Revisitando Sobre moluscos e homens
Parte 1
O estudo da paragrafação
Você acorda de
manhã e diz:
- Mãe, estou com
fome!
Você
enuncia uma sequência de vocábulos que estão organizados segundo regras das
quais você não está consciente, mas que você domina como parte de seu
conhecimento linguístico intuitivo, resultado das experiências de aquisição de
sua língua materna entre os 3 e 7 anos de vida.
Você
também sabe que, ao proferir aquele enunciado, provocará, tendo em conta um
contexto adequado, uma reação no seu interlocutor. Se sua mãe está na cozinha,
é provável que ela, após ouvir o seu pedido (porque se trata de um pedido,
produzido de modo indireto), convide você a sentar-se à mesa. Ela poderia dizer
algo como:
- Está
na mesa. Tem pão quentinho e suco de laranja.
Ao
produzir esse enunciado, sua mãe realiza um ato de convidar – ela convida você a se alimentar e saciar sua fome. Produzindo-o,
ela causa uma reação em você. Você se sentará à mesa sem hesitar.
Esse
exemplo patenteia o fato de que “todo dizer é um fazer”, de que a língua é uma
forma de ação social, é uma atividade intersubjetiva, um lugar de interação
onde os participantes, produzindo enunciados, atuam uns sobre os outros e se
constituem reciprocamente, não sem o reconhecimento de regras
sociointeracionais, não sem a mobilização de estratégias variadas, não sem a
manutenção de um contrato comunicativo, etc.. Todo dizer produz um efeito
verbal ou não-verbal no outro. E você, que é um ser de linguagem, que é um
sujeito social participante de uma comunidade cultural e que vive imerso em sua
língua materna o tempo todo, “sabe”, por exemplo, que, se, por ventura, ofender
alguém, poderá atrair para si a agressividade dessa pessoa ofendida. Ela pode
desferir-lhe um tapa. A ofensa realiza-se, na maioria das vezes, como um ato
linguístico. Ofendemos usando a língua. Você sabe disso, mas, provavelmente,
nunca refletiu seriamente sobre isso. Porque está imerso na linguagem. Toda
reflexão sobre um objeto demanda um distanciamento do sujeito em relação a este
objeto. A reflexão só é possível quando nos permitimos olhar a distância o
objeto de nosso interesse intelectual.
Nessa
concepção de língua/ linguagem como forma de ação social, cada enunciado
produzido constitui um ato de fala.
Assim, atos de fala são formas de ação
social que se realizam na língua e pelo uso da língua. Não vou descer a
pormenores, porque o tema deste texto é outro, muito embora seja a concepção de
língua aqui apresentada que orientará as reflexões que, doravante, levarei a
efeito.
Acreditando
ter sido insuficiente a leitura que propus sobre o texto de Rubem Alves – Sobre moluscos e homens – volto a
considerá-lo, com vistas a oferecer uma análise mais acurada de aspectos
linguístico-discursivos, cuja compreensão é fundamental para o processamento
textual ou construção de sentido para o texto. A análise considerará fenômenos
discursivos que desbordam os limites do texto, tais como a polifonia e a
intertextualidade. O método de que me valerei consiste em ir dos aspectos
gerais aos particulares. Cada qual desses aspectos será considerado em seções
distintas, a fim de que a atenção do leitor não se dissipe no decorrer da
leitura. Espero assim favorecer a concentração da atenção do leitor em cada
aspecto considerado. Com isso, não suponho esgotar os fenômenos
textuais-discursivos que podem ser analisados no texto. Muito haverá ainda por
considerar, evidentemente, mas não tenho a pretensão de dar conta da totalidade
discursiva do objeto linguístico em análise.
São,
basicamente, dois os meus propósitos:
1º propósito
patentear ao leitor que toda
interpretação está calcada sobre a superfície textual, de modo que a construção
do sentido é dependente, em parte, do reconhecimento das pistas textuais
fornecidas pelo autor;
2º propósito
tornar claros ao leitor os mecanismos linguístico-discursivos envolvidos no
processo de produção/ interpretação textual.
Abaixo,
segue o texto de Rubem Alves com as unidades linguísticas envolvidas nos
fenômenos, de cuja análise me ocuparei, em negrito. Cabe salientar, contudo,
que, aqui, só me ocuparei de um fenômeno linguístico apenas: a estruturação do parágrafo.
Sobre
moluscos e homens
Rubem
Alves
Piaget, antes
de se dedicar aos estudos da psicologia da aprendizagem, fazia pesquisas
sobre os moluscos dos lagos da Suiça. Os moluscos são animais fascinantes.
Dotados de corpos moles, seriam petiscos deliciosos para os seres vorazes que
habitam as profundezas das águas e há muito teriam desaparecido se não fossem
dotados de uma inteligência extraordinária. Sua inteligência se revela no
artifício que inventaram para não se tornarem comida dos gulosos: constroem
conchas duras – e lindas! - que os protegem da fome dos predadores. Ignoro detalhes da biografia de Piaget
e não sei o que o levou a abandonar
seu interesse pelos moluscos e a se voltar para a psicologia da aprendizagem
dos humanos. Não sabendo, tive de
imaginar. E foi imaginando que
pensei que Piaget não mudou o seu foco de interesse. Continuou interessado nos
moluscos. Só que passou a concentrar
sua atenção num tipo específico de molusco chamado “homem”. Se é que você não sabe, digo-lhe que
muito nos parecemos com eles: nós, homens, somos animais de corpo mole,
indefesos, soltos numa natureza cheia de predadores. Comparados com os outros
animais nossos corpos são totalmente inadequados à luta pela vida. Vejam os
animais. Eles dispõem apenas do seu
corpo para viver. E o seu corpo lhes
basta. Seus corpos são ferramentas maravilhosas: cavam, voam, correm,
orientam-se, saltam, cortam, mordem, rasgam, tecem, constroem, nadam,
disfarçam-se, comem, reproduzem-se. Nós, se abandonados na natureza apenas com
o nosso corpo, teríamos vida muito curta. A natureza nos pregou uma peça:
deixou-nos, como herança, um corpo molengão e inadequado que, sozinho, não é
capaz de resolver os problemas vitais que temos de enfrentar. Mas, como diz o
ditado, “é a necessidade que faz o sapo pular”. E digo: é a necessidade que faz o homem pensar. Da nossa fraqueza
surgiu a nossa força, o pensamento. Parece-me,
então, que Piaget, provocado pelos
moluscos, concluiu que o conhecimento é a concha que construímos a fim de sobreviver.
O desenvolvimento do pensamento, mais
que um simples processo lógico, desenvolve-se em resposta a desafios
vitais. Sem o desafio da vida o
pensamento fica a dormir... O
pensamento se desenvolve como ferramenta para construirmos as conchas que a
natureza não nos deu.
O corpo aprende para viver. É isso que dá sentido ao conhecimento. O que se aprende são
ferramentas, possibilidades de poder. O corpo não aprende por aprender.
Aprender por aprender é estupidez. Somente os idiotas aprendem coisas para as
quais eles não têm uso. Somente os
idiotas armazenam na sua memória ferramentas para as quais não têm uso. É o desafio vital que excita o pensamento. E
nisso o pensamento se parece com o pênis. Não é por acidente que os escritos
bíblicos dão ao ato sexual o nome de “conhecimento”... Sem excitação a
inteligência permanece pendente, flácida, inútil, boba, impotente. Alguns há
que, diante dessa inteligência flácida, rotulam o aluno de “burrinho”... Não,
ele não é burrinho. Ele é inteligente. E sua inteligência se revela
precisamente no ato de recusar-se a ficar excitada por algo que não é vital. Ao
contrário, quando o objeto a excita, a inteligência se ergue, desejosa de
penetrar no objeto que ela deseja possuir.
Os ditos “programas” escolares se baseiam no pressuposto
de que os conhecimentos podem ser aprendidos numa ordem lógica predeterminada.
Ou seja: ignoram que a aprendizagem só acontece em resposta aos desafios vitais
que estão acontecendo no momento ( insisto nessa expressão “no momento” – a
vida só acontece “no momento” ) da vida do estudante. Isso explicaria o fracasso das nossas escolas. Explicaria também o sofrimento dos alunos. Explicaria a sua justa
recusa em aprender. Explicaria sua
alegria ao saber que a professora ficou doente e vai faltar... Recordo a
denúncia de Bruno Bettelheim contra
a escola: “Fui forçado (!) a estudar o
que os professores haviam decidido o que eu deveria aprender – e aprender à sua
maneira...” Não há pedagogia ou didática que seja capaz de dar vida a um
conhecimento morto. Somente os
necrófilos se excitam diante de cadáveres.
Acontece, então,
o esquecimento: o supostamente aprendido é esquecido. Não por memória fraca.
Esquecido porque a memória é inteligente. A memória não carrega conhecimentos
que não fazem sentido e não podem ser usados. Ela funciona como um escorredor
de macarrão. Um escorredor de macarrão tem a função de deixar passar o inútil e
guardar o util e prazeroso. Se foi
esquecido é porque não fazia sentido. Por isso acho inúteis os exames oficiais
( inclusive os vestibulares ) que se fazem para avaliar a qualidade do ensino.
Eles produzem resultados mentirosos por serem realizados no momento em que a
água ainda não escorreu. Eles só diriam a verdade se fossem feitos muito tempo
depois, depois do esquecimento haver feito o seu trabalho. O aprendido é aquilo
que fica depois que tudo foi esquecido... Vestibulares: tanto esforço, tanto
sofrimento, tanto dinheiro, tanta violência à inteligência... O que sobra no
escorredor de macarrão, depois de transcorridos dois meses? O que restou no seu
escorredor de macarrão de tudo o que você teve de aprender? Duvido que os professores de cursinhos
passem nos vestibulares. Duvido que
um professor de português se saia bem em matemática, física, química e
biologia... Eles também esqueceram. Duvido
que os professores universitários passem nos vestibulares. Eu não passaria. Então, por que essa violência que se
faz sobre os estudantes?
Ah! Piaget!
Que fizeram com o seu saber? Que fizeram com a sua sabedoria? É preciso que os educadores voltem a
aprender com os moluscos...
1. Paragrafação e tópico
discursivo
Como eu disse anteriormente, começarei por considerar
aspectos mais gerais. Em face de um texto escrito, o plano mais imediatamente
acessível ao leitor é a organização do texto em blocos de sentido, ou seja, em
parágrafos. Para os meus propósitos aqui, estou considerando o texto como a unidade de comunicação
hierarquicamente superior á frase. Essa delimitação conceitual é necessária
porque um único enunciado é um texto, desde que, num contexto determinado,
cumpra uma função comunicativa. Esse enunciado pode, inclusive, ser constituído
de uma única palavra (ex. fogo! –
produzido por alguém que vê um prédio em chamas, alertando pessoas sobre o
perigo ou sobre a necessidade de acionar as autoridades competentes). Escusa
dizer que o texto está sendo considerado apenas na modalidade escrita, muito
embora nós falemos por meio de textos.
Textos escritos longos são, via de regra, organizados em
parágrafos (com exceção do gênero textual códice, que não apresenta espaçamento
entre um bloco de sentido e outro). Em geral, os parágrafos compõem-se de
sucessivos encadeamentos de frases, muito embora possa aparecer, eventualmente,
uma única frase como parágrafo.
Importa-nos, contudo, a definição do parágrafo-padrão (Garcia, 2006: 219). O parágrafo-padrão é um todo ou um bloco dotado de sentido,
constituído por encadeamentos lógicos de frases, através dos quais se
desenvolvem várias ideias, uma das quais constitui a ideia central, à qual se subordinam outras. Essas outras
ideias se dizem secundárias e estão
associadas à ideia central de modo lógico e coerente.
A importância do parágrafo deve ser considerada a partir de
duas perspectivas: a do produtor do texto e do leitor. Do ponto de vista do
produtor, a divisão em parágrafos permite ao produtor distribuir suas ideias,
estruturando-as de acordo com seus propósitos, segundo relações
lógico-semânticas e discursivas estabelecidas à medida que faz avançar o texto.
O parágrafo, assim, constitui um todo coeso, no qual a uma ideia principal
agrega-se outras ideias secundárias. O parágrafo reflete a estruturação
sintático-semântica e discursiva do texto. Do ponto de vista do leitor, o
parágrafo facilita a leitura, já que permite ao leitor acompanhar o desenvolvimento
do texto em diferentes etapas, conforme previsto pelo planejamento comunicativo
(entenda-se interacional-argumentativo) do produtor.
Até aqui disse que todo parágrafo organiza-se em torno de
uma ideia central e que a essa ideia se ligam outras ideias de status secundário. Avancemos, então.
1.2. Tópico Discursivo
O tópico discursivo é o assunto
principal do texto. É o tema ao qual se prendem as informações do texto. É
desejável que ele apareça no limiar do primeiro parágrafo, sendo, com frequência,
sinalizado pelo título. Falamos em tópico
sentencial (ou frasal) para designar o elemento da frase sobre o qual se
informa alguma coisa. Trata-se do elemento que funciona como ponto de partida
da informação. O tópico é uma função comunicativa e não sintática; por isso nem
sempre coincidirá com o sujeito da frase. O sujeito é uma função sintática.
Assim, se por um lado, em (a) sujeito e tópico coincidem, em (b) não há
coincidência entre os dois:
(a) Ana enterrou
o passarinho no quintal.
(b) o passarinho
Ana enterrou no quintal.
Em (a), o constituinte “Ana” é, do ponto de vista sintático,
o sujeito da frase (o termo com o qual o verbo concorda); do ponto de vista
comunicativo, é o tópico frasal, ou seja, o elemento sobre o qual se informa
alguma coisa. Em (b), sucede diferente. O constituinte “o passarinho” é o
objeto direto do verbo “enterrar”, que foi deslocado para a posição de tópico
frasal.
Disso se depreende que a correlação entre “ser tópico” e
“ocupar a primeira posição”. Segundo Liberato et.alii. (2007: 57),
“Essa
correlação parece natural: sendo o tópico o ponto de partida cognitivo, isto é,
a entidade que o falante tem em mente e sobre a qual dirá alguma coisa, ele
deve coincidir com o ponto de partida comunicativo”.
Topicalizar é, portanto, deslocar um constituinte oracional
de sua posição canônica para a posição inicial, colocando-o em foco, ou seja, dando-lhe o status de
elemento sobre o qual recai a informação da frase.
Voltemos à questão do tópico discursivo.
Devemos entender, portanto, o tópico discursivo como o tema
geral ou principal do texto como um todo. Disso não se segue que esse tema não
nos aparece subdividido. Ou seja, além do tópico discursivo, há subtópicos.
Compreendamos a complexidade da estruturação do parágrafo em tópicos.
Postula-se que todo texto apresenta um tópico discursivo,
que corresponde ao assunto do texto. Esse assunto ou tópico discursivo se
divide em subtópicos que constituem tópicos de unidades menores – os parágrafos. Cada um dos subtópicos do
parágrafo pode ser dividido em tópicos ainda menores. Assim, a arquitetura em
tópicos pode ser ilustrada como se segue:
TEXTO
Tópico discursivo
1º parágrafo
subtópico 1
{ tópico a
{ tópico b
{ tópico c
Ao contrário do que sugere a ilustração, cada parágrafo pode
apresentar mais de um subtópico relacionado ao tópico discursivo. Esses
subtópicos se dividem em tópicos menores (passarei a chamá-los de segmentos
tópicos, quando da análise dos dados). A importância da compreensão da
organização do parágrafo em tópicos pode ser compreendida nas seguintes
palavras de Liberato et.alii:
“(...) a
compreensão da estrutura de tópicos (...) é um componente essencial da
compreensão de um texto. Pode-se dizer que um leitor que não apreendeu o tópico
de um texto simplesmente não entendeu o texto. Ele não consegue, por exemplo,
responder a pergunta “Sobre o que é esse texto?”.
(p. 56)
O exercício de análise tópica dos parágrafos, para o
reconhecimento da estruturação do tema, é profícuo não só aos
estudantes-leitores menos experientes, mas também àqueles para os quais ler é
uma atividade corriqueira. Nos dois casos, busca-se desenvolver habilidades de
reconhecimento do tema do texto, bem como sensibilizá-los para o modo como o
escritor esquadrinhou a complexidade do tema ao longo do texto. Ora, um tema
complexo demanda um tratamento por estágios, cada qual destinado à consideração
de um aspecto do fenômeno abordado. Daí a importância de, primeiramente,
delimitar o tema, de fazer um recorte sobre seu domínio de referência, para,
posteriormente, abordá-lo discriminando e analisando os diversos aspectos nele
implicados.
O leitor, quiçá, tenha percebido que o texto de Rubem Alves
encerra um primeiro parágrafo bastante extenso. Talvez, o leitor tenha ficado
com a sensação de que seria necessário fazer vários cortes nesse parágrafo.
Talvez, devêssemos dividi-lo em dois ou mais. Decerto, podemos dividi-lo, como
se verá. De que critérios nos valemos para determinar em que ponto ou momento é
necessário abrir um novo parágrafo? Antes de apresentar os três fatores que
correspondem às expectativas do leitor no tocante a segmentação do texto em
parágrafos, vou trazer à baila o seguinte trecho de Rehfeld (1984. apud. Liberato et.alii. 2007: 68):
“[...] a
paragrafação constitui um dos aspectos importantes da estruturação dos textos
e, nesse sentido, relaciona-se com o problema da compreensão em leitura: o
parágrafo pode servir de pista para a montagem da “paisagem mental” que o
leitor constrói do texto. Um leitor pode desenvolver estratégias que o levem a
esperar nos limites de parágrafo a ocorrência de certas transições de traços
[...] relevantes para a compreensão do texto”.
(p. 1)
Experimentos demonstram que leitores experientes, em face de
um texto sem paragrafação, fazem indicação dos pontos em que esperavam haver
divisão em parágrafos. Rehfeld conclui que “o parágrafo é uma unidade
psicologicamente real” (Liberato et.alii. p. 69).
Há, portanto, três fatores que condicionam a divisão de um
texto em parágrafos:
1º fator: mudança de parâmetros;
2º grau de detalhamento das informações
3º tamanho do parágrafo.
O primeiro fator – mudança
de parâmetros – consiste na marcação de um parágrafo em virtude de mudanças
em traços semânticos, tais como personagem, tempo e lugar na narrativa. Uma
quebra de continuidade da narrativa, tendo como eixo um desses parâmetros,
implicaria a marcação de novo parágrafo. Assim, um novo personagem que entra em
cena teria o potencial de sinalizar a abertura de um novo parágrafo. O mesmo se
aplica à mudança de tempo e lugar na narrativa.
O segundo fator – grau
de detalhamento das informações – é, particularmente, relevante nos textos
argumentativos. Por razões didáticas, o escritor pode distribuir em parágrafos
distintos informações detalhadas sobre um dado tópico. Aliás, é o que eu faço
aqui. Apresentei os tipos de fatores que condicionam a paragrafação e estou
definindo cada qual em parágrafos distintos. Por outro lado, ele pode reunir
pormenores diretamente relacionados ao tópico discursivo num mesmo parágrafo.
Liberato (2007) observa que ainda não há estudos para determinar a validade das
hipóteses levantadas nesse domínio. Pelo menos, àquela altura. Desconheço
estudos que desse fenômeno se ocupem. Isso não nos impede de exercitar nossa
capacidade de segmentação do texto em parágrafos, um exercício que levaremos a
efeito logo.
Finalmente, o terceiro fator – tamanho do parágrafo – relaciona-se à tentativa de o produtor
evitar parágrafos excessivamente longos (embora não tenha sido o caso de Rubem
Alves). Do mesmo modo, ele tende a evitar parágrafos muito curtos (constituídos
de uma ou duas frases apenas). O parágrafo não sendo nem muito extenso nem
muito curto deve exibir uma unidade de parâmetros, deve articular adequadamente
subtópicos e tópicos hierarquicamente inferiores, de sorte que fiquem coesos e
facilitem a construção da coerência, ao menos, local do texto.
1.3. A estruturação
em tópicos do primeiro parágrafo do texto de Rubem Alves.
Empreendamos a análise do primeiro parágrafo apenas do texto
de Rubem Alves, a fim de compreender sua organização tópica. Estou
particularmente interessado na possibilidade de depreensão do tópico discursivo, cujo aparecimento é
esperado no primeiro parágrafo.
Precisei reler, com atenção, esse parágrafo, buscando
aplicar, em minha análise, os conceitos teóricos que vim apresentando até aqui.
De imediato, precisei lançar mão de outros dois conceitos ligados à organização
temática do texto, a fim de apreender adequadamente como os subtópicos e seus
tópicos estão relacionados. Precisei, então, lançar mão dos conceitos de tema e rema, cuja apreensão se dá no nível da frase. Desde já, informo o
leitor de que tema é o equivalente nocional de tópico frasal. Rema, a seu
turno, é o que sobra na frase após a identificação do tema. Portanto, o rema é
a parte da frase que encerra a informação propriamente dita. Na frase (a),
anteriormente citada, “Ana” é o tema; e “enterrou o passarinho no quintal”, o
rema. O meu objetivo foi mapear a progressão temática do parágrafo, ou seja, a
recorrência dos temas ao longo do texto. Evidentemente, há progressão com tema constante, caso em que o tema, uma vez
introduzido, é mantido em enunciados sucessivos do texto. Há progressão linear, caso em que o rema de
um enunciado anterior torna-se tema do enunciado seguinte. Há progressão com divisão de tema, caso em
que o tema é subdividido em vários temas subsequentes. E, finalmente, há progressão com rema subdividido, caso
em que o rema se fragmenta, de modo que cada uma de suas partes torna-se tema
de enunciados posteriores. Vejam-se os exemplos abaixo, cada qual
representativo de um tipo de progressão tema-rema:
(c) O cachorro é muito estimado por muitas pessoas. Ele
é considerado amigo e companheiro para todas as horas. Sempre disposto a
agradar ao seu dono, não economiza na manifestação de alegria. (progressão com tema constante –
cachorro).
(d) João beijou Ana. Ana correu para contar para Luíza.
Luíza, sabendo do caso, telefonou para Júlia. Júlia espalhou a notícia para
toda a vizinhança. O namoro não era mais segredo. (progressão linear – Ana (rema) - Ana (tema) - Luíza (rema) - Luíza (tema) – Júlia (rema) – Júlia (tema))
(e) A cultura pode ser subdividida em dois tipos: cultura
subjetiva e cultura objetiva. A cultura subjetiva encerra o conjunto de
conhecimentos, valores, crenças adquiridos pelos membros de uma sociedade em
virtude de compartilharem um mesmo código cultural. A cultura objetiva é aquela
que se manifesta em forma de artes, música, cinema, teatro, livros, etc. (progressão
com divisão de tema – cultura: cultura subjetiva e cultura objetiva)
(f) Hoje, fui ao shopping e comprei muita coisa pra vestir.
Os sapatos ficaram ótimos. Já as calças não serviram. (progressão com rema subdividido – muita coisa: sapatos e calças).
Além dos conceitos de tema-rema, precisei recorrer a uma
forma mais clara de abordar a organização dos tópicos. Koch (2006) nos fornece
uma abordagem da estruturação dos tópicos mais adequada e clara. Ela mantém a
hierarquização dos tópicos. Assume como unidade de nível mais alto o supertópico, que chamarei tópico discursivo. Mantenho a noção de
subtópico, nível imediatamente mais baixo em relação ao tópico discursivo, mas
incluo o nível dos segmentos tópicos,
que são constituintes do subtópico e, portanto, unidades de nível hierárquico
inferior ao subtópico. Diversos subtópicos constituirão um quadro tópico.
Esquematicamente, temos o seguinte:
Tópico discursivo
Quadro tópico
Subtópico subtópico subtópico
Segmento tópico segmento tópico segmento tópico
Vou propor um modo de segmentar o extenso parágrafo primeiro
do texto, sem pretender que essa segmentação seja a forma de segmentação (mais)
correta. O leitor poderá divergir de mim, nesse tocante, operando outra
segmentação. Hesitei, algumas vezes, nesse processo de marcação de parágrafos.
Atribuo ao autor um pouco de responsabilidade sobre minha dificuldade inicial,
já que ele vai reunindo temas sucessivamente, sem se preocupar com a
estruturação em parágrafos dos subtópicos e tópicos.
Apresento, abaixo, o primeiro parágrafo do texto, com os
temas e remas destacados. Os temas aparecem em negrito e os remas sublinhados.
É na base do reconhecimento dos temas e remas que proponho determinarmos o
tópico discursivo, os quadros tópicos, subtópicos e segmentos tópicos.
Piaget, antes de se dedicar aos estudos da psicologia da aprendizagem, fazia
pesquisas sobre os moluscos dos lagos da Suiça. Os moluscos são animais fascinantes. Dotados de corpos
moles, [eles] seriam petiscos
deliciosos para os seres vorazes que habitam as profundezas das águas e há
muito teriam desaparecido se não fossem dotados de uma inteligência
extraordinária. Sua inteligência
se revela no artifício que inventaram para não se tornarem comida dos
gulosos: constroem conchas duras – e lindas! - que os protegem da fome dos
predadores. [Eu] Ignoro
detalhes da biografia de Piaget e não sei o que o levou a abandonar seu
interesse pelos moluscos e a se voltar para a psicologia da aprendizagem dos
humanos. Não sabendo, [Eu] . E
foi imaginando que [Eu] pensei
que Piaget não mudou o seu foco de interesse. [Piaget]
Continuou interessado nos moluscos. Só que [Piaget] passou a concentrar sua atenção num tipo específico de
molusco chamado “homem”. Se é que você não sabe, [Eu] digo-lhe que muito nos parecemos com eles: nós, homens, somos animais de corpo mole, indefesos, soltos numa
natureza cheia de predadores. Comparados com os outros animais nossos corpos são totalmente
inadequados à luta pela vida. Vejam os
animais. Eles dispõem apenas
do seu corpo para viver. E o seu
corpo lhes basta. Seus corpos
são ferramentas maravilhosas: cavam, voam, correm, orientam-se,
saltam, cortam, mordem, rasgam, tecem, constroem, nadam, disfarçam-se, comem,
reproduzem-se. Nós, se
abandonados na natureza apenas com o nosso corpo, teríamos vida muito curta.
A natureza nos pregou uma peça:
deixou-nos, como herança, um corpo molengão e inadequado que, sozinho, não é
capaz de resolver os problemas vitais que temos de enfrentar. Mas, como
diz o ditado, “é a necessidade que
faz o sapo pular”. E [Eu] digo:
é a necessidade que faz o homem pensar. Da nossa fraqueza surgiu a nossa
força, o pensamento. Parece-me,
então, que Piaget, provocado pelos
moluscos, concluiu que o conhecimento
é a concha que construímos a fim de sobreviver. O desenvolvimento do pensamento, mais que um simples processo
lógico, desenvolve-se em resposta a desafios vitais. Sem o desafio da
vida o pensamento fica a dormir...
O pensamento se desenvolve como
ferramenta para construirmos as conchas que a natureza não nos deu.
Apesar
de eu ter sugerido que o tópico discursivo pode ser depreendido no limiar do
primeiro parágrafo, não sucede assim no texto de Rubem Alves. O tópico
discursivo, ou seja, o tema do texto não é imediatamente apreendido. O fato de
o autor começar seu texto falando do interesse de Piaget pelo comportamento dos
moluscos nos mostra que não há interesse de facilitar o caminho do leitor na
busca por determinar o Tema (com maiúscula para diferenciá-lo do tema, elemento
da frase) do texto. O autor incorpora um pouco de erudição em seu texto, ao
lembrar o interesse de Piaget por moluscos. Pode tratar-se de uma informação
nova para o leitor, que, talvez, ignorasse o fato de Piaget ter-se ocupado com
o estudo dos moluscos. Definitivamente, não é Piaget o tópico discursivo. Mas é
tema em vários momentos no texto.
O
leitor deve ter observado que há mudanças constantes de tema. Inicia-se com
“Piaget”, depois insere-se “moluscos”, que é retomado (eles). Posteriormente,
introduz-se “inteligência”, relacionando-a a moluscos e, depois, uma quebra,
com a introdução de “Eu ignoro”. Neste trecho, o autor retoma Piaget. Essas
rupturas servem-nos de caminhos para que operemos a divisão desse parágrafo em
cinco. Proponho que esse parágrafo seja dividido em cinco partes, que darão
origem a cinco parágrafos. Vejamos:
1º
parágrafo
Piaget, antes de se dedicar aos estudos da psicologia da aprendizagem, fazia
pesquisas sobre os moluscos dos lagos da Suiça. Os moluscos são animais fascinantes. Dotados de corpos
moles, [eles] seriam petiscos
deliciosos para os seres vorazes que habitam as profundezas das águas e há
muito teriam desaparecido se não fossem dotados de uma inteligência
extraordinária. Sua inteligência
se revela no artifício que inventaram para não se tornarem comida dos
gulosos: constroem conchas duras – e lindas! - que os protegem da fome dos
predadores.
2º
parágrafo
[Eu] Ignoro detalhes da biografia de Piaget e não sei o que o levou a
abandonar seu interesse pelos moluscos e a se voltar para a psicologia da
aprendizagem dos humanos. Não sabendo, [Eu]. E foi imaginando que [Eu] pensei que Piaget não mudou o
seu foco de interesse. [Piaget] Continuou interessado nos
moluscos. Só que [Piaget] passou
a concentrar sua atenção num tipo específico de molusco chamado “homem”.
3º
parágrafo
Se é que você não sabe, [Eu] digo-lhe que muito nos parecemos com eles: nós, homens, somos animais de corpo mole, indefesos, soltos numa
natureza cheia de predadores. Comparados com os outros animais nossos corpos são totalmente
inadequados à luta pela vida. Vejam os
animais. Eles dispõem apenas
do seu corpo para viver. E o seu
corpo lhes basta. Seus corpos
são ferramentas maravilhosas: cavam, voam, correm, orientam-se,
saltam, cortam, mordem, rasgam, tecem, constroem, nadam, disfarçam-se, comem,
reproduzem-se. Nós, se
abandonados na natureza apenas com o nosso corpo, teríamos vida muito curta.
4º
parágrafo
A natureza nos pregou uma peça: deixou-nos, como herança, um corpo molengão e
inadequado que, sozinho, não é capaz de resolver os problemas vitais que temos
de enfrentar. Mas, como diz o ditado,
“é a necessidade que faz o sapo pular”. E [Eu] digo: é a necessidade que faz o homem pensar. Da
nossa fraqueza surgiu a nossa força, o
pensamento.
5º
parágrafo
Parece-me, então, que Piaget, provocado pelos moluscos, concluiu que o conhecimento é a concha que construímos a fim de sobreviver. O desenvolvimento do pensamento,
mais que um simples processo lógico, desenvolve-se em resposta a desafios
vitais. Sem o desafio da vida o
pensamento fica a dormir... O
pensamento se desenvolve como ferramenta para construirmos as conchas
que a natureza não nos deu.
Essa
divisão tem a vantagem de marcar as rupturas temáticas. A determinação da
estrutura tópica de cada um dos parágrafos será ilustrada como se segue:
1º parágrafo
Subtópico 1
O
interesse de Piaget por molusco
Subtópico 2
Moluscos
Segmentos tópicos – a condição de molusco; a inteligência dos moluscos
2º parágrafo
Subtópico
O interesse de Piaget pelo estudo
do comportamento humano
Segmentos tópicos – a ignorância do
autor sobre detalhes da biografia de Piaget;
a sugestão do autor sobre a razão
por que Piaget abandonou seu interesse pelos moluscos
3º parágrafo
Subtópico 1
Condição humana
Segmento tópico - inadequação de
nossos corpos à luta pela sobrevivência
Subtópico 2
Condição dos animais
Segmento tópico - a suficiência do corpo dos animais; a
adequação do corpo dos animais à luta pela sobrevivência
4º parágrafo
Subtópico
O legado da
natureza ao homem
Segmentos tópicos – a necessidade de
pensar; surgimento do pensamento
5º parágrafo
Subtópico 1
A
conclusão de Piaget
Segmento tópico – a
finalidade do conhecimento
Subtópico 2
O desenvolvimento
do pensamento
Segmento tópico – a
finalidade do pensamento
Falta
ainda inserir nessa análise da configuração dos subtópicos e segmentos tópicos
dos parágrafos a noção de quadro tópico. Como articulá-la à análise? A inserção
dessa noção não é obrigatória. Ela só se demonstra necessária, particularmente
na interação face-a-face, quando se verifica uma grande quantidade de
subtópicos numa prática discursiva. Na interação face-a-face, isso é muito
comum. Numa mesma conversa, podemos
falar sobre vários assuntos, cada qual deles constituiria um subtópico. Um
quadro tópico, por definição, deve abranger um conjunto de subtópicos. Sua
aplicação na análise que empreendi não é necessária, ainda que possível; mas
apenas nos casos em que se verificam dois subtópicos.
Ainda
não conseguimos determinar o tópico discursivo, ou seja, o assunto do texto.
Após o percurso analítico empreendido aqui sobre a configuração tópica dos
parágrafos, como determinar o tópico discursivo? Vimos que ele não figura
explicitamente em nenhum dos parágrafos. O título não dá indicação alguma sobre
o Tema do texto. Claro é que moluscos e seres humanos, enquanto seres naturais,
vão constituir subtópicos do Tema, mas não são propriamente o Tema. Quando prosseguimos na leitura, percebemos que
o autor se preocupa com uma questão recorrente, a saber, a do conhecimento.
Mais precisamente, com o modo como nós, seres humanos, adquirimos ou
construímos conhecimento. Seu olhar sobre a questão é pedagógico, pois que ele
está interessado também em discutir o modo como, tradicionalmente, as
autoridades e profissionais envolvidos na Educação avaliam o conhecimento dos
estudantes.
Creio
ser o tema deste texto – seu tópico discursivo – a construção do conhecimento como resposta aos desafios da vida. Note-se
que o tema não se confunde com a tese do autor. O autor busca defender seu
ponto de vista (tese) sobre um tema. Ele produziu seu texto para enfocar o
problema da construção do conhecimento que seja útil à vida dos seres humanos e
esforçou-se por nos mostrar que essa construção, essa elaboração depende da
excitação do pensamento. Assim, os homens, pelo pensamento, produzem
conhecimentos para responder às suas necessidades de sobrevivência. O autor,
então, se preocupa em defender a tese de que a prática pedagógica, na escola,
deve favorecer a construção pelo estudante do conhecimento que seja útil à
vida, que responda aos desafios que ela lhe coloca.
A
dificuldade de determinar o tópico discursivo poderia explicar a provável
diversidade de respostas dos alunos quando lhes perguntássemos qual é o tema do
texto. Não deveríamos, nós professores, ficar surpresos se os alunos
divergissem quando tentassem explicitar o assunto do texto. Alguns poderiam
dizer que o texto trata do interesse de Piaget pelo estudo dos moluscos; outros
que o texto enfoca o interesse de Piaget pelos homens; outros mais poderiam
dizer que trata das dificuldades de sobrevivência humana; outros ainda que
trata da natureza ou dos animais, etc. Eles, certamente, não estariam errados,
porque, afinal, o texto realmente aborda todos esses temas. É como se os
estudantes tivessem oferecidos apenas os pedaços de vidro que compõem o vitral,
que é o tópico discursivo ou assunto do texto.