segunda-feira, 14 de novembro de 2011

"No meu coração há uma paz de angústia, e o meu sossego é feito de resignação" (Fernando Pessoa - Livro do Desassossego)



                                                         
                                      A compra


A vida está lá fora, exigindo tanto de nós, de todos que vão e vêm apressados; alguns confinados em escritórios, numa ante-sala atendendo aos que chegam. E eu, em meu quarto, com dois livros diante de mim: O Livro do desassossego, de Fernando Pessoa e a mais famosa e principal obra do filósofo francês Jean Paul Sartre, O Ser e o Nada – ensaio de Ontologia e Fenomenologia. Li algumas linhas de Pessoa e me deparei com esta que já me descentrou:

"No meu coração há uma paz de angústia, e o meu sossego é feito de resignação" (p. 44)

Contenho-me para não analisá-la, assim conservo seu encanto, sua beleza, seu angustiante significado. E o livro de Sartre, ainda não o li, evidentemente. Mas corri os olhos por algumas páginas, como se estivesse a namorá-lo... não me demorei, mas fitei uma ou outra linha... E o que experimentei? Senti-me seduzido... sim, atraído para aquelas páginas que me revelarão tanta coisa... e o que espero? Espero delas nada apreender... e é possível que eu não compreenda mesmo nada do que lerei nelas...E não me importo com isso... Os especialistas ensinam que o discurso de Sartre nesta obra é obscuro, e impenetrável aos não-especialistas... Tanto faz... Ter este livro em minhas mãos dá-me um poder (não de opressão, não de soberba, mas de espírito, de vida, uma vontade de potência, diria Nietzsche), um prazer diante do qual as palavras se rendem.
E meu espírito se alarga, se esgarça e o mundo todo parece tão distante e pequeno (eu diria insignificante)... E, assim, absorto, permaneço, anestesiado com estes livros sobre o peito... pensativo... distante... “Diante de mim, um mundo a se desvendar, um universo a ser desbravado”... palavras que me saltam  e que se abrem com sede de sentido, cheias de significação... e eu diante delas, sedento de saber, e saber para ser, e ser para saber e ser mais, e saber mais e mais... e depois volto apenas a ser.

poeminha sentimental



Sentimentalidade

Minha alma abriga
Taças transbordantes de sentimentos
E ficarão lá a boiar
Com todos os momentos
Em que permanecemos
Atados em afagos e beijos

Tome deles o gole que melhor lhe convier
Se embriague se quiser
Mas não os entorne a esmo
Deixa-os inundar sua alma
Ou prove-os, deguste-os gota a gota

Mas não ouse derramá-los no chão
As taças de minha alma são de ouro
Não se quebram e pesam
Tanto no corpo quanto no coração

(BAR)

sábado, 12 de novembro de 2011

"Ser romântico é estar grávido de um amor que o mundo quer ver abortado" (BAR)

                                 

                                        Da poesia ao ser romântico

 
Dos livros colho saberes que lançam luz sobre questões que me ocorrem na vida cotidiana, porque meu espírito não se contenta com a vida: a condição humana sempre será desconfortante a quem deseja ter o mínimo de entendimento sobre ela. Quando escrevo um poema, após lê-lo várias vezes e concluir que exprime bem a dimensão de meu sentir, cuido que fiz vir ao mundo um pedaço de mim capaz de transcender. Normalmente, o poema acaba por unir-me as duas pontas da existência: a solidão que me fecunda o espírito, desdobrando-o em versos (estado necessário à labuta do coração, pois que ele silencia o mundo, dando asas à voz do eu-lírico); e o mundo, ou a vida exterior ao “eu”, que é, a despeito de dissimulações do espírito lírico, o fim a que se destina o poema. Todavia, sempre que escrevo um poema, nego, em alguma medida, o mundo: trata-se de uma condição necessária para escrever liricamente. A poesia lírica e mundo não se toleram. Sucede diferente com a poesia de cunho social; mas mesmo aí é preciso certo grau de abstração do sujeito: o eu-lírico se distancia do mundo, para tomá-lo como objeto de reflexão poética. Assim também o eu-lírico, que pretende dar vazão a seus estados de alma, a seus sentimentos, que pretende invadir-se a si mesmo, precisa, a priori, distanciar-se, para contemplar a si mesmo. Fazer poesia é ter encontro íntimo consigo mesmo. É no movimento antonímico, a saber, de “abstrair-se” e “expandir-se”, que o eu-lírico consegue alcançar certo estado de expurgação psíquico-emocional.

Durante alguns anos – e ainda hoje, decerto, se bem que com menos intensidade -, preocupei-me com duas questões que estão inextricavelmente relacionadas, qual seja, os relacionamentos e o ser romântico. A pergunta que me fazia, no que toca a este último tema, era: O que é ser romântico na sociedade contemporânea hedonista e individualista? Vejamos. Basta que liguemos a televisão, para assistir, em algum programa de auditório, que visa a promover relacionamentos amorosos, ao apresentador perguntar a algum dos espectadores ou participantes de um quadro como Vai dar namoro, por exemplo, se ele é romântico. Em geral, a resposta é, indubitavelmente, “sim” – e não poderia deixar de sê-lo, sob pena de ele ser desprestigiado pelo público feminino (em geral, esta questão dirige-se a um homem e aqui há um aspecto interessante: a mulher é, tacitamente, tomada como um ser romântico por definição, por isso não cabe a pergunta em relação a ela; o homem (pelo menos, o da sociedade moderna), ao contrário, é estereotipado como um ser não dado a sensibilidade exacerbada; portanto, como um não-romântico). Entretanto, é uma forma ideológica de compreensão, visto que mascara o fato de, por um lado, nem todas as mulheres serem românticas; por outro lado, de haver ainda homens românticos (ou, pelo menos, que encarnem vestígios de um ser romântico).

Após o “sim” do rapaz, então, desejoso de “desencalhar” (como se costuma dizer, porque “estar “encalhado”” é motivo de vergonha, tanto para homens, quanto para mulheres, em nossa sociedade), segue um coro de interjeições e aplausos que são sinais de que os valores românticos são ainda desejados e acolhidos, em que pese ao fato de que se tenha diluído a consciência de tais valores. Aqueles sinais, de qualquer modo, representam a aprovação da platéia, mais propriamente, das mulheres, é claro. Escusando-me de fazer uma avaliação preconceituosa (no sentido de que posso fazer juízos prévios que entram em conflito com os fatos), acredito em que, apesar de toda retórica favorável ao romantismo, de que se sabe apenas nos livros de literatura (e ainda aqui é um conhecimento restrito a uma classe social privilegiada), e que aprendemos na escola, parece haver certo esvaecimento desses valores nas experiências afetivas em nossa sociedade. Refiro-me especificamente às relações entre homens e mulheres com finalidade sexual. Então, afirmo novamente: nesta esfera, o sentido de ser romântico ou foi totalmente esvaziado, ou está ralo, carece de uma profundidade. É certo que ser romântico não é assumir uma atitude; não é, definitivamente, um estado de alma. De uma pessoa não se pode dizer romântica, porque, em certas circunstâncias, dá buquês de rosas, ou registra em papéis os rabiscos de uma paixão ou de um amor. Em algum momento de nossa vida, escrevemos cartas de amor, até que a maturidade nos convença de que foi um esforço inútil do coração, decorrente de um estado primaveril de nossa existência. No entanto, agrado-me de saber que existem pessoas que, após longos anos de casamento, ainda dedicam cartas de amor ao seu cônjuge; sinal de que, pelo menos, entre aqueles que pertencem a gerações anteriores, os valores românticos ainda sobrevivem; atualmente, os casamentos sequer chegam a um mês.

Ser romântico é um movimento do espírito para a negação do mundo. É um sentir e perceber a realidade segundo os ideais sublimados na alma. É interiorizar-se e descobrir na intimidade da alma o desejo pela fuga. É sentir que o mundo incomoda e que se é estranho em si mesmo. É sublimar a beleza da alma e do corpo. É prostrar-se ao ideal de fusão, de unidade e desejá-lo ardorosamente. É nutrir um amor dirigido, primariamente, para a alma, pois que a relação sexual, para o amor romântico, significa o arrefecimento do desejo. Porque o amor romântico é, necessariamente, o amor da carência, da impossibilidade; amor que, ao desejar, preenche seu vazio e nutre, e sustenta sua fragilidade. Ser romântico é ser enamorado da solidão anímica e fazer disso uma graça sobrenatural e inefável. É buscar nos ideais sublimados o único meio de se vincular a um mundo que veio antes e ao qual, pelo nascimento, se é condenado, porque, afinal, não se nasce membro de uma sociedade, nasce-se com a predisposição à sociabilidade. O romântico autêntico é ser sociável, embora inconformado; mas é, acima de tudo, um eleitor: pois seu coração elege, no meio da multidão, a alma cuja beleza e significância preencherão o vazio, ou antes, o sopro doloroso de sua existência.

Não vou elencar, como se poderia supor, as características famigeradas do romantismo, enquanto movimento estético-literário. Não me refiro ao romantismo como escola literária particular. Refiro-me à condição de existência do romântico típico ou autêntico. Não se trata, definitivamente, como se poderia concluir, tendo em conta uma visão utilitarista, de um estilo. Ser romântico não é um estilo de vida, porque os estilos podem ser escolhidos e duram enquanto durarem certas tendências valorizadas; e, como tudo na sociedade líquida, é efêmero, líquido, muda numa velocidade espantosa, também os estilos serão tão descartáveis quanto os celulares ou qualquer outra mercadoria de consumo. Talvez, venham-me acusar de conservador, já que pareço assumir uma visão antiga do romântico, que remonta à segunda metade do século XVIII. É provável que se possa falar em “românticos modernos”, que não precisam viver e sentir como Álvares de Azevedo, Byron, por exemplo; mas devem conservar, em sua alma, pelo menos três características: idealização-sublimação, escapismo (negação do mundo) e exagero (cantado e vivido por Cazuza). Portanto, um indivíduo não é propriamente um romântico se não se define por esses três aspectos; poderá ser até cortês, galanteador e educado; mas, para ser romântico, ele terá de haver-se consigo mesmo. Se, nesse confronto, admite ser o mundo aprazível, então não é romântico; se supervaloriza os obstáculos que turvam os anseios do coração, então não é romântico; se não bebe dos aromas que há na alma da pessoa a que seu coração se inclina e se não se embriaga na beleza dela; e se ama tão só carnalmente, se é escravo da tentação do corpo; se tão-só a ele destina seu desejo, se o prazer carnal é a finalidade última de sua astúcia, então não é romântico. Se o mundo lhe é bastante, se a vida é o limite de suas potencialidades, o ventre de seus desejos, então não é romântico; porque, para o romântico, o mundo não é o bastante e a vida é apenas o berço de seus ideais de amor sublime, que se torna, não raro, o cárcere (e há que transcendê-la, de algum modo). Se suas paixões não namoram a demência, a loucura; se seus amores não lhe provocam um terremoto de emoções e sensações imperiosas; se não impregna sua alma de impetuosidade lírica; se não se arremessa ao outro, desejando a unidade sobre-humana; se não busca com o outro a unidade transcendente; se a ideia de morte não lhe acarinha a alma; se não sofre com lágrimas que afogam todo seu sentir excelso, que lhe fincam no coração caminhos de tristeza abismal; se não se deleita com a beleza que se aninha sob a complexidade da matéria lasciva; se não “enxerga numa gotícula de água toda a complexidade do oceano” (BAR), então não é romântico. Se não é uma voz sufocada num tropel, um grito ofegante num mundo que lhe é tão estranho quanto medonho, se não sucumbe a lágrimas pesadas e lancinantes derramadas por amores esmeradamente nutridos pelo coração endoidecido, não é romântico. Pois o romântico, em síntese, se define pela busca máxima e apaixonada pela unidade transcendente através da negação da imanência de sua mundaneidade (imanência no sentido de ‘situação dada e não escolhida’).

O nascimento de um romântico é sempre um sopro sofrível, já que, ao descobrir-se vivo, iniciará sua busca insana e desenfreada pelo deleite amoroso que justifique sua vida e que torne afável a morte inevitável. Como a vida lhe seja um acidente que lhe obsta a fruição dos prazeres de seus ideais sublimados, a morte, ao termo do movimento impetuoso e funesto da alma sonhadora, se lhe torna a condição mais desejada graças à qual não só poderá livrar-se das dores que lhe pungiam a alma, quando esta estava imersa na corporeidade, como também graças à qual retornará a uma essência, que está predestinada a ser obscurecida pela luz da vida.

Para o romântico, que ama com a alma e para a alma encerrada no corpo, viver neste mundo é, deveras, uma condição de angústia. Não se é romântico, em suma, se não se vê às voltas com a angústia da existência.

A bíblia é uma obra humana

                       


                            O que você precisa saber
                          A Bíblia é obra humana

Ah! Quão deleitoso é o esclarecimento! Inestimável é o valor do conhecimento. Gostaria de que meus leitores pudessem experimentar o sentimento de euforia intelectual, o regozijo, a doçura decorrente do saber! Quero compartilhar com vocês o meu contentamento e entusiasmo.
Eu vou procurar ser breve, prometo-lhes. No entanto, é necessário contar-lhes sobre algumas circunstâncias que ajudam a explicar meu entusiasmo.
Quando ainda lecionava numa escola para turmas do ensino médio, um aluno, muito aplicado e um dos poucos quietos e estudiosos que ali havia, presenteou-me com um livro pequeno, cujo título (O Homem em busca de Deus), a princípio, levou-me a acreditar que se tratava desses livros destinados a fiéis de sua igreja, cheio de doutrinação. No entanto, para a minha grata surpresa, o livro reúne estudos sobre as diversas formas de religiões no mundo, incluindo mitologia, magias, espiritismo, além do cristianismo, budismo, judaísmo, islamismo, entre outras. Mais interessado fiquei, quando me dei conta de que no limiar encontravam-se informações sobre as origens da religião, embora as teorias que buscavam explicar como surgiram as religiões sejam muito variadas e pouco críveis.
Pode parecer que, muitas vezes, eu me concentre em certos temas e os revisito, como sucede com os temas sobre religião e Deus. Todavia, a impressão não revela o fato de que minhas leituras e interesses intelectuais são bem variados e o acervo de livros que tenho em minha casa abriga estudos relativos à Linguística, à filosofia, à teologia, à sociologia, à psicanálise, à psicologia, à antropologia e à literatura.
Se me perguntarem quantos livros leio por ano, eu responderei não poder precisar o número. Leio muitos, porque eu não leio um de cada vez; leio vários, embora, é claro, não os leia completamente; porque leio capítulos de um, capítulos de outro. A maioria dos livros que tenho eu já li, parcialmente.
No ano passado, me tornei um consumidor compulsivo de livros. Comprava-os em penca. Ultimamente, porém, tenho cessado de comprá-los em grande quantidade, simplesmente porque não há mais espaço onde colocar tantos livros.
Um dos últimos livros que comprei é de Bart D. Ehrman, o mesmo autor de O problema com Deus, livro já referido em outro texto postado aqui. O livro intitula-se Evangelhos perdidos – as batalhas pela escritura e os cristianismos que não chegamos a conhecer (2008). É um pouco sobre este livro que quero lhes contar. Comecei a lê-lo hoje, e só terminei de ler a introdução, que já nos permite situar-nos nas reflexões do autor. Sugiro a leitura que, como se verá, interessará a todo aquele que não faz calar o entendimento, que não se resigna à ignorância imposta e que se vale dessa ignorância como o fez Sócrates: reconheceu-a para conhecer.
Leiamos com atenção. Imagine que tudo o que você sabe sobre a Bíblia, ou seja, todos os livros que a compõem, particularmente, os 27 livros do Novo Testamento, estivessem ali em virtude de uma série de disputas e falsificações e que outros tantos evangelhos foram rejeitados, excluídos, perdidos. Imagine que o que sabemos sobre o Cristianismo hoje poderia ser diferente e que, na verdade, há e houve muitos Cristianismos. Não há prova mais cabal de que a Bíblia é um produto humano, foi escrita por homens e seus textos exprimem apenas uma visão vitoriosa do Cristianismo “certo”.
Doravante, eu vou referir trechos que elucidam os objetivos do autor, bem como as questões com as quais ele se defrontará em sua discussão. No limiar da Introdução, escreve-nos:

“Deve ser difícil imaginar um fenômeno religioso mais diversificado do que o Cristianismo moderno. Há missionários católicos romanos em países em desenvolvimento que se devotam à pobreza voluntária pelo bem dos outros, e televangelistas que dirigem programas de doze passos para assegurar sucesso financeiro.Há presbiterianos na Nova Inglaterra e manipuladores de serpentes Apalaches. Há sacerdotes gregos ortodoxos comprometidos com o serviço litúrgico de Deus, repleto de orações, encantamentos e incenso, e pregadores fundamentalistas que vêem a liturgia da Alta Igreja anglicana como uma invenção demoníaca. (...)”
(p. 17)

O autor se pergunta se deveremos, tendo em conta essa diversidade do cristianismo moderno, falar de um ou vários cristianismos. O fato é que houve outras formas de cristianismo que não chegaram ao nosso conhecimento, conforme se pode ler abaixo:

“A maioria dessas antigas formas de Cristianismo é desconhecida no mundo atual, uma vez que acabaram sendo reformadas ou extintas. Como resultado, os textos sagrados que alguns cristãos antigos usavam para apoiar suas perspectivas religiosas vieram a ser proscritos, destruídos ou esquecidos – perdidos, de uma forma ou de outra. Muitos desses textos diziam-se escritos pelos seguidores mais próximos de Jesus. Seus opositores declaravam que eles haviam sido falsificados”.
(p. 18)

No fim da página 18, o autor iniciará a subseção intitulada de As variedades do Cristianismo antigo, com vistas a nos mostrar a variedade de crenças que existia entre os cristãos dos séculos II e III. Leiamos o trecho em que ele nos conta sobre esse fato:

“Nos séculos II e III, havia cristãos que acreditavam que Deus criara o mundo. Entretanto, outros acreditavam que esse mundo tinha sido criado por uma divindade subordinada, ignorante (Por que outro motivo seria o mundo tão cheio de miséria e dificuldade?) E ainda outros cristãos pensavam que era pior do que isso, que este mundo era um erro cósmico criado por uma divindade má como um lugar de prisão, para capturar humanos e submetê-los à dor e ao sofrimento”
(grifo meu)

Na página 19, o autor prossegue, contando-nos:

“Nos séculos II e III, havia cristãos que acreditavam que a Escritura Judaica (o “Velho Testamento” cristão) fora inspirada pelo único e verdadeiro Deus. Outros acreditavam que fora inspirada pelo Deus dos judeus, que não era o Deus único e verdadeiro. Outros acreditaram que fora inspirada por uma deidade maligna. Outros, ainda, acreditavam que não fora inspirada”.

Ehrman continuará seu relato, mostrando-nos que as crenças relativas à natureza de Jesus também variavam. Houve aqueles que acreditavam que Jesus era humano e divino; houve, por outro lado, os que acreditavam que ele era apenas divino e não humano; houve ainda aqueles que acreditavam que Jesus era um homem tal como qualquer outro, mas que teria sido escolhido por Deus para filho. Segundo essa crença, Jesus não era divino por si mesmo.
Naqueles séculos, também houve cristãos que acreditaram que a morte de Jesus trouxe a salvação do mundo; outros, porém, acreditaram que sua morte não tinha nada que ver com salvação. Finalmente, houve alguns mais que acreditavam que Jesus nunca morrera.
Agora, com a palavra, o autor:

“Como poderiam algumas dessas visões até mesmo ser consideradas cristãs? Ou, colocando a questão de forma diferente, como as pessoas que se consideravam cristãs poderiam defender tais crenças? Por que não consultavam suas Escrituras para ver que não eram 365 deuses, ou que o verdadeiro Deus havia criado o mundo, ou que Jesus havia morrido? Por que elas simplesmente não liam o Novo Testamento?”
(p. 19)

É necessário um esclarecimento. Naquela época, houve pessoas que acreditavam que o número de deuses era de 365. Também houve outros que declaravam haver dois; e outros tantos, que havia trinta.
O autor responderá à questão com que encerra sua exposição acima referida, conforme se pode ler em:

É porque não havia Novo Testamento. Com certeza, os livros que foram finalmente reunidos no Novo Testamento haviam sido escritos em torno do século II, mas eles não tinham sido ainda agrupados em um cânone autorizado e amplamente reconhecido de Escritura. E havia também outros livros tidos como autorias igualmente impressionantes – escritos pelos apóstolos terrenos de Jesus”.
(p. 19)
(grifo meu)

A subseção seguinte será destinada à apresentação dos chamados Evangelhos apócrifos, ou seja, os Evangelhos que não passaram pelo crivo da igreja. Muitos se perderam. Leiamos o que o autor – uma autoridade nos estudos sobre o Cristianismo e a Igreja primitiva – tem a nos ensinar:

“Os Evangelhos que vieram a ser incluídos no Novo Testamento foram todos escritos anonimamente; somente algum tempo depois é que foram chamados pelos nomes de seus reputados autores, Mateus, Marcos, Lucas e João. Mas na época em que esses nomes estavam sendo associados aos Evangelhos, outros livros da mesma espécie tornavam-se disponíveis, textos sagrados que eram lidos e reverenciados por diferentes grupos cristãos em todo o mundo: um Evangelho, por exemplo, que declarava ter sido escrito pelo discípulo mais próximo de Jesus, Simão Pedro; um outro de seu apóstolo Filipe; um Evangelho supostamente escrito pela discípula de Jesus, Maria Madalena; um outro do próprio irmão gêmeo de Jesus, Dídimo Judas Tomé”
(p. 20)

O que se vê é que o Novo Testamento não é senão produto de escolhas, exclusões, falsificações deliberadamente feitas por escribas da época. Leiamos mais um trecho sobre a “montagem da Bíblia”:

“Quando o Novo Testamento foi finalmente reunido, incluía Atos, um relato das atividades dos discípulos após a morte de Jesus. Entretanto, havia outros Atos escritos nos primeiros anos da igreja: os Atos de Pedro e de João, os Atos de Paulo, os Atos da companheira de Paulo, Teda, e outros. Por que estes não foram incluídos como parte da Escritura?
(ibi.id.)
(grifo meu)

Não há certeza de que fora realmente Paulo que escreveu as epístolas que lhe são atribuídas. Os estudiosos ainda discutem a autenticidade da autoria. Interessa-nos saber também que houve outras cartas enviadas por “Paulo” (ou quem quer que as tenha enviado) ao filósofo Sêneca e que não foram incluídas nas Escrituras.
Também o livro do Apocalipse inclui apenas os textos escritos por alguém chamado João, mas não inclui os supostamente escritos por Simão Pedro (p. 21).  Por que as autoridades eclesiásticas não incluíram os de Pedro no cânone? Conclui o autor, no tocante à constituição do que hoje sabemos ser a Bíblia:

“Hoje sabemos que em alguma época, em algum lugar, todos esses livros não-canônicos, assim como muitos outros, foram reverenciados como sagrados, inspirados e escriturais. Alguns deles nós temos hoje; outros, conhecemos apenas pelo nome. Somente 27 livros cristãos primitivos foram enfim incluídos no cânone, copiados por escribas através dos tempos, finalmente traduzidos para o inglês [e português], e agora estão nas estantes de praticamente todos os lares dos Estados Unidos [e do Brasil]. Outros livros vieram a ser rejeitados, escarnecidos, amaldiçoados, atacados, queimados, completamente esquecidos – perdidos”.
(p. 21)
(grifo meu)

A subseção que se seguirá encerra uma breve avaliação sobre as consequências de todo esse processo histórico de exclusão, reescritura e incorporação de textos sagrados. O autor observa que houve uma perda: a grande diversidade do Cristianismo dos primeiros séculos. O ganho diz respeito à confiança no Cristianismo “certo”. O que aprendemos é que o Cristianismo e a Bíblia, que o encerra como doutrina, foram produtos de conflitos, disputas entre grupos. Leiamos o que se segue:

“E então como um golpe de misericórdia, esse grupo vitorioso reescreveu a história da controvérsia, fazendo parecer que não tinha havido qualquer conflito, declarando que suas próprias visões sempre tinham sido aquelas da maioria dos cristãos em todos os tempos, desde a época de Jesus e seus apóstolos, e que sua perspectiva, de fato, sempre tinha sido “ortodoxa” (isto é, a “crença correta”), com seus oponentes no conflito, utilizando os outros textos escriturais, sempre representando pequenos grupos dissidentes, engajados em iludir pessoas com “heresias” (cujo significado é, literalmente, “escolha”; um herege é alguém que deliberadamente escolhe não acreditar nas coisas certas”).
(p. 22)

Eu sou, então, um herege. Ainda hoje os homens disputam, pelejam para saber quem está mais iludido, se os cristãos ortodoxos, os católicos, os protestantes, etc.
Finalmente, o autor nos lança a pergunta:

“E se tivesse sido diferente? E se outra forma de Cristianismo tivesse se tornado a dominante, em vez da que venceu?”
(p. 23)

E prosseguirá, na página seguinte:

“Antecipando essas discussões, posso destacar que, se alguma outra forma do Cristianismo tivesse vencido as primeiras batalhas pelo domínio, as conhecidas doutrinas do Cristianismo talvez jamais tivessem tornado a crença “padrão” de milhões de pessoas, inclusive a crença de que há um Deus, de que ele é criador, de que Cristo, seu filho é tanto humano quanto divino. A doutrina da Trindade poderia jamais ter se desenvolvido. Os credos ainda professados nas igrejas de hoje poderiam jamais ter sido inventados. O Novo Testamento, como uma coleção de livros sagrados, talvez jamais tivesse chegado a existir. Ou poderia ter chegado a existir com um conjunto totalmente diferente de livros, inclusive a Epístola de Barnabé em vez da Epístola de Tiago, ou o Apocalipse de Pedro em vez do Apocalipse de João. Se algum outro grupo tivesse vencido; se um grupo diferente tivesse saído vencedor, os cristãos poderiam ter tido apenas o Velho Testamento (o qual não teria sido chamado de “Velho” Testamento, uma vez que não teria havido o “Novo”)
(p. 24)

Acrescenta que os primeiros conflitos cristãos foram determinantes não só da constituição interna da religião, como também trouxe efeitos vitais para a própria história da civilização ocidental. Não custa lembrar que a cultura ocidental formou-se a partir da confluência de duas outras culturas: a greco-latina e a judaico-cristã.

“É possível imaginar que, se a forma do Cristianismo que se estabeleceu como dominante não o tivesse feito, o Cristianismo nunca teria se tornado a principal religião do mundo dentro do Império Romano. Se isso tivesse acontecido, o império talvez jamais adotasse o Cristianismo como sua crença oficial, e ele nunca teria se tornado a religião dominante na Idade Média européia, chegando até o Renascimento, a Reforma e os dias de hoje”
(p. 24)

Fico tentado a lançar uma observação impregnada de uma ironia ateísta. No entanto, meu propósito foi trazer à consciência dos meus leitores o fato incontestável de que a Bíblia é obra dos homens. Além disso, deve-se ter em conta que os relatos dos evangelhos foram produzidos muitos anos depois da morte de Jesus. Desconfiemos, portanto, de sua veracidade e fidelidade aos acontecimentos relatados; além disso, não há acordo entre os evangelistas sobre vários acontecimentos da vida de Jesus, como, por exemplo, o lugar onde teria nascido. Insisto: religiões são produtos culturais, portanto, obras humanas e não de deuses; esses são entidades imaginárias, produzidas pelos homens.
Quem poderá garantir que o que está na Bíblia é realmente testemunho dos prodígios de Deus, que se revelava através de Jesus? Ficções, mitos, crendices... Tudo isso está na Bíblia.
Mas ainda me inquieto com a ideia de que Deus bem que poderia pôr fim às disputas, não? Poderia ter ele bradado quem estava, afinal de contas, com a razão. Estranhamente se manteve em silencio durante todos esses séculos!

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

"O amor e a gratidão andam juntos" (Sponville)

 
O amor é frágil

“Hoje estou feliz ao lado de uma pessoa que me quer bem. Estou feliz mesmo ciente de que a felicidade é episódica e tão frágil, tão instável. Um dia, talvez, essa pessoa me abandone. Mas é assim: as pessoas chegam e vão, e vão e vêm. Algumas deixam um pouco de si e nós nos agarramos nesse resquício; outras se vão sem deixar rastros em nosso coração; algumas lembranças que desejamos afugentar de nossa alma (porque nos pesam e nos impedem de prosseguir); sentimentos quebradiços que se esfarelam e que insistimos em varrer para os cantinhos da alma. Mas não desistimos dessa felicidade, nascida dos encontros furtivos, do instante em que nos olhamos um no outro, e nossos corações, repletos, parecem mergulhados um no outro; e nos beijamos até não ter mais fôlego; e nos sentimos como se quiséssemos penetrar um o corpo do outro; e o desejo ocupando todo o espaço que nossos corpos não preenchem. Mas até mesmo a volúpia, o êxtase do encontro passa, aliás como a vida, também o amor é frágil.”

(BAR)

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

"Se Deus queria que as pessoas acreditassem nele, porque então ele inventou a lógica" (David Feherty)

                                                      

                                                Arando o terreno


Sinto-me compelido a encetar este texto agradecendo a todos os meus seguidores, em especial, àqueles que me parecem mais assíduos e dedicados, enquanto leitores de minhas flores verbais (algumas das quais um tanto espinhosas), a saber, Zélia, Cláudia, Rose e Gizelda. Essas pessoas, embora distem de mim a muitos quilômetros, me parecem muito próximas afetiva e intelectualmente. A elas devo o contentamento da partilha de pensamentos e sentimentos verbalizados com lucidez, tolerância e desprovidos de qualquer forma de preconceito ou pré-conceito. As experiências verbais que compartilhamos foram fundamentais para que este blog, nascido há pouco mais de um ano, alcançasse a marca surpreendente de 9.028 visualizações (já superadas). Agradeço-lhes as inúmeras vezes em que se dispuseram a revisitar as páginas de minha alma. 
Tendo já manifestado meu agradecimento, passo à apresentação das razões pelas quais trago a lume este texto. Peço-lhe, leitor, a sua paciência, porquanto terei de fazer alguns rodeios, antes de explicitar a minha verdadeira intenção ao compô-lo.
Quando decidi criar um blog, não tinha a intenção de angariar muitos leitores, não visava ao sucesso como blogueiro. Na verdade, o blog seria um veículo, um meio, um instrumento de divulgação de meus escritos – escritos que, dantes, ficaram reservados a uma gaveta ou armazenados em arquivos no computador. O blog surgia como um meio de eu me desafogar de minha solidão e de atenuar a minha depressão. Portanto, se, por um lado, não intentava alcançar algum status com a divulgação do blog; por outro lado, o blog resultava de uma necessidade vital: a de me fazer notar. Com o blog, rompi a espessa casca da depressão, abri clarões de luz na densa escuridão das noites de minha vida, que, então, havia sido lançada sobre mim pela solidão. Este blog sempre foi uma forma de expressão da liberdade de minha alma. Um grito intelectual, lírico e verbal de revolta. Hoje, sou um revoltado metafísico. Mas revolta não se confunde com disposição para a agressividade. Minha revolta é revolta intelectual, espiritual, emocional. Revolta é perturbar o status quo, o estabelecido e tudo que é consensualmente aceito sem qualquer questionamento. Revolta é a expressão da não-conformação, é a presença da voz de um inconformado vivendo numa sociedade de conformados e resignados.
O significado deste blog em minha vida – significado que, muita vez, questionei, por saber se tratar de um suporte tão passível de vulgarização e de absorção de trivialidades (lembro que o blog, inicialmente, era um gênero textual- para alguns, um suporte de gêneros textuais – definido como um diário eletrônico) pode ser compreendido na consideração da densidade lírica de meus textos, da sua diversidade temática e, sobretudo, da natureza das questões com as quais eu, através deles, me defronto. A leitura filosófica, decerto, contribuiu demais para refinar a qualidade de meus textos, para dar-lhes mais profundidade e consistência, de sorte que eles puderam cumprir satisfatoriamente, algumas vezes, os objetivos a que eram destinados. Não sou formado em filosofia e reconheço ser incapaz de me aprofundar no pensamento de muitos filósofos; mas sou um amante inveterado da linguagem, dos livros, da cultura livresca e, agora, da filosofia. Se tudo em que trabalhamos o fizermos com amor e paixão, temos grandes chances de fazer o melhor, pois que esse amor e paixão nos motivarão a proceder assim.
Não obstante a diversidade temática de meus textos, alguns temas são recorrentes. O AMOR está entre esses temas. Experienciá-lo de modo distinto e singular sempre foi uma busca obstinada a que me lancei, ao compor os meus textos. Por isso, lancei-me à empresa intelectual de discussão deste tema – uma discussão obstinada. Denunciei os modos vulgares de experiência amorosa, a liquidez dos vínculos afetivos humanos na modernidade líquida, a banalização do sexo e a reificação dos homens pelo imperativo do mercado do orgasmo.
Também foi constante, inicialmente, a expressão de minha religiosidade. Como disse alhures, nasci numa família de católicos. Além do batismo, recebi o sacramento da comunhão e da crisma. Por um longo período de minha vida, fui um frequentador assíduo das missas dominicais; minha fé em Jesus era, até então, inabalável; eu admirava aquele homem cuja inteligência me fascinava (de certo modo, ainda admiro esse personagem da literatura bíblica, mas não o considero dotado de alguma natureza divina; ele foi um homem, talvez um dos maiores homens da História, já que o que sabemos dele advém de outras mãos que escreveram muitos anos depois de sua passagem aqui na Terra).
Malgrado minha religiosidade, que me fora uma herança da primeira infância, cultivada, especialmente, no limiar da fase adulta, eu nunca aderi aos dogmas de minha religião. Nunca aceitei a proibição a pessoas divorciadas de receber a hóstia; sempre rejeitei a obsessão pela confissão (a confissão, no catolicismo, é a prática mais evidente de controle da vida psíquica dos seus seguidores; o padre desempenha aí o papel de um ditador espiritual, ele tem de estar a par de tudo que passa pela nossa mente; nada pode escapar-lhe; é claro que, dependendo do grau de comprometimento do fiel e de seu embotamento intelectual, ele poderá omitir pensamentos, sem temer a punição divina, consequência do “pecado”).
O conservadorismo das religiões, de um modo geral, sempre me incomodou. A estupidez e a ignorância eclesiástica em face das questões mais importantes da existência humana também estavam entre as coisas que me desagradavam. Durante um longo período, abandonei o hábito de ir à igreja (e reconheci quão entediante é assistir a uma missa!), mas mantive-me devoto à prática de oração e de conversação íntima com alguma “autoridade” que acreditava transcendente.
Sucedeu que minha maturidade intelectual e o convívio aturado com os livros e, consequentemente, o aumento de minha cultura livresca tornaram-se incompatíveis com a atitude de submissão intelectual, de aviltamento racional requerida pela religião. Percebi que, para seguir uma religião, era preciso abster-se de questionamento; basta ter sem pretender saber. Basta aceitar, sem querer entender. Quanto mais se procura entender tanto mais contradições, desvios racionais, despautérios e erros avultam do discurso religioso. Quanto mais se estuda a Bíblia tanto mais se apercebe de sua natureza humana. Mas a religião quer-nos fazer crer que fora um livro inspirado por Deus. Vá à fonte e constate por si mesmo, leitor, as contradições e as histórias monstruosas relatadas nos livros hebraicos. Tente investigar o que os autores bíblicos dizem sobre as razões do sofrimento no mundo. Ou leia o livro O problema com Deus, do qual falarei mais adiante.
Como eu reconheça o AMOR e o CONHECIMENTO como os dois maiores valores da vida humana, é claro que não poderia resignar-me à submissão de meu intelecto. Se ainda dependêssemos de curandeiros para nos livrar de nossas doenças, creio que grande parte da humanidade estaria extinta. Disso não se segue que eu acredite ser a ciência infalível; ao contrário do papa, a quem se outorga a infabilidade, em virtude de se cuidar “o primeiro ministro de Deus”, a ciência não reivindica inspiração divina; ela é feita por homens curiosos, dedicados ao empreendimento racional e experimental. A ciência lança os homens ao mundo, leva-os a confrontá-lo, a investigá-lo, a entendê-lo; ao contrário, a religião os lança ao imaginário, à alienação, pela criação de um universo fantasioso, transcendente e delirante. A ciência é produto da disposição humana para o conhecimento, resulta de sua curiosidade peculiar, porque só para os seres humanos a realidade constitui um problema. E tudo que constitui ‘problema’ deve ser pensado, discutido, examinado e compreendido.
Então, um dia, me permiti ler o que escreveram filósofos e estudiosos ateus. Cuidei que seria interessante saber o que eles tinham a dizer. Cuidei que essa atitude era nobre, admirável. Ora, eu admiro as pessoas que se dispõem a abandonar um dado conjunto de opiniões e crenças, caso se convençam de que esse conjunto não serve mais para explicar os fatos com os quais elas se vêem confrontadas. Só podemos abandonar nossas crenças mais arraigadas, incutidas em nós por força de um longo processo formativo de adestramento espiritual e cultural, se nos dispusermos ao confronto com o mundo, com a existência mesma dos homens. Abandonar uma religião exige de nós uma abertura para o mundo, uma sensibilidade mais aguçada para com as misérias deste mundo, para o absurdo constitutivo desta existência espiritual-material. É que a religião nos confina num universo de rituais e adestramento intelectual que nos aliena do mundo; na prática religiosa, buscamos o transcendente (o que está além deste mundo); fechamos os olhos da alma para a grande quantidade de sofrimento que grassa neste mundo e nos contentamos em dizer, com desonestidade (a meu ver), “é a vontade de Deus” (?).
E já que o peso maior recai sobre a incapacidade de a religião dar uma resposta satisfatória à pergunta: se Deus existe, por que há tanto sofrimento no mundo?, e já que esse foi o motivo determinante (embora não o único) para que eu assumisse meu ateísmo, conforme se verá na leitura de outros três textos seguintes, darei a saber ao leitor o que nos diz um dos maiores especialistas nos estudos bíblicos do mundo.  O nome dele é Bart D. Ehrman, “uma autoridade nos estudos das origens do Cristianismo e da vida de Jesus Cristo”, e autor do livro O problema com Deus (2008). Ele é também Ph.D. em estudos do Novo Testamento. Neste livro, o autor investiga as respostas que a Bíblia dá ao sofrimento, para nos levar a ver as respostas que ela não dá a ele. Para o autor, as respostas da Bíblia são sempre insatisfatórias (e eu acrescentaria: perniciosas).
Interessa-nos a passagem em que o autor nos revela ter sido pastor e, portanto, um religioso devoto e praticante. Vejamos:

“(...) fui pastor de jovens de uma igreja evangélica. Quando me formei no seminário, fui convidado a assumir o púlpito da igreja batista enquanto eles procuravam um ministro em tempo integral. Assim, durante um ano fui pastor da igreja batista de Princeton, pregando nas manhãs de domingo, conduzindo grupos de oração e de estudo da Bíblia, visitando doentes no hospital e cumprindo meus deveres pastorais para com a comunidade”.
(p. 12)

Mais adiante, o autor vai nos revelar as razões pelas quais ele perdeu sua fé. Embora observe que os problemas encontrados na Bíblia, à medida que a estudava a fundo, não tenham sido o motivo principal do abandono de sua fé, conta-nos ele:

“(...) por uma série de razões que logo apresentarei, comecei a perder minha fé. Eu agora a perdi inteiramente. Não vou mais à igreja, não acredito mais, não mais me considero um cristão. O assunto deste livro é o porquê. (...) minha forte ligação com a Bíblia começou a desaparecer quanto mais a estudava. Comecei a perceber que em vez de uma revelação infalível de Deus, inspirada por suas próprias palavras (a visão que tinha no Moody Bible Institute), a Bíblia era um livro muito humano, com todas as marcas de que saíra de mãos humanas: discrepâncias, contradições, erros e pontos de vista diferentes de diferentes autores vivendo em épocas diferentes em diferentes países, escrevendo por diferentes motivos para diferentes públicos com diferentes necessidades. Mas não foram os problemas da Bíblia que me fizeram perder a fé.
(id. ibid.)
(grifo meu)

Ele nos dirá que as suas crenças evangélicas não resistiam ao “escrutínio crítico”, ou seja, quanto mais lia a Bíblia criticamente, menos religioso ficava. É interessante ver que o autor revela ter sido esse abandono bastante inquietante, conforme se lê abaixo:

“Finalmente, porém, me senti compelido a abandonar completamente o cristianismo. Isso não foi fácil. Pelo contrário, eu fui embora esperneando, querendo desesperadamente me aferrar à fé que conhecia desde a infância e da qual me tornara íntimo a partir da adolescência. Mas eu tinha chegado a um ponto em que não podia mais acreditar. É uma história muito longa, mas a versão reduzida é a seguinte (...)”
(p. 13)

A versão reduzida a que se refere o autor é então declarada nos seguintes termos:

“eu me dei conta de que não conseguia mais conciliar as alegações de fé com os fatos da vida. Em especial, não conseguia mais explicar como pode haver um Deus bom e todo-poderoso ativamente envolvido com este mundo, considerando-se o atual estado de coisas. Para muitas pessoas que habitam este planeta, a vida é uma cloaca de infelicidade e sofrimento. Eu cheguei a um ponto em que simplesmente não podia acreditar que há um Senhor bom e bem intencionado encarregado do mundo. Para mim, o problema do sofrimento se tornou o problema da fé”.
(id. ibid.)
(grifo meu)

Vale reiterar: é o problema do sofrimento que causa um grandioso abalo no alicerce da fé. Ainda hoje, nenhum filósofo, nenhum teólogo, nenhum religioso foi capaz de dar uma solução para este problema, de modo que sustentar a crença na existência de um ser que pode tudo (um ser onipotente) e que é incapaz de atenuar o sofrimento de milhares de pessoas em todo o mundo é, verdadeiramente, uma atitude desonesta. Esse problema foi brilhantemente desenvolvido no dilema apresentado por um filósofo grego (cujo nome me olvida agora). Esse dilema se expressa mais ou menos assim: Deus quer evitar o mal, mas não consegue, então ele é impotente; Deus pode evitar o mal, mas não o faz, então ele não é bom. Os dois raciocínios assim expressos contrariam a crença na existência de um Deus que é onipotente e, ao mesmo tempo, benevolente. A imagem de Deus, produto de uma construção discursiva deficiente, entra em conflito com os fatos da vida. E essa verdade se torna mais irreprochável, se considerarmos o fato de que estamos pensando a relação entre um ser criado pela imaginação, já que não é acessível empiricamente, e os fatos da vida, cuja concretude é inegável. Ou será que há alguém em sã consciência que nega a existência do mal e do sofrimento neste mundo?
Quero ainda referir duas passagens que, se lidas sem o peso de nossas crenças e opiniões religiosas enrijecidas em nossa consciência, mostrarão quão cegos e egoístas para o mundo ficamos no momento em que assumimos um compromisso com a crença em Deus. A primeira delas é um testemunho honesto do autor:

“(...) chegou um momento em minha vida em que descobri que simplesmente não podia mais agradecer a Deus por minha comida. E a ironia é que foi porque me dei conta (ou, pelo menos, passei a pensar) de que se estava agradecendo a Deus por me dar meu sustento, e reconhecendo que era alimentado não por causa de meus próprios esforços mas por causa de seu ato de generosidade para comigo isso implicava que eu estava dizendo algo sobre aqueles que não têm comida. Se tenho comida porque Deus a deu a mim, então outros não têm comida porque Deus escolheu não dar a eles? Ao agradecer, eu na verdade não estaria acusando Deus de negligência ou favoritismo? Se o que eu tenho é porque ele me deu, e quanto aos que estão morrendo de fome? Eu certamente não sou tão especial aos olhos do Todo-poderoso”.
(p. 116)

Ora, esse reconhecimento honesto do autor é suficiente para validar a ideia de que, para seguir uma religião, para acreditar na providência de um ser todo-poderoso, é preciso fechar os olhos para todo o sofrimento e todas as privações que acometem uma grande massa de pessoas ao redor do mundo e voltá-los para o nosso próprio umbigo. A justiça e bondade de Deus não deveriam ser extensivas a todas as pessoas que sofrem e são vítimas de injustiça? É certo que uns sejam privilegiados por Deus e outros não?
É curioso o fato de que o autor diz-nos ser agnóstico. Pelo menos até onde li (pois não terminei de ler o livro ainda), ele não admite ser ateu e nos revela: “eu não “sei” se existe um Deus; mas acho que se houver um, ele certamente não é aquele proclamado pela tradição judaico-cristã, aquele poderosa e ativamente envolvido com este mundo” (p. 13).
Outra passagem muito intrigante é a que se segue, em que nos conta sobre a religiosidade de sua esposa e sobre o desinteresse de pessoas inteligentes pelas questões mais proeminentes da vida:

“Hoje só vou à igreja em raras oportunidades, normalmente quando minha esposa, Sarah, insiste muito. Sarah é uma intelectual brilhante – destacada professora de literatura inglesa medieval na Universidade Duke – e cristã praticante, participando ativamente da igreja episcopal. Para ela, os problemas do sofrimento com os quais eu luto não são problemas. É engraçado como pessoas inteligentes e bem-intencionadas podem ver as coisas de formas tão distintas, mesmo nas questões mais fundamentais e importantes da vida”.
(id. ibid.)
(grifo meu)


Essa breve e superficial visita à obra de Ehrman, cuja leitura recomendo a todo aquele que resiste ao adestramento espiritual da religião, foi profícua, na medida em que fez ver ao leitor que os mais brilhantes propagadores das crenças religiosas podem recusar-se a prosseguir em seu trabalho e abandonar seus hábitos de doutrinação. Até mesmo os que, um dia, aferraram-se a um sistema ideológico amparada por crenças numa dimensão sagrada transcendente, podem dar voz à razão, dar ouvidos ao bom-senso. Isso me encoraja a assumir publicamente meu ateísmo. A assunção deste ateísmo não tem, contudo, pretensões militantes. É bem verdade que, para alguns autores, é urgente que se faça notar um ateísmo militante. Alguns, como Richard Dawkins, um dos mais renomados cientistas do mundo na atualidade, podem ser incluídos na classe dos ateus militantes, que participam de conferências internacionais e divulgam suas ideias ateístas a um grande público em programas de rádio e televisão.
Não cabe, ainda, discutir se o mundo seria menos pior sem religião, mas devemos reconhecer que muitas atrocidades poderiam ter sido evitadas, se os homens não se valessem de suas crenças religiosas para perpetrá-las e justificá-las. Em nome da religião, muitos homens assassinam, guerreiam, lançam bombas, destroem cidades, comunidades inteiras de inocentes, etc. Em nome da religião, moças são privadas do prazer sexual, quando tem seu clitóris submetido a infibulação; e meninos sofrem o constrangimento da circuncisão. Isso é prática corrente, ainda hoje, no islamismo e no judaísmo ortodoxo.
O terreno está, pois, assentado. Os textos que se seguem tratarão da temática do ateísmo. Expressarão uma nova estação espiritual, emocional e intelectual em minha vida. A crença em Deus pesava-me nas costas, assolava-me a consciência, agredia-me a alma. A crença em Deus abriu-me um abismo: um abismo entre mim e o mundo, entre mim e esta vida orgânica. Há algum tempo estabeleci a reconciliação entre mim e esta vida, com todas as suas tragédias e toda a sua aspereza. Descobri, finalmente, que o AMOR não vem de Deus – que é uma fantasia neurótica-,  mas das pessoas de carne e osso que nos amparam, que cuidam de nós, que nos alimentam, nos vestem, nos educam, nos ensinam. Esse AMOR vem de nossos entes queridos (pais, avós, irmãos, tios) e dos amigos verdadeiros. Vem da mulher ou homem que amamos e que queremos para nossa(o) companheira(o) e amante por toda a vida! Esse AMOR vem da generosidade, da caridade, do altruísmo, da abnegação, da filantropia, da solidariedade de muitas pessoas que dedicam suas vidas à prática do Bem comum. Esse AMOR vem daqueles que, mesmo não podendo assistir os que mais necessitam, não prejudicam, não maltratam, não praticam maldade. O AMOR vem daqueles que negam o mal, o rejeitam, o abominam e valorizam a inocência, a candura, a beleza e a bondade virgem que se percebe na alma de um bebê. O AMOR vem daqueles que acreditam que o CONHECIMENTO é um bem muito valioso e que merece ser transmitido e perseguido. O AMOR está, em suma, encarnado, corporificado; é imanente a este mundo, embora aspire ao transcendente, à eternidade, embora não se confine na matéria e almeje sempre as infinitas dimensões da alma, embora trilhe os longos caminhos que nos levarão a desvendar (ou não?) o Grande Mistério da Vida. Até lá, que o AMOR seja nossa inspiração e conforto, seja nosso amparo e maior riqueza, e que o CONHECIMENTO nos seja a luz, a bússola que nos governa a alma, que nos faça capazes de ver para além do véu de nossa ignorância.

"Quando o primeiro espertalhão encontrou o primeiro imbecil, nasceu o primeiro deus." (Millor Fernandes)

                     Ser ateu


Certa vez, numa conversa on-line com uma amiga distante, ocorreu-nos a ideia de que haveria alguma ligação necessária entre ser graduado e ser agnóstico ou ateu. A razão para tal crença é simples: quanto mais instruídos ficamos tanto menos dispostos a aceitar passiva e resignadamente os abusos intelectuais da religião. No entanto, em conversa recente com alguns professores, pude me certificar de que isso não é verdade. O assunto religião e Deus ou é contornado ou não é tratado com seriedade. Na verdade, os professores sequer se preocupam em refletir sobre esse tema; talvez, porque tenham coisas mais importantes com que se ocupar, no que estou de acordo. Todavia, não pude deixar de notar que eles simplesmente se recusam a ver para além de sua herança religiosa.
Este texto que lhes escrevo, leitores, tem um caráter confessional e deve parecer-lhes um exame pessoal aberto, não-tendencioso e honesto, produzido por alguém cuja sensibilidade, entusiasmo e amor exorbitam as medidas da alma.
Começarei explicando por que assumo o ateísmo. Em primeiro lugar, em matéria de pensamento ou de intelectualidade, penso ser uma virtude abrir mão de nossas crenças e opiniões, caso sejamos convencidos, mediante um discurso consistente e embasado em argumentos racionais, de que tais crenças e opiniões são insatisfatórias para explicar um dado estado-de-coisas. É o que ocorre no domínio das ciências.  Acolher o ateísmo é dar ouvidos à inteligência, à razão e inclinar o coração à dignidade humana. É claro que, para assumir o ateísmo, temos de nos confrontar com alguma forma de religião ou crendices ao longo da vida, a menos que tenhamos nascido em países como Dinamarca, Suécia e Japão, cuja taxa de ateus é, em comparação ao resto do globo terrestre, superior. Mas lembro, de passagem, que todo bebê é ateu... nascemos ateus. 
Em comparação com a quantidade de pessoas que seguem uma religião ou se dizem religiosas, os ateus é uma minoria irrisória. Nunca dantes me dei conta de como nós, brasileiros, usamos a palavra Deus e evidenciamos nossas inclinações ao divino em nossas práticas discursivas cotidianas. É claro, dirá o leitor, você nasceu e vive, senão no maior, num dos maiores países religiosos do mundo (mais precisamente católicos). E cabe aqui um esclarecimento desde já: ainda me surpreendo utilizando expressões como “Deus me livre!”, “Meu Deus!”, “Deus que me perdoe!”, etc. Mas isso não depõe contra mim, já que há uma explicação adequada cultural e linguisticamente: nossa língua portuguesa está repleta de expressões em que se acha a palavra “Deus”, bem como de outras entidades religiosas (santos), simplesmente porque nossa cultura se formou predominantemente pelo pensamento e valores desenvolvidos e disseminados pelo cristianismo. Certamente, há exemplos de expressões análogas em outras línguas ocidentais, já que a cultura ocidental se formou (não só) pela influência judaico-cristã. No entanto, a palavra Deus, para mim, está esvaziada de sentido transcendente; designa pura e simplesmente uma ideia oriunda de nossa imaginação e, de certo modo, de nosso entorpecimento racional.
Em segundo lugar, a assunção de meu ateísmo, ao contrário do que sucede com os religiosos, em geral, não me outorga a autoridade de levar ninguém a acolher os argumentos ateus, muito embora não se possa simplesmente negar-lhes o peso. Podemos preferir continuar apegados às nossas crenças absurdas e viver em conflito e com inquietações (ou simplesmente indiferentes à nossa tragédia), mas não podemos, se nos dermos ao trabalho de pensar reflexivamente e de iluminar nossa alma com a lucidez da razão, perceber a coerência e consistência dos argumentos.
Na vida prática, nada muda; apenas minha vida interior se desanuviou. Tornei-me mais sossegado espiritualmente e mais conciliado com o humano em mim. Minha sensibilidade desmedida e exacerbada encontra inspiração nesta vida orgânico-material, mas também espiritual (porque sempre inclinada ao Bem e ao AMOR), não mais numa vida transcendente (ainda que eu conserve uma esperança na sobrevivência do espírito e na reencarnação). E não há contradição aí: os budistas creem na reencarnação sem que precisem acreditar na existência de alguma divindade. Isso, contudo, é matéria para outro texto. Escuso-me de me alongar nesse tocante.
Eu ouso dizer que, ao assumir publicamente meu ateísmo, torno-me uma pessoa ainda mais sensível e um pouco menos egocêntrica e egoísta. Percebi que, para ser religioso, para seguir algum sistema doutrinário religioso, devemos sufocar nossa sensibilidade por sob o peso de nosso egoísmo. Explico-me: é que eu me dei conta de que os religiosos agradecem a Deus, se alguma coisa de pior não lhes aconteceu (por exemplo, caso tenham se acidentado, ou acometido de alguma enfermidade, ou sido vítima da maldade humana, etc.), mas sequer se preocupam com o fato de que, em algum outro lugar, uma pessoa ficou paraplégica, ou está padecendo de câncer, ou foi vitimada por um projétil numa tentativa de assalto.
Após o massacre na escola de Realengo, o arcebispo decidiu celebrar uma missa, para confortar os inconsoláveis. Não me oponho à celebração, é claro; mas me pergunto até quando as autoridades religiosas continuarão a fechar os olhos para a inação de Deus, para o seu completo silêncio? Serei ainda mais incisivo: até quando continuaremos a chorar nossa miséria amparando nossos corações num delírio que atenta contra a nossa própria condição de seres pensantes? Até quando entoaremos cantos, nos ajoelharemos e nos humilharemos por medo do absurdo e fecharemos nossos olhos para a grande medida de sofrimento humano que grassa pelo mundo? O sofrimento trama as malhas da existência humana. Isso é uma verdade inabalável.
Não é aqui o lugar para desenvolver uma argumentação consistente, equilibrada e convincente em favor da inexistência de Deus. Preciso refletir mais sobre os caminhos racionais que meu espírito haverá de trilhar. No entanto, não poderia deixar de notar que a existência irrecusável do mal no mundo constitui um obstáculo intransponível para a teologia. Muitos teólogos tentaram resolvê-lo, mas sem lograr sucesso, simplesmente porque os fatos, as evidências são mais fortes do que qualquer argumento racionalmente aceitável.
A grande questão, que não deixará de retumbar  no espírito e no coração de quem quer que esteja disposto a pensar, é: como conciliar a possibilidade de existência de um Deus infinitamente benevolente, onisciente, onipresente e ONIPOTENTE com a existência irrecusável do mal no mundo e do sofrimento dele consequente? E, antes, que ocorra a alguém a ideia de que, parte desse sofrimento é causado pela própria ação humana, no que estou de acordo, isso não serve de argumento para sustentar a possibilidade de Deus existir; mas, ao contrário, a torna ainda mais inaceitável, já que poderíamos contra-argumentar no sentido de responsabilizar a Deus pela miserabilidade de sua criação. Ora, se Deus nos criou, ele é cúmplice, ou melhor, é responsável por nossas mazelas, por nossas loucuras, por nosso sofrimento. Mas os religiosos ainda tentarão sair com esta: “Deus nos deu o livre-arbítrio”, embora se contradigam ao assumir que Deus determina completamente, do início ao fim, o intercurso da vida de uma pessoa. Para além dessa contradição, há uma inverdade no dogma do livre-arbítrio. Nós, homens, não temos “livre-arbítrio”; nossos comportamentos e ações são orientados por um sistema de valores morais e de Leis estabelecidas pelo Direito. Como seres sociais, devemos viver de acordo com a moral de nossa sociedade; devemos cumprir as leis, devemos fazer escolhas de acordo com o grau de incidência das diferentes formas de coerção social. Como seres sociais, devemos ser educados, aprender, entre outras coisas, sobre ciência, sobre história, etc., para podermos gozar da condição de seres humanos integrados ao mundo civilizado. A insistência no livre-arbítrio é um estratagema de que lançam mão os religiosos para “desculpar” a Deus de sua clara  incompetência ou incapacidade de criar seres humanos um pouco melhores.
É muito provável que um sacerdote, se indagado sobre o porquê de Deus não evitar ou, pelo menos, não diminuir o sofrimento no mundo, não encontrando explicação razoável para isso, saia pela tangente, numa atitude intelectualmente desonesta, dizendo: “é a vontade de Deus”. Deus quer que soframos? Ora, isso é ultrajante!
Feuerbach, em A essência do Cristianismo, desenvolverá e sustentará a tese de que Deus nada mais é do que a essência humana objetivada, ou seja, projetada para fora de si e tornada objeto da razão e do coração. À página 64, escreve o filósofo:

“Deus como Deus, i.e., como um ser não finito, não humano, não determinado materialmente, não sensorial, é apenas um objeto do pensamento. É o ser transcendente, sem forma, intocável, sem imagem – o ser abstrato e negativo; só é conhecido pela abstração e a negação (...). Por quê? Porque não é nada a não ser a essência objetiva do pensamento, a capacidade ou atividade em geral, que se a chame como se quiser, pela qual o homem se torna consciente da razão, do espírito, da inteligência.”

Mais adiante, acrescentará:

“Deus é a razão que se pronuncia, se afirma como ente supremo.
(p. 65)

O trabalho de Feuerbach merece ser reconhecido, especialmente, pelo seu valor desmitificador ou dessacralizador, na medida em que ele humaniza Deus. Essa humanização se exprime na forma de um “rebaixamento” ontológico ou de uma desconstrução ideológica. Ou seja, Deus deixa de ser concebido como um “ser” superlativizado, para ser entendido como uma ideia, ou melhor, como a objetivação da razão humana. Deus, assim, não é um “ser” separado do humano, mas a própria construção imaginária da sublimação da essência humana.  A essência humana é projetada na forma de um Deus, ao qual se atribui predicados humanos, que são superlativizados. Deus é o anseio humano por perfeição: se os homens são bons, então o seu Deus é infinitamente bondoso; se os homens são amorosos, o seu Deus é infinitamente amoroso; se os homens são misericordiosos, o seu Deus é infinitamente misericordioso.
Ao fazer a crítica antropológica da religião, Feuerbach teve o mérito de nos mostrar que são os homens que criaram Deus (e a religião) e não o contrário. Todo o entorpecimento, o embaraço, o anestesiamento, o anuviamento e o obscurantismo da consciência do homem religioso advém dessa inversão ideológica: os homens deixam de se reconhecer como criadores de uma ideia ou conceito, para fazer dele um “ser” independente capaz de criá-los e governá-los.
Se, algum dia, eu vier a desenvolver a minha posição ateísta, começarei considerando as ideias de Feuerbach, muito embora delas eu divirja em alguns momentos. Por exemplo, se Deus é a razão humana objetivada como ente supremo, como pretendia o filósofo, então é imperioso reconhecer que se trata de uma razão deturpada, depravada, alienada, corrompida em sua lógica.
O que me aviva profundamente o espírito no discurso ateu é a ideia de que, para amar e seguir os elementares preceitos morais e buscar a justiça, não precisamos crer em Deus. Não somos melhores nem piores porque não acreditamos em Deus.  Apenas devemos enfrentar nossa própria condição humana conflituosa, contraditória e angustiante. Devemos prestar contas a nós mesmos (aperfeiçoando a Justiça) por nossos erros; devemos lidar com as nossas tragédias existenciais, enfrentar nossa estupidez e ignorância, sem querer buscar abrigo numa ilusão.
É claro que a existência de um Deus misericordioso, bondoso e sempre diligente seria maravilhosa, mas maravilhosa demais para ser verdade. A experiência, contudo, não nos dá sinais de que ele possa existir. E os argumentos apresentados para sustentar a sua existência são inconsistentes. Contudo, não me entristeço, pois acredito que o AMOR poderá subsistir, que para amar basta-nos doarmo-nos, entregarmo-nos ao seu mistério.
Em todo caso, se, um dia, quando eu morrer, Deus a mim se revelar, ele terá de me dar boas explicações para a sua omissão, o seu silêncio e a sua negligência. Por enquanto, prefiro dar voz à inteligência e à razão e fazer ecoar de meu coração humano, demasiadamente humano para ignorar as abomináveis tragédias cometidas por certos tipos de homens. Prefiro me solidarizar com as vítimas de catástrofes naturais e de moléstias para as quais os homens de ciência não encontraram a cura. Mas também prefiro dormir aliviado com a esperança de que existem homens que trabalham incansavelmente para solucionar os males que nos atormentam, que nos fragilizam e nos levam à morte.


“Os religiosos deveriam deixar de olhar para o próprio umbigo para olhar o umbigo do mundo, onde reside o absurdo de nossas tragédias” (BAR).