anterior ao nascimento, em que não éramos. Nesse ‘nada’ que é a morte não há sentimentos, lembranças, desejos, sensações...não há mais um Eu.
Não raro, encontro ateus materialistas dogmáticos que cuidam possuir a verdade definitiva sobre a experiência de morte. Não hesitam em bradar aos quatro ventos que morrer é simplesmente tornar ao pó. Como podem estar tão certos  disso? A singularidade da vida neste que é, até onde sabemos, o único planeta que a tornou possível, é espantosa! Suas afirmações categóricas baseiam-se numa visão de mundo cientificista que não logra muita simpatia mesmo entre os cientistas mais brilhantes. Simplesmente, escapa à alçada da ciência emitir juízos sobre o que filosoficamente significa morrer. A morte, enquanto acontecimento humano, está envolta em mistério.
Um ente que nos deixa não é meramente um corpo que deixou de respirar, um corpo cujas funções orgânicas cessaram. Cada um de nós é único. E cada um de nós se sabe único. Somos dotados de personalidade e individualidade. Acumulamos experiências várias que definem quem somos e que jamais se equivalerão. Cada um de nós tem um sentimento de Eu. Esse Eu único é lançado à existência sem saber o porquê. E durante o breve período de vida, experimenta alegria, tristeza, prazer, dor, amores, desamores; chora, ri, se enraivece, estuda, trabalha, etc. São incontáveis as experiências em que se envolve esse Eu singular, que se sabe finito. 
A morte de uma pessoa é a morte de um Eu inigualável, irreproduzível. Quando uma pessoa morre, morre uma história de vida. Morre não um corpo, mas um ser consciente e extremamente complexo. Morrem seus ensinamentos e tudo aquilo que vivemos com ela.
Independentemente de termos fé ou não, de sermos crentes em deuses ou ateus, todos nós desejamos poder reencontrar as pessoas que amamos e que morreram (ou morrerão). Todos nós buscamos encontrar, depois que as cortinas se fecharem e o espetáculo da existência se encerrar, o sentido último, a verdade absoluta. Todos desejamos a inesgotabilidade da vida, ou seja, viver novamente, viver em outra condição, em outra realidade, mas viver, porque a vida é o bem maior que temos. E, sinceramente, desejo que os que não foram beneficiados com uma vida boa possa sê-lo após sua dolorosa existência aqui neste planeta hostil. O universo é vasto demais e nossa ignorância sobre ele maior ainda.
O que resta depois da morte, depois da perda do convívio, do existir (estar em relação com) é, além da saudade, o irresistível desejo. Fiquemos com o desejo, sem pretender torná-lo artigo de fé, sem pretender dar-lhe uma vestimenta dogmática, espiritualista ou materialista, religiosa ou ateísta. 

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

"Quando jogamos o jogo da linguagem, jogamos com pressuposições" (BAR)



                                  Em cena: a pressuposição


Sobre moluscos e homens

Piaget, antes de se dedicar aos estudos da psicologia da aprendizagem, fazia pesquisas sobre os moluscos dos lagos da Suiça. Os moluscos são animais fascinantes. Dotados de corpos moles, seriam petiscos deliciosos para os seres vorazes que habitam as profundezas das águas e há muito teriam desaparecido se não fossem dotados de uma inteligência extraordinária. Sua inteligência se revela no artifício que inventaram para não se tornarem comida dos gulosos: constroem conchas duras – e lindas! - que os protegem da fome dos predadores. Ignoro detalhes da biografia de Piaget e não sei o que o levou a abandonar seu interesse pelos moluscos e a se voltar para a psicologia da aprendizagem dos humanos. Não sabendo, tive de imaginar. E foi imaginando que pensei que Piaget não mudou o seu foco de interesse. Continuou interessado nos moluscos. Só que passou a concentrar sua atenção num tipo específico de molusco chamado “homem”. Se é que você não sabe, digo-lhe que muito nos parecemos com eles: nós, homens, somos animais de corpo mole, indefesos, soltos numa natureza cheia de predadores. Comparados com os outros animais nossos corpos são totalmente inadequados à luta pela vida. Vejam os animais. Eles dispõem apenas do seu corpo para viver. E o seu corpo lhes basta. Seus corpos são ferramentas maravilhosas: cavam, voam, correm, orientam-se, saltam, cortam, mordem, rasgam, tecem, constroem, nadam, disfarçam-se, comem, reproduzem-se. Nós, se abandonados na natureza apenas com o nosso corpo, teríamos vida muito curta. A natureza nos pregou uma peça: deixou-nos, como herança, um corpo molengão e inadequado que, sozinho, não é capaz de resolver os problemas vitais que temos de enfrentar. Mas, como diz o ditado, “é a necessidade que faz o sapo pular”. E digo: é a necessidade que faz o homem pensar. Da nossa fraqueza surgiu a nossa força, o pensamento. Parece-me, então, que Piaget, provocado pelos moluscos, concluiu que o conhecimento é a concha que construímos a fim de sobreviver. O desenvolvimento do pensamento, mais que um simples processo lógico, desenvolve-se em resposta a desafios vitais. Sem o desafio da vida o pensamento fica a dormir... O pensamento se desenvolve como ferramenta para construirmos as conchas que a natureza não nos deu.
O corpo aprende para viver. É isso que dá sentido ao conhecimento. O que se aprende são ferramentas, possibilidades de poder. O corpo não aprende por aprender. Aprender por aprender é estupidez. Somente os idiotas aprendem coisas para as quais eles não têm uso. Somente os idiotas armazenam na sua memória ferramentas para as quais não têm uso. É o desafio vital que excita o pensamento. E nisso o pensamento se parece com o pênis. Não é por acidente que os escritos bíblicos dão ao ato sexual o nome de “conhecimento”... Sem excitação a inteligência permanece pendente, flácida, inútil, boba, impotente. Alguns há que, diante dessa inteligência flácida, rotulam o aluno de “burrinho”... Não, ele não é burrinho. Ele é inteligente. E sua inteligência se revela precisamente no ato de recusar-se a ficar excitada por algo que não é vital. Ao contrário, quando o objeto a excita, a inteligência se ergue, desejosa de penetrar no objeto que ela deseja possuir.
Os ditos “programas” escolares se baseiam no pressuposto de que os conhecimentos podem ser aprendidos numa ordem lógica predeterminada. Ou seja: ignoram que a aprendizagem só acontece em resposta aos desafios vitais que estão acontecendo no momento (insisto nessa expressão “no momento” – a vida só acontece “no momento”) da vida do estudante. Isso explicaria o fracasso das nossas escolas. Explicaria também o sofrimento dos alunos. Explicaria a sua justa recusa em aprender. Explicaria sua alegria ao saber que a professora ficou doente e vai faltar... Recordo a denúncia de Bruno Bettelheim contra a escola: “Fui forçado (!) a estudar o que os professores haviam decidido o que eu deveria aprender – e aprender à sua maneira...” Não há pedagogia ou didática que seja capaz de dar vida a um conhecimento morto. Somente os necrófilos se excitam diante de cadáveres.
Acontece, então, o esquecimento: o supostamente aprendido é esquecido. Não por memória fraca. Esquecido porque a memória é inteligente. A memória não carrega conhecimentos que não fazem sentido e não podem ser usados. Ela funciona como um escorredor de macarrão. Um escorredor de macarrão tem a função de deixar passar o inútil e guardar o útil e prazeroso. Se foi esquecido é porque não fazia sentido. Por isso acho inúteis os exames oficiais ( inclusive os vestibulares ) que se fazem para avaliar a qualidade do ensino. Eles produzem resultados mentirosos por serem realizados no momento em que a água ainda não escorreu. Eles só diriam a verdade se fossem feitos muito tempo depois, depois do esquecimento haver feito o seu trabalho. O aprendido é aquilo que fica depois que tudo foi esquecido... Vestibulares: tanto esforço, tanto sofrimento, tanto dinheiro, tanta violência à inteligência... O que sobra no escorredor de macarrão, depois de transcorridos dois meses? O que restou no seu escorredor de macarrão de tudo o que você teve de aprender? Duvido que os professores de cursinhos passem nos vestibulares. Duvido que um professor de português se saia bem em matemática, física, química e biologia... Eles também esqueceram. Duvido que os professores universitários passem nos vestibulares. Eu não passaria. Então, por que essa violência que se faz sobre os estudantes?
Ah! Piaget! Que fizeram com o seu saber? Que fizeram com a sua sabedoria? É preciso que os educadores voltem a aprender com os moluscos...

 



Nesta oportunidade, vamos estudar os mecanismos de construção da teia textual, ou seja, da estrutura do texto. Avaliarei o modo como o autor, se valendo dos recursos que a língua lhe disponibiliza, produziu seu texto a fim de satisfazer os propósitos previstos por seu projeto de dizer. Cabe, porém, veicular os seguintes pressupostos em que assenta a análise cuja realização eu me proponho:

1º pressuposto – Toda atividade linguística envolve textos que são produzidos com uma dada intenção, em dadas circunstâncias, para o atingimento de determinados objetivos;

2º pressuposto – Todo texto é produto de uma atividade social – a linguagem – e, como tal, orquestra ações linguísticas que servem à produção de um determinado efeito sobre o interlocutor;

3º pressuposto – O processamento textual deve ser pensado a partir de duas perspectivas: a do produtor e a do interpretante. Do ponto de vista do produtor, o processamento textual consiste num tipo de atividade, num só tempo, linguística e socio-cognitiva, durante a qual o produtor, valendo-se de um vasto repertório de formas de conhecimentos armazenados em sua memória, de uma série de estratégias sociocognitivas  (p.ex. a mobilização dos mecanismos de referenciação) e elaborando hipóteses sobre os conhecimentos supostamente compartilhados com o sujeito interpretante, vai construindo seu texto segundo um projeto de dizer. Do ponto de vista do interpretante, o processamento textual também é um tipo de atividade, mediante a qual quem interpreta atua cognitivamente sobre o material linguístico, também se valendo de estratégias cognitivas (ex. produzindo inferências ancoradas na relação entre informações textualmente dadas e informações pressupostas como parte dos seus conhecimentos prévios), para, assim, reconstruir a intenção do produtor e produzir um sentido, uma leitura.
4º pressuposto -  ler ou produzir um sentido são sinônimos. Ler não é decodificar sinais linguísticos organizados numa cadeia sintagmática. A leitura pressupõe a interação entre autor-texto-leitor. É uma atividade durante a qual o leitor está, a todo momento, atuando por meio de atividades de inferenciação , as quais envolvem a utilização de seu conhecimento de mundo e o estabelecimento de uma relação não-explícita entre dois segmentos textuais ou entre segmentos textuais e os conhecimentos indispensáveis à produção da leitura.

5º pressuposto – a argumentatividade é uma qualidade inerente à linguagem. Toda atividade linguística é, de algum modo, argumentativa, na medida em que visa a produzir uma reação ou efeito no interlocutor.

Baseando-me nesses cinco pressupostos, vou empreender a análise de algumas das estratégias de que se valeu o autor de Sobre moluscos e homens para produzir um sentido (o produtor também produz um sentido, já que ele elabora um projeto de sentido, através de seu texto, e espera que o leitor o reconheça e o aceite).  Essas estratégias podem ser divididas em cognitivas, textuais e sociointeracionais. Todos os tipos de estratégias estão, evidentemente, presentes quando da produção/ interpretação do texto. No entanto, não vou me preocupar aqui em pormenorizá-las. Basta-me notar que as estratégias textuais estão relacionadas à organização da informação, à formulação do próprio texto, aos mecanismos de referenciação e ao “balanceamento” entre informações explícitas e informações implícitas (Koch, 2003).
Os fenômenos discursivos que considerarei são os seguintes (na ordem de análise):
1.       pressuposição;
2.       referenciação;
3.       sequenciação textual;
4.       modalização;
5.       intertextualidade e polifonia.

Nesta oportunidade, no entanto, só me ocuparei com o fenômeno da pressuposição:

1. A pressuposição: uma atividade constitutiva do discurso

Uma maneira clara e simples de começar a abordar um tema tão complexo como este é dizer que, em toda atividade linguística, comunicamos mais do que aquilo que efetivamente dizemos. Todo texto (vale reiterar essa imagem e insistir nesta lição) assemelhasse a um iceberg, na medida em que deixa à superfície uma parte pequena de informações, matendo submersa uma grande parte informações. Portanto, todo texto encerra explícitos e uma gama diversa de implícitos.
Se tivéssemos de codificar na língua todos conteúdos de consciência ou todas as informações que pretendemos comunicar, a língua, enquanto atividade social, perderia muito em eficiência, já que produziríamos textos densos em informações desnecessárias, porque redundantes. E redundantes porque já previstas pelo conhecimento de mundo do interlocutor. Assim, em qualquer evento sociointeracional realizado pelo uso da língua, produzimos nossos textos na base de um conjunto de saberes que supomos partilhar com nossos interlocutores. Por exemplo, se digo

(1) Hoje, fui a uma churrascaria e comi muito.

Esse enunciado foi produzido na base de uma série de pressupostos sobre os saberes compartilhados entre o locutor e o interlocutor. Assim, o locutor enuncia (1) partindo da hipótese de que o seu interlocutor já sabe:

a) o que é uma churrascaria;
b) que  se trata de um lugar especializado em servir churrasco;
c) que lá há mesas e cadeiras onde nos sentamos para almoçar ou jantar;
d) que lá há garçons que nos servem;
e) que, normalmente, se come bastante nesse lugar.

Podemos imaginar quão despropositada seria a versão (1a) do referido enunciado.

(1a) Hoje, fui a uma churrascaria. Churrascaria é um restaurante onde se serve churrasco. Lá, nós nos sentamos à mesa e, não tendo acesso ao cardápio imediatamente, esperamos que um garçom o traga, para que escolhamos o que queremos comer.  Na churrascaria, geralmente se come bastante.

Esse texto faria sentido, ou melhor, teria valor funcional, caso nosso interlocutor, sendo um estrangeiro visitando o Brasil, quisesse saber o que é uma churrascaria. Sendo brasileiro nosso interlocutor, as informações que damos a respeito da churrascaria são desnecessárias, porque parte do conhecimento sociocultural que compartilhamos com ele.
Sem mais delongas, começarei a tratar do fenômeno da pressuposição, sem pretender fazer vasta incursão teórica, lançando mão da definição apresentada por Rodolfo Ilari, em Introdução à Semântica (2003). Escreve o linguista:

“Diz-se que uma informação é pressuposta quando ela se mantém mesmo que neguemos a sentença que a veicula”.
(p. 85)

Essa é uma definição operacional de pressuposição, já que nos fornece informação sobre um expediente, tradicionalmente, usado para o reconhecimento do pressuposto: a negação. Conforme ensina o autor, se nos valermos da forma de negação “não”, aplicando-a num enunciado como (2), a informação pressuposta será aquela que não se altera, a despeito do uso da negação:

(2) O carro parou de trepidar.
      O carro não parou de trepidar.

Tanto na forma afirmativa, quanto na forma negativa, o conteúdo “o carro trepidava antes” não se altera. Portanto, é ele o conteúdo pressuposto. Vale notar que esse pressuposto está ancorado numa expressão linguística na base da qual nós o produzimos – a expressão parou de.  Trata-se de um marcador de pressuposição.  Certos verbos ou locuções verbais têm a propriedade de permitir a inferência ou a ativação de conteúdos pressupostos, tais como ‘continuar’ , ‘tornar-se’, ‘ficar’, “deixar de”.
Outro expediente, comumente, empregado para o reconhecimento de conteúdos pressupostos é a interrogação. O conteúdo pressuposto se mantém sempre que aplicamos o procedimento de interrogação num enunciado. Assim, se o enunciado (2) fosse produzido com uma força ilocucionário de pergunta,

(2a) O carro parou de trepidar?

o conteúdo pressuposto ‘o carro trepidava antes’ não se altera. Escusa dizer que este ‘antes’ remete a um momento anterior ao momento da enunciação (ao aqui-agora do discurso).
Embora os dois expedientes sejam, decerto, úteis para o reconhecimento de pressupostos, seu emprego tem limitações. Não podemos nos servir deles em todos os casos, como em (3):

(3) Eu sei que você não foi à escola.

Essa frase compõe-se de dois segmentos, que chamamos de oração. O primeiro segmento, tradicionalmente, é classificado como oração principal (Eu sei); o segundo, como oração subordinada ((que) você não foi à escola). Na primeira oração (a principal), figura o verbo “saber”, que é considerado um verbo factivo, ou seja, um verbo cujo uso implica a pressuposição de que a proposição seguinte (você não foi à escola) é um fato. Portanto, com o verbo “saber”, o falante pressupõe como fato o conteúdo proposicional da oração subordinada. Nesse caso, qualquer tentativa de aplicar aqueles expedientes se demonstra inapropriada. Como a oração subordinada já encerra a partícula “não”, que modifica todo o predicado “foi à escola”, não cabe aí inserir outra forma negativa. Por outro lado, a transformação da frase para a versão interrogativa é assaz sensível ao contexto..  Pode-se, é verdade, atribuir uma força ilocucionária de pergunta a (3), a fim de buscar, retoricamente, invalidar o pressuposto do interlocutor. Assim, numa situação em que uma adolescente, que quisesse fazer com que o pai acreditasse que ela foi à escola, dissesse (3a)

(3a) Minha mãe sabe que eu fui.

a mãe da menina poderia replicar produzindo (3b)

(3b) Eu sei que você foi (à escola)?

A intenção da mãe é claramente desmentir a menina. Mas o pressuposto do enunciado (3) não se mantém.
Para fins de determinação do conteúdo pressuposto de (3), claro está que os dois expedientes se demonstram ineficazes.
Precisamos avançar um pouco mais. Ducrot (1978), consciente da diversidade de abordagens que se encontram na esteira dos estudos sobre pressuposição, procura sumariar em dois grupos as conceituações conflitantes. Segundo o linguista, o fenômeno da pressuposição foi considerado e definido numa perspectiva lógica, com base no critério da negação e das noções de verdade e falsidade da proposição; e numa perspectiva pragmática, que associa o fenômeno de pressuposição às condições de emprego. Diversos são os estudiosos que se ocuparam do tema, mas é, em Ducrot, que o fenômeno em pauta pôde ser contemplado como constituinte do próprio sentido do discurso. Com Ducrot, a pressuposição é enfocada à luz de uma teoria da argumentação. Passa a ter ela um papel específico no discurso, tornando-se um dos fatores responsáveis pela construção do sentido. O mecanismo de pressuposição é, portanto, entendido como um recurso argumentativo. Segundo Fiorin (2004: 182):

“O uso adequado dos pressupostos é muito importante, porque esse mecanismo linguístico é um recurso argumentativo, uma vez que visa a levar o leitor ou ouvinte a aceitar certas ideias. Com efeito, introduzir no discurso um dado conteúdo sob a forma de pressuposto implica tornar o interlocutor cúmplice de um dado ponto de vista, pois ele não é posto em discussão, é apresentado como algo aceito (...)”.

                                                   (grifo meu)

O referido passo se acha no artigo A linguagem em uso, integrante da coletânea Introdução à Linguística – objetos teóricos (2004). Precisarei me deter um pouco nele para tecer algumas considerações. Começarei a me situar, doravante, na perspectiva de Ducrot (1972), à luz da qual a pressuposição é considerada integrante do sentido dos enunciados.
A primeira lição importante a ser colhida deste trecho é que os conteúdos pressupostos são na verdade, colocados à margem da argumentação. Eles não são apresentados para orientar a argumentação. Os conteúdos pressupostos são apresentados para serem inquestionáveis, incontestáveis, de tal modo que a rejeição deles implica a impossibilidade de levar adiante o próprio discurso. Portanto, a continuação do discurso depende da aceitação dos pressupostos.
Tendo verificado que os testes de negação e interrogação, que são, tradicionalmente, aplicados para o reconhecimento dos conteúdos pressupostos, se demonstram inaplicáveis em muitas frases, Ducrot propõe outro critério : o critério do encadeamento. Esclarece-nos Ducrot:

“Se uma frase pressupõe X, e um enunciado desta frase é utilizado num encadeamento discursivo, por exemplo, quando se argumenta a partir dele, encadeia-se sobre aquilo que é posto, e não sobre o que é pressuposto”.

(Ducrot, 1972. apud. Koch: 2004, 65)

Assim, o autor propõe um novo conceito de pressuposto. Vai entendê-lo como informações que, embora inscritas no enunciado, não constituem base sobre a qual o enunciador faz recair o encadeamento. Assim, encadeia-se sobre o posto e não sobre o pressuposto.
Veja-se o exemplo abaixo:

(4) Luís parou de fumar, mas não foi fácil.

O enunciado (4) compõe-se de duas orações, a segunda das quais se articula à primeira por meio do articulador discursivo “mas”. É por meio do “mas” que se opera o encadeamento de um segmento com o outro.
Em “Luís parou de fumar”, há um pressuposto: “Luís fumava”. Assumir este pressuposto é condição para a própria existência de “Luís parou de fumar”, já que só posso dizer “Luís parou de fumar” se sei que ele fumava (ou seja, se disponho de um conhecimento pressuposto sobre o hábito de fumar de Luís).
Note-se que o encadeamento com “mas” não incide sobre o conteúdo pressuposto, que é colocado à margem da argumentação. Eu poderia argumentar no sentido de levar meu interlocutor à conclusão de que parar de fumar exige força de vontade. Enunciando (4), comunico que Luís parou de fumar, não sem algum obstáculo (não foi fácil, ele teve dificuldades). O argumento introduzido pelo “mas” se prende ao que é posto no segmento anterior, não afeta o conteúdo pressuposto “Luís fumava”. É a aceitação desse pressuposto que permite a continuação do discurso.
Evidentemente, alguém poderia se demonstrar surpreso com o fato de Luís ter sido fumante. Nesse caso, o pressuposto não é compartilhado com o interlocutor. Uma das condições para que haja interação entre as pessoas, através do uso da língua, é que elas estejam de acordo quanto aos pressupostos implicados por seus enunciados.
Convém, contudo, atentar para a advertência que nos faz Fiorin (2004), na obra já citada aqui:

“Quando se diz que o pressuposto não é sensível á negação, à interrogação e ao encadeamento do posto, não se está dizendo que não se possa negar o pressuposto, interrogar sobre ele ou fazer encadeamento com ele, mas apenas que, quando a negação, a interrogação atingem o posto, não alcançam necessariamente o pressuposto”.
(p. 182)
(grifo meu)


Segundo Fiorin, a introdução de um pressuposto faz com que o interlocutor aceite um dado ponto de vista, já que o pressuposto é aduzido como fora de discussão.
A língua disponibiliza uma série de recursos que marcam a pressuposição. A essas unidades chama-se marcadores de pressuposição. Entre eles estão:

adjetivos,
verbos que indicam permanência ou mudança de estado (continuar, ficar, tornar-se, ganhar, etc.),
verbos modalizadores (pretender, saber, alegar, supor, presumir, etc.),
 certos advérbios (p. ex. o advérbio “mais” em “Ele não é mais bobo”, em que “mais” implícita a ideia de que antes alguém era bobo),
 orações relativas restritivas,
certas conjunções (mas, antes que, depois que, se, etc.).

Retomemos o texto, a fim de analisar os pressupostos que nos deixa entrever.
Começo notando, de início, a ocorrência da conjunção “antes que”, que é um marcador de pressuposição.
Piaget, antes de se dedicar aos estudos da psicologia da aprendizagem, fazia pesquisas sobre os moluscos dos lagos da Suíça.

Como marcador de pressuposição, a conjunção “antes que” permite-nos inferir que a oração que introduz descreve um estado-de-coisas (um recorte representacional de mundo) tomado como fato.  A verdade da proposição “Piaget dedicou-se aos estudos da psicologia da aprendizagem” é pressuposta. Decerto, um pressuposto incontestável, já que sabemos que Piaget se dedicou a estudar os processos de aprendizagem nas crianças. Vale notar que o autor conta com o conhecimento prévio do leitor sobre quem foi Piaget e sobre seu interesse pelos estudos de psicologia da aprendizagem.
Vejam-se, agora, as ocorrências abaixo:

(...) não sei o que o levou a abandonar seu interesse pelos moluscos e a se voltar para a psicologia da aprendizagem dos humanos.

Vejam os animais. Eles dispõem apenas do seu corpo para viver.
Somente os idiotas armazenam na sua memória ferramentas para as quais não têm uso

Se foi esquecido é porque não fazia sentido.


Vimos que verbos de valor epistêmico, de que é um exemplo o verbo “saber” no primeiro fragmento, permite pressupor a factualidade do estado-de-coisas descrito na oração completiva. Ou seja, “o que levou a abandonar seu interesse pelos moluscos e a se voltar para a psicologia da aprendizagem dos humanos” é tomado como um fato. Embora o autor desconheça, ignore, houve uma razão para o abandono dos estudos sobre moluscos e o interesse pela aprendizagem dos homens.
O uso de “apenas” põe que ‘o corpo dos animais é o único instrumento para a sobrevivência de que eles dispõem’; mas permite-nos pressupor “eles dispõem do corpo”. Vejamos outro exemplo com “apenas”:

(5) Apenas eu fui premiado.

A informação explícita é “fui a única pessoa a ser premiada”. O uso de “apenas é que marca o pressuposto:

Pp.  Eu fui premiado.

O caso de “somente” é análogo ao de “apenas”. Introduzindo “somente” o autor permite-nos inferir o pressuposto segundo o qual “os idiotas armazenam ferramentas (conhecimentos) inúteis”. O conteúdo explícitamente comunicado é “um único tipo de pessoas (os idiotas) armazena conhecimentos inúteis”.
O “se” permite o pressuposto de que, naquelas circunstâncias, o esquecimento é comum, ou é um fato frequentemente constatado.
Doravante, vou tecer alguns comentários sobre como os pressupostos inferidos desses fragmentos se integram no projeto argumentativo do autor. Para tanto, transcrevo abaixo as partes maiores do texto em que se acham aqueles fragmentos.

1. Sua inteligência se revela no artifício que inventaram para não se tornarem comida dos gulosos: constroem conchas duras – e lindas! - que os protegem da fome dos predadores. Ignoro detalhes da biografia de Piaget e não sei o que o levou a abandonar seu interesse pelos moluscos e a se voltar para a psicologia da aprendizagem dos humanos. Não sabendo, tive de imaginar.

2. Vejam os animais. Eles dispõem apenas do seu corpo para viver. E o seu corpo lhes basta. Seus corpos são ferramentas maravilhosas: cavam, voam, correm, orientam-se, saltam, cortam, mordem, rasgam, tecem, constroem, nadam, disfarçam-se, comem, reproduzem-se.

3. O corpo não aprende por aprender. Aprender por aprender é estupidez. Somente os idiotas aprendem coisas para as quais eles não têm uso. Somente os idiotas armazenam na sua memória ferramentas para as quais não têm uso. É o desafio vital que excita o pensamento.

4. Acontece, então, o esquecimento: o supostamente aprendido é esquecido. Não por memória fraca. Esquecido porque a memória é inteligente. A memória não carrega conhecimentos que não fazem sentido e não podem ser usados. Ela funciona como um escorredor de macarrão. Um escorredor de macarrão tem a função de deixar passar o inútil e guardar o útil e prazeroso. Se foi esquecido é porque não fazia sentido.

Em 1, o autor assume sua ignorância sobre as razões pelas quais Piaget desistiu de estudar os moluscos para ocupar-se com os estudos sobre o comportamento humano. Essa ignorância reconhecida tem pouca importância na orientação argumentativa que toma o discurso àquela altura. Assumindo-se o pressuposto de que há razões para que Piaget passasse a estudar a psicologia da aprendizagem dos seres humanos, importa, para efeito de argumentação, levar o leitor a perceber uma relação analógica entre os moluscos e os humanos. O autor lança mão de um artifício a fim de solucionar o problema de sua ignorância sobre a motivação de Piaget: o da imaginação. Daí em diante desenvolve um raciocínio calcado sobre analogia.
Em suma, basta que autor e leitores estejam de acordo no tocante ao pressuposto de que houve razões para que Piaget mudasse seu foco de interesse; o desconhecimento dessas razões, contudo, não constitui dificuldade nenhuma para a argumentação, já que o que importa é causar a adesão do leitor à analogia proposta. Se o leitor aceita as semelhanças apontadas pelo autor entre moluscos e homens, a questão das razões por que Piaget passou a se interessar pelos estudos dos humanos não têm relevância.
Em 2 e 3, as expressões “apenas” e “somente” permitem-nos inferir o pressuposto ‘eles dispõem de seu corpo’ e ‘os idiotas aprendem ou armazenam coisas (ou ferramentas) para as quais não têm uso’, respectivamente. Em 2, o autor procura criar um consenso sobre a suficiência do corpo do animal, como meio de sobrevivência. E o justifica enunciando uma série de habilidades de que os animais dispõem pelo uso do corpo (cavam, voam, correm...). Elencando as atividades que os animais desempenham com o corpo, o autor opõe seres incapazes de pensar, mas dotados de um corpo que satisfaz às suas necessidades de sobrevivência, a seres dotados da capacidade de pensar, mas com um corpo inapropriado para todos os atos de sobrevivência. Em 3, o pressuposto torna-se mais discutível, em  função do uso de “idiotas” na expressão descritiva “os idiotas”. Descreve-se um tipo humano. O uso de ‘idiota’ tem efeito pejorativo. Quem seriam os idiotas? O autor não se referiria – creio eu – a uma pessoa que manifesta retardamento mental profundo. Nesse caso, tendo a pessoa muita dificuldade para aprender, não está em questão a utilidade ou inutilidade do que ela aprenderia. Descartamos essa hipótese e ficamos com a hipótese, mais plausível, segundo a qual “idiota” significa, simplesmente, ‘indivíduo estúpido ou ao qual falta bom-senso’. Todavia, ainda não sabemos a identidade desses indivíduos. Eruditos são pessoas que exibem profundo conhecimento em uma ou em várias áreas do saber. A menos que todos os conhecimentos acumulados tenham uma utilidade imediata, seriam eles idiotas? Se rejeitamos esta hipótese (provavelmente, porque eruditos acumularam conhecimentos úteis, ao menos, para que alcançassem status em sua vida profissional), não encontro meios para identificar os idiotas a que se refere o autor.
Talvez ‘idiotas’ não tenha um referente determinável e funcione como mero rótulo que sinaliza para a impropriedade do raciocínio segundo o qual podemos armazenar conhecimentos inúteis à vida.
De qualquer forma, o que é preciso ficar clara é a capacidade de o leitor interagir com o autor e com o texto, por meio da formulação de hipóteses sobre os sentidos possíveis. O que eu fiz aqui, ao tentar descobrir o referente de ‘os idiotas’ e ao tentar questionar a possibilidade de armazenar conhecimentos inúteis foi uma atividade cognitivo-interacional que teve por base o texto. Eu interagi com o texto. Por isso, o leitor nunca é passivo, mas um sujeito ativo que produz um sentido (dentre os muitos possíveis), valendo-se, para tanto, de várias estratégias sociocognitivas. O leitor, ao ler um texto, está, a todo momento, produzindo hipóteses, fazendo inferências.
Finalmente, em 4, pressupõe-se o esquecimento (foi esquecido) do conhecimento ensinado, mas não aprendido. O aprendido é aquilo que foi retido na memória. Se a memória “deixa passar” algum conhecimento, é porque ele não foi, verdadeiramente, aprendido. Uma vez assumindo a possibilidade de esquecer aquilo que, um dia, foi ensinado (esse é o pressuposto), então podemos aceitar o argumento do autor segundo o qual a memória só retém o que foi, realmente, aprendido. Para tanto, o autor recorreu à imagem do escorregador de macarrão.
De tudo que foi exposto, pôde-se depreender a importância de recuperar, durante a atividade de leitura, os conteúdos implícitos, que são indispensáveis à produção de sentido. O uso adequado dos pressupostos é fundamental para a eficácia da atividade argumentativa. A pressuposição é um mecanismo argumentativo. Lembro as palavras de Fiorin (2004), novamente, das quais colhemos uma lição que não pode ser esquecida:

“A pressuposição aprisiona o leitor ou o ouvinte numa lógica criada pelo produtor do texto, porque, enquanto o posto é proposto como verdadeiro, o pressuposto é, de certa forma, imposto como verdadeiro. Ele é apresentado como algo evidente, indiscutível”.
(p. 182)
(grifo meu).