quarta-feira, 20 de julho de 2011

coração em retirada


Viajante

Vem
Amor
E não se atrasa
Meu coração
Já fez as malas
Ele está em retirada

(BAR)

" A dor da morte é a saudade, que não se enterra, mas se hospeda" (BAR)





                            Ao meu cachorrinho
                               Do meu coração

Percorri os arquivos de textos em meu computador, a fim de encontrar algum texto em que escrevi sobre o budismo. Gostaria de trazer à cena um pouco do que li sobre a filosofia budista. Impressiona-me o fato de meu espírito trafegar por áreas temáticas diversas. Houve uma época em que me dediquei à leitura de várias doutrinas religiosas.
Como eu não encontrasse o texto, lembrei-me de que Rubem Alves escrevera brilhantemente sobre temas que nos são inquietantes, em O Deus que conheço (2010). No capítulo Sobre a morte e morrer, apresenta-nos a seguinte confissão:

“Confesso que, na minha experiência de ser humano, nunca me encontrei com a vida sob a forma de batidas do coração ou ondas cerebrais. A vida humana não se define biologicamente. Permanecemos humanos enquanto existe em nós a esperança da beleza e da alegria. Morta a possibilidade de sentir alegria ou gozar a beleza, o corpo se transforma numa casca vazia de cigarra”
(p. 40)

Decerto, a vida humana não se reduz a explicações biológicas; a dimensão biológica é tão-só a evidência de que pertencemos a uma totalidade natural, orgânica. Mas somos, antes de tudo, espírito e emoção. É o espírito e a emoção o fundamento da vida humana. Espírito e emoção tornam essa vida mais complexa e, por que não dizer, complicada.
Mais abaixo, na mesma página, o autor acrescenta, ao referir-se à necessidade de morrer:

“Liberta-me. Deixa-me ir”. A vida deseja descansar”

A vida de meu cachorrinho precisava descansar. Acometido de um câncer irreversível, de cegueira e surdez, meu cachorrinho viveu seus últimos dias prostrado, absorvido por um sofrimento que consternava a todos nós. A decisão pela eutanásia não se deu sem o custo de muitas lágrimas lamentosas e um choro plangente.  É quando a morte se desnuda diante de nós e nos lembra que nossa estada aqui é passageira; ela retira o seu véu e nos chama inelutável e inexoravelmente.
No capítulo O direito de morrer sem dor, o autor declara-nos:

“(...) sou a favor da eutanásia por motivos éticos”.
(p. 66)

E, citando, Albert Camus, adere a esse imperativo irreprochável:

“Eu apenas conheço um único dever, que é o de amar”.

É porque acolhemos esse princípio que decidimos que era chegada a hora de meu cachorrinho partir. Uma prova do amor que nutrimos por ele era consentir que a morte pusesse fim ao seu sofrimento, que era também o nosso sofrimento.
Rubem Alves, novamente, nesse texto, se nega a aceitar a vida como apenas resultante de processos biológicos. E se pergunta: o que é a vida? Escreve-nos:

“A vida não será como a música? Uma música sem fim seria insuportável. Toda música quer morrer. A morte é parte da beleza da vida.”
“A vida não pode ser medida por batidas do coração ou ondas elétricas”
(p. 67)

Músicas emocionam a vida. Tocam à vida. Dizem de nossas almas, embalam nossas emoções, fazem dançar nossas lágrimas, reaviva-nos lembranças adormecidas ou mortas. A analogia entre música e vida é bastante pertinente, pois que a música eterniza a vida. Na música, a vida é recontada, a alma da vida permanece na melodia, nas notas, nos versos. Na música, quem nos fala não é a voz, mas a alma. Música, alma e vida conduzem-nos ao infinito, porque nos tornam desejosos de inesgotabilidade.
Decerto, a imortalidade da vida orgânica seria entediante, mas não da vida espiritual, que a transcende e que é atemporal. O tempo cerceia vida, a aprisiona; somente uma vida atemporal pode nos regozijar plenamente, porque não conheceremos a pressa, a urgência, a espera. Nada mais a esperar.
Eu não sou apenas um homem, sou um acontecimento do Mistério da vida; sou um rebento da inquietude, da des-esperança.
A morte biológica é quando as luzes do corpo se apagam. A morte do corpo é mera in-animação. A matéria imóvel, enrijecida, apodrecendo é apenas a sobra de uma casa envelhecida destinada à ruína. E toda a nossa complexidade biológica será destinada a ser pó, alimento dos vermes, adubo para a terra faminta.
Mas o sopro da vida, que inspira o AMOR, que aspira à felicidade, ao prazer, ao gozo; o sopro da vida que deseja a eternidade, mesmo que cindida num instante, breve, fugaz, mas deleitoso; esse sopro que se apossa de nós quando vivemos apaixonados, acolhidos nas asas do AMOR, que nos permite experimentar sensações provindas das Alturas – regiões intangíveis, incognoscíveis, mas tão humanamente reconhecíveis; esse sopro que nos adverte, todos os dias, que somos finitos, que as coisas do mundo são passageiras, que nada podemos reter, senão o AMOR que nos foi permitido experienciar e as alegrias, também efêmeras, que compartilhamos com aqueles que amamos e que nos amaram; esse sopro que, em alguns, é desperto e inquieto; em outros, permanece sempre adormecido; esse sopro não se extingue, porque é emoção (é o que nos move, nos agita, nos impele). E a emoção é o que permanece em nosso coração, é a lembrança que dói por um tempo, mas que há de tornar-se amena, confortante; emoção que é desejo, demasiadamente humano, de que a morte imperiosa não seja o fim, mas apenas um recomeço.

"Eu sou cúmplice de meu coração" (BAR)

                                                    
                                                 Arando o terreno


Sinto-me compelido a encetar este texto agradecendo a todos os meus seguidores, em especial, àqueles que me parecem mais assíduos e dedicados, enquanto leitores de minhas flores verbais (algumas das quais um tanto espinhosas), a saber, Zélia, Cláudia, Rose e Gizelda. Essas pessoas, embora distem de mim a muitos quilômetros, me parecem muito próximas afetiva e intelectualmente. A elas devo o contentamento da partilha de pensamentos e sentimentos verbalizados com lucidez, tolerância e desprovidos de qualquer forma de preconceito ou pré-conceito. As experiências verbais que compartilhamos foram fundamentais para que este blog, nascido há pouco mais de um ano, alcançasse a marca surpreendente de 13.789 visualizações. Agradeço-lhes as inúmeras vezes em que se dispuseram a revisitar as páginas de minha alma. 
Tendo já manifestado meu agradecimento, passo à apresentação das razões pelas quais trago a lume este texto. Peço-lhe, leitor, a sua paciência, porquanto terei de fazer alguns rodeios, antes de explicitar a minha verdadeira intenção ao compô-lo.
Quando decidi criar um blog, não tinha a intenção de angariar muitos leitores, não visava ao sucesso como blogueiro. Na verdade, o blog seria um veículo, um meio, um instrumento de divulgação de meus escritos – escritos que, dantes, ficaram reservados a uma gaveta ou armazenados em arquivos no computador. O blog surgia como um meio de eu me desafogar de minha solidão e de atenuar a minha depressão. Portanto, se, por um lado, não intentava alcançar algum status com a divulgação do blog; por outro lado, o blog resultava de uma necessidade vital: a de me fazer notar. Com o blog, rompi a espessa casca da depressão, abri clarões de luz na densa escuridão das noites de minha vida, que, então, havia sido lançada sobe mim pela solidão. Este blog sempre foi uma forma de expressão da liberdade de minha alma. Um grito intelectual, lírico e verbal de revolta. Hoje, sou um revoltado metafísico. Mas revolta não se confunde com disposição para a agressividade. Minha revolta é revolta intelectual, espiritual, emocional. Revolta é perturbar o status quo, o estabelecido e tudo que é consensualmente aceito sem qualquer questionamento. Revolta é a expressão da não-conformação, é a presença da voz de um inconformado vivendo numa sociedade de conformados e resignados.
O significado deste blog em minha vida – significado que, muita vez, questionei, por saber se tratar de um suporte tão passível de vulgarização e de absorção de trivialidades (lembro que o blog, inicialmente, era um gênero textual- para alguns, um suporte de gêneros textuais – definido como um diário eletrônico) pode ser compreendido na consideração da densidade lírica de meus textos, da sua diversidade temática e, sobretudo, da natureza das questões com as quais eu, através deles, me defronto. A leitura filosófica, decerto, contribuiu demais para refinar a qualidade de meus textos, para dar-lhes mais profundidade e consistência, de sorte que eles puderam cumprir satisfatoriamente, algumas vezes, os objetivos a que eram destinados. Não sou formado em filosofia e reconheço ser incapaz de me aprofundar no pensamento de muitos filósofos; mas sou um amante inveterado da linguagem, dos livros, da cultura livresca e, agora, da filosofia. Se tudo em que trabalhamos o fizermos com amor e paixão, temos grandes chances de fazer o melhor, pois que esse amor e paixão nos motivarão a proceder assim.
Não obstante a diversidade temática de meus textos, alguns temas são recorrentes. O AMOR está entre esses temas. Experienciá-lo de modo distinto e singular sempre foi uma busca obstinada a que me lancei, ao compor os meus textos. Por isso, lancei-me à empresa intelectual de discussão deste tema – uma discussão obstinada. Denunciei os modos vulgares de experiência amorosa, a liquidez dos vínculos afetivos humanos na modernidade líquida, a banalização do sexo e a reificação dos homens pelo imperativo do mercado do orgasmo.
Também foi constante, inicialmente, a expressão de minha religiosidade. Como disse alhures, nasci numa família de católicos. Além do batismo, recebi o sacramento da comunhão e da crisma. Por um longo período de minha vida, fui um frequentador assíduo das missas dominicais; minha fé em Jesus era, até então, inabalável; eu admirava aquele homem cuja inteligência me fascinava (de certo modo, ainda admiro esse personagem da literatura bíblica, mas não o considero dotado de alguma natureza divina; ele foi um homem, talvez um dos maiores homens da História, já que o que sabemos dele advém de outras mãos que escreveram muitos anos depois de sua passagem aqui na Terra).
Malgrado minha religiosidade, que me fora uma herança da primeira infância, cultivada, especialmente, no limiar da fase adulta, eu nunca aderi aos dogmas de minha religião. Nunca aceitei a proibição a pessoas divorciadas de receber a hóstia; sempre rejeitei a obsessão pela confissão (a confissão, no catolicismo, é a prática mais evidente de controle da vida psíquica dos seus seguidores; o padre desempenha aí o papel de um ditador espiritual, ele tem de estar a par de tudo que passa pela nossa mente; nada pode escapar-lhe; é claro que, dependendo do grau de comprometimento do fiel e de seu embotamento intelectual, ele poderá omitir pensamentos, sem temer a punição divina, consequência do “pecado”).
O conservadorismo das religiões, de um modo geral, sempre me incomodou. A estupidez e a ignorância eclesiásticas em face das questões mais importantes da existência humana também estava entre as coisas que me desagradavam. Durante um longo período, abandonei o hábito de ir à igreja (e reconheci quão entediante é assistir a uma missa!), mas mantive-me devoto à prática de oração e de conversação íntima com alguma “autoridade” que acreditava transcendente.
Sucedeu que minha maturidade intelectual e o convívio aturado com os livros e, consequentemente, o aumento de minha cultura livresca tornou-se incompatível com a atitude de submissão intelectual, de aviltamento racional requerida pela religião. Percebi que, para seguir uma religião, era preciso abster-se de questionamento; basta ter sem pretender saber. Basta aceitar, sem querer entender. Quanto mais se procura entender tanto mais contradições, desvios racionais, despautérios e erros avultam do discurso religioso. Quanto mais se estuda a Bíblia tanto mais se apercebe de sua natureza humana. Mas a religião quer-nos fazer crer que fora um livro inspirado por Deus. Vá à fonte e constate por si mesmo, leitor, as contradições e as histórias monstruosas relatadas nos livros hebraicos. Tente investigar o que os autores bíblicos dizem sobre as razões do sofrimento no mundo. Ou leia o livro O problema com Deus, do qual falarei mais adiante.
Como eu reconheça o AMOR e o CONHECIMENTO como os dois maiores valores da vida humana, é claro que não poderia resignar-me à submissão de meu intelecto. Se ainda dependêssemos de curandeiros para nos livrar de nossas doenças, creio que grande parte da humanidade estaria extinta. Disso não se segue que eu acredite ser a ciência infalível; ao contrário do papa, a quem se outorga a infalibilidade, em virtude de se cuidar “o primeiro ministro de Deus”, a ciência não reivindica inspiração divina; ela é feita por homens curiosos, dedicados ao empreendimento racional e experimental. A ciência lança os homens ao mundo, leva-os a confrontá-lo, a investigá-lo, a entendê-lo; ao contrário, a religião os lança ao imaginário, à alienação, pela criação de um universo fantasioso, transcendente e delirante. A ciência é produto da disposição humana para o conhecimento, resulta de sua curiosidade peculiar, porque só para os seres humanos a realidade constitui um problema. E tudo que constitui ‘problema’ deve ser pensado, discutido, examinado e compreendido.
Então, um dia, me permiti ler o que escreveram filósofos e estudiosos ateus. Cuidei que seria interessante saber o que eles tinham a dizer. Cuidei que essa atitude era nobre, admirável. Ora, eu admiro as pessoas que se dispõem a abandonar um dado conjunto de opiniões e crenças, caso se convençam de que esse conjunto não serve mais para explicar os fatos com os quais elas se vêem confrontadas. Só podemos abandonar nossas crenças mais arraigadas, incutidas em nós por força de um longo processo formativo de adestramento espiritual e cultural, se nos dispusermos ao confronto com o mundo, com a existência mesma dos homens. Abandonar uma religião exige de nós uma abertura para o mundo, uma sensibilidade mais aguçada para com as misérias deste mundo, para o absurdo constitutivo desta existência espiritual-material. É que a religião nos confina num universo de rituais e adestramento intelectual que nos aliena do mundo; na prática religiosa, buscamos o transcendente (o que está além deste mundo); fechamos os olhos da alma para a grande quantidade de sofrimento que grassa neste mundo e nos contentamos em dizer, com desonestidade (a meu ver), “é a vontade de Deus” (?).
E já que o peso maior recai sobre a incapacidade de a religião dar uma resposta satisfatória à pergunta: se Deus existe, por que há tanto sofrimento no mundo?, e já que esse foi o motivo determinante (embora não o único) para que eu assumisse meu ateísmo, conforme se verá na leitura de outros três textos seguintes, darei a saber ao leitor o que nos diz um dos maiores especialistas nos estudos bíblicos do mundo.  O nome dele é Bart D. Ehrman, “uma autoridade nos estudos das origens do Cristianismo e da vida de Jesus Cristo”, e autor do livro O problema com Deus (2008). Ele é também Ph.D. em estudos do Novo Testamento. Neste livro, o autor investiga as respostas que a Bíblia dá ao sofrimento, para nos levar a ver as respostas que ela não dá a ele. Para o autor, as respostas da Bíblia são sempre insatisfatórias (e eu acrescentaria: perniciosas).
Interessa-nos a passagem em que o autor nos revela ter sido pastor e, portanto, um religioso devoto e praticante. Vejamos:

“(...) fui pastor de jovens de uma igreja evangélica. Quando me formei no seminário, fui convidado a assumir o púlpito da igreja batista enquanto eles procuravam um ministro em tempo integral. Assim, durante um ano fui pastor da igreja batista de Princeton, pregando nas manhãs de domingo, conduzindo grupos de oração e de estudo da Bíblia, visitando doentes no hospital e cumprindo meus deveres pastorais para com a comunidade”.
(p. 12)

Mais adiante, o autor vai nos revelar as razões pelas quais ele perdeu sua fé. Embora observe que os problemas encontrados na Bíblia, à medida que a estudava a fundo, não tenham sido o motivo principal do abandono de sua fé, conta-nos ele:

“(...) por uma série de razões que logo apresentarei, comecei a perder minha fé. Eu agora a perdi inteiramente. Não vou mais à igreja, não acredito mais, não mais me considero um cristão. O assunto deste livro é o porquê. (...) minha forte ligação com a Bíblia começou a desaparecer quanto mais a estudava. Comecei a perceber que em vez de uma revelação infalível de Deus, inspirada por suas próprias palavras (a visão que tinha no Moody Bible Institute), a Bíblia era um livro muito humano, com todas as marcas de que saíra de mãos humanas: discrepâncias, contradições, erros e pontos de vista diferentes de diferentes autores vivendo em épocas diferentes em diferentes países, escrevendo por diferentes motivos para diferentes públicos com diferentes necessidades. Mas não foram os problemas da Bíblia que me fizeram perder a fé.
(id. ibid.)
(grifo meu)

Ele nos dirá que as suas crenças evangélicas não resistiam ao “escrutínio crítico”, ou seja, quanto mais lia a Bíblia criticamente, menos religioso ficava. É interessante ver que o autor revela ter sido esse abandono bastante inquietante, conforme se lê abaixo:

“Finalmente, porém, me senti compelido a abandonar completamente o cristianismo. Isso não foi fácil. Pelo contrário, eu fui embora esperneando, querendo desesperadamente me aferrar à fé que conhecia desde a infância e da qual me tornara íntimo a partir da adolescência. Mas eu tinha chegado a um ponto em que não podia mais acreditar. É uma história muito longa, mas a versão reduzida é a seguinte (...)”
(p. 13)

A versão reduzida a que se refere o autor é então declarada nos seguintes termos:

“eu me dei conta de que não conseguia mais conciliar as alegações de fé com os fatos da vida. Em especial, não conseguia mais explicar como pode haver um Deus bom e todo-poderoso ativamente envolvido com este mundo, considerando-se o atual estado de coisas. Para muitas pessoas que habitam este planeta, a vida é uma cloaca de infelicidade e sofrimento. Eu cheguei a um ponto em que simplesmente não podia acreditar que há um Senhor bom e bem intencionado encarregado do mundo. Para mim, o problema do sofrimento se tornou o problema da fé”.
(id. ibid.)
(grifo meu)

Vale reiterar: é o problema do sofrimento que causa um grandioso abalo no alicerce da fé. Ainda hoje, nenhum filósofo, nenhum teólogo, nenhum religioso foi capaz de dar uma solução racional para este problema, de modo que sustentar a crença na existência de um ser que pode tudo (um ser onipotente) e que é incapaz de atenuar o sofrimento de milhares de pessoas em todo o mundo é, verdadeiramente, uma atitude desonesta. Esse problema foi brilhantemente desenvolvido no dilema apresentado por um filósofo grego (cujo nome me olvida agora). Esse dilema se expressa mais ou menos assim: Deus quer evitar o mal, mas não consegue, então ele é impotente; Deus pode evitar o mal, mas não o faz, então ele não é bom. Os dois raciocínios assim expressos contrariam a crença na existência de um Deus que é onipotente e, ao mesmo tempo, benevolente. A imagem de Deus, produto de uma construção discursiva deficiente, entra em conflito com os fatos da vida. E essa verdade se torna mais irreprochável, se considerarmos o fato de que estamos pensando a relação entre um ser criado pela imaginação, já que não é acessível empiricamente, e os fatos da vida, cuja concretude é inegável. Ou será que há alguém em sã consciência que nega a existência do mal e do sofrimento neste mundo?
Quero ainda referir duas passagens que, se lidas sem o peso de nossas crenças e opiniões religiosas enrijecidas em nossa consciência, mostrará quão cegos e egoístas para o mundo ficamos no momento em que assumimos um compromisso com a crença em Deus. A primeira delas é um testemunho honesto do autor:

“(...) chegou um momento em minha vida em que descobri que simplesmente não podia mais agradecer a Deus por minha comida. E a ironia é que foi porque me dei conta (ou, pelo menos, passei a pensar) de que se estava agradecendo a Deus por me dar meu sustento, e reconhecendo que era alimentado não por causa de meus próprios esforços mas por causa de seu ato de generosidade para comigo isso implicava que eu estava dizendo algo sobre aqueles que não têm comida. Se tenho comida porque Deus a deu a mim, então outros não têm comida porque Deus escolheu não dar a eles? Ao agradecer, eu na verdade não estaria acusando Deus de negligência ou favoritismo? Se o que eu tenho é porque ele me deu, e quanto aos que estão morrendo de fome? Eu certamente não sou tão especial aos olhos do Todo-poderoso”.
(p. 116)

Ora, esse reconhecimento honesto do autor é suficiente para validar a ideia de que, para seguir uma religião, para acreditar na providência de um ser todo-poderoso, é preciso fechar os olhos para todo o sofrimento e todas as privações que acometem uma grande massa de pessoas ao redor do mundo e voltá-los para o nosso próprio umbigo. A justiça e bondade de Deus não deveriam ser extensivas a todas as pessoas que sofrem e são vítimas de injustiça? É certo que uns sejam privilegiados por Deus e outros não?
É curioso o fato de que o autor diz-nos ser agnóstico. Pelo menos até onde li (pois não terminei de ler o livro ainda), ele não admite ser ateu e nos revela: “eu não “sei” se existe um Deus; mas acho que se houver um, ele certamente não é aquele proclamado pela tradição judaico-cristã, aquele poderosa e ativamente envolvido com este mundo” (p. 13).
Outra passagem muito intrigante é a que se segue, em que nos conta sobre a religiosidade de sua esposa e sobre o desinteresse de pessoas inteligentes pelas questões mais proeminentes da vida:

“Hoje só vou à igreja em raras oportunidades, normalmente quando minha esposa, Sarah, insiste muito. Sarah é uma intelectual brilhante – destacada professora de literatura inglesa medieval na Universidade Duke – e cristã praticante, participando ativamente da igreja episcopal. Para ela, os problemas do sofrimento com os quais eu luto não são problemas. É engraçado como pessoas inteligentes e bem-intencionadas podem ver as coisas de formas tão distintas, mesmo nas questões mais fundamentais e importantes da vida”.
(id. ibid.)
(grifo meu)


Essa breve e superficial visita à obra de Ehrman, cuja leitura recomendo a todo aquele que resiste ao adestramento espiritual da religião, foi profícua, na medida em que fez ver ao leitor que os mais brilhantes propagadores das crenças religiosas podem recusar-se a prosseguir em seu trabalho e abandonar seus hábitos de doutrinação. Até mesmo os que, um dia, aferraram-se a um sistema ideológico amparada por crenças numa dimensão sagrada transcendente podem dar voz à razão, dar ouvidos ao bom-senso. Isso me encoraja a assumir publicamente meu ateísmo. A assunção deste ateísmo não tem, contudo, pretensões militantes. É bem verdade que, para alguns autores, é urgente que se faça notar um ateísmo militante. Alguns, como Richard Dawkins, um dos mais renomados cientistas do mundo na atualidade, podem ser incluídos na classe dos ateus militantes, que participam de conferências internacionais e divulgam suas ideias ateístas a um grande público em programas de rádio e televisão.
Não cabe, ainda, discutir se o mundo seria menos pior sem religião, mas devemos reconhecer que muitas atrocidades poderiam ter sido evitadas, se os homens não se valessem de suas crenças religiosas para perpetrá-las e justificá-las. Em nome da religião, muitos homens assassinam, guerreiam, lançam bombas, destroem cidades, comunidades inteiras de inocentes, etc. Em nome da religião, moças são privadas do prazer sexual, quando tem seu clitóris submetido a infibulação; e meninos sofrem o constrangimento da circuncisão. Isso é prática corrente, ainda hoje, no islamismo e no judaísmo ortodoxo.
O terreno está, pois, assentado. Os textos que se seguem tratarão da temática do ateísmo. Expressarão uma nova estação espiritual, emocional e intelectual em minha vida. A crença em Deus pesava-me nas costas, assolava-me a consciência, agredia-me a alma. A crença em Deus abriu-me um abismo: um abismo entre mim e o mundo, entre mim e esta vida orgânica. Há algum tempo estabeleci a reconciliação entre mim e esta vida, com todas as suas tragédias e toda a sua aspereza. Descobri, finalmente, que o AMOR não vem de Deus – que é uma fantasia neurótica-,  mas das pessoas de carne e osso que nos amparam, que cuidam de nós, que nos alimentam, nos vestem, nos educam, nos ensinam. Esse AMOR vem de nossos entes queridos (pais, avós, irmãos, tios) e dos amigos verdadeiros. Vem da mulher ou homem que amamos e que queremos para nossa(o) companheira(o) e amante por toda a vida! Esse AMOR vem da generosidade, da caridade, do altruísmo, da abnegação, da filantropia, da solidariedade de muitas pessoas que dedicam suas vidas à prática do Bem comum. Esse AMOR vem daqueles que, mesmo não podendo assistir os que mais necessitam, não prejudicam, não maltratam, não praticam maldade. O AMOR vem daqueles que negam o mal, o rejeitam, o abominam e valorizam a inocência, a candura, a beleza e a bondade virgem que se percebe na alma de um bebê. O AMOR vem daqueles que acreditam que o CONHECIMENTO é um bem muito valioso e que merece ser transmitido e perseguido. O AMOR está, em suma, encarnado, corporificado; é imanente a este mundo, embora aspire ao transcendente, à eternidade, embora não se confine na matéria e almeje sempre as infinitas dimensões da alma, embora trilhe os longos caminhos que nos levarão a desvendar (ou não?) o Grande Mistério da Vida. Até lá, que o AMOR seja nossa inspiração e conforto, seja nosso amparo e maior riqueza, e que o CONHECIMENTO nos seja a luz, a bússola que nos governa a alma, que nos faça capazes de ver para além do véu de nossa ignorância.

terça-feira, 19 de julho de 2011

"A inquietude é o ventre da filosofia" (BAR)


                         

                  Pensamentos dispersos
  Sobre filosofia, otimismo e pessimismo

Estava eu já diante do computador, concentrando e aparando os pensamentos a fim de iniciar este texto, quando fui surpreendido com o toque do interfone. Quando o atendi, falou-me uma moça com a intenção de informar-me a respeito das lições bíblicas. Como sua voz expressasse doçura, decidi atendê-la pessoalmente. Prontifiquei-me a ouvi-la, sem desviar-lhe o olhar. Permaneci em silêncio, acenando-lhe com a cabeça que a compreendia. Limitei-me a dizer uma ou outra palavra dissílaba de condescendência, muito embora em meu espírito as ideias ateístas ficassem latejantes e agitadas. Se, ao cabo de seu discurso, previsivelmente, banhado na doutrinação bíblica, eu lhe dissesse eufemisticamente – simpatizo-me com o ateísmo – talvez o que antes era doçura tomaria feições de piedade. Então, mantive-me em silêncio durante todo o tempo em que ela falava.
Não tomou a rua, sem que antes me ofertasse uma revista destinada aos fiéis. Na capa, estampa-se em letras garrafais 6 PROFECIAS BÍBLICAS que estão se cumprindo hoje. Querem saber quais são essas profecias? A primeira são os terremotos, que, aliás, não têm nada de proféticos; eles acontecem desde que o mundo era mundo; não são eles “sinais” dos fim dos tempos. A segunda é a fome. Ora, fome é, certamente, o maior problema social que o homem, a despeito dos avanços técnico-científicos, tem de enfrentar. Certamente, um problema característico das sociedades capitalistas (embora não só) em que as desigualdades são consequência de seu próprio funcionamento. A terceira são as doenças. Elas também existem desde que o mundo era mundo. Vírus, bactérias, parasitas; enfim, a própria natureza está infestada de organismos nocivos à vida humana. A quarta é a falta de amor. Uma maneira simplista de entender o conflito humano. Quero dizer que há homens que amam, há homens que odeiam, há homens que invejam, há homens que salvam, protegem e se sacrificam, e há homens que matam, impingem sofrimento. Se a violência é um fato inegável da condição humana e a História o prova, não é a falta de amor que a explica. O amor é indispensável, mas ele não é suficiente para resolver todos os problemas que nos atingem. A quinta profecia é a destruição da Terra. Culpa-se aqui o homem por poluir o meio-ambiente, devastar as florestas, etc., enfim, causar a destruição da natureza. Ocorre que até aqui nada disso são, a rigor, profecias. Os relatos da Bíblia desses acontecimentos são relatos decorrentes da própria experiência dos homens que, ao longo de muitos séculos, escreveram os seus textos. Ora, a partir da constatação de fatos numa dada época, pode-se não profetizar, mas fazer um prognóstico sobre o que irá acontecer futuramente. Por exemplo, a fome existe e assola cerca de 800 milhões de pessoas em todo mundo. Entre suas causas estão as guerras, desastres ecológicos e pragas. É possível, mesmo sem um exame mais acurado de questões sócio-políticas e econômicas, predizer que essa situação continuará por alguns séculos. Os mais desacreditados poderiam dizer que, a menos que uma nova geração de seres humanos venham a habitar este planeta daqui a milhões de anos, a fome e outros males não terão fim. Seria isso uma profecia? Não, é claro. Mas um prognóstico, baseado em um dado estado-de-coisas que tenderá a permanecer durante muitos anos ou séculos, em virtude das condições sociais, políticas e econômicas que o mantêm.
A última profecia diz respeito à pregação mundial. Segundo essa profecia, a palavra de Deus seria levada a todo o mundo. Mas no Japão, por exemplo, a religião predominante é o budismo e estima-se que 65% dos japoneses são ateus ou agnósticos. Na Dinamarca, o número de ateus chega a 80%.  Na Índia, a religião hindu predomina. Ou seja, a pretensão de o cristianismo e suas ramificações ser uma religião universal cai por terra quando constatamos, por um lado, a grande diversidade de religiões e crenças no mundo; por outro lado, a secularização inegável que a nova visão de mundo, produto do século da Luzes, em que floresceu a mentalidade científica, acarretou.
Ora, pregar para diferentes povos foi o que o grande responsável por disseminar e consolidar o cristianismo, Paulo de Tarso, fez, ao discursar para os antigos gregos, em Corinto, por exemplo. Este homem, convertido para o cristianismo, percorreu ainda cidades como Tarso, Derbe e Listra (situadas na Ásia Menor, porção asiática da Turquia), Filipos e Atenas, na Grécia, entre outras. Finalmente, chegou a Roma. Em todas as cidades por que passou, Paulo de Tarso procurou converter os povos que ali viviam ao cristianismo.
Creio, contudo, que estiquei demais meus pensamentos, orientando-os para caminhos que não estavam planejados. Este texto destina-se à mera expressão de pensamentos que me adejavam na mente, enquanto lia o livro Ateísmo e Revolta – os manuscritos do padre Jean Meslier, pensador materialista ateu pouco conhecido entre nós, leitores brasileiros. Não tenho intenção de comentar partes do livro, tampouco versarei sobre ideias ateístas. Mas vou me servir deste livro para externar aos leitores o que significa ser filósofo. Esse é meu ponto de partida: o filosofar. O que é isso? Tendo em conta as reflexões sobre a atividade de filosofar, iniciarei uma discussão sobre atitudes pessimistas, realistas e otimistas, baseando-me, para tanto, num estudo desenvolvido por uma neurocientista israelense sobre a atitude otimista dos homens (pós-)modernos.
À página 95 do livro sobre os manuscritos do padre Meslier, referido acima, o seu autor busca avaliar se o cura pode ser classificado como filósofo. Para tanto, tenta situá-lo na história da filosofia. Isso significa examinar o valor argumentativo de suas teses. Ocorre que não basta apenas equipará-lo a um dos muitos grandes filósofos, consagrados pela História, em termos de linguagem, estilo. É preciso questionar os parâmetros da academia pelos quais um pensador é ou não classificado como ‘filósofo’.
Sabe-se que a tradição acadêmica nos fez acreditar que um filósofo é um homem dotado de erudição e, como tal, deve ser um leitor inveterado dos grandes clássicos da filosofia. Critica-se aqui o pendatismo de certos filósofos profissionais que, não sendo filósofos, são professores de filosofias ou comentadores. Naquela obra, encontraremos a citação de Camus, ao ponderar: “Os filósofos antigos (naturalmente) refletiam muito mais do que liam. Por isso se ligavam tão estreitamente ao concreto. A tipografia mudou isso. Nós lemos mais do que refletimos. Não temos filosofia, apenas comentários.” (p. 95)  As produções acadêmicas, em Filosofia, são teses, dissertações de comentadores do pensamento de um grande filósofo. Outro crítico é chamado à cena, Gonçalo Palácios. Ele observa que “a filosofia tornou-se, desde a época medieval, um assunto privado, reservado a centros inacessíveis e a pessoas afastadas do povo, verdadeiros santos”. Esse mesmo crítico, refutando a ideia de Heidegger, segundo a qual a filosofia só poderia expressar-se em grego ou em alemão, escreve:
Afirmo que é a atitude perante as coisas que nos permite ou não filosofar. Sem essa atitude jamais iremos filosofar. Se achamos que não podemos fazê-lo por conta própria, certamente não o faremos, falando grego, latim ou sânscrito. Filosofamos na medida em que, tendo uma certa atitude, pensamos como meros seres humanos, não por falarmos esta ou aquela língua”.
Outros críticos serão evocados - e mesmo um filósofo consagrado como Montaigne - para defender a tese de que um filósofo não se define pela sua competência enquanto leitor de um ou outro filósofo ou de ser especialista em filosofia. O filósofo se define pela assunção de uma atitude de espanto, de questionamento em face do mundo. É o desejo de pensar criticamente que faz um filósofo, e não o grau elevado de conhecimento que possa ter de uma ou outra obra do pensamento filosófico. Filosofia não é erudição.
Outros críticos combateram a chamada “sacralização da linguagem filosófica especializada” e, portanto, sua inacessabilidade ao homem comum. Outro crítico ainda defende que muito do que escreveu Heidegger sobre a morte e outros tantos temas poderia ser muito bem expresso numa linguagem corrente. E deve-se lembrar que Heidegger tem a fama de ser um filósofo prolixo.
Dessas considerações sobre o filosofar, podemos depreender que qualquer um de nós pode, uma vez beneficiado pelas condições necessárias, ser um filósofo. Para tanto, devemos ser habituados ao exercício do pensamento reflexivo e crítico. O homem-filósofo é aquele que reconhece ser a realidade um problema e, portanto, algo que deve ser pensado, questionado, investigado, explicado.
Sóbrias são as palavras de Schopenhauer, filósofo de primeira grandeza, em  A arte de escrever (2009), ao nos ensinar que:

“(...) só tem valor o que uma pessoa pensou, a princípio, apenas para si mesma. Aliás, é possível dividir os pensadores entre aqueles que pensam a princípio para si mesmos e aqueles que pensam de imediato para os outros. Os primeiros são pensadores autênticos, são os que pensam por si mesmos, são eles mais propriamente os filósofos. O prazer e a felicidade de sua existência consistem exatamente em pensar. Os outros são os sofistas: eles querem criar uma aparência e procuram sua felicidade naquilo que esperam receber dos outros.”
(pp. 52-53)

Não estou preocupado em comentar ou avaliar as conclusões a que chegou a neurocientista em seu estudo sobre o comportamento otimista. Quem desejar ler a reportagem pode acessá-la em http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/941968-pesquisa-mostra-lado-negro-do-otimismo.shtml.
Comecemos, pois, definindo o otimismo. Pode-se defini-lo da seguinte forma: otimismo é a concepção segundo a qual a realidade é intrinsecamente boa; assim, o bem sempre predominará sobre o mal. Por outro lado, o pessimismo é a visão negativa das coisas, a partir da qual acreditamos que o pior sempre vai acontecer. Leibniz pode ser considerado um filósofo otimista, pela sua tese de que este mundo é o melhor dos mundos possíveis, mundo este criado por Deus. Schopenhauer, muita vez, foi considerado, por seu turno, um filósofo pessimista.
O otimismo tem o inconveniente de mascarar os problemas que atingem a humanidade e de levar o espírito a refugiar-se num universo de fantasia. Por outro lado, o pessimista, por acreditar que o mal e o sofrimento são realidades insolúveis, pode, radicalmente, decidi pela contenção dos esforços por solucioná-los. O pessimista pode, simplesmente, tornar-se um conformado.
Tanto uma quanto outra visão é unilateral, é parcial, é fragmentária, porque incapaz de apreender a totalidade do real. A visão otimista recobre o aspecto positivo da realidade, realçando-o em detrimento do aspecto negativo. O pessimista, ao contrário, enfatiza o aspecto negativo e se torna cego para o aspecto positivo. Ambas as visões, por serem parciais, não abrangem as contradições inerentes ao real.
O realismo, enquanto visão de mundo, não tendendo exclusivamente para um ou outro aspecto do real, busca apreendê-lo integralmente. Um realista se ancora no acontecimento e o avalia, considerando suas consequências positivas e negativas.
A supervalorização de um aspecto, nas duas visões contrapostas, dá lugar, na visão realista, a uma avaliação da realidade tendo em conta seus aspectos tanto negativos quanto positivos.
O leitor, muitas vezes, já se deparou com movimentos sociais em que pessoas, muitas das quais vítimas da violência, reivindicam a paz. Cartazes com a palavra “paz” e fotos de parentes vitimados pela violência são ostentados, no meio de uma aglomerado de pessoas em passeata. Um observador deste acontecimento social que declarasse que a paz é um ideal, uma aspiração humana, mas nunca uma realidade concreta e universal não está sendo, de modo algum, pessimista. E se acrescentar que a guerra é um fato que caracteriza a vida dos homens desde os tempos mais remotos e que, muito dificilmente, deixaremos, um dia, de produzir guerras, de perpetrar violência, também não está sendo pessimista. Veja-se, a propósito, o que se escreve na Introdução da Enciclopédia de Guerras – conflitos mundiais através dos séculos (2005: 8):

“A guerra dominou a atividade humana desde muito cedo. Na Pré-História, ela consistia em conflitos tribais localizados e efêmeros – embates entre homens a pé armados de instrumentos de madeira ou de pedra. Contudo, por volta da idade clássica – iniciada em 500 a.C. -, as guerras ficaram mais complexas, sendo travadas entre nações e mesmo impérios. Os conflitos se tornaram mais demorados e as distâncias se estenderam. As táticas militares atingiram os mais elevados níveis, e diversos generais, sobretudo Alexandre, o Grande, e Aníbal, destacaram-se como líderes de verdadeira preeminência, com quem os demais comandantes acabavam sendo comparados”.

Os otimistas tendem à utopia, ao idealismo; e o pessimista pode acreditar que as coisas estejam irrevogavelmente ordenadas, sendo, assim, inútil pretender modificar sua ordem tendo em conta nosso benefício. Tanto uma quanto outra visão pode nos cegar, obscurecer nossa consciência.
No entanto, não se trata de advogar a eliminação de um ou outra visão, já que nós tendemos a uma ou outra, quando avaliamos, ponderamos. A base do otimismo é certa confiança, sem a qual nós não conseguiríamos atravessar a rua, por exemplo, nem beber água.
É necessário dizer, a esta altura, que as três visões aqui discutidas são interpretações. Diante do fenômeno das guerras, alguém, que se assuma “realista” em suas avaliações, poderia dizer que é verdade que há uma mobilização das grandes potenciais mundiais no sentido de evitar as guerras; ou seja, o homem da atualidade está mais preocupado com a sobrevivência pacífica (talvez, não  só porque se tenha conscientizado do valor de ser bom, mas  principalmente porque o custo da guerra é alto: guerras geram miséria, recessão econômica, doenças, etc.). A criação da ONU é uma prova da pretensão humana de evitar guerras (mormente aquelas que se servem de bombas atômicas) e preservar a paz. No entanto, as guerras ainda acontecem, como houve no Afeganistão,  há no Iraque e há na Líbia. Há séculos palestinos e israelenses guerreiam e, a despeito dos esforços pela paz, os conflitos não cessaram até hoje.
Considerar, de um lado, as guerras; e, de outro lado, as iniciativas políticas com vistas a contê-las e evitá-las, é considerar as contradições da realidade, ou seja, dialeticamente, é operar uma avaliação mais totalizante do real, tendo sempre em conta os limites inevitáveis dessa totalização.
Nós não estamos imunes ao pensamento generalizante, aos pre-conceitos de toda sorte. Uma avaliação generalizante como “o homem é um ser mau” pode revelar uma atitude pessimista em face do real, simplesmente porque ignora as contradições: abramos os olhos para dar-nos conta de que, a despeito de haver muitas pessoas perpetrando atos maus, há também muitas pessoas salvando vidas, dedicando-se ao benefício de outros seres humanos.  Uma visão realista – e acrescentaria, sensata -, nesse tocante, deve considerar o homem e suas condições sociais de existência. Não podemos avaliar fazendo abstrações desse tipo. Quando dizemos “o homem é um ser mau”, tomamos a espécie e a qualificamos, ignorando seus indivíduos. Um olhar mais atento nos permitiria reconhecer que há na espécie “homem” indivíduos maus e bons.
É possível que eu tenha mais a dizer sobre esse tema, mas contento-me, por ora, com estas meditações. Lembro que a situação do filósofo é a da inquietude, do pasmo. O próprio Sócrates já nos ensinara sobre isso, ao reconhecer-se ignorante. A ignorância é o início de toda filosofia. E o pensamento sua matéria-prima e pilar. Podemos contar sempre com os grandes filósofos e aprender com eles, mas nunca abdicar de nosso pensamento, de nosso anseio por questionar e por pensar. E não nos preocupemos se, por descuido, escrevemos alguma tolice; muitos filósofos assim o fizeram, mas não abriram mão de pensar.
Às vezes, basta um pensamento oportuno para nos alegrar.





segunda-feira, 18 de julho de 2011

maturidade é vida refletida (BAR)


             



                Sobre tempo e maturidade
                             Lições de experiência

Há alguns dias, o programa Profissão Repórter, da Rede Globo, exibiu reportagens sobre o abuso dos jovens no consumo de álcool. A equipe de repórteres visou a investigar as razões que levam jovens homens e mulheres ao consumo excessivo de álcool.


Este texto propõe uma discussão sobre a maturidade. Aproveito a ocasião em que noto a constância de textos que versam sobre tempo (sempre fugaz, na modernidade) e envelhecimento, que se acham nos blogs de duas queridas amigas, para oferecer aos meus leitores a minha contribuição a esse assunto intrigante. É necessário, entretanto, que eu possa contar com a paciência e boa disposição de meus leitores para acompanhar o desenvolvimento destas novas reflexões que não se darão sem o devido aparato conceitual e teórico da filosofia. Assim, pretendo fugir aos lugares-comuns e evitar, a todo custo, um tratamento superficial do assunto. Aprendi com a filosofia, que, para Deleuze, é trabalho espiritual sobre conceitos, ou seja, filosofia é criação contínua de conceitos, uma lição basilar: toda e qualquer discussão não pode acontecer sem que antes os interlocutores estejam de acordo a respeito da definição dos termos sobre os quais se situará o discurso. Assim, o rigor para a demarcação dos limites conceituais é imprescindível. Por exemplo, devemos definir o que é maturidade, ou seja, devemos estar de acordo a respeito dos limites de sua significação no discurso que dele se ocupará.
Quando pensamos em maturidade, somos levados a pensar, por associação, em conceitos como tempo, movimento, experiência e ser. Evidentemente, poderíamos pensar em idade, desenvolvimento, jovialidade, velhice, etc. Mas eu escolhi, para os meus propósitos, aqueles quatro primeiros conceitos, na base dos quais desenvolverei minhas reflexões sobre a maturidade. Peço que o leitor acompanhe com atenção o percurso de meus pensamentos, sem desviá-la.
Comecemos, pois, por definir maturidade. O dicionário é nosso recurso imediato. Na Enciclopédia e Dicionário Koogan Houassis, em seu formato digital, lemos, no verbete maturidade, o que se segue:

1. Estado das coisas ou pessoas que atingiram completo desenvolvimento; 2. período de vida compreendido entre juventude e velhice.

Como se pode ver, o dicionário serve-nos bem como um expediente norteador, mas não como fonte de definição cabal. É preciso, então, podar um pouco o sentido. Em primeiro lugar, “desenvolvimento”, como atributo de maturidade, não será pensado como ‘crescimento orgânico’. Em segundo lugar, os conceitos de ‘juventude’ e ‘velhice’, embora estejam intrinsecamente relacionados ao de maturidade, segundo o senso-comum, não serão tratados como peremptórios. Em outras palavras, juventude e velhice não servem de parâmetros para determinar a maturidade. A experiência nos dá testemunho de que há entre os mais velhos aqueles que se comportam de modo ‘imaturo’ e entre os mais jovens, não raro, pode-se perceber comportamentos que não hesitaríamos em considerar ‘maduros’. Para evitar polarizações do tipo ‘juventude’ e ‘velhice’, penso ser mais adequado associar maturidade à experiência. A maturidade se define pela quantidade e qualidade das experiências nas quais um indivíduo se envolve ao longo de sua vida. A idade aqui é apenas um fato representativo de seu desenvolvimento orgânico. Convém distinguir idade biológica de idade psicológica. A idade biológica representa o número de anos vividos e se manifesta pelas marcas que lega ao nosso corpo. A idade psicológica representa, a seu turno, as diversas formas como experimentamos espiritualmente o mundo e como reagimos a ele, o interpretamos, e com ele nos relacionamos em termos de valores morais, crenças, atitudes e conhecimentos. Nesse sentido, quanto mais maduros mais propensos a pensar sobre o mundo ficamos. É claro que não o pensamos sem que entre na conta de nossas meditações uma grande dose de preconceitos, que acumulamos ao longo de nossa vida. Por conseguinte, maturidade não significa maior possibilidade de alcançar alguma verdade sobre o mundo, de dizer, sem o risco de nos equivocar, como, realmente, funciona esse mundo.
Antes de me deter na breve elucidação dos conceitos de tempo, movimento, experiência e ser, para cuja tarefa destinarei seções neste texto, a fim de facilitar o já dispendioso trabalho interpretativo do leitor, gostaria de trazer à cena o conceito de mundo, tal como pensado em Filosofia em Comum (2008), da filósofa Márcia Tiburi. À página 82, no capítulo Fora de mim, a autora inicia seu texto perguntando-se se “pensa no mundo” e “pensa na vida”, ao que acrescentará:

“É muito comum pensar – assim, quase como ao se pensar em nada – no mundo, na vida. O mundo é um nome muito pequeno para o muito grande, o estranho que me aninha, está fora de mim. Depende, entretanto, de mim, que o penso para ser pensado, mas não para ser. É dele que me assusto. Com o conceito de mundo se define que os limites do meu pensamento fechado em si foram superados”
(grifo meu)

Atente para o reconhecimento da autora de que a extensão significativa do conceito de mundo é inapreensível, embora esse mundo tenha de ser pensado. Embora ele esteja fora de nós, ao pensá-lo, o interiorizamos. O pensamento nos ancora no mundo, pelo pensamento nos relacionamos com o mundo. Nossa experiência com o mundo se dá, fundamentalmente, pelo pensamento. Assim, escreve a autora mais adiante:

“O mundo é o que apenas posso pensar, não posso tê-lo, posso vê-lo, mas apenas em parte. Chamo mundo muitas vezes o que não sei. Mundo é o nome de uma eterna novidade da qual falava Drummond.”

Ao pensar o mundo como algo estranho e exterior ao ‘eu’, a autora crer ser o mundo uma “ideia metafísica” que o nega. À página 83, escreve:

“O mundo é o conjunto do desconhecido e do conhecido. Melhor chamá-lo “meu mundo”. (...) Podemos traduzi-lo por ordem. Meu mundo pode ser a ordem que eu consigo atribuir às coisas”.

Há que considerar dois aspectos importantes nesta reflexão sobre o conceito de mundo: a) nossa relação com o mundo se dá fundamentalmente pela interpretação, ou pelo pensamento interpretante (este pensamento é responsável por conferir-lhe certa ordem, sem a qual ele seria um agregado amorfo de coisas); b) dada a impossibilidade de pensá-lo em sua totalidade, sempre escapável, cabe-nos construir nossos pequenos mundos. Disso se segue que a possibilidade mesma de nos situarmos no mundo depende de nossa capacidade de forjar nossos pequenos mundos. O “eu” é  que permite alcançar o mundo enquanto objeto pensado.
À mesma página, escreve a autora:

“Eu poderia fazer uma lista de tudo o que compõem o meu mundo, mas a lista só teria sentido pelo conceito de lista, pela possibilidade de forjá-la como um agregado de coisas que fazem sentido entre si”.

Por que o conceito de mundo nos interessa aqui? Porque o mundo não deve confundir-se com a totalidade dos espaços geográficos em que habitamos, ou com o planeta. O mundo deve constituir os espaços que configuram nossas experiências, nas dimensões social, cultural, política (que envolve, entre outras coisas,  as formas de poder e as relações entre os cidadãos e a sociedade), familiar, afetiva e pessoal. Nossa maturidade é alcançada nas inúmeras experiências desenvolvidas em nossos pequenos “mundos” (um todo ordenado dotado, portanto, de sentido) em confronto com o grandioso e ilimitável mundo que, embora nos seja estranho (porque fora de nós) nos abriga (ou nos rejeita). Lembro que as experiências dos homens no mundo se dão através tanto do corpo quanto da alma. O homem é um ser corporal e espiritualmente engajado no mundo.
Caminhemos um pouco mais.

1.     Breves considerações
a) Tempo

Não intento me delongar nessa matéria. Todavia, convém dar a saber o que alguns filósofos disseram sobre o tempo. Escolherei três dos mais famosos filósofos gregos, a saber, Platão,  Aristóteles e Plotino. Os pensamentos desses filósofos nos bastarão, para que as teses abaixo anunciadas sejam sustentáveis. Vejamo-las:

1ª tese: O tempo não é uma força exterior que tem o poder de atuar sobre nós;
2ª tese: O tempo é movimento que se apreende na alma;

3ª tese: O tempo se relaciona às experiências em que nós nos envolvemos ao longo da vida.

Comecemos, pois, observando que os gregos tinham dois termos para designar o tempo. Um significava “época da vida”, “tempo de vida”, “duração da vida” ou, simplesmente, “vida” ou “destino”. O significado originário, todavia, era o de “força de vida”. Em muitos autores gregos, tempo designava “duração de uma vida individual”. Posteriormente, essa palavra foi usada para designar “eternidade”. É o que fez Platão ao designar o tempo como a “imagem móvel da eternidade”. Platão, aliás, embora tendesse a reduzir a ideia de tempo a algo atemporal, tratou-lhe de fazer corresponder uma realidade imediata, a saber, o movimento circular das esferas celestes.
É, todavia, em Aristóteles, que encontraremos uma contribuição mais significativa a respeito do que é o tempo. Aqui avulta o conceito de movimento. Por movimento, os gregos entendiam: a) toda mudança qualitativa de uma coisa ou corpo (por exemplo, a transformação de uma semente em árvore); b) toda mudança de lugar de um objeto ou pessoa (por exemplo, o deslocamento de uma pessoa de uma calçada a outra); c) toda mudança quantitativa de uma coisa ou corpo (por exemplo, um corpo que se divide em pedaços) d) e finalmente, toda a mudança que se verifica na geração ou depravação das coisas e das pessoas (por exemplo, o nascimento e o perecimento dos homens).
Em suma, segundo Marilena Chauí, em O que é ideologia (2006),

“Movimento, portanto, significa para um grego toda e qualquer alteração de uma realidade, seja ela qual for”.
(p. 9)

Coube a Aristóteles observar que tempo e movimento eram dados juntamente à percepção. Eram indissociáveis. Portanto, tempo é algo relacionado a movimento. Claro é que tempo implica os conceitos de agora, antes e depois. Assim, em Aristóteles, o tempo será “a medida do movimento segundo o antes e o depois”. O tempo não se confunde com o número pelo qual o medimos, mas é uma espécie de número. O tempo é a medida do movimento, já que este serve para medir o tempo, mas também pelo tempo medimos o movimento.
Aristóteles tende a considerar o tempo de um ponto de vista relativista, de sorte que assumirá ser a alma a “realidade numerante” do tempo. Ou seja, para ele, a alma é a consciência interna do tempo. É Plotino que desenvolverá a ideia segundo a qual o tempo é uma realidade da alma e esta é responsável por medir o tempo.
É interessante notar que, não raro, quando aplicamos o espírito numa atividade que nos exige maior poder de concentração, dizemos, ao cabo dela, que perdemos a noção do tempo. É que o tempo da alma surge da inteligência, ou seja, de seu fundo. Para Plotino, o tempo repousa no ser, pois que ele é “o prolongamento sucessivo da vida da alma”.
Não estou interessado em pensar o tempo como uma realidade da física, como estudado na teoria da relatividade, por exemplo, não só porque não disponho de conhecimento suficiente para tanto, mas também porque o tempo, nesse recorte teórico, é representado como algo mais distante da realidade humana. O meu intento é pensar o tempo como realidade intrinsecamente relacionada à vida humana. Disso se segue a ideia de que a experiência de tempo é já prevista na estrutura da alma humana. E, como devemos estar a par dos limites conceituais, estou falando de alma no sentido aristotélico. Assim, alma é o princípio do pensamento. É a forma de um corpo  natural organizado, cuja vida está em potência. A alma anima o corpo.
O que é a experiência de tempo? Primeiramente, precisamos entender o que é experiência. Em sentido lato, experiência é uma forma de conhecimento espontâneo e vivido, adquirido ao longo da vida. Relacionada à vida corrente, a experiência compreende as diversas formas de se relacionar com os outros e com o mundo pela cognição. Nossas experiências são experiências sóciocognitivas que são marcadas temporalmente.
Nas experiências, o mundo é interiorizado por nós. Nelas atuamos com a alma e com o corpo, interagimos. A linguagem é o fundamento de nossas experiências, já que ela fornece-nos as categorias que nos permitem organizá-las. A alma, assim, é responsável por dois movimentos: um interior, em que se volta sobre si mesma e em que age sobre si mesma; e um exterior, em que se expande e atua sobre o outro e o mundo.
A experiência imediata de tempo que temos é a passagem do dia para a noite. Experienciamos o tempo quando conscientes de que a claridade de um dia dá lugar a escuridão de uma noite, após a qual se seguirá uma nova claridade. Claridade e escuridão se alternam. É claro que esse movimento, da claridade à escuridão pode nos escapar à consciência, quando, por exemplo, estamos numa sala de cinema. Assistindo a um filme, não nos damos conta de que o tempo nos foge, e, não raro, experimentamos um assombro em face da consciência da rapidez com que o tempo passou, quando deixamos a sala de cinema. Por isso, não se pode pensar o tempo, sem relacioná-lo à alma.
Outra experiência de tempo é a que nos é dada pelo movimento de nosso corpo, na acepção de desenvolvimento. É quando nos olhamos através do espelho e notamos que crescemos, envelhecemos. Ou quando, pela memória, reconhecemos que o ‘eu’ de hoje não é o ‘mesmo eu’ de há cinco ou dez anos. Aqui também, muita vez, o tempo nos escapa, caso em que, por exemplo, depois de muitos anos sem ver um amigo, o reencontramos e nos surpreendemos como ele está mudado. E exclamamos: Como o tempo passa!
Assim como há um tempo interno à alma, assim também há um tempo interno ao corpo, ou ao organismo. Nosso corpo se desenvolve num espaço de tempo através do qual se modificará.  Passado esse tempo, nosso corpo começará a apresentar deficiências, deformidades, enfim, sinais de seu perecimento.
Se, por um lado, não podemos, conforme tenho argumentado, pensar o tempo como algo exterior que exerce um poder/ uma influência sobre nós; por outro lado, é ele sim uma realidade à qual estamos intimamente enredados. Não é o tempo que atua em lugar de nós, somos nós que atuamos, nas experiências que se dão ao longo do tempo.
É nas experiências que se desenvolve o processo de maturação de um indivíduo. Quanto mais ricas humanamente forem essas experiências tanto mais fecunda será sua maturidade. Durante esse processo, um indivíduo põe em prática sua capacidade de discriminar o que lhe parece certo e o que lhe parece errado; assim, os valores são escolhidos e fixados. É nas experiências que ele desenvolverá também maior autonomia e liberdade de escolhas. Autonomia e maior liberdade de escolhas são consequências da maturidade.
A maturidade decorre do confronto, na experiência, entre os nossos valores morais e os dos outros. Experiências são formas de relação. Experiências são formas de nos relacionar com o mundo, de percebê-lo, compreendê-lo, questioná-lo, negá-lo, modificá-lo. Experiências são espaços temporalmente demarcados em que delimitamos nossa subjetividade, marcamos nossa distinção em face dos outros. Aliás, o eu e o outro se constroem reciprocamente pela palavra, nas diversas experiências de que participam.
Tenho experiência ao tocar um estojo, ao abri-lo e fechá-lo. A experiência de escrita é a própria relação de que sou agente, ao lançar mão de uma caneta, de um papel para nele grafar frases sintática e semanticamente organizadas para atender minhas necessidades de comunicação. Nessa experiencia, estão envolvidos o ‘eu’, a lapiseira e o papel, bem como todas as manifestações verbais que nele estampo. Essa experiência, no seu aspecto mais imediato, inclui um agente (escritor), um instrumento (caneta) e um ‘lugar’ (papel) onde a atividade acontece.

b) Ser

Heidegger considerava a questão sobre o ser uma questão fundamental, portanto, extremamente importante. Filósofos houve que a consideravam um pseudoproblema. Por vezes, identificou-se o ser com o nada, de modo que o nada era senão o fundamento do ser.
Gosto da passagem em que o filósofo Caio Prado Jr., em O que é filosofia (2008), escreve a respeito dessa questão, que encontra em Parmênides um terreno fecundo:
“[ o tema central da filosofia] (...) [era o] SER de Parmênides, que é afinal, e sem embargo da tempestade verborrágica que a Metafísica desencadearia em torno do assunto, não é senão a expressão geral  e formal da operação mental com que se qualificam e identificam as feições da Natureza, e com isso se caracterizam, determinam e fixam”
(p. 36)

Como se vê, o problema do ser situasse no plano conceitual, mais precisamente, na teoria do conhecimento. Não se trata de ser como substância individual, percebida pelos sentidos. Mas remontemos, antes de prosseguirmos, à sua origem linguística.
O que é o ser senão o verbo de cópula? Ou seja, é o verbo que liga um sujeito a um atributo (predicativo), como na frase “Pedro é feliz”. Acontece, contudo, que, originariamente, o verbo “ser” podia ser usado no sentido de “existir”, de modo que poderíamos dizer simplesmente “Pedro é” (Pedro existe). É este sentido existencial que permitirá falar do SER como o que existe ou o “ente”. Por questões de vocabulário, que não vou pormenorizar aqui, introduziu-se a distinção entre “ser” e “ente”. O ser passou a ser entendido como algo mais perfeito e geral que faz com que o ente seja. Ser combinou, assim, dois sentidos: um relacionado à essência e outro relacionado à existência. A confusão fez com que alguns pensassem o ser como algo mais geral e abstrato, que nada tinha que ver com uma substância determinada.
Logo o conceito de ser passou a designar um transcendental, que está absorvido em todas as manifestações do ser e também acima deste.
Na Grécia, os pré-socráticos se perguntaram sobre “o ser das coisas”, ou seja, sobre a realidade última, que constituem as coisas, bem como as qualidades destas que nos são acessíveis aos sentidos. Dá-se, pela operação do pensamento, o ocultamento do ser. Como se disse comumente, o “ser” acha-se escondido na aparência. A aparência se comparava ao devir, ao movimento. O ser, a seu turno, ao uno, ao real. O ser, assim, só se determina pela razão, não pela experiência. A experiência nos dá a mudança.
Vou-me limitar, embora eu tivesse fonte suficiente para levar adiante essa discussão, a dizer que o ser foi estudado em contraste com outros conceitos, tais como o nada, a aparência, o pensar, o devir, o valor, o dever ser, o ter, e o sentido.
Quero insistir em que a pergunta pelo ser, tal como colocada pelos pré-socráticos, dizia respeito ao “o que verdadeiramente existe?” ou “o que verdadeiramente há”. Para se chegar ao ser, é preciso superar a aparência.
Vou me cingir a comentar a relação contrastante entre ser e nada; ser e aparência, ser e pensar; e ser e sentido.
Ser e nada foram confrontados de modo a fazer ver a diferença entre o ser e o não-ser. Dialeticamente, a diferença se exprime na fórmula “um é a negação do outro”. O ser é o não-nada; o nada é o não-ser. Todavia, por vezes, o nada foi considerado o fundamento do ser. Cai por terra assim a diferenciação primeira, baseada na operação de negação.
Ora, seu eu sou no instante em que me sinto presente, já que o ser é consciência e esta é sempre presente, o futuro é o não-ser, ou o nada. Quero dizer que não há algo como o futuro, uma espécie de compartimento de experiências que ainda não são.
Ser e aparência se definem pela relação recíproca. Um é em relação ao outro. É possível, entretanto, entender que o ser não está oculto por trás da aparência e que ela abrange a totalidade do ser. Nesse sentido, o ser está presente e é imediatamente acessível pelos sentidos. O ser é aparente, evidente, um dado imediato.
Rechaço essa concepção que reduz o ser à aparência e considero o ser como uma realidade escapável, oculta, abstrata, que se insinua na linguagem (não em todas as suas formas) e, especialmente, na poesia e suas formas líricas. Também o ser pode ser investigado, perscrutado pela psicanálise. Por que não identificá-lo com o inconsciente freudiano?
Ser e pensar, embora distintos, podem ser isomórficos (ou seja, podem apresentar a mesma forma). Por poderem apresentar a mesma forma, podem ser considerados correspondentes. Parmênides entendia que o ser é o mesmo que pensar. O pensar é apreensão direta do que é.
Ser e sentido suscita as seguintes questões: a) o ser tem sentido ou não?; b) o sentido é parte da dimensão do ser?; c) o ser pode ser reduzido ao sentido? Só há, a rigor, contraste entre ambos se o ser for uma potencialidade do sentido.
Para um espírito lírico, a questão do ser é bastante fecunda, especialmente se a consideramos sob a perspectiva existencialista, tal como desenvolvida por Sartre, que considerará as diferentes formas de ser, tais como o ser-em-si e o ser para-si. Há também o ser fora de si, ou seja, ser que se dirige para a alteridade. A alteridade é, por um lado, o ser-outro, ou seja, a transformação de uma realidade em outra. Assim, trata-se do ser que é infiel a si mesmo. Mas pode ser também entendida como a ampliação do ser por meio de novas experiências. Aqui, o âmbito de atuação do ser se expande, através das inúmeras experiências. A constituição do ser depende da expansão do âmbito de suas experiências.
O ser para-si, oposto ao ser em-si (pura imanência), é ser de transcendência. O para-si não deve ser entendido como ser que se volta reflexivamente sobre si mesmo, desligando-se completamente do mundo. Isso o identificaria ao ser em-si. O para-si exprime a intimidade e a possibilidade mesma de fazer-se presente a si mesmo e de transcender a si mesmo. O ser para-si, para alguns filósofos, ganha concretude existencial. O homem combina o ser fora de si (que existe pela relação com a alteridade) e o ser para si, que transcende a si mesmo. O homem é um ser de autotranscendência.


Conclusão

Por vezes, ingenuamente, somos levados a acreditar que o tempo, em si, é agente que atua sobre nossa vida, que tem o poder de produzir nossa maturidade. No entanto, podemos envelhecer e não alcançar a maturidade que nos permite debruçarmo-nos reflexivamente sobre a vida, a fim de ponderar nossos erros e acertos, nossas escolhas, nossas omissões. Porque maturidade depende não só da quantidade, mas, mormente, da qualidade das experiências em que nós nos envolvemos. Quanto maior for nossa abertura anímica para a existência, quanto maior for nossa profundidade nas experiências de mundo, maior será a dimensão de nossa maturidade.
Isso explica o fato de que podemos não amadurecer, mesmo já contando muitos anos de vida no rosto. Por quê? Porque persistimos em experienciar a vida superficialmente, em nos envolver com pessoas esvaziadas, superficiais. Porque nos prendemos a experiências empobrecidas. Nossa maturidade depende de experiências nas quais as interações com o outro contribuam para o nossa elevação intelectual, emocional, espiritual, etc.
Lembro-me de quando decidi pela ruptura com relacionamentos que, na adolescência eram favoráveis, mas que, com o desenvolvimento da maturidade, deixaram de sê-lo. Foi nessa ruptura que abri terrenos para o florescimento e enobrecimento de minha maturidade. Mas, é bom que se entenda: o homem é um ser inacabado, a maturidade é um processo, um vir a ser, e como tal, não terá fim, enquanto houver tempo e vida.