A crueldade do real
Dissertação sobre o sentido e a
ilusão
Esta exposição se desenvolverá com base no seguinte pressuposto
fundador:
Toda crença
religiosa torna inútil a filosofia, porquanto a religião, ao pretender fornecer
uma resposta definitiva e incontestável à questão do sentido do mundo e do
homem, proíbe a permanência da própria questão como tal. Não há mais questão;
tudo está resolvido sem que nada verdadeiramente tenha sido dito ou pensado.
Tendo em vista esse pressuposto, considero o filósofo e o religioso como
tipos antagônicos e defendo que o verdadeiro filósofo não tem outra escolha
senão assumir um implacável ceticismo no tocante às alegações da religião. Se a
filosofia não deve fazer qualquer concessão à pretensão da religião de
estabelecer o “verdadeiro” sentido do mundo e do homem, também não deve
silenciar sobre a pretensão da própria filosofia de atingir uma verdade
“objetiva”. A filosofia, portanto, deve oferecer (e isso não é pouca coisa) a
possibilidade de destruir os dogmas, as ideologias e todos os sistemas
(filosóficos, políticos, religiosos) que tenham a pretensão de atingir e impor
uma verdade positiva.
O presente texto visa, pois, a elaborar um modelo de compreensão do
mundo que seja afinado com o valor da verdade filosófica, a qual, segundo
Rosset (1989, p. 34-35), não fornece nenhuma certeza, “mas protege o organismo
mental contra o conjunto de germes portadores de ilusão e de loucura”. Para a
elaboração deste texto, sirvo-me de duas categorias hermenêuticas, as quais
abrirão um horizonte de compreensão do real que permitirá iluminar o alcance da
finalidade de toda empresa filosófica: as categorias do absurdo e do desespero.
O modelo de compreensão do real que apresentarei se articulará a essas
duas categorias: o absurdo, tal como
é definido na esteira da filosofia existencialista, recobre a impossibilidade
de se justificar racionalmente a existência das coisas e de lhes conferir um
sentido. Sartre, por exemplo, relacionando o absurdo à existência de Deus, define-o
como a impossibilidade, para o homem, de ser o fundamento de sua própria
existência. Assim, o homem “está condenado a ser livre”, isto é, a ser
responsável por seu ser e por sua própria razão de ser. A compreensão que Camus
e Kafka têm do absurdo também será relevante ao desenvolvimento deste texto.
Esses autores pensam o absurdo como ‘o incompreensível’, ‘o desprovido de
sentido’, ‘o sem finalidade’. Assim, dizer da existência do mundo que é absurda
é dizer que é desprovida de todo sentido e de toda finalidade. O desespero, por seu turno, será definido
como “uma disposição absolutamente refratária a tudo que se assemelhe à
esperança ou à expectativa” (Rosset, 1989). Nessa definição de “desespero”, que
tomo a Rosset, o termo “disposição” não deve significar (e tomo a liberdade de
o compreender assim) ‘propensão da psique’, mas disposição afetiva, no sentido heideggeriano. Assim, enquanto uma
forma de disposição, o desespero descerra um modo de o indivíduo humano ser
afetado pela existência. De modo mais
específico, o desespero consiste num afeto
que toma a forma de rejeição a toda esperança e promessas metafísicas.
Essa rejeição se combina com uma atitude positiva, qual seja, a aceitação
incondicional do real em sua crueza. O desespero, portanto, supõe tanto o
abandono de qualquer busca de sentido metafísico ou último para o mundo quanto
a afirmação incondicional do destinar-se do próprio real. Na medida em que o
desespero supõe “o abandono da busca de sentido para mundo”, deve-se reconhecer
que essa categoria se situa em um registro semântico de compreensão do real que
é diferente do registro semântico no qual se inscreve a categoria do absurdo. O
absurdo envolve a constatação da ausência de qualquer sentido último do mundo,
mas a essa constatação precede a esperança, que então foi frustrada (donde a
experiência do absurdo), de que o mundo fizesse sentido. Em outras palavras, o
absurdo caracteriza um sentimento que irrompe na constatação súbita da mais
profunda ausência de sentido do mundo; mas só o experimenta aquele que esperava
(tinha esperança de) encontrar algum sentido no mundo. Apesar de se inscreverem
em regiões de significação diferentes, desespero e absurdo não se excluem
mutuamente. É possível conciliá-los numa mesma visão de mundo, porque o absurdo
designa o fato da ausência de sentido do mundo, e o desespero designa certo
modo de o homem reagir a essa (esmagadora) experiência.
Apresentem-se, doravante, as etapas de que se constituirá o itinerário
de minhas reflexões. Na primeira etapa, desenvolvo a compreensão do real como
inerentemente cruel, momento em que buscarei esclarecer o significado da
expressão “crueldade do real” que está na base da constituição da filosofia
rossetana. Na segunda etapa, abordo a condição do homem comum, à luz das categorias
heideggerianas de ocupação e impessoal. Nessa etapa, estarei
especialmente interessado na dinâmica que opõe realidade a ilusão como
constitutiva da formação de três tipos neuróticos: o tipo “normal”, o tipo “neurótico”
e o tipo neurótico criativo. Na terceira etapa, examino o argumento do desígnio
em favor da existência de Deus, apresentando as objeções que os ateus e/ou
céticos fazem a ele. Na quarta etapa, à guisa de um retorno à compreensão do
real como inerentemente cruel com vistas a reforçar a inconsistência da crença
em um Designer Inteligente, forneço um pequeno recorte da visão de mundo
naturalista, ilustrando-a com referências à luta universal pela sobrevivência -
constitutiva do tecido vital na ordem natural - e dou a saber algumas evidências
que apontam para a inexistência de um projetista cósmico. Nessa etapa, também
enfocarei o problema do mal e discutirei as tentativas teológicas de lidar com
ele. A quinta parte é destinada às considerações finais.
1. O princípio de crueldade e a aceitação do real
O filósofo francês
contemporâneo Clément Rosset, grande conhecedor de Nietzsche e autor de um
pensamento do pior, pensa, em seu Princípio
de crueldade (1989), a realidade como inerentemente cruel. Rosset é
declaradamente um herdeiro da filosofia trágica da qual Nietzsche foi um autor
emblemático. Nessa obra, Rosset declara “o que a moral censura não é, de modo
algum, o imoral, o injusto, o escandaloso, mas sim o real – única e verdadeira fonte de todo o escândalo” (p. 24). A
moral, portanto, não seria, para Rosset, mais do que uma ficção criada pelo
homem a fim de tornar suportável a natureza cruel e escandalosa do próprio
real. A moral surge da necessidade que sente o homem de reparar a crueldade
inerente ao próprio real. Não há nenhum sentido de moralidade no real. Todo o
real é imoral, e o que a moral faz não é outra coisa senão desaprovar o próprio
real, na medida em que pretende “corrigir” o que parece ser um defeito do real.
O que Rosset entende por
“crueldade do real”? É o próprio filósofo que responderá no seguinte excerto:
“Por “crueldade
do real” entendo, em primeiro lugar, é claro, a natureza intrinsecamente
dolorosa e trágica da realidade. Não me estenderei sobre este primeiro sentido,
mais ou menos conhecido de todos, e sobre o qual aliás tive a ocasião de falar
alhures mais do que abundantemente; basta-me lembrar aqui o caráter
insignificante e efêmero de toda coisa do mundo. Mas entendo também por
crueldade do real o caráter único, e consequentemente irremediável e inapelável,
desta realidade – caráter que impossibilita qualquer instância que fosse
exterior a ela” (p. 17).
Como se pode depreender
da passagem acima citada, a expressão “crueldade do real” é empregada com dois
sentidos por Rosset:
1º sentido: a natureza
intrinsecamente dolorosa e trágica da realidade;
2º sentido: a forma
“crua” com que se apresenta o próprio real que impossibilita os ornamentos
metafísicos que o tornem suportável.
O real, segundo Rosset, é
uma presença cruel – dolorosa e trágica – que se impõe de modo irremediável e
em face da qual nos resta ou o assentimento ou a reprovação. A crueldade do
real exprime o trágico e o doloroso, que torna o real indigesto justamente
porque despoja o real de tudo o que nos impede de contemplá-lo em si mesmo. É preciso,
então, reconhecer, com Rosset:
“A realidade é cruel – e indigesta – a partir do
momento em que a despojamos de tudo o que não é ela para considerá-la apenas em
si-mesma: tal como uma condenação à morte que coincidisse com sua execução,
privando o condenado do intervalo necessário à apresentação de um pedido de
indulto, a realidade ignora, por apanhá-lo de surpresa, todo pedido de apelo”
(p. 17).
A natureza cruel do real também
recobre sua indiferença a quaisquer tentativas de apelar a que ele se destine
de modo a nos favorecer. Por isso, a crueldade do real consiste no fato de ele
ignorar “todo pedido de apelo”. Em outras palavras, a crueldade do real
consiste na rejeição ao homem de uma alternativa à necessidade de aceitar o
real tal como é. Renunciar ao real significaria para o homem o próprio
suicídio, mas isso não seria uma alternativa àquele que desejasse apenas intervir
em seu favor na dinâmica cruel da realidade. Daí que, em escolhendo prosseguir
vivendo, o homem parece ter duas escolhas: ou aceitar autenticamente a
crueldade do real, o que significaria dar seu incondicional assentimento ao
real, ou aceitá-la inautenticamente, o que significaria viver em conformidade
com a crença de que ela oculta um sentido último a ser revelado na vida do pós-morte.
Um momento importante do
pensamento trágico de Rosset, que assume como postulado a crueldade do real, é
sua crítica à filosofia que, em sua origem metafísica, renunciou a levar em
conta “unicamente a realidade” (Rosset, p. 12). Para Rosset, essa rejeição da
filosofia, nas suas origens, em levar em conta “unicamente a realidade” não
decorria de uma angústia perante a imensidade e impossibilidade de tal tarefa.
Uma longa linhagem de pensadores compartilhava a ideia de que a realidade
mesma, mesmo que pudesse ser inteiramente conhecida e explorada, jamais se
prestaria a uma compreensão cabal e satisfatória, dado que ela mesma não
fornece caminhos para a apreensão de seu sentido e natureza íntimos. A
metafísica, segundo nota Rosset, se desenvolveu com base no princípio teórico
da insuficiência do real. Nas palavras do filósofo, com base na ideia “de que a
realidade só poderia ser filosoficamente levada em conta mediante o recurso a
um princípio exterior à realidade mesma (Ideia, Espírito, Alma do mundo, etc.)
destinado a fundá-la e explicá-la, e mesmo justificá-la” (p. 13).
Ouçamos Rosset no
seguinte trecho abaixo:
“(...) suspeito muito de que a desavença filosófica
com o real não tenha por origem o fato de que a realidade seja inexplicável,
considerada apenas em si-mesma, mas sim o fato de que ela seja cruel e que consequentemente a ideia de
realidade suficiente, privando o homem de toda possibilidade de distância ou de
recurso com relação a ela, constitui um risco permanente de angústia e de
angústia intolerável – no caso de que se apresenta a uma circunstância
desagradável que torne, como por exemplo na ocasião da perda de um ente
querido, a realidade subitamente insuportavelmente penosa ocorra que se lance
um olhar subitamente lúcido sobre a realidade em geral. “Hipocondria
melancólica”, observa Gérard de Nerval em um diário. “É um mal terrível: faze
ver as coisas tais como são” (p. 16).
Como se pode compreender
a partir da leitura do trecho acima, Rosset entende que a filosofia, em suas
origens, evitou conciliar-se com o próprio real. Se ela evitou ocupar-se do
real não foi porque ele é insuficiente em si-mesmo, não podendo, por isso, ser
explicado, mas porque o real é demasiado cruel para manter o homem afastado de
uma angústia que lhe seria intolerável. Parece que a filosofia se constituiu,
na tradição, como um trabalho intelectual que visou “poupar” o homem da
terrificante visão da crueldade do real; nesse sentido, a filosofia não se
ocupou do real mesmo, mas forneceu ao homem simulacros reconfortantes do real.
Convém, no entanto, dizer
que Rosset não deixa de reconhecer que a realidade não pode ser explicada por
ela mesma. Ele reconhece que o real é sempre ininteligível e, nesse tocante,
ele não diverge dos filósofos da tradição. O problema, para ele, deita suas
raízes na suposição filosófica tradicional de que ser ininteligível equivaleria
a ser irreal. Rosset acredita que os filósofos da tradição dissimularam a
verdadeira dificuldade que sentiam em levar em conta o real e somente o real.
Essa dificuldade não está no caráter incompreensível do real, mas “reside antes
de tudo e principalmente em seu caráter doloroso” (p. 16).
2.1. O Dasein como ser-no-mundo: ocupação e ditadura do
impessoal
Nesta seção, descerei a
examinar a condição do homem comum, tarefa esta que se iniciará com algumas
considerações sobre dois modos existenciais do ser-aí (Dasein). Não intentando me estender sobre todos os desdobramentos
desses dois modos existenciais do ser-aí, estarei mais preocupado com a
possibilidade de chamar a atenção do leitor para o fato de que o ser-aí existe
originariamente numa relação de imediaticidade com o mundo e com os entes em
geral.
O Dasein ou o ser-aí é o ‘lugar’ onde o sentido do ser acontece. O
ser-aí é um ente aberto, em cujo ser está em jogo o próprio ser. O Dasein é o
lugar onde o ser acontece, e, ao acontecer, desvela a totalidade dos entes. O
ser-aí é um ser-no-mundo não no sentido em que se encontra num espaço
geográfico no mundo, mas porque encontra no mundo sua própria morada (Casanova,
2010, p. 101). O ser-aí é essencialmente um existente. Como existente, ele se
constitui a partir de um movimento ek-stático.
Porque ek-siste, o ser-aí descerra o
horizonte total, a partir do qual os entes se manifestam. O ser-aí libera o
mundo como campo de manifestação dos entes em geral. Nas palavras de Casanova
(2010, p. 91-92):
“(...) 1) o ser-aí existe; 2) a existência traz
consigo um movimento de descerramento e liberação do mundo como campo de
manifestação dos entes; 3) o surgimento mesmo desse horizonte torna possível a
manifestação dos entes, que, em seguida, vêm ao encontro do ser-aí e requisitam
dele um modo de comportar-se em relação a eles; 4) o ser-aí assume, então, um
determinado modo de comportamento, se determina como o que é. Dizer isto, por
sua vez, significa afirmar que o ser-aí é um ser-no-mundo, um ente que funda
todos os seus comportamentos em relação aos entes em geral em um comportamento
originário em relação ao mundo”.
Ainda segundo Casanova,
“existir é já sempre se ver jogado em modos fáticos de ser” (2010, p. 92). O
ser-aí é um poder-ser que já sempre se encontra imerso em possibilidades
existenciais específicas. O conceito de mundo, por seu turno, aponta para o
descerramento do campo de manifestação da totalidade dos entes. Segundo
Casanova (ib.id., p. 106), “[mundo] é um termo para descrever a amplitude total
do horizonte a partir do qual o ser-aí incessantemente se relaciona com os
entes intramundanos, com os outros seres-aí e consigo mesmo. Dizer
“ser-no-mundo” é dizer ser-desde-o-mundo,
de sorte que, fora do mundo, não existe Dasein e, consequentemente, não há a
totalidade do real.
Uma vez que o ser-aí é um
ser-no-mundo, ele já sempre se descobre a cada vez jogado abruptamente num
mundo fático. Jogado numa facticidade, o ser-aí não se encontra, a princípio,
numa relação teórica com o mundo. Na verdade, ele se apreende articulado com um
horizonte ocupacional à luz do qual os entes intramundanos lhe vêm ao encontro
como utensílios e, ao mesmo tempo, lhe requisitam um modo determinado de lidar
com eles. Esse modo de lidar com os utensílios não é, por sua vez, determinado
teoricamente, mas emerge de totalidades conjunturais que estruturam a
facticidade. A caneta que tenho diante
de mim já se me apresenta numa malha referencial complexa que a determina
radicalmente como o utensílio que ela é. Por isso, “toda ocupação com os
utensílios envolve (...) um acompanhamento de uma rede referencial complexa com
a qual os utensílios vêm ao nosso encontro (p. 97). Não se trata de dizer que
um utensílio tem um lugar próprio seu fixado no mundo. O que se deve entender é
que todos os lugares onde a caneta, por exemplo, pode aparecer se constituem a
partir de um campo de uso sedimentado e de uma totalidade referencial da qual
ela não escapa na maioria das vezes. A minha lida com a caneta faz vir ao meu
encontro outros utensílios (o papel, o caderno, o livro, o corretor, o estojo,
etc.) no interior de uma rede referencial. É importante frisar que aprendemos a
nos movimentar no mundo de maneira não teórica, mas prática, no interior de uma
rede referencial que vem ao nosso encontro conjuntamente com os utensílios. É
nesse ‘vir ao nosso encontro’ da rede referencial com os utensílios nela
articulados que vamos descobrindo o significado dos utensílios em geral.
Novamente, friso que esse modo de lidar com os utensílios não é determinado
teoricamente, mas emerge de totalidades conjunturais que configuram a
facticidade.
O estar lançado em um
mundo significa ir, paulatinamente, entrando em contato com uma série diversa
de referências e mobilizadores estruturais dessas referências, ou seja, com os
elementos em função dos quais as conjunturas se estruturam. São esses elementos
mobilizadores das referências que tornam possíveis, a cada momento, os mais
diversos usos dos utensílios (Casanova, 2006, p. 41).
Importa, então,
compreender como o ser-aí chega a se determinar como ente que é. Segundo
Casanova (2010, p. 91):
“O ser-aí só se determina efetivamente como o ente que
é a partir de uma inter-relação incessante com o seu mundo. Jogado em um
determinado mundo fático, ele assume comportamentos a partir de orientações que
recebe do mundo circundante. Tais orientações emergem do fato mesmo de o ser-aí
se ver absorvido de início e na maioria das vezes em campos de uso dos entes”.
A categoria da ocupação, em Heidegger, serve, portanto,
à descrição do modo como o ser-aí de início e na maioria das vezes está no
mundo. Heidegger nega o primado da postura teórica na relação do ser-aí com o
mundo e com os entes intramundanos que lhe vêm ao encontro. O ser-aí existe
originariamente sob o modo da imediatidade relacional com entes com os quais
lida a partir de uma forma determinada de ocupar-se com eles. A postura teórica
pressupõe um distanciamento em relação ao mundo e aos entes intramundanos e uma
ruptura com essa imediaticidade originária. É claro que os campos de uso, ou
seja, o mundo das ocupações práticas com os entes, têm uma estrutura semântica
(ou seja, de significações) autotransparente ao ser-aí; mas esse mundo da
ocupação é um mundo sedimentado que o ser-aí compartilha com outros seres-aí e
sua imersão inicial nesse mundo não envolve nenhum tipo de questionamento ou
reflexão sobre os entes e a complexa rede de referências com a qual eles vêm ao
seu encontro.
O conceito de impessoal, por seu turno, recobre o
conceito de mundo fático sedimentado. A fim de esclarecê-lo, lembro que um
ser-aí é um ser que se descobre em um mundo sedimentado fático, o qual fornece
de início e na maioria das vezes as possibilidades existenciais com as quais o
ser-aí pode se confundir e já sempre deveras se confunde.
É na cotidianidade
mediana, na qual o ser-aí está, desde o início, jogado, que se pode apreender o
modo como ele é comandado pelo impessoal. No impessoal, o ser-aí é o que os
outros fazem dele. O ser-aí se vê absorvido pelos outros indeterminados,
passando a assumir os comportamentos do impessoal. Não devemos, contudo, pensar
que o impessoal impõe uma possibilidade de ser ao ser-aí, tampouco que o
impessoal estabelece preceitos claros a partir dos quais o ser-aí constrói a
sua existência. A influência do impessoal se expressa na forma de demarcação de
modo estável do que cada coisa é e daquilo em virtude do qual as coisas podem
fazer parte de nosso projeto particular (Casanova, 2010, p. 114).
O impessoal estende seu
poder de controle incessante sobre os campos de sentido[1] e
define de antemão o que pode ou não aparecer como dotado de sentido. Assim, o
poder-ser do ser-aí, que se realiza na forma de compreensão, fica circunscrito
a seguir as orientações dadas pelo mundo fático e a mostrar a partir dessas
orientações o que é interpretável.
Constituiria uma grande
lacuna em minha exposição, se eu, tendo abordado o valor descritivo do
impessoal em Heidegger, silenciasse sobre outra categoria à qual o impessoal
está intimamente articulado, qual seja, a de decadência. No desenvolvimento da analítica existencial proposta
por Heidegger, tudo está entrelaçado, razão por que deixar de notar a relação
entre o impessoal e a decadência seria uma grande falta, ainda que minhas
pretensões expositivas do pensamento heideggeriano sejam bastante limitadas.
Faz-se mister notar,
então, que a decadência do ser-aí no impessoal correlaciona-se com o modo
abrupto como o ser-aí se descobre no mundo. Uma vez decaído no impessoal, o
ser-aí vê-se sob o domínio do falatório. Nessa situação, ele reproduz
incessantemente o discurso dos outros. Decaído, o ser-aí se vê despojado de uma
relação própria com seu caráter de poder-ser. A decadência descreve, portanto,
a fuga de si mesmo do próprio ser-aí em meio à absorção na semântica fática do
mundo cotidiano. A decadência do ser-aí, porquanto oculta do ser-aí o seu
caráter de poder-ser, desvia-o da indeterminação originária que lhe é
constitutiva e o abandona à condição circunscrita de ter de realizar-se a si
mesmo em conformidade com as orientações sedimentadas nesse mundo impessoal em
que está decaído. Em outras palavras, a decadência limita a possibilidade de o
ser-aí realizar-se a si mesmo ao domínio das orientações sedimentadas no mundo
do impessoal.
A decadência caracteriza
o fato de que o ser-aí está jogado no mundo das ocupações; sempre empenhado no
mundo das ocupações. Nessa situação, o ser-aí pode, a cada instante, perder-se
a si mesmo, deixando-se tutelar pelos outros. A decadência constitui, assim, um
modo impróprio de ser do ser-aí e torna a existência dele uma existência
inautêntica. Inautêntica porque, na decadência, o ser-aí “é” como “são” os
outros.
Com estas breves
considerações sobre o modo originário de o indivíduo humano se encontrar no
mundo, possibilitadas por uma revisita, bastante superficial, ao pensamento
heideggeriano, espero ter conseguido lançar alguma luz sobre o caminho que
passaremos, doravante, a percorrer. Esse caminho nos conduzirá a pensar no modo
como esse homem da ocupação e do impessoal – o homem “comum” da cotidianidade –
pode manter-se ignorante da “loucura de sua condição humana”. O desenvolvimento
desse tema se fará com apoio na abordagem antroplógico-psicanalítica esposada
por Ernest Becker, em seu A negação da
morte (2012). Inicio, então, na próxima subseção, essa tarefa.
2.2. A loucura da condição humana
O filósofo cristão do
século XVII Blaise Pascal expressou de maneira paradigmática os sentimentos de
espanto e temor que podem invadir o homem acostumado a intensas elucubrações.
Pascal inicia seu texto com a forma “contemplo”, sugerindo que o sentimento de
abandono cósmico só chega a atingir o homem que ‘mira com o espírito’ sua
insignificância “na infinita imensidão de espaços” que ignora e que o ignoram.
“Quando contemplo a pequena duração da minha vida
absorvida na eternidade precedente e seguinte (...), o pequeno espaço que
preencho e mesmo que vejo abismado na infinita imensidão de espaços que ignoro
e que me ignoram, apavoro-me e admiro-me por me ver aqui e não lá, pois não
existe razão por que aqui e não lá, por que agora e não então. Quem me colocou
aqui? Pela ordem e pela intervenção de quem este lugar e este tempo foi
destinado a mim?” (Pascal, 2005, 68 (205)).
Este texto fora escrito
num século atravessado pela Revolução Científica, a qual, iniciada no século
XVI, se estenderia até o século XVIII. É nesse período que o homem é
“desalojado” do lugar que antes ocupava no universo. Galileu Galilei viria,
em 1610, a
confirmar o sistema heliocêntrico de Copérnico: a Terra, definitivamente, não
era mais, como se acreditava outrora, o centro de todo o Universo. A
confirmação de Galileu não significou apenas a compreensão do verdadeiro lugar
ocupado pelo planeta que habitamos no universo; mas representou uma profunda
crise na forma mesma como o homem se pensava e compreendia a si mesmo na ordem
cósmica. Não foi só o planeta que habita que foi deslocado do centro do universo;
foi o próprio homem que viu sua importância no plano da Criação deitar por
terra.
Pascal soube bem
apreender o espírito inquietante que caracterizava aquela época: o homem não
podia mais assegurar-se de que sua existência tinha alguma razão ou propósito.
Tomar consciência da contingência e do absurdo de sua existência era fonte de
grande pavor para aquele homem que se via então confrontado com uma condição
que, durante séculos, ignorava. Com o
advento da ciência moderna, o kósmos
harmonioso, belo fechado, eterno, justo e perfeito descrito na cosmologia
antiga cede lugar a um universo caótico, infinito, constituído de forças sem
alma, de movimentos e choques cegos que acontecem em espaços totalmente
desprovidos de limites, de significação e referência. O libertino Pascal se
apavora justamente com o silêncio eterno desses novos espaços infinitos, dos
quais o homem se vê como um habitante insignificante. A ciência moderna destrói
toda a visão cósmica dos gregos e abala os alicerces ideológicos da Igreja
Católica. Num universo em que o próprio Deus não goza mais de autoridade
absoluta, é de se esperar que o homem, que até então era reconfortado pela
crença de que ocupava um lugar privilegiado nesse Universo projetado para ele,
experimentasse um angustiante sentimento de acosmia, isto é, um afeto que se
traduz como estado de abandono, solidão, perda de si e desapropriação de sua
‘casa’. Acosmia significa: o
mundo é destituído de um horizonte realizador do homem. O
universo passa a ser um lugar inóspito e o homem não pode encontrar nele senão
indiferença e opressão. É a condição humana que se revela radicalmente
dramática, razão por que a maioria dos homens prefere manter-se desocupada de
pensar nela. Pascal soube também ver que a própria aspiração do homem à
felicidade tornou-se temerária – “se nossa condição fosse verdadeiramente
feliz, – escreveu o filósofo - não seria necessário desviarmos dela nossos
pensamentos”. Ora, para os antigos gregos, a vida boa, isto é, a vida feliz é a
vida reconciliada com o real. O homem feliz só pode sê-lo com a condição de que
aceite o mundo como ele é. Ocorre que o mundo dos antigos exibia uma ordem
divina, justa e boa. Situação diversa é a do homem seiscentista: a realização
de sua felicidade e do comportamento moral não pode mais tomar o mundo como
modelo; o universo que esse homem habita e que a ciência tratará de lhe revelar
é caótico, desprovido de qualquer sentido e não dá mais sinais de possuir um
caráter divino. Esse homem do século XVII é um homem desorientado, imerso num
mundo no qual as referências pelas quais ele orientava a sua existência
começaram a ruir uma a uma.
Não obstante a dramática
revolução espiritual sofrida pelo homem seiscentista, de cuja análise eu não
poderia me ocupar aqui, resta a pergunta: como
pôde o homem continuar “tocando” sua vida? Esta pergunta não remete apenas
ao homem do século XVII, mas toca à condição humana independentemente da época
e lugar. Se Becker tem razão, ao assinalar que “o mundo real é simplesmente
terrível demais para que se admita a sua existência” (2012, p. 168); se o real,
a julgar pela condição dramática na qual se viu jogado o homem seiscentista,
patenteia que o homem é um animal pequeno, atormentado, destinado ao
envelhecimento e à morte inevitável, como é possível que não assistamos
suicídios em massas? A resposta parece residir na ilusão nossa de cada dia. A ilusão protege o homem contra a visão
terrificante da verdade da vida. Na ilusão, o homem se pensa como um ente
importante, torna-se capaz de construir e levar adiante seu projeto causa sui; acredita desempenhar um papel
importante no universo; considera-se, de certa maneira, imortal. Esclarecerei,
em tempo, o que significa “ilusão” no contexto dessa discussão e o que
significa “projeto causa sui”. Peço
ao leitor um pouco mais de paciência no acompanhamento do desenvolvimento de
minhas reflexões. Intentando situar o leitor no registro semântico em que será
contemplado o conceito de ilusão,
comunico-lhe, desde já, que estarei interessado em discutir como se produz a ilusão cultural. É oportuno dizer que Freud pensava a ilusão
como uma crença derivada do desejo humano. Assim, uma crença é ilusória quando motivada
pelo desejo. Para Freud, a crença num Deus onipotente e providente é ilusória,
porque o indivíduo que a nutre deseja
que exista um Pai celestial e protetor que o alivie do sentimento de desamparo
em face da vida. Sua crença em Deus é motivada pelo desejo de que exista tal
Deus; por isso, na visão de Freud, essa crença é ilusória.
Por Ilusão, no entanto,
conforme mostrarei à medida que eu for esclarecendo a contribuição
antropológico-psicanalítica de Becker para a compreensão da condição humana,
devemos entender uma representação
criativa de mundo com o propósito de manter os homens afastados do terror que
lhes provocaria a visão da verdade do real. É no domínio da cultura que
essas ilusões “protetoras” são produzidas, de tal modo que não exageramos em
pensar a cultura como uma teia de ilusões necessárias para viver. Antes de
descer a pormenores sobre os desdobramentos da ilusão cultural e da condição do
homem comum, precisarei expor algumas observações sobre o conceito de cultura,
à luz do qual tudo que se seguirá deverá ser mais bem compreendido.
Um olhar, por algum
momento, sobre nossa história evolutiva põe a descoberto o surgimento do homo sapiens há cerca de 80.000 anos,
muito embora o gênero homo tenha
surgindo há cerca de 200.000 anos, a partir de uma linhagem de ancestralidade
que remonta ao Australopetecino africanus,
cujo surgimento e evolução se deram há cerca de 2.500.000 anos.
Conquanto tenha evoluído
por processos naturais idênticos aos dos demais animais, o homem é a única
espécie conhecida que conseguiu, de certo modo, desarrancar-se dos imperativos
naturais, criando uma espécie de sobrenatureza, a que chamamos de cultura. A cultura passou a ser
reconhecida pelos estudiosos como o modo próprio de ser do homem. Com a
cultura, o homem desenvolveu um sofisticado sistema linguístico, tornou-se
capaz de fabricar e utilizar ferramentas – dominando o fogo -, passou a adotar
um complexo e excepcional costume social sustentado pela generalizada proibição
do incesto.
Embora possamos encontrar
diversas formas de definição de cultura
segundo o domínio do conhecimento em que esse termo se inscreve e segundo os
autores que o empregam, uma acepção, em especial, será esposada por mim neste
trabalho. Assumo a concepção de cultura do antropólogo brasileiro José Luiz dos
Santos, segundo a qual a cultura é uma dimensão que, perpassando todos os
aspectos da vida, dá sentido aos atos
e aos modos de vida de uma determinada sociedade. À luz dessa concepção de
cultura, devemos entender que a cultura molda o pensamento, o ideário de
valores e comportamento dos indivíduos nas mais diversas situações sociais. A
cultura está presente nas relações sociais em geral, nos atos políticos, nos
fatos econômicos, na produção artística, nas práticas religiosas, etc. de uma
comunidade.
A cultura é, portanto, o
modo próprio de ser do homem nas suas vivências em coletividade. Esse modo de
ser expressa-se, em parte, conscientemente; em parte, inconscientemente; e se
exterioriza na forma de um sistema de modos de representar/pensar o mundo, de
agir, de fazer, de se relacionar e de se reproduzir nesse mundo. Não menos
importante: a cultura é a dimensão simbólica da vida social na qual o homem se
relaciona com o Absoluto.
Esclarecida a noção de
cultura, em consonância com a qual minhas reflexões sobre a condição humana se
desenvolverão, passo, doravante, a considerar a constituição da realidade da
vida cotidiana, trazendo à cena a contribuição de Beger & Luckmann, em A construção social da realidade (2007)
com o objetivo principal de esclarecer, como não poderia deixar de fazer – e
mesmo sob o risco de ser repetitivo – a função desempenhada pela língua/linguagem,
entendida como sistema de signos que torna possível a constituição das
experiências humanas, na construção da realidade da vida cotidiana. A questão a
que não podemos nos esquivar, a esta altura de minha discussão, é: de que modo
a linguagem atua na constituição da realidade da vida cotidiana? Consoante
notam Berger & Luckmann (p. 38), “a
realidade da vida cotidiana aparece já objetivada, isto é, constituída por uma
ordem de objetos que foram designados como objetos antes de minha entrada em
cena”. Essa passagem evoca a já contemplada lição heideggeriana: o ser-aí já está desde sempre jogado num
mundo fático. A vida cotidiana se abre ao indivíduo como um espaço
sociocognitivo já ‘dado’. O indivíduo não é responsável pela gênese da
fabricação desse espaço. A vida cotidiana o absorve em sua estrutura simbólica,
na qual os objetos ocupam lugares significativamente pré-fixados, sem que ele,
o indivíduo, tenha sido responsável pela produção dessa estrutura. Em virtude
da linguagem, os indivíduos têm à sua disposição, na vida cotidiana, as
objetivações necessárias que darão sustentação e sentido à sua existência. Eles
já se acham inseridos numa ordem onde essas objetivações adquirem sentido. O
que são essas objetivações?
Objetivação é o processo pelo qual os produtos construídos pela atividade
humana adquirem o caráter de objetividade. Desse modo, o homem age, vive e se
relaciona com outros homens num mundo institucional. Esse mundo institucional é
a própria atividade humana objetivada.
Vimos, quando tratei da condição
originária do ser-aí como ser-no-mundo, que o ser-aí é um existente já sempre
jogado numa totalidade de entes que vêm ao seu encontro numa conjuntura que
constitui uma rede complexa de referências. Isso significa dizer que todo ente
intramundano vem ao encontro junto com um horizonte utensiliar no qual o ente
intamundano se deixa ser. Ciente de que meu interesse na contribuição da
analítica-existencial heideggeriana sofra severas limitações determinadas pelo
objeto de estudo desse texto, silenciei sobre o domínio da significância ao considerar o existencial da ocupação. Heidegger chama de significância
à totalidade significativa que envolve uma multiplicidade de elementos. A
significância inscreve, pois, o horizonte semântico na ordem do mundo fático.
Esta lacuna, que, com estas rasas observações, só pôde ser parcialmente
preenchida, será definitivamente obliterada ao cabo do curso de minhas
considerações sobre o papel que a linguagem desempenha na constituição da vida
cotidiana.
Retome-se, então, a ideia
de que os objetos com os quais lidamos já se apresentam numa totalidade dotada
de sentido. A linguagem, por assim dizer, enche nossa vida cotidiana de objetos
dotados de sentido num campo reticular de significações que integra a dinâmica
de nosso viver. Fazendo eco a Heidegger, mesmo que não explicitamente, Berger
& Luckmann mostram-nos que é no mundo em que nos encontramos que nossa
consciência é dominada pelo motivo pragmático. Toda minha atenção é dispensada
à ocupação com os objetos (ou os entes intramundanos de Heidegger) que
preenchem o espaço em que me encontro. Este é o meu mundo, por excelência.
Ainda que saibamos que a
vida cotidiana tenha zonas que não nos são acessíveis da maneira como o são na
ocupação, nosso interesse nessas outras zonas é indireto. Estamos mais
intensamente interessados na totalidade dos entes implicados em nossa ocupação.
Por exemplo, se eu sou um mecânico, meu mundo é a garagem e meu interesse
recairá precipuamente sobre os entes que me vêm ao encontro nesse mundo fático.
A realidade da vida
cotidiana, ademais, apresenta-se a mim como um mundo intersubjetivo, um mundo
do qual participo conjuntamente com os outros. Na vida cotidiana, estou
continuamente em interação verbal ou não-verbal com os outros. Minha atividade
natural com relação a este mundo corresponde à atividade natural dos outros;
estes também compreendem as objetivações graças às quais este mundo é ordenado.
É claro, porém, que a perspectiva deles desse mundo não é idêntica à minha. Sei
também que meus projetos diferem dos projetos dos outros; podem até mesmo
entrar em conflito com o projeto dos outros. No entanto, eu sei que há uma
contínua correspondência entre meus significados e seus significados neste
mundo de cuja estrutura semântica compartilhamos.
Não me parece
suficientemente claro qual é a participação da linguagem no processo de
objetivação da experiência humana; por isso, convém demorar-me um pouco mais
nesse ponto. Para tentar esclarecê-lo, precisarei evocar a contribuição de
Bakhtin para a compreensão da palavra como signo ideológico.[2]
Das quatro propriedades definidoras da palavra ou do signo linguístico, a que
se refere Bakhtin, duas serão relevantes para nós: a interiorização e a participação
em todo ato consciente.[3]
A propriedade de interiorização consiste no fato de a
palavra ser o único meio de contato entre a consciência do sujeito, ela mesma
constituída de palavras, e o mundo externo, também povoado de palavras.
Destarte, eu compreendo o mundo no confronto entre as palavras de minha consciência
e as palavras que circulam no mundo externo à minha consciência. Por sua vez, a
propriedade de participação em todo ato
consciente recobre o fato de a palavra funcionar tanto nos processos
internos da minha consciência, por meio da compreensão e interpretação que faço
do mundo, quanto nos processos externos de circulação da palavra nas diversas
esferas sociais de uso da língua. Bakhtin ensinará que a realidade da
consciência é o signo, isto é, a consciência é um produto socioideológico, ela é
povoada de palavras. As palavras vão compondo a consciência à medida que vou
interiorizando os discursos ao longo da vida.
Com base nas duas
propriedades da palavra descritas acima, podemos entender a afirmação de que a
linguagem é que torna possível que uma experiência individual – digamos,
‘perseguir animais silvestres para matá-los’, categorizada pela forma [CAÇA],
se transforme em objeto de conhecimento a ser partilhado e aproveitado por
todos os integrantes de uma sociedade. Objetivada a experiência de [CAÇA], isto
é, dando-lhe um investimento simbólico (conceitual), ela pode ser incorporada
em um conjunto mais amplo de tradições mediante a instrução moral, a poesia, a
alegoria religiosa, etc. Pela linguagem e graças a ela, a experiência humana
adquire significado, passando a ser ensinada às novas gerações. Sem linguagem,
não haveria significações, não haveria possibilidades de conteúdos cognitivos
integrais (Vygotsky); enfim, não haveria a possibilidade mesma de produção da
complexa rede de significações, práticas, normas, modos de fazer, de pensar e
de viver que chamamos cultura. A
linguagem é o ponto de articulação entre nossa vida mental e a vida
sócio-cultural. Sendo um sistema de símbolos, a linguagem é responsável pela
construção de representações, pela operação sobre elas, bem como pela transformação da nossa experiência com a
realidade em conceitos, através dos quais a classificamos, a categorizamos. Segundo
Vygotsky, a linguagem é a própria possibilidade de inserção do homem no mundo.
É graças à linguagem que a realidade “objetiva” se traduz em realidade
subjetiva, e vice-versa. A linguagem permite, portanto, que o que está ‘fora’
da consciência e que se toma como real corresponda ao que é real ‘dentro’ da
consciência. Esse progressivo processo de tradução do real nas duas direções é
possível, porque a palavra, conforme vimos, é o único meio de contato entre
nossa consciência e a realidade exterior. Não só nossa consciência é povoada de
signos pela progressiva interiorização de discursos ao longo da vida, como
também o mundo da experiência sensível é estruturado pelas significações
sedimentadas e viabilizadas pela linguagem. Não se nega – deve-se dizer – que
nos relacionamos com o mundo através dos nossos sentidos, que os entes vêm ao
nosso encontro para fins utensiliares (tocamos, manuseamos as coisas, sentimos
cheiros, vemos cores, etc.); mas afirma-se que linguagem e percepção sensorial
estão intimamente ligados, de modo que o mundo percebido em termos de forma e
cor é um mundo percebido com sentido ou significado. Em outras palavras, o
mundo com o qual entramos em contato mediante nossa experiência sensível é um mundo semiotizado.
Cada experiência
sensorial que temos das coisas no mundo é, necessariamente, única e subjetiva,
donde a necessidade de perguntar: de que modo o mundo exterior percebido
através de nossos sentidos entra a fazer parte de nossa consciência e passa a
ser um mundo acessível ao outro? A resposta é: o mundo percebido toma parte de
nossa consciência na forma de conhecimento,
o qual supõe nossa capacidade de representar em conceitos aspectos desse mundo
em nosso espírito. Mas a representação mesma depende de um sistema simbólico,
ou da palavra, a qual permite a transformação do material que nos afeta os
sentidos em conceitos ou conteúdos da nossa consciência. Isso é possível porque
a palavra permite-nos criar conceitos através dos quais categorizamos,
classificamos, enfim, representamos nossas experiências. O conhecimento
socialmente relevante está, portanto, fundado na linguagem. Todo conhecimento
declarativo de nossa sociedade é primariamente linguístico, isto é,
conhecimento textualmente fundado. Quando pensamos no conhecimento coletivo e
complexo, que têm relevância social, devemos entender que são os textos que
produzimos que são responsáveis pela elaboração, diferenciação, estruturação,
controle, crítica, transformação, constituição e apresentação desse
conhecimento. A linguagem, através dos textos que produzimos – como este que o
leitor vem lendo –, não só torna visível o conhecimento, mas também os tornam
sociocognitivamente existente. A linguagem é, portanto, o ‘lugar’ onde se
realiza a própria transcendência do animal humano, consoante nota Berger &
Luckmann ( 2007, p. 61):
“A linguagem constrói, então, edifícios de
representação simbólica que parecem elevar-se sobre a realidade da vida
cotidiana como gigantescas presenças de um outro mundo. A religião, a
filosofia, a arte e a ciência são os sistemas de símbolos historicamente mais
importantes desse gênero”.
E prosseguindo com os autores,
na mesma página, não devemos perder de vista que:
“A linguagem é capaz não somente de construir símbolos
altamente abstraídos da experiência diária mas também de “fazer retornar” estes
símbolos, apresentando-os como elementos objetivamente reais na vida cotidiana.
Desta maneira, o simbolismo e a linguagem simbólica tornam-se componentes
essenciais da realidade da vida cotidiana e da apreensão do senso comum desta
realidade. Vivo em um mundo de sinais e símbolos todos os dias”.
Magia do símbolo, se
podemos dizer assim: possibilitar ao homem relacionar-se com o ausente, com o
irreal, com o hipotético. Graças à função de simbolização da linguagem, o homem
liberta-se da relação imediata e direta com as coisas, podendo tornar presentes
à consciência dos outros objetos que não estão física, espacial e temporalmente
acessíveis à experiência imediata deles, podendo reportar-se ao passado,
projetar-se mentalmente para o futuro, construir “mundos” fictícios.
A questão: de que modo o mundo exterior percebido através
de nossos sentidos entra a fazer parte de nossa consciência e passa a ser um
mundo acessível ao outro? – que enunciei acima e que vim até aqui
procurando responder, pode ter uma resposta ainda mais clara, quando
consideramos o fato de que por mundo
semiotizado deve-se entender também e, fundamentalmente, a totalidade de categorizações
[recortes] de experiência que se tornam, por isso, socialmente acessíveis e
reproduzíveis. Graças à linguagem, eu posso objetivar minhas experiências
pessoais; posso categorizá-las, isto é, inseri-las em amplas categorias, de
modo a torná-las dotadas de sentido não só para mim como também para os outros.
No momento em que são categorizadas ou tipificadas, minhas experiências se
tornam anônimas, porque podem ser reproduzidas pelos outros. Por exemplo, se me
envolvo em uma briga com minha sogra, essa experiência subjetiva pode ser
categorizada como “aborrecimentos com a sogra”. Essa categorização não é só
inteligível para mim, como também para qualquer outra pessoa. Note-se que na
categorização opera-se uma generalização: qualquer um pode ter e sabe o que é
ter “aborrecimentos com a sogra”, muito embora cada experiência desse tipo
vivenciada subjetivamente seja única. Categorizando minhas experiências
biográficas, ou seja, reunindo-as em ordens gerais de significados, por meio da
palavra (ou linguagem), torno-as subjetiva e – sobretudo – objetivamente reais. Qualquer casal sabe o que significa ‘ter uma
DR’, ou seja, ‘discutir a relação’. A categorização da experiência vivida por
casais que buscam fazer ponderações sobre os impasses da vida a dois como
‘discutir a relação’ torna essa experiência objetivamente real, acessível a
qualquer pessoa na condição de namorado/namorada e/ou cônjuges. Por
categorizações sucessivas de nossas experiências vamos constituindo o mundo, o
próprio real. A linguagem é, portanto, estruturante da relação entre a cognição
e o social na constituição da ação
humana. Se está clara a vinculação entre linguagem e cognição, cumpre ainda
enfatizar que a significação do mundo não é possível fora da práxis. Portanto,
sem práxis, não há significação. A significação é resultado da produção de
discurso, o qual é um tipo de ação que se faz conjuntamente com os outros. O
termo práxis deve ser entendido aqui
no sentido marxista: conjunto de atividades humanas que engendram não só as
condições de produção, mas, de um modo geral, as condições sociais de
existência. Não poderei aqui me estender sobre a sobredeterminação da linguagem
pela práxis.
Creio bem assentado o terreno
teórico pelo qual se articularão minhas reflexões sobre a ilusão cultural.
Passo, então, a discuti-la, doravante. Comecemos por atentar para o seguinte
trecho de Becker (2012, p. 228):
“Houve época em que eu ficava imaginando como é que as
pessoas agüentavam trabalhar em torno daqueles infernais fogões em cozinhas de
hotéis, o frenético torvelinho de servir uma dúzia de mesas ao mesmo tempo, a
loucura do escritório de um agente de viagens no auge da temporada de turismo,
ou a tortura de trabalhar o dia inteiro na rua com uma perfuratriz peneumática,
num verão calorento. A resposta é tão simples, que nem a percebemos: a loucura dessas atividades é exatamente a
da condição humana. Elas estão
“certas” para nós, porque a alternativa é o desespero natural. A loucura
diária desses empregos é uma repetida vacina contra a loucura de hospício. Veja
a alegria e a disposição com que os trabalhadores voltam das férias para suas
rotinas compulsivas. Mergulham no seu trabalho com tranquilidade e alegria,
porque o trabalho abafa algo mais sinistro. Os homens têm que ficar protegidos
contra a realidade. Tudo isso levanta outro gigantesco problema para um
marxismo sofisticado, ou seja: qual é a natureza das obsessivas negações da
realidade que uma sociedade utópica irá proporcionar, para evitar que os homens
enlouqueçam”. (grifos meus).
Nesse excerto, Becker
expressa seu espanto com o fato de as pessoas suportarem fazer o que fazem. O
autor descreve o mundo fático da ocupação humana. E categoriza as atividades
que nesse mundo se realizam como “a loucura da condição humana”. Está claro que
as atividades a que se refere Becker são fontes de estresse e cansaço e está
claro que essas atividades constituem o próprio destinar-se do viver humano na
cotidianidade mediana. Mas devemos nos perguntar por que o autor vê tais
atividades habituais, constitutivas do viver comum, como “a loucura da condição humana”.
Compreender o sentido com que foi empregada a palavra “loucura” é uma parte
importante do processo de compreensão global do texto. E a compreensão do que
significa “loucura da condição humana” depende de que reconheçamos que Becker
opõe essa loucura à espécie de “loucura” vulgarmente conhecida como uma doença
psiquiátrica (a loucura de hospício). O que se dá na loucura de hospício,
também conhecida como esquizofrenia? No sentido etimológico do termo,
esquizofrenia (do grego skhizo =
dividir + phren = mente) significa
“mente dividida”. A esquizofrenia caracteriza-se por uma acentuada quebra do
contato com a realidade. A personalidade esquizofrênica sofre uma fragmentação
e o doente constrói para si um mundo excessivamente conceptual determinado pelo
sentimento. Sem entrar nos detalhes clínicos dessa patologia, é bastante dizer
que o que conhecemos como ‘loucura’ aponta para o fato de que há uma ruptura da
relação “normal” entre a mente e o real. Aos olhos das pessoas saudáveis, o
“mundo” do esquizofrênico parece não fazer sentido algum, pelo menos não parece
dotado do sentido socialmente estabelecido e aceito. Becker parece querer dizer
que a mesma ruptura de sentido ou a falta dele pode muito bem caracterizar as
atividades rotinizadas da cotidianidade mediana. Essa “loucura” que é própria
da condição humana não é, no entanto, percebida como tal pelo homem comum. Ao
contrário, o homem comum identifica essas atividades rotinizadas, nas quais se
envolve por necessidade de sobrevivência, com o próprio viver. Quem negaria que
viver é isto: empregar diariamente o corpo e a alma num trabalho que nos
consome quase o dia inteiro? Lembremos o que nos ensina Heidegger a respeito do
modo originário como o ser-aí se encontra no mundo: jogado no mundo, o ser-aí está desde o início e na maioria das vezes
ocupado com os entes intramundanos. Ocupação
é, aqui, a palavra-chave para compreender o modo originário de existir no
mundo. A ocupação nos previne contra “o desespero total”. Enquanto permanecem
imersos naquelas atividades rotineiras, os homens estão protegidos contra a
realidade. Becker destacará o fato de que o homem comum vive numa espécie de esquecimento da angústia (p. 230). Como
podemos compreender essa angústia? Um caminho de compreensão nos é aberto por
Heidegger. Vale, então, determo-nos um pouco na forma como Heidegger pensa a
angústia.
A angústia, em Heidegger,
é um modo de ser decisivo na construção de uma existência autêntica por parte
do ser-aí. Para que possamos compreender o papel da angústia na apropriação
dessa existência autêntica, precisarei esclarecer uma noção sobre a qual me
mantive em silêncio até aqui, e que vem a ser a noção de “em virtude de”. O “em virtude de” descreve o fato de que a lida
com os utensílios para o ser-aí é orientada por necessidades, por propósitos.
Assim, o computador que vem ao meu encontro juntamente com uma totalidade
conformativa só se inscreve num campo de jogo existenciário porque tenho
necessidade de me expressar, de otimizar meu trabalho, etc. Essas muitas
necessidades que emergem na lida com os entes intramundanos estão articuladas
como o poder-ser do ser-aí. Assim, segundo pontua Casanova (2010, p. 102),
“jogado no mundo e familiarizado com os campos de uso, nós realizamos
incessantemente atividades que envolvem necessariamente utensílios dotados de
uma significação precisa em virtude de
algo que se encontra em uma relação direta com o poder ser do ser aí”
(grifo meu). Assim, as atividades às quais se reporta Becker são realizadas
cotidianamente pelas pessoas em virtude
de, em última instância, manter sua subsistência. Esses vários “em virtude
de” se acham disponíveis no mundo fático. A angústia abre o horizonte a partir
do qual o ser-aí possa descobrir em seu si mesmo aquilo em virtude do qual
precisa existir como o ser aí que ele é. A angústia quebra, por assim dizer, o
modo habitual com que o ser-aí existe na relação com os “em virtude de”, para
que ele possa confrontar-se com o seu caráter mais próprio de poder ser. Na
angústia, a confrontação do ser-aí com o seu caráter de poder ser se expressa
na forma de cuidado. Cuidado, para Heidegger, é o modo de ser
do ser-aí. O cuidado expressa a assunção pelo ser-aí da responsabilidade pelo
poder ser que ele é. O cuidado pressupõe que o ser-aí tem de responsabilizar-se
por si mesmo, pelos outros seres-aí e pelos entes intramundanos. A angústia
descerra para o ser-aí o poder-ser que é, e isso significa dizer o nada que ele é, visto
que ele não se define por essência alguma, visto que o ser-aí é na dinâmica
existencial que ele é. A angústia traz consigo o nada constitutivo que o ser-aí
é; por conseguinte, abre o espaço para que o ser-aí assuma-se como cuidado.
Para que possamos compreender bem o papel da angústia como modo de ser do
ser-aí, devemos recordar como o ser-aí existe no impessoal, justamente porque a
angústia abre a possibilidade de uma quebra do domínio irrestrito do impessoal.
Acompanhemos novamente Casanova:
“Antes de sua dinâmica existencial, o ser-aí não é
essencialmente nada e tudo que ele é precisa ser conquistado como um modo de
ser. Desta forma, o ser-aí não tem como não assumir de algum modo a
responsabilidade pelo seu ser. Ele pode se desonerar, claro, dessa
responsabilidade. Como vimos, ele pode transferir essa responsabilidade para o
seu mundo. Todavia, ninguém pode fazer isto por ele. Como tanto a assunção da
responsabilidade pelo poder ser que se é quanto a desoneração dessa responsabilidade
são modos de ser do ser-aí, eles já se mostram originariamente como modos de o
ser-aí cuidar de seu ser”. (p. 128-129).
Na lida cotidiana com os
utensílios, ou ainda, nas atividades rotineiras nas quais estão envolvidos os
indivíduos juntamente com os utensílios, como as que Becker descreve, esses
indivíduos tendem a atribuir ao seu mundo das ocupações a responsabilidade pelo
seu ser. Assim, diz o mecânico: “sou
mecânico, consertar carros é parte do que sou”. Mas ele se esquece ou não se dá conta de que
consertar carro é uma possibilidade de ser entre outras. Como lembra Casanova
no excerto acima, o ser-aí não é nada fora da dinâmica existencial, e uma vez
jogado nessa dinâmica, o que ele é precisa ser conquistado como um modo de ser.
Quer o ser-aí assuma a responsabilidade pelo poder ser que é, quer não, ele já
se mostra num certo modo de “cuidado” de seu ser. Mas é só na angústia que
emerge fenomenalmente para o ser-aí a articulação entre o ser-aí, o poder-ser e
a existência. É somente na angústia que o ser-aí conquista o modo de ser
enquanto cuidado, já que a angústia abre a possibilidade de suspensão do
domínio do discurso fático cotidiano. A angústia torna possível que o ser-aí se
singularize, passe a ocupar-se do seu poder-ser si mesmo, do poder-ser que se é
sempre.
A angústia mostra ao
ser-aí que, desde sempre, ele é um ser “engajado” nas ocupações e preocupações
da vida cotidiana. A angústia descerra
para o ser-aí (Dasein) os existenciais fundamentais de sua estrutura: a existencialidade,
a facticidade e a decadência. A descrição heideggeriana da angústia revela ser
ela extremamente problemática para o ser-aí: por um lado, a angústia torna
possível ao ser-aí a apropriação do seu poder-ser, liberando-o da existência
inautêntica; por outro lado, confronta-o com o nada que ele é e com a
necessidade de sempre tem de conquistar o modo de ser que é. Ora, a última
coisa que o homem comum deseja é confrontar-se com o nada originário que ele é
enquanto Dasein.
Essas considerações sobre
a angústia, na perspectiva fenomenológica heideggeriana, não devem sugerir uma
correspondência unívoca com a angústia a cujo esquecimento se refere Becker. Mesmo
que divirjam na maneira como compreendem a angústia, tanto Heidegger quanto
Becker estão de acordo – assim me parece – quanto ao fato de que, uma vez
esclarecidos os homens sobre sua própria condição, desatados da rede de ilusões
culturais que conformam suas vivências, a sua existência se realiza como
angústia. Angústia é o modo de ser do homem confrontado com a “crueza” de sua
condição.
Em suma, uma parte da
“loucura da condição humana” consiste no fato de o homem ter de empenhar-se em atividades e deixar-se absorver pela
totalidade semântica de seu mundo fático, a fim de evitar confrontar-se com sua
verdadeira condição enquanto animal biologicamente desamparado que se vê jogado
no mundo para nele edificar o que tem de ser, decair, inevitavelmente envelhecer
e morrer. Na próxima subseção, concentrar-me-ei no problema da ilusão cultural.
2.3. A ilusão cultural: os tipos normal e neurótico
Conforme assinalei, no penúltimo
parágrafo da subseção anterior, será necessário determinar o horizonte desde o
qual Becker considera a angústia. Essa será minha preocupação nessa seção mais
adiante. Por ora, cumpre-me a tarefa de dilucidar o que significa assumir que o
homem necessita para viver de ilusões que são engendradas e mantidas pela
cultura. Na análise antropológico-psicanalítica da condição humana feita por
Becker, o problema da ilusão e, de modo especial, o da ilusão cultural
articula-se com o estudo do tipo neurótico. É preciso, então, compreender, em
primeiro lugar, como definir o tipo neurótico, a fim de que possamos avançar no
trabalho de compreensão do problema da ilusão cultural.
Becker nota que a neurose
encerra três aspectos interligados. O primeiro dos quais diz respeito ao fato
de que a neurose caracteriza as pessoas que têm dificuldade para lidar com a
verdade da existência; nesse sentido, a neurose é universal, pois que todos
nós, em alguma medida, sentimos alguma dificuldade de viver com os olhos
abertos para a verdade da vida. O segundo aspecto diz respeito ao fato de a
neurose constituir uma resposta particular que damos à verdade da vida. Nesse
sentido, a neurose caracteriza o modo particular com que cada um de nós reage à
vida. Finalmente, o terceiro aspecto toca à dimensão histórica da neurose. A análise
que Rank faz dela aponta para o reconhecimento de que a neurose é um estado
característico da existência humana consequente do desaparecimento das
ideologias tradicionais que serviam para disfarçá-la. Não é que não existam
ideologias modernas, mas estas não cumprem com a mesma eficiência o papel que
cabia às ideologias tradicionais. Segue-se daí que, para Rank, o homem moderno
é um animal profundamente adoecido, pois não pode mais contar com as mesmas
ideologias vinculativas que davam sustentação ao seu projeto causa sui. Com esses aspectos caracterizadores
da neurose em mente, podemos introduzir outro conceito com o qual a neurose
está relacionada, ou, de modo particular, com o qual o tipo neurótico se
relaciona, a saber, o conceito de caráter.
2.3.1. A formação do caráter
A neurose, nota Becker, é
um problema de caráter (p. 219). Por isso, ao exame das características do tipo
neurótico, devem preceder algumas palavras sobre o que é o caráter e sobre como
ele se constitui. Começo com um convite a que olhemos à nossa volta para nos
certificarmos de que as pessoas, em geral, não se preocupam com o fato de que
suas ideias não correspondem à realidade. Um grande número de pessoas usa de
suas ideias como meios para se defender de sua própria existência, como meios
para espantar a realidade.
Todos os nossos
significados que vão dotando nossas experiências de mundo de sentido nos são
inculcados por força de nossas relações com os outros. Assim, por exemplo, os
valores de certo e errado, bom e mau, nosso nome, quem somos, tudo isso é
enxertado em nós por força das relações com os outros em sociedade. Além disso,
crescer significa acumular uma enorme quantidade de repressões, sem as quais se
tornaria impossível viver decididamente em um mundo que é esmagadoramente
incompreensível, pleno de beleza, é verdade, mas também fonte de terror.
O caráter, entendido como
mentira vital, é uma forma de defesa
de que o animal humano lança mão contra o problema do “ser homem”. O homem como
problema pode ser caracterizado nas palavras seguintes de Becker:
“Para o homem, o seu corpo é um problema que tem que ser explicado. Não só o corpo que é estranho,
mas também sua configuração interior, suas recordações e seus sonhos. Ele não
sabe quem é, por que nasceu, o que está fazendo no planeta, o que deveria
fazer, o que pode esperar. Sua existência lhe é incompreensível, um milagre
como o restante da criação, mais perto dele, bem perto de seu coração que bate,
por isso mesmo ainda mais estranho. Cada coisa é um problema, e o homem não
pode apartar de si coisa alguma”. (Becker, 2012, p. 75).
Tal como descrito no
trecho de Becker, o problema do homem remonta à inquietação pascaliana em face
dos abismos infinitos que fazem o homem estremecer, que o fazem tomar
consciência de sua pequenez e insignificância na imensidão de um universo
indiferente mergulhado num silêncio eterno. Para Becker, a dificuldade básica
do homem é ser, ao mesmo tempo, deus e verme: ser um deus com um ânus. O que
significa “ser um deus”? Significa pretender ser imortal. O que significa “ter
um ânus”? Significa ser uma criatura e, como tal, ser atravessada pela
impermanência radical.
Vamos, doravante,
encaminhar mais esclarecimentos sobre o que significa dizer que o caráter é um
mentira vital. Precisamos voltar-nos para a condição humana, a fim de
compreender o caráter como mentira vital. Consideremos o homem. Ele vive à
custa de mentir para si mesmo sobre si mesmo e sobre o mundo (as religiões e
outras formas de ideologias, como as políticas, o provam). O homem vive numa
autotapeação constante. Se o abstrairmos, por um momento, desse espaço
simbólico em que sua vida acontece – a cultura – para tomá-lo como uma criatura
natural, depois de o examinarmos, concluiremos que a natureza não o dotou dos
meios necessários para que ele pudesse acomodar-se bem ao mundo. O homem teve
de inventar e criar sozinho os expedientes e desenvolver em si a equanimidade
para conseguir viver.
O caráter – que nada tem
que ver, no âmbito psicanalítico no qual o consideramos, com qualidades morais
– o caráter, repito, é resultado de uma repressão
global que o indivíduo tem de fazer de todo o espectro de sua experiência,
a fim de que possa fruir um sentimento de valor interior e segurança básica. O
animal não-humano, em contrapartida, já está programado com um equipamento
instintual que lhe fornece a sensação de segurança. A situação do homem é
radicalmente diversa. Consoante assinala Becker (p. 77), “o homem, pobre
criatura desnuda, tem de construir e obter o seu próprio valor interno e sua
segurança”. Mas ele só consegue construir esse valor interno e essa segurança,
em todo caso, ilusórios, conforme veremos, à custa de erigir um muro maciço de
repressões ao longo da vida, donde se segue que o homem adulto é um indivíduo
dramaticamente reprimido. Vejamos quais são as repressões fundamentais sem as
quais a vida para o homem se tornaria demasiado insuportável. O homem precisa
então reprimir:
1) sua insignificância no
mundo;
2) seus fracassos na
tentativa de viver de acordo com as normas e os códigos adultos;
3) seus sentimentos de
inadequação física e moral, tanto a inadequação de suas boas intenções quanto
sua culpa e suas más intenções; também os desejos de morte e o ódio que sente
ao ser frustrado pelos adultos;
4) a inadequação dos
pais, suas ansiedades em relação a eles;
5) as funções do seu
corpo, as quais significam sua mortalidade, sua indiscutível transitoriedade no
mundo natural.
Agora, lancemos, por um
breve momento, alguns olhares sobre a condição da criança e nos perguntemos: o
que angustia a criança? A resposta: o fato de que a vida é demais para ela e de
que, na verdade, ela tem de evitar um excesso de pensamento, de percepção e de
vida. A criança precisa evitar a morte, que espreita qualquer atividade
despreocupada, que lhe espia sobre os ombros enquanto ela, criança, brinca.
Novamente, devemos recordar o ensinamento de Heidegger: a angústia básica do
homem é uma disposição afetiva que o faz confrontar-se com o fato de ser um
ser-no-mundo.
As defesas contra o
desespero da condição humana é que formam o caráter de uma pessoa. O desespero
que está em consideração aqui não deve significar a mesma coisa que significa o
desespero que, definido no limiar deste texto, é uma categoria que, juntamente
da categoria do absurdo, orienta a construção de toda a tessitura de minhas
reflexões. O desespero, tal como defini no início deste texto, tem um caráter
reconciliador com o real; mas o “desespero da condição humana” a que tenta
fugir o próprio homem se traduz na forma de desamparo, de terror, aflição, ao
sermos afetados pela percepção de que não controlamos nossas vidas, de que
podemos ser nada mais do que um trêmulo acidente num planeta localizado numa
pequena porção de um universo com aproximadamente 200 bilhões de galáxias.
Não queremos admitir que
somos fundamentalmente desonestos no que tange à realidade; não queremos
reconhecer que mentimos para nós mesmos. Não podemos suportar o sentimento de
nossa radical solidão cósmica; por isso buscamos apoio em algo que nos
transcenda, seja num deus, seja num estilo de vida, seja numa
atividade que requer completa dedicação. O importante é que permaneçamos
ignorantes e desocupados da insignificância que consiste em ser uma criatura
formada a partir do carbono.
As defesas que formam o
caráter de uma pessoa sustentam uma grande ilusão. O homem se queixa do
estresse da vida diária; mas busca-o para manter-se protegido contra o
desespero total. O caráter é, portanto, nossa couraça contra o desespero, e
perdê-la significa correr o risco da morte ou da loucura. O caráter é uma defesa neurótica contra o desespero. Se
ele for abandonado, restará um desespero avassalador que, emergindo de nossos
subsolos para mergulhar seus tentáculos em toda a nossa fisiologia, será a
consequência inevitável da percepção da nossa verdadeira condição como criatura
que, mesmo curada de sua infelicidade neurótica, ainda terá de lidar com a
infelicidade da vida.
A função do caráter é,
portanto, permitir à pessoa uma defesa contra o desespero. O caráter é sua
tentativa de evitar a loucura, o terror de que essa pessoa seria tomada, caso
se lhe iluminasse no espírito a verdadeira natureza do mundo. De que natureza
se trata? O que significa dizer “verdadeira natureza do mundo”? Sem me demorar
nos desdobramentos polissêmicos do termo “natureza” (natura), basta reter que ele significa “essência”. Falar em
“natureza do mundo” é falar de “essência do mundo”, isto é, aquilo que faz o
mundo ser o que é. O que Schopenhauer nos ensina sobre essa matéria virá bem a
propósito. Em sua obra O mundo como
Vontade e Representação (2001), Schopenhauer estudará o mundo sob dois
pontos de vista: o mundo como representação,
que é o mundo fenomênico, deveniente; e o mundo como vontade. Schopenhauer assumirá que a Vontade, que é um princípio
metafísico, é a essência do mundo. A Vontade é una e idêntica em si mesma,
eterna e infinita; existe para além do espaço, do tempo e não está submetida ao
princípio da razão (causalidade). A Vontade é um impulso cego, sem finalidade,
de ser, de viver. Ela sustenta o mundo, mas se objetiva nos fenômenos do mundo,
desde as formas inorgânicas (as forças físicas e químicas) até atingir seu grau
máximo de objetivação no homem. A vontade não nos é acessível ao conhecimento
intuitivo, mas podemos constatá-la em nosso corpo, pois nosso corpo é o ‘lugar’
de sua objetivação. Schopenhauer, embora
admita que a conformação dos fenômenos uns com os outros envolva um princípio
teleológico imanente à dinâmica da natureza, adverte que essa conformação não
elide o conflito inerente ao tecido vital. Há que reconhecer, segundo
Schopenhauer, uma luta geral na natureza que se prende à essência da vontade. A
Vontade de que fala Schopenhauer não tem escopo final. Ela é desprovida de toda
finalidade. Apenas o ato particular tem uma finalidade; a vontade mesma não a
tem. Leia-se um trecho em que Schopenhauer fornece-nos uma descrição
notavelmente heraclitiana do mundo, à luz da qual a harmonia não elide o
conflito permanente que se dá no domínio fenomênico como resultado da
contradição interna da vontade consigo mesma:
“A harmonia só se estende nos limites em que ela é
necessária para a existência e subsistência do mundo e das criaturas, que, sem
harmonia, teriam já acabado há muito tempo. Eis por que motivo esta harmonia se
limita a garantir a conservação e as condições gerais de existência à espécie,
não ao indivíduo. Portanto, graças à harmonia e à adaptação, as espécies no
mundo orgânico, as forças gerais da natureza no mundo inorgânico coexistem umas
com as outras e mesmo se apóiam mutuamente, em compensação, a luta íntima da
vontade que se objetiva em todas estas ideias[4]
traduz-se na guerra até a morte – guerra sem tréguas – que os indivíduos dessas
espécies fazem e ao conflito eterno e recíproco dos fenômenos das forças
naturais”. (p. 170).
Para não me desviar
demais do que me propus esclarecer, não discutirei, em pormenores, o que se nos
põe a pensar esse excerto. Cingir-me-ei a assinalar que a harmonia que
encontramos nos fenômenos da natureza tem uma extensão limitada à garantia da
existência e subsistência do mundo e dos entes que nele existem. A Vontade,
como coisa em-si, como essência do mundo, não garante a harmonia, pois que a
Vontade se caracteriza essencialmente por um conflito consigo mesma. É ao fundo
íntimo essencial do universo que devemos remontar, a fim de buscar a origem da
guerra sem tréguas em que se traduz a vida. Donde ser forçoso concluir, retomando-se
a questão sobre a verdadeira natureza do mundo, que esta natureza não é mais do
que conflito permanente da Vontade com ela mesma. Daí se poder dizer,
concordando com Schopenhauer, que a essência da vida é dor; daí também ser
imperioso anuir à clareza Schopenhaueriana, ao nos advertir: “existe uma
contradição notória em querer viver sem sofrer” (p. 100), ao que acrescentará:
“contradição que está totalmente envolvida na palavra “vida feliz” (ib.id.).
Gostaria de lembrar ao
leitor que esta é apenas a minha atribuição de sentido à expressão “a natureza
verdadeira do mundo”, não necessariamente será a de Becker. Becker não dá a
conhecer indubitavelmente o que entende por essa expressão, cabendo ao seu
leitor, mapear, ao longo do texto, o seu significado, o que exige certo esforço
interpretativo que não deve submeter-se à busca por responder “o que o autor
quis dizer”. É perfeitamente plausível admitir, sem que façamos uma
interpretação não autorizada pelo projeto de sentido que sustenta o discurso de
Becker, que, na verdade, “a verdadeira natureza do mundo” é não ter natureza
(essência) alguma. Nesse caso, negaríamos que se possa conhecer alguma natureza
íntima e verdadeira do mundo, simplesmente porque o mundo carece de tal
natureza. Não há nada para conhecer que se situe para além das aparências. Só
podemos constatar a presença absurda do mundo, sua ausência de fundamento, de
razão de ser. Sua radical contingência seria, assim, o que podemos alcançar
pela reflexão aturada. Não obstante julgar plausível essa interpretação, mantenho
a compreensão de que “a verdadeira natureza do mundo” é a Vontade cega, sem
finalidade, visto que essa compreensão se ajusta bem à concepção do real como
essencialmente cruel – concepção cujo esclarecimento e desenvolvimento
constituem o objetivo principal deste estudo.
A Vontade, para
Schopenhauer, é um esforço sem fim. Esse esforço não tem, portanto, escopo
final. Nas palavras de Schopenhauer,
“Em resumo, a vontade sabe sempre, quando a
consciência a ilumina, o que quer em tal momento e em tal lugar [como sucede
com o homem]; o que ela quer em geral, ela nunca o sabe. Todo ato particular
tem uma finalidade; a própria vontade não a tem; como todos os fenômenos
naturais isolados, a sua aparição em tal lugar, em tal momento, é determinada
por uma causa que lhe dá fundamento; mas a força mais geral que se manifesta
nesse fenômeno não tem ela própria causa, visto que ela é apenas um grau das
manifestações da coisa em si, da vontade que escapa ao princípio da razão. A
única consciência geral de si mesma que a vontade tem é a representação total,
o conjunto do mundo que ela percebe: ele é a sua objetidade, a sua manifestação
e o seu espelho (...)” (p. 173).
Antes de retomar o
problema do caráter de que me ocupava, vale chamar a atenção, em primeiro lugar,
para o fato de que a postulação da Vontade como essência íntima do mundo não
alija da compreensão de mundo schopenhaueriana o absurdo, porquanto a Vontade é
esforço sem finalidade alguma. A própria vida, como objetivação da Vontade, se
manifesta sem propósito, sem finalidade. A Vontade objetiva-se nos entes do
mundo orgânico como um querer sem fim. Em segundo lugar, essa luta geral na
natureza está ligada à essência da Vontade, e a essência da Vontade se expressa
como contradição da Vontade com consigo. Em que consiste essa contradição da
Vontade com ela mesma? Só poderei dar uma resposta parcial, ou seja, uma
resposta que não contempla toda significação dessa contradição. Mas o essencial
deverá elucidá-la e nos ser bastante. Schopenhauer dirá que é o egoísmo
essencial a todos os seres na natureza que revela a contradição íntima da
Vontade. A Vontade, para manifestar-se, deve submeter-se ao principio de
individuação – o tempo e o espaço. Cada grau de objetivação da vontade, desde
as forças naturais – graus inferiores da objetivação da Vontade – até o homem,
fenômeno superior da Vontade, luta sem cessar disputando um com o outro a
matéria, o espaço e o tempo. Cada fenômeno da Vontade, movido pelo princípio
natural do egoísmo, tende sempre para atingir um estado mais elevado; mas isso
só consegue eliminando outro fenômeno com o qual entra em conflito. Assim, a
Vontade de viver, isto é, a Vontade, objetivando-se em cada fenômeno – seja uma
criatura viva como um animal – “alimenta-se” de si mesma, já que “uma criatura
viva só pode manter sua vida à custa de uma outra” (p. 155).
Volto a tratar da questão
que abandonei, a partir de agora. Minha atenção recaía sobre a formação do
caráter. Ficou claro que o caráter se forma a partir de uma série de repressões
e também que o caráter é uma mentira vital. O caráter indica que o homem vive
num estado de autoilusão, de autotapeação. O caráter é uma defesa contra o
desespero. Resumindo assim o que vimos, evoco uma questão que nos é apresentada
por Becker e que deverá iluminar o curso das reflexões subsequentes. Pergunta
Becker: “o que é que o homem faria com uma plena consciência do absurdo?”
(2012, p. 84). É provável que uma tal consciência o paralisasse ou o levasse
para o hospício. É bem verdade que a pergunta diz respeito ao efeito psíquico
que a consciência do absurdo teria sobre o indivíduo. E é justamente o
esclarecimento acerca do absurdo da existência que o homem quer evitar e evita
moldando seu caráter. O caráter tem o único propósito de lhe servir como uma
cortina que obscurece a crueldade da vida.
O caráter permite ao
homem vicejar na cegueira, tornar-se presunçoso em relação ao terror. Sartre
compreendeu bem essa autoilusão do homem, caracterizando-o como uma “paixão
inútil”, isto é, o homem vive enganado a respeito de sua verdadeira condição,
como nota perspicazmente Becker: “o homem quer ser um deus com o equipamento de
apenas um animal, e por isso vive de fantasias” (p. 85). É preciso reconhecer
que a defesa contra a consciência do modo como o mundo é verdadeiramente é
indispensável para se continuar vivendo: “como tirá-la das pessoas e deixá-las
alegres?” (ib.id.).
Por mais atraente que nos
possa parecer a recomendação do psicólogo americano Abraham Maslow, segundo a
qual as pessoas deveriam se permitir ter a experiência do que ele chama de
“cognição do ser”, a qual consiste “na abertura da percepção à verdade do
mundo”, uma verdade escondida pelas distorções e ilusões neuróticas que
protegem o indivíduo de experiências esmagadoras, o próprio Maslow soube reconhecer
os perigos de tal experiência, embora não tenha chegado a apresentá-los em
pormenores. Mas podemos entrevê-los e sumariá-los sob a expressão da seguinte
observação: a cognição do ser nos levaria a questionar radicalmente nosso lugar
no mundo e ver o mundo tal como é verdadeiramente constituiria uma experiência
terrificante e arrasadora. Sua consequência é aquela que a criança buscou com
todo esforço evitar na construção de seu caráter ao longo de sua socialização:
impossibilitar uma atividade rotineira, automática, segura, autoconfiante.
Uma visão desanuviada da
verdadeira natureza do mundo impede o indivíduo de viver despreocupado,
instalado em sua zona de conforto num mundo que, de qualquer modo, parece bem
ajustado para abrigar a vida e, em especial, a vida humana. Tomar consciência
da verdadeira natureza do mundo, consoante nota Becker, também “coloca um
animal trêmulo [como o homem] à mercê de todo o cosmo e do problema do
significado do mesmo” (p. 85).
Podemos, agora,
responder, com alguma margem de segurança, o que significa ser “normal”.
Significa continuar negando a verdadeira natureza do mundo, significa continuar
servindo-se do caráter para proteger a si mesmo do desespero e do terror que
sobreviriam à percepção da verdade sobre o real, significa, enfim, continuar a
seguir o rebanho.
2.3.2. A ilusão cultural
2.3.2.1. O tipo neurótico “normal”
Ao me debruçar sobre a
descrição da dimensão ilusória, constitutiva do viver cotidiano, estarei
interessado em definir quem é o homem
comum. Definindo o homem comum, espero conseguir lançar luzes sobre o
significado e a função da ilusão cultural.
Segundo Becker (p. 230),
o homem comum é aquele que conseguiu “erigir um maciço muro de repressões” para
obnubilar o problema da vida e da morte. Esse homem comum não mede esforços
para esconder o problema da vida e da morte. Para escapar ao terror que lhe
provocaria um instante de reflexão sobre sua condição humana, ele é capaz,
inclusive, de deflagrar guerras, oprimir e causar dor e sofrimento como formas
de manter-se ocupado e alienado de sua trágica condição. Luiz Gonzaga de Bem,
em seu Confissões de um filósofo
desesperado (2009), apresenta-nos um recorte da tragicidade inerente à
condição humana, que acredita estar relacionada ao fenômeno da individuação e o
peso da liberdade e responsabilidade que ela acarreta:
“O aspecto trágico da vida está precisamente nessa lei
a que o homem é forçado a obedecer, a lei que o obriga a seu um. Cada qual pode
ser um, nenhum, cem mil, mas a escolha é um imperativo necessário. E é essa
escolha que organiza a nossa harmonia individual, o sentimento de nosso
equilíbrio moral. É ela que constitui a tragédia e que faz com que os meus
dramas não sejam simples farsas. Eles apresentam uma lei de sacrifício: o
sacrifício da multidão de vidas que poderíamos viver e que, no entanto, não
vivemos. E a vida, não é uma farsa, é uma tragédia”. (p. 135-136).
O ser “um” significa ser
um “eu”. Não se trata de aderir a uma compreensão determinística do “eu”,
conforme ficará mais claro no próximo excerto de Bem, que citarei adiante. O
que está em jogo, na dimensão trágica do homem, segundo o autor, é a sua
liberdade ontológica. Sou responsável pelo que sou e por aquilo que faço do que
fizeram de mim. Bem faz ecoar aqui a posição existencialista de Sartre, para
quem a liberdade leva o homem a tomar consciência do projeto que ele é. Na
liberdade, o homem, sente-se desamparado, pois não pode contar com nada mais
nem com ninguém. Na liberdade, o homem precisa assumir a responsabilidade pelo
que é e pelo seu destino. Lançado no mundo, o homem é responsável por tudo
quanto faz. Mas o homem experiencia a sua liberdade, à qual ele está
ontologicamente condenado, como angústia. O homem, na visão de Sartre, não é um
ser acabado; ele precisa ser inventado todos os dias.
No excerto abaixo, Bem
caracteriza a vida humana como drama, e novamente, de modo ainda mais claro,
assume uma posição existencialista consagrada por Sartre. Leiamos com atenção o
fragmento:
“Por essa razão eu disse muito formalmente e não como
simples metáfora que a vida é drama: o caráter de sua realidade não como o da
mesa cujo ser consiste tão-só em estar aí, mas em ter cada qual de ir-se
fazendo por si, instante após instante, em perpétua tensão de angústias e
júbilos, sem que tenha nunca plena segurança sobre si mesma. Não é essa a
definição de drama? O drama não é uma coisa que está aí – não é em nenhum bom
sentido uma coisa, um ser estático -, mas sucede, encontra-se, é um suceder-lhe
algo a alguém, é o que acontece ao protagonista enquanto lhe acontece” (p.
136).
Ora, o ser para o qual o Dasein (o ser-aí) é a locanda, a
clareira, é um acontecer; o ser se mostra sendo. Se “ser” é sendo, é acontecer,
segue-se, se nos for dado acompanhar Bem, que ser é “drama”. E, como o ser-aí é
o ser no qual está em questão o sentido do ser, esse sentido se expressa como
seu drama. A pedra, esta mesa, a cadeira onde me sento são seres-em-si e, por
isso, não estão abertos à experiência de “não ser o que se é e ser o que não se
é” (cf. Sartre, Ser e o Nada). O
ser-em-si é pleno de si, é compacto, não pode não ser o que é. Somente para um
ser que se caracteriza pela “ausência de si” (falta-lhe o “si” que o determina
a ser o que é), somente para o homem, chamado por Sartre de “para-si”, a
experiência de ter de fazer-se continuamente, de nunca ser o que se é, é
possível, já que o homem é verdadeiramente o único existente. E a existência é
experiência dramática para o homem, para quem existir é trabalho incessante de
edificação de si sobre a indeterminação originária que jamais o abandona
enquanto existente.
Becker, por sua vez,
oferece-nos outra forma de compreender o caráter trágico da condição humana. O
trágico de nossa condição deve ser buscado no fato de o homem ser um animal
consciente de si mesmo. Leiamos com atenção o seguinte excerto:
“O que significa ser um
animal consciente de si mesmo? Significa saber que se é alimento para vermes.Este é o horror: ter
surgido do nada, ter um nome, consciência de si mesmo, profundos sentimentos
íntimos, uma torturante ânsia pela vida e pela auto-expressão – e apesar de
tudo isso, morrer. Parece uma mistificação, que é o motivo pelo qual certo tipo
de homem cultural se rebela abertamente contra a ideia de Deus. Que tipo de
divindade iria criar um alimento para vermes tão complexo e caprichoso?
Divindades cínicas, diziam os gregos, divindades que usam os tormentos do homem
para se divertirem”. (p. 115-116).
Retomando o curso das
considerações sobre o homem comum, é imprescindível enfatizar que normalidade e
neurose não têm limites rigorosos. Tenhamos isso em mente, a fim de que não
incorramos no engano de acreditar que os tipos comum e neurótico sejam tipos
radicalmente distintos. Feita essa advertência, passemos a contemplar a
condição do tipo normal à luz da oposição entre ilusão e realidade.
O projeto causa sui é uma presunção que tem o
indivíduo de sua invulnerabilidade em virtude de estar protegido pelos outros e
de viver sob o abrigo dos significados fornecidos pela cultura. Esse projeto
está na origem da crença do indivíduo de que ele é importante e que pode
desempenhar um trabalho valioso em favor da humanidade. Sucede, contudo, que o
projeto causa sui é uma ilusão -
ilusão em dois sentidos principais: 1) distorção
da real condição do homem como criatura; 2) autoengano motivado pelo desejo de sua vida mesma possuir algum
significado na totalidade do universo. No entanto, o universo, que se
tivesse voz bradaria, parece pronto para demonstrar que não devemos ignorar os
sinais da verdade sobre a vida humana: todos os modos de ela se dar (entenda-se
“se configurar”) indicam que ela não passa de um interlúdio insignificante “de
um perverso drama de carne e osso que chamamos evolução” (Becker, 2012, p.
230). Tendo voz, o universo acrescentaria: o Criador não se importa com o
destino do homem “ou com a perpetuação dos indivíduos mais do que parece ter-se
importado com os dinossauros ou com os tasmânios” (ib.id.).
Resumidamente, o tipo
humano normal pode ser assim caracterizado:
1) é mais envolvido pela
mentira da vida cultural, pelas ilusões do projeto causa sui;
2) está certo de que o
jogo cultural é a verdade, a inabalável verdade;
3) adere mais facilmente
à ideologia da imortalidade e age em conformidade com ela.
Penso que uma compreensão
suficientemente satisfatória da ilusão cultural deve esperar pela apresentação
das características dos tipos neurótico e criativo. Sem embargo, a ilusão
cultural se prende ao fato de que é a cultura que determina nossa visão de
mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, nossos comportamentos,
nossos gostos e mesmo nossas posturas corporais. A cultura molda nosso
pensamento e fornece os significados com os quais damos sustentação e algum sentido[5]
para a nossa existência. A ilusão cultural é a forma generalizada com que o
autoengano respeitante quer à condição individual, quer à condição humana, enraíza-se
na estrutura da consciência para produzir modos de ser ajustados à vida social.
O indivíduo humano tem necessidade de segurança, sem a qual seu desenvolvimento
e crescimento se tornariam impossíveis. Ele não pode sentir permanentemente que
sua vida está em perigo; e a cultura deve lhe garantir (o sentimento de)
segurança. O indivíduo tem necessidade de pertencimento, isto é, ele necessita
sentir-se membro de uma coletividade, necessita sentir que é amado e acolhido. A
menos que essa necessidade seja satisfeita, seu desenvolvimento não será pleno.
O indivíduo também tem necessidade de estima. Ele precisa sentir-se valorizado,
sentir que ocupa um lugar, que desempenha um papel. Ele deseja ter êxito. E a
cultura deve também aqui lhe vir em socorro. Finalmente, o indivíduo necessita
de auto-realização. Ele necessita desenvolver “valores” superiores, como a paz,
a justiça, o belo; necessita de sua vida tome parte, de algum modo, no trabalho
de melhoria das condições de existência da coletividade a que pertence ou mesmo
do mundo. São esses valores superiores que, para ele, dão sentido à sua vida[6].
Novamente, é a cultura que deve favorecer sua auto-realização.
2.3.2.2. O tipo neurótico
Principio minha abordagem
do tipo neurótico, destacando a seguinte proposição: a neurose é um problema de caráter (Becker, 2012). Becker inicia
sua exposição sobre o tipo neurótico pela inadequação natural do homem.
Segue-se o que Becker nos tem a dizer a esse respeito. Notemos que o autor externará
o que entende por “verdade da vida”.
“Quando dizemos que a neurose representa a verdade da
vida, uma vez mais queremos dizer que a vida é um problema esmagador para um
animal desprovido de instinto” (p. 219).
O instinto prepara os
animais não-humanos para todos os atos necessários à sobrevivência. O homem,
porque desprovido de instintos, tem de aprender quase tudo. Um bebê não provê
sozinho sua alimentação; por outro lado, a maioria dos animais já é auto-suficiente
ao nascer. O instinto, na medida em que é uma forma de percepção que
desencadeia uma reação programada, determina o comportamento dos animais
não-humanos. Também devemos ao instinto a delimitação do fragmento do mundo que
o animal irá habitar e onde irá se desenvolver. Por isso, os animais têm
habitat; o ser humano, não. O mundo do homem é todo o planeta, situado numa
galáxia entre bilhões de outras sobre cuja existência, natureza e imensidade ele
só pode especular. Na carência de instintos que o preparam para todos os atos
de sobrevivência, o homem desenvolveu uma extraordinária capacidade de
adaptação aos mais variados ambientes naturais. Essa extraordinária capacidade
de adaptação parece compensar a ausência de defesa natural contra a percepção
do mundo exterior. O homem é um animal completamente aberto à experiência. Ele
se relaciona não só com os indivíduos de sua espécie, mas também com os animais
de outras espécies. Ele não vive apenas atado ao momento presente, mas projeta
seu espírito para o futuro, o seu interesse para um passado remoto, os seus
temores para bilhões de anos adiante.
Freud distinguiu
rigorosamente o instinto (instinkt)
da pulsão (trieb). Segundo Freud
(2014, p. 49), as pulsões “[são] as forças que supomos existir por trás das
tensões de necessidades do isso [id]. Elas representam as exigências físicas
feitas à vida psíquica”. As pulsões são tendências, impulsos que extrapolam a
consciência e que têm sua fonte numa excitação corporal localizada. Não
poderei, neste texto, evidentemente, me estender sobre a importância das
pulsões para a compreensão da natureza humana, mas vale acrescentar outro
aspecto que distingue o instinto da pulsão: o
instinto possui um objeto específico, ao passo que a pulsão não o implica.
As pulsões jamais podem tornar-se objeto da consciência; elas são o
representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo.
Embora se situem no inconsciente, as pulsões, mesmo aí, são sempre
representadas por uma ideia ou afeto.
Voltando nossa atenção à
função vital da neurose, não devemos perder de vista o fato de que a neurose
atende a um propósito bem determinado: proteger
o indivíduo contra o mundo. Essa proteção se dá da seguinte forma. A
neurose reduz o tamanho do mundo para o indivíduo e impede que este seja
importunado por experiências que o fariam mergulhar em terrores e desespero
(entendido como aflição decorrente da perda de mundo, perda do conjunto de
referências que dava sustentação à vida desse indivíduo). Na neurose, o
indivíduo aliena-se tanto dos terrores do mundo quanto do desespero e da
angústia que lhe fustigariam todo o corpo se viesse a ser exposto àqueles
terrores. É dessa forma que a neurose livra o indivíduo de uma paralisia que o
impediria de agir ou mesmo de viver.
“Nunca será demais repetir a grande lição da
psicologia freudiana: a de que a repressão é a autoproteção normal, uma
auto-restrição criativa – numa acepção verdadeira, o substituto natural do
instinto, para o homem” (Becker, 2012, p. 219).
Pode-se caracterizar essa
aptidão natural do homem para auto-restrição como “parcialização”. O homem bem
ajustado à dinâmica do seu mundo fático possui uma capacidade impressionante de
parcializar o mundo, a fim de que possa agir de modo satisfatório. Assim, os
seres humanos parecem programados pela natureza para tomar da vida apenas a
fatia que conseguem mastigar e digerir. O homem normal é aquele que cumpre
adequadamente essa função. O homem normal é aquele que é bem-sucedido na
parcialização do mundo, na imersão numa parte reduzida dos “espaços imensos que
o ignoram e que ele precisa também ignorar”.
O homem normal é aquele
que se proíbe ruminar problemas eternos, como o do significado da vida e da
morte, a razão da aparição dos entes, como esta rosa que o agrada ou aquela
constelação que admira. Consoante nota Becker, fazendo eco a Kierkegaard, “a
maioria dos homens se poupa dessa complicação, mantendo-se concentrada nos
pequenos problemas de suas vidas, tal como a sociedade em que vivem traça esses
problemas para eles” (p. 219). Esse é o tipo de homem que Kierkegaard chamará
de “filisteu”. Insisto, citando Becker, neste ponto: “a essência da normalidade
é a recusa da realidade” (p. 220,
grifo meu).
Cuido necessário fazer
aqui um esclarecimento, porque, afinal, desloquei o foco de minhas
considerações sobre o tipo neurótico para o tipo normal, e o leitor pode estar
se perguntando por que voltar a mencionar o homem normal numa seção dedicada à
explanação sobre o tipo neurótico. Em primeiro lugar, conforme já assinalei, todos
nós temos traços neuróticos em nossa personalidade. Em segundo lugar, o tipo
neurótico e o tipo “normal” não se distinguem rigorosamente. Lembro também que
estou transitando num espaço teórico específico do tratamento da neurose. As
teorias sobre a neurose são muitas e bastante variadas. Reich, por exemplo,
entende que a neurose é uma couraça que construímos para poder lidar com a
realidade. Nesse sentido, ela é o próprio caráter, que foi objeto de discussão
anteriormente. Um aspecto importante da neurose são os mecanismos de defesa
utilizados pelo indivíduo para suportar o peso da realidade. O neurótico tende,
por meio desses mecanismos de defesa, a distorcê-la. Mas é igualmente certo que todas as pessoas
se utilizam de tais mecanismos, muito embora o neurótico os empregue como sua
principal forma de ajustamento ao mundo de sua cultura. Teles (2004, p. 22), ao
levantar a questão “quem é o neurótico?”, responde da seguinte maneira: “A
verdade é que a nossa compreensão da neurose está longe de ser clara e
completa”. E acrescenta: “este aspecto do comportamento humano é muito difícil
de estudar”.
Como, então, entender que
eu tenha tornado a falar do tipo normal? Salta evidente a resposta: é que o
tipo normal é, em certa medida, também neurótico. Seu caráter é seu mecanismo
de defesa contra a verdade do mundo. Estando clara essa falta de distinção
rigorosa entre um tipo e outro, passemos a um segundo momento de minha
discussão sobre o tipo neurótico e sobre a neurose. Quando nos ocupamos a
pensar sobre a neurose, somos levados a reconhecer que a neurose é uma questão
de graus. Há os neuróticos bem ajustados, chamados, portanto, de “normais”,
porque conseguem viver bem com suas mentiras sobre o mundo e sobre si mesmos.
Mas ocorre, com frequência, que a neurose pode significar o fracasso das
precárias mentiras de que o indivíduo se vale para encobrir a realidade e a
verdade de sua própria condição. Algumas pessoas sentem dificuldades para
manter suas mentiras. O mundo se torna, assim, pesado demais para elas, e os
“subterfúgios” de que se servem para manter afastada da consciência a verdade
sobre a natureza do mundo começam a perder sua eficácia.
Devemos agora ver o tipo
neurótico sob outra perspectiva. Um indivíduo neurótico é aquele cuja vida
acarreta sérias dificuldades a si mesmo ou aos outros à sua volta. Quando as
mentiras sobre a realidade se tornam ineficazes, devemos reconhecer nesse
fracasso um caso também de neurose. O tipo neurótico é, então, aquele indivíduo
que evita fazer novas escolhas, que se impõe muitas coerções. Destarte, uma
pessoa, por exemplo, que esteja esperando encontrar salvação num relacionamento
amoroso e que se veja fracassando na busca desse objetivo demasiado estreito é
neurótica. Ela pode tornar-se passiva e dependente da pessoa amada, e temerosa
de viver sozinha.
Podemos, todavia,
contemplar o problema da neurose sob outro prisma. Há um tipo neurótico que não
se caracteriza por operar um estreitamento do mundo, mas sim por exibir uma
imaginação vívida, por operar uma abertura, demasiado lata, à experiência. Esse
tipo neurótico abocanha um pedaço maior do mundo. Esse tipo neurótico é, pois,
o oposto do tipo que vimos estudando. O tipo neurótico que, até aqui,
descrevemos bloqueia a percepção da realidade. Veremos, mais adiante, como se
define outro tipo neurótico, o neurótico criativo. O tipo neurótico criativo
sente sua solidão com intensidade, apropria-se, de modo vívido, de sua
individualidade. Esse tipo neurótico se destaca, está menos inserido na
cotidianidade mediana, experimenta uma segurança mais reduzida, que compromete
sua ação cultural automática. O mundo se lhe torna, por isso, um problema total
– “com todo o inferno vivo que essa exposição provoca” (Berger, 2012, p. 223).
Esse tipo neurótico “abocanha” uma parcela maior do mundo, muito maior, aliás,
do que pode mastigar.
Por ora, basta atentar
para a síntese dos dois tipos neuróticos cujas características foram apreciadas
nesta subseção, as quais nos dá a saber Becker no seguinte trecho:
“Podemos ver que a neurose é, por excelência, o perigo
em que incorre um animal simbólico cujo corpo lhe constitui um problema. Em vez
de viver biologicamente, o homem vive
simbolicamente. Em vez de viver da maneira parcial, para a qual a natureza
lhe deu condições, ele vive de maneira total tornada possível pelos símbolos. A
pessoa substitui o mundo real, fragmentário da experiência, pelo mundo mágico do eu, que a tudo abrange.
Uma vez mais, nesse sentido, todos são neuróticos, já que todo mundo, de algum
modo, hesita em manter contato com a vida e deixa que a visão simbólica que tem do mundo arranje as coisas: é para isso que
serve a moralidade cultural. Nesse sentido, também, o artista é o mais
neurótico, porque também toma o mundo como uma totalidade e o transforma em sua
maior parte simbólica”. (p. 225, grifos meus).
Os trechos que destaquei
em negrito merecem aqui alguns comentários. Cabe, em primeiro lugar, observar
que Becker reconhece que o homem é um animal simbólico, isto é, um animal capaz
de usar símbolos para constituir um mundo próprio que é, essencialmente, um
mundo simbólico. Mas mundo simbólico não mundo ficcional, algo como um
simulacro do “verdadeiro” mundo. O mundo simbólico é mundo como totalidade
entretecida de significados, é “mundo” estruturado por conceitos e/ou
categorias graças à função de simbolização da linguagem. Devemos ter em conta a
lição do linguista Edward Lopes (2011, p. 41), ao nos ensinar: “toda
significação é, em última instância, verbal: a inteligibilidade requer uma
linguagem de signos verbais”. Obviamente, o mundo onde vive o homem está
repleto de outras formas de linguagem, mas é somente a linguagem verbal que
pode sempre traduzir todos os signos não-verbais. Mesmo não sendo um
especialista em arte, posso expressar em palavras o que vejo numa pintura
representativa da arte abstrata; mas dificilmente um pintor conseguirá traduzir
de modo inequívoco expressões linguísticas como “vazio da existência”, “ideias
sorrateiras”, “luzes estilhaçadas”, “mortalha da alegria”, etc. Pense ainda num
ator que tenha de representar, sem qualquer fantasia, uma “flor”. Como usar
nosso corpo para representar algo como uma “flor”? Sabemos que usamos nosso
corpo para significar. O teatro explora a linguagem corporal. O dedo polegar
estendido para cima pode significar ‘agradecimento’, ‘simples cumprimento’,
‘assertiva’, pode indicar que estou bem, etc.
É preciso, então,
sublinhar este ponto: fora dos quadros da
linguagem verbal, dos signos, portanto, não há possibilidade de
inteligibilidade para o homem. Mas cumpre ainda esclarecer o que devemos
entender por simbolização. Uma forma
de definir simbolização é afirmando
que ela é uma faculdade de representar o real por meio de um ‘signo’ (uma
palavra, um símbolo, um ícone, etc) como representante do real. A simbolização
torna possível, assim, estabelecer uma relação de significação entre alguma
coisa e alguma outra coisa. Benveniste dirá que a faculdade de simbolização
permite a formação de conceitos como algo distinto do objeto concreto. O
filósofo Charles Peirce, evocando a concepção tradicional de signo, chamará de
signo um ente mediato, isto é, uma coisa que está por outra coisa. O signo
linguístico, em particular, (o morfema, a palavra, a frase) é um ente
dicotomicamente dividido em uma face material-sonora e uma face significativa
(o seu significado).
O significado do signo é
a parte inteligível que intermedeia a estrutura sônica e o referente
extralinguístico (a coisa de que o signo é signo). O significado de um signo,
segundo Peirce, é outro signo, pois, para que possamos apreender o significado
de um signo, tornando-o inteligível, precisamos expressá-lo, traduzi-lo com
outros signos. O significado é sempre, pois, uma ausência que só se preenche
com outros signos que lhe explicitam. Peirce entedia o significado como
interpretação do signo. Para ele, o significado é sempre uma função ou relação
entre um signo (por exemplo, “casa”) e seus interpretantes (isto é, os signos
que utilizamos na definição de “casa”). Peirce entende que, ao pronunciar um
signo, este faz vir à mente de nosso interlocutor um interpretante ou vários
interpretantes, ou seja, outros signos equivalentes que lhe esclarecem o
significado. Em suma, o signo, para Peirce, é um representâmen, a saber, aquilo que representa algo para alguém. O
signo que, por sua vez, vem à mente do meu interlocutor no momento em que
pronuncio um determinado signo, é seu interpretante.
É o próprio Peirce que,
em seu Semiótica (1977), nos dará a
saber o que ele entende por representar. O
signo, portanto, não é a coisa, mas está no lugar da coisa, ele é um representâmen. Segundo Peirce,
representar é “estar em lugar, isto é, estar numa tal relação com um outro que,
para certos propósitos, é considerado por alguma mente como se fosse esse
outro” (p. 61). Assim, se produzo um signo complexo como “a casa de meu irmão”,
o que ponho à presença de meu interlocutor não é casa de meu irmão como objeto
concreto do mundo; o que faço vir ao mundo é um representante da casa enquanto
objeto concreto do mundo com a qual posso ter uma experiência sensorial. Magia
da linguagem, portanto: fazer o ausente
torna-se presente à mente.
Não devemos concluir do
exposto que a linguagem espelhe o real, que ela seja uma espécie de fotografia
do mundo real. O que chamamos de real é produto de uma complexa interação entre
percepção-cognição, linguagem e cultura. Não há um real já dado, estruturado
antes da linguagem, antes da complexa relação entre percepção-cognição,
linguagem e cultura. Já tratei desse tema em outros textos publicados neste
blog e não cabe aqui retomá-lo. Se fiz essa advertência, foi tão-só para
mostrar que a língua/linguagem não cumpre a função de espelhar o mundo tal como
é, na suposição de que existe um mundo já organizado ou pronto que podemos
conhecer por uma simples tradução em signos.
Como lembra Leibniz,
independentemente do modo como o mundo se constitui, o fato é que nós só temos
acesso às coisas nele pela mediação da linguagem. É a partir do modo como
articulamos as palavras em enunciados que organizamos as informações de nossa
experiência sensorial. As palavras não são etiquetas para as coisas, nem os
significados estão fixados antes da interação verbal. Quando estive em
Fortaleza, passei por uma experiência (diria várias) linguística interessante.
A moça que namorei disse que o colchão de ar “secou”. Isso mesmo “secou”.
Estranhei, porque o colchão não estava molhado. Notando meu estranhamento, ela
me explicou: “secar” aqui a gente usa também para dizer “esvaziar”. Esse caso é
ilustrativo e interessante, não porque indique simples diferença de significado
de palavras entre regiões onde se fala o português. Mostra muito mais. Mostra
que os significados que atribuímos às nossas palavras são sempre negociados na
interação. Mostra que para que consigamos saber que significados estão sendo
atribuídos às palavras que usamos na interação nosso interlocutor precisa
dispor de modelos sociocognitivos mais ou menos semelhantes aos nossos.
Faltou-me o background cultural que
me permitisse atribuir à palavra “secar”, naquele contexto, o significado
“esvaziar”, que era parte do conhecimento sócio-cultural e linguístico de meu
interlocutor. Embora já não se possa sustentar, convincentemente, a tese forte
de Sapir-Whorf, segundo a qual a língua determina nossa maneira de ver o mundo
a tal ponto que falantes de línguas ou variedades linguísticas diferentes
viveriam em mundos completamente diferentes, é ponto pacífico entre os
estudiosos que se ocupam da relação entre linguagem e percepção-cognição que a
língua que falamos influencia o modo como “vemos” o mundo. Isto é, cada língua
“recorta” o real de modo diferente. Assim, embora vivamos numa mesma realidade,
reconhecível por seres humanos dotados de um equipamento cognitivo semelhante,
é igualmente verdade que as formas como categorizamos o mundo, ou seja, como
segmentamos o universo amorfo e contínuo da experiência, não serão exatamente
as mesmas, uma vez que os grupos humanos falam línguas diferentes e vivem em
culturas diferentes. É por isso que minha interlocutora codifica a experiência
‘perda de ar do colchão’ como [secar], isto é, ‘o colchão secou’, ao passo que
eu, falante da variedade do português do Rio de Janeiro, educado em um contexto
cultural que não é exatamente o mesmo, codifico a mesma experiência – ‘a perda
de ar do colchão’ - com a forma [esvaziar], isto é, ‘o colchão esvaziou’.
Ainda segundo Leibniz,
nossas definições – isto é, o que Leibniz entende como a articulação de nomes
que explicam outro nome – não descrevem a ordem das coisas como se já estivesse
fixada anterior e independentemente da linguagem/ língua. Essa totalidade
ordenada que chamamos mundo ou real é fabricada num processo interativo do qual
fazem parte a percepção-cognição, linguagem e cultura. Acompanhando Leibniz,
somos forçados a concluir que não há estrutura íntima do mundo independente da
linguagem. A linguagem não se reduz a um mero instrumento de comunicação,
tampouco a um instrumento empregado para descrever um mundo previamente
ordenado. Para Leibniz, a linguagem apresenta-se como condição para que
realizemos e consumamos nossa natureza pensante e racional. Sem linguagem, para
ele, não haveria razão. A linguagem não é mero instrumento para o exercício do
pensamento; muito pelo contrário, sua função é construtiva com respeito aos
nossos conteúdos mentais. Em uma palavra, a matéria do pensamento são os
símbolos. Pensamos com palavras. Pensar é articular palavras em enunciados. Em
suma, para Leibniz, o pensamento é, essencialmente, simbólico. Não podemos
pensar senão pelo auxílio de símbolos. Fora da linguagem, não há possibilidade
de pensamento conceitual para o homem. Acresce-se a isso que o mundo significa
para o indivíduo porque, primeiramente, significa para os outros. Isso nos leva
a concluir que o mundo significa na instância intersubjetiva fundada em
práticas discursivas. Se o real só pode ser conhecido como representação que se
constrói nas práticas discursivas, se o significado é produto de uma construção
por parte de usuários linguísticos na condição de participantes da interação
verbal, ou ainda, em outras palavras, se o significado é interacionalmente
construído no uso da língua, deve-se então admitir que conhecer é um processo
de natureza simbólica ou semiótica e sócio-interacional.
Resta ainda perguntar
como podemos entender as expressões “mundo mágico do eu” e “visão simbólica”.
No tocante à primeira expressão, creio que podemos lhe atribuir o sentido de
‘mundo idealizado em conformidade com o desejo ou os sentimentos do ‘eu’’,
sendo o próprio ‘eu’ resultado de uma interpretação. No que tange à segunda
expressão, penso que, embora não possamos nos relacionar com o mundo e
conhecê-lo fora do domínio simbólico, podemos ipso facto produzir representações que o falseiem. A visão
simbólica do mundo é sempre uma forma de representá-lo. A forma como o
significamos influenciará nossas ações, nossos comportamentos. Tentarei
ilustrar a possibilidade de falseá-lo com um exemplo. Se eu tomo conhecimento
de que um avião caiu e categorizo esse evento como [ACIDENTE], posso estar
certo de que minha categorização corresponde a uma das formas como as pessoas
compreendem o mundo e como elas, nessa mesma condição, classificariam o
acontecimento. Vamos ignorar a possibilidade de que minha categorização possa
ser equivocada, se investigações viessem a demonstrar que o avião caiu devido a
um atentado terrorista. Nesse caso, o evento não poderia ser classificado como
‘acidente’. Supondo que o avião tenha caído por uma falha mecânica, estou certo
em categorizar o acontecimento como [ACIDENTE]. Essa categorização se faz nas
práticas discursivas e supõe um contrato comunicativo na base do qual ela
expressa um saber comum, algo que compartilho com uma comunidade de fala. No
entanto, suponhamos que eu atribua ao acidente aéreo outro significado, ou
seja, o simbolize como ‘aviso’, ‘advertência’. Digamos que o acidente seja
interpretado por mim como um aviso para que eu não faça minha viagem de avião
na semana que vem. Nesse caso, o acidente aéreo ocorrido passa a significar
mais do que acidente; ele se torna, para mim, um representâmen de perigo iminente, um aviso, um mau presságio. Mas
agora não posso contar facilmente com o respaldo do contrato comunicativo, isto
é, o significado ‘mau presságio’ atribuído por mim ao ‘acidente aéreo’ não
necessariamente será aceito por meu interlocutor. Em outras palavras, esse
significado, por extrapolar um padrão de compreensão do mundo previsto pela
comunidade linguística ou epistêmica que me assegura a adequação da
categorização que fiz do evento como [ACIDENTE], deverá ser negociado. O que
quero chamar a atenção aqui é que o mundo pode, para mim, ter significados
outros além daqueles que a comunidade cultural, linguística e/ou epistêmica lhe
atribuem por convenção. Nesse caso, o contrato comunicativo deverá ser
renegociado. Desde que eu acredite que o acidente aéreo foi um aviso para mim,
eu desmarcarei minha viagem. Nesse caso, minha visão simbólica do mundo inclui
a crença de que acidentes podem significar mais do que ‘acontecimento fortuito
geralmente infeliz’. Porque creio nisso, altero meu comportamento, adiando a
viagem na esperança de que outra ocasião me será mais favorável.
Mas resta responder por
que acreditar que um [ACIDENTE AÉREO] significa ‘mau presságio’ é uma
interpretação falseadora do mundo? No final das contas, não é a comunidade
epistêmica e/ou linguística que aceitará ou não o significado que atribuo a uma
ocorrência do mundo, independentemente do modo como o mundo de fato se
constitui? Sim. Muitas pessoas aderem a superstições e, se eu estou em
interação com pessoas para as quais as superstições descrevem estados-de-coisas
verdadeiros, há grande chance de que o significado ‘mau presságio’ que eu
atribuo ao evento empírico [ACIDENTE AÉREO] seja aceito. Mas pode suceder que
meu interlocutor não seja tão crédulo e rejeite esse significado como pura
superstição. Ao rejeitá-lo, meu interlocutor dá indicações de que suas crenças
acerca do mundo se esteiam em pressupostos alinhados com a visão científica de
mundo. Para meu interlocutor, crer que um acidente aéreo significa ‘mau
presságio’ é falso ou sequer é uma crença verificável. Na verdade, em termos
popperianos, a crença de que acidentes aéreos são maus presságios é irrefutável;
e por sê-lo, não se presta à determinação de seu valor de verdade por quaisquer
meios racionais e empíricos possíveis. Como testar essa crença? De que modo
podemos determinar se [ACIDENTE AÉREO] comunica uma mensagem para nós, como a
que alega quem acredita em ‘maus presságios’? Independentemente dos acirrados
debates epistemológicos sobre a prática científica, muitos de nós estamos prontos
para rejeitar certas crenças sobre o modo como o mundo funciona simplesmente
valendo-nos de nossas teorias científicas “espontâneas”, que se pautam pelo
único princípio de que crenças só são verdadeiras se descrevem os fatos. Se
alguém pretende que um fato, como [ACIDENTE AÉREO], significa mais do que
[ACIDENTE DE AVIÃO], essa pessoa quer “ver” no real algo a mais do que ele nos
autoriza a ver. Como o signo é ‘aquilo que está no lugar de’, ele, com
frequência, existe na independência da realidade empírica. É claro que os
conceitos que os nossos signos criam são constituídos de propriedades
apreensíveis a partir de nossas experiências de mundo. Por exemplo, o signo
[BRUXA] reúne em si os conceitos de ‘mulher’, ‘velha’, ‘feiticeira’, etc., isto
é, compomos o conceito de [BRUXA] a partir de elementos (outros conceitos) que
fazem parte de nossa experiência de mundo (e o conceito de ‘Deus’ não foge à
regra). Pouco importa que bruxas não existam fora de nossa imaginação, para
efeito de produção de um conceito como o de bruxas. O signo [BRUXA] e seu
conceito existem, e isso é suficiente para recriar “mundos” onde bruxas são
pessoas que vivem, voam em vassouras, fazem feitiços, etc. Se passo a acreditar
que as bruxas existem para além dos contos ou narrativas fantásticas, se
insuflo o real com “coisas” que não se prestam ao testemunho empírico
universal, então produzo uma visão falseadora do mundo.
Em suma, o tipo neurótico
“tem dificuldade de manter o equilíbrio entre a ilusão da sua cultura e a
realidade de sua natureza” (Becker, 2012, p. 230). No sintoma neurótico, “a
ilusão de que se é invulnerável é desmascarada” (p. 231). Em síntese, são as
seguintes as características que melhor nos esclarecem sobre o tipo neurótico:
a) ele se isola dos
outros;
b) não se engaja
livremente na parcialização do mundo feita pelos outros;
c) não pode viver segundo
os enganos de que se alimentam os outros acerca da condição humana.
2.3.2.3. O tipo neurótico criativo
Nesta subseção, concentrar-me-ei
na análise do tipo criativo, que é também um tipo neurótico – o mais neurótico,
segundo Becker. Principiemos por ouvir Becker ao acenar para os acontecimentos
que serão desencadeadores da neurose:
“(...) o heroísmo pessoal através da individualização
é uma empresa muito ousada, precisamente porque separa a pessoa de confortáveis
“aléns”. É preciso uma força e uma coragem que o homem comum não tem e nem
poderia compreender (...). O ônus mais aterrorizador da criatura é ficar
isolada, que é o que acontece na individualização: a pessoa se separa do rebanho. Esse movimento a expõe à sensação de
estar completamente esmagada e aniquilada porque ela se destaca muito e tem
tanto para carregar em si mesma. São esses os riscos quando a pessoa começa a
criar consciente e criticamente o seu próprio arcabouço de auto-referência
heróica”. (p. 210, grifo meu).
“Separar-se do rebanho” –
nisso consiste a “solução criativa”. O tipo neurótico criativo é aquele que
“fica separado do conjunto comum de significados compartilhados” (p. 211).
Becker refere o artista como representante paradigmático do tipo humano
criativo, mas, até certo ponto, as características que são atribuídas a ele
podem ser estendidas ao filósofo. O filósofo é também uma pessoa que se separa
do rebanho e que busca, através de sua obra – o seu pensamento – “criar
consciente e criticamente o seu próprio arcabouço de auto-referência heróica”.
Dispensando nossa atenção
exclusivamente à situação do artista, devemos reconhecer que, para ele, a
existência se torna um problema que reclamará uma resposta ideal. A obra de
arte será, então, a resposta ideal quando ele já não pode mais aceitar a
resposta dada pela sociedade ao problema da existência. O artista, produzindo a
obra de arte, busca responder ao problema da existência tal como ele pessoalmente
o entende. Mas não só: a obra de arte é também uma resposta ao problema da
existência do próprio artista, enquanto indivíduo. Ele é uma pessoa
dolorosamente separada do rebanho, tal como o filósofo cuja obra mais ou menos
ideal é seu pensamento.
O problema com o qual o
artista tem de lidar é o de seu isolamento, de sua extrema individualização.
Ele também aspira à imortalidade através de seu talento artístico, de suas
dores que dão forma à sua obra. Consoante nota Becker, “seu trabalho criativo é,
ao mesmo tempo, a expressão de seu heroísmo e a justificação desse heroísmo”
(p. 211). O autor nos dá a conhecer ainda a extensão do drama a que se vê
entregue o artista:
“Como é possível justificar o próprio heroísmo? Seria
preciso ser como Deus. Vemos ainda mais, agora, como a culpa é inevitável para
o homem: mesmo como criador, ele é uma criatura assoberbada pelo próprio
processo criativo. Se você se destaca tanto da natureza, que tem de criar a sua
própria justificativa heróica, isso é demais. Eis como compreendemos algo que
parece ilógico: quanto mais você se
desenvolve como um ser humano característico livre e crítico, maior é a culpa
que sente. Seu próprio trabalho o acusa, fazendo-o sentir-se inferior. Que
direito você tem, afinal, de bancar Deus? Em especial se o seu trabalho for
grandioso, absolutamente novo e diferente. Fica imaginando onde vai conseguir a
autoridade para introduzir novos significados no mundo e força para suportar
tamanha empreitada. Tudo se resume no seguinte: a obra de arte é a tentativa do
artista de justificar o seu heroísmo de forma objetiva, na criação concreta.
Ela é o testemunho de sua absoluta originalidade e de sua transcendência
heróica”. (p. 211, grifo meu).
Ao criar, o artista cria
significados novos, significa de modo radicalmente diferente o mundo. Mas ele
mesmo não pode justificar a sua empresa criativa, pois que, mesmo sendo
criador, não deixa de ser criatura: uma criatura que cria e que sabe que sua
obra é tão efêmera quanto ele próprio artista, tão desprovida de sentido quanto
sua existência (a dele, artista) mesma. Ele não pode ser o fundamento de sua
obra. Não importa o que faça o artista e quão genial seja, ele não conseguirá
fugir de si mesmo. Sua pretensão de ir além de si mesmo, com segurança, lhe está
proibida por sua condição de criatura; e é esta condição da qual jamais pode
apartar-se que o leva de volta a confrontar-se com a natureza da qual se
esforça por se destacar. Sua obra, porque material, visível, é impermanente.
Comparada com a transcendente majestade da natureza, sua obra, por maior que
seja, não pode simbolizar a imortalidade desejada por seu criador. No mais alto
cume de sua genialidade, o homem ainda continua sendo uma criatura. Por isso, o
artista e o louco estão tão próximos: ambos estão presos às suas maquinações,
ambos estão unidos na reivindicação de sua singularidade na criação (Becker, p.
212).
Antes de levar a cabo
esta subseção, resta responder à questão: por
que o tipo criativo, de que o artista é um exemplar por excelência, é o mais
neurótico? Devemos responder: porque o tipo criativo recusa
peremptoriamente os mecanismos que são psiquicamente necessários para viver de
modo saudável. Na medida em que recusa tais mecanismos, furtam-se a si mesmo as
ilusões que tornam a vida suportável. O tipo criativo está mais próximo da
verdade sobre a vida do que os demais e justamente por isso ele sofre mais.
Lembro que a parcialização que o tipo criativo faz do mundo é muito maior do
que a parcialização feita pelo homem comum. O heroísmo pessoal do tipo criativo
pretende expandir-se num grau de intensidade tal, que os “aléns” confortáveis
que são culturalmente forjados deixam de ser eficazes; a bem da verdade, na
intensa expansão desse heroísmo pessoal, esses “aléns” se rompem, deixando em
seu lugar o desértico absurdo da condição humana que, na urgência de vicejar,
reclama novas edificações de significados. O drama humano que surge do
confronto com o absurdo se exprime, agora, na necessidade de escolher entre o
suicídio e a criação de novos significados e valores que, sem conseguir mais
mascarar o absurdo, são eles mesmos absurdos. O homem absurdo deve agora ou
criar a si mesmo como ente absurdo que é, ou debater-se contra a tentação do suicídio,
pois que os significados sedimentados que até então escondiam dele a verdade
sobre sua condição como criatura se lhe mostraram ineficazes.
3. Um caso de ilusão cultural: o
Argumento do Desígnio
A crença de que o
Universo deve ter necessariamente uma causa e que essa causa é Deus constitui
um exemplo claro de ilusão cultural, com a qual 2,4 bilhões de pessoas (número
este concernente aos cristãos apenas)[7], em
todo mundo, dotam suas vidas de sentido. Nessa parte de meu estudo, deter-me-ei
a examinar o argumento do desígnio com vistas a apontar suas inconsistências. Como
o argumento do desígnio suponha a referência a pressupostos que estão
articulados num sistema doutrinário filosófico-teológico que subsidia a fé
cristã, precisarei, antes de me lançar à tarefa cuja realização me proponho,
esclarecer que Deus é este a que diz respeito o argumento do desígnio. Convido,
pois, o leitor a me acompanhar na exposição sobre a natureza de Deus à luz da
metafísica cristã. Tomo para referência nessa exposição a contribuição
reconhecidamente importante do filósofo cristão São Tomás de Aquino (século
XIII). Se escolho São Tomás, é, principalmente, porque a segunda e a última de
suas cinco vias pelas quais ele busca “demonstrar” a existência de Deus já
prefiguram a estrutura do argumento do desígnio.
3.1. Deus na metafísica cristã, segundo Tomás de Aquino
O pensamento de São Tomás
primou pela abrangência e profundidade, buscando revisitar toda a filosofia e
toda a teologia a partir de conceitos e princípios tomados a Aristóteles. Com
São Tomás, deu-se a virada decisiva para Aristóteles, bem como foi possível a
fundação da escolástica aristotélica.
Tomás de Aquino tomou de
Aristóteles a doutrina da potência e do ato e a adaptou ao tratamento da
relação entre matéria e forma, substância e acidente e, no domínio metafísico, da
relação entre essência (essentia) e
ser (esse) de todo existente. Mas São
Tomás foi além de Aristóteles, ao entender o ato (energeia) como “ato de ser” (actus
essendi). O ato de ser constitui o princípio da realidade atual, isto é, da
existência, e também de todo conteúdo do ser atual ou das perfeições
ontológicas do existente. Para Tomás, todo conteúdo positivo – atributo de um
existente e que dele pode ser dito, o qual Tomás chama perfeição, está fundado no ser e é posto pelo ser. Por conseguinte,
toda perfeição é uma perfeição do ser.
Deus é o ser mesmo. Esse
é o conceito tomista de Deus. Para São Tomás, Deus “é o ser mesmo subsistente
em si”. Deus é a existência necessária da plenitude originária e ilimitada de
toda a realidade e toda perfeição do ser. Esse pensamento não é completamente
novo, mas constitui bem uma síntese do que acerca de Deus nos disseram Platão
(o Bem), Aristóteles (o ato puro do Motor Imóvel) e até os neoplatônicos, entre
os quais Plontino (o Uno-Originário) e Proclo (Deus como plenitude
transbordante em ser e perfeição).
Na fé bíblico-cristã,
Deus é compreendido como plenitude do ser espiritual-pessoal dotado de razão,
sabedoria, liberdade e poder criador. Esta era também uma concepção esposada
por Santo Agostinho, mas foi São Tomás quem examinou em pormenores, de modo
totalmente novo, essa compreensão de Deus com base em princípios aristotélicos.
Com São Tomás, a compreensão de Deus se inscreve no quadro de uma doutrina do
ser.
Vejamos, em linhas
gerais, essa doutrina. São Tomás, convidando-nos a atentar para a experiência,
faz-nos ver que todas as coisas que se nos dão à experiência sensível são
finitas, limitadas no ser. Não só uma coisa é o que a outra não é, mas há graus
de perfeição das coisas. O existente finito não é o ser mesmo; deste se
distingue por possuir uma essência finita. A essência é um princípio de
limitação do ente, mediante a qual o ente é colocado em uma forma essencial
específica. A essência do ente é a instância limitadora da atribuição do ser ao
ente. Mas não é a essência do ente que fixa o ser (a possibilidade de
aparecimento do ente); a essência existe em potência (é possibilidade de ser) e
se opõe ao ato de ser (a realidade do ser). A limitação determinada da forma
essencial específica do ente se encontra na essência finita do ente. O
existente, portanto, é contingente. Mas, se existe, é então realizado como ente
finito por meio do ato de ser.
O ser, por sua vez, é
totalmente si mesmo e não é limitado por nenhuma essência finita. Segue-se daí
que a realidade originária, absolutamente necessária (o ser não pode não ser) é
o ser. O ser é também a plenitude originária ilimitada de toda perfeição do
ser. Essa plenitude originária e ilimitada, absolutamente necessária, que
encerra em si perfeições infinitas, é Deus.
Em Deus, ser e essência é
o mesmo. A essência de Deus não reponde pelo que Deus “é”. A essência, em Deus,
não é um princípio limitador, como sucede nos entes finitos. Do contrário, Deus
seria contingente como as coisas finitas e precisaria ter um princípio
primeiro. Deus é a sua essência e a sua essência é o ser mesmo, assinala São
Tomás. Destarte, tudo preexiste em Deus. Todas as coisas de toda a criação são
realizadas de antemão não só nas ideias de Deus, no projeto divino de mundos
possíveis, mas já na realidade originariamente infinita do ser mesmo que é
Deus.
Na metafísica cristã,
Deus transcende tudo que é mutável, inclusive a nossa razão. Deus é o ser
mesmo. É fonte de articulação de nossa experiência e fonte de normatividade de
nossos comportamentos. Deus garante a origem e a finalidade de toda criatura.
Sendo causa criadora e ordenadora do universo, e sustentadora da totalidade dos
entes, tudo faz sentido. Deus é o princípio absolutamente uno (Cabral, 2015, p.
57). É Deus, em sua unicidade, que garante a máxima inteligibilidade do
universo (ib.id., p. 57).
Deus existe em si mesmo:
Deus subsiste como substância em si mesmo. Deus não é um ser geral, que se
espraiaria por todos os existentes ou que precisa se realizar nos entes do
mundo. Deus existe enquanto plenitude do ser em si mesmo, na transcendência
absoluta em relação à totalidade dos entes. Os existentes finitos tomam sua
realidade ontológica própria e participação finita no ser pelo ato criador de
Deus. Deus é universalmente perfeito, pois que ele dirige todas as perfeições
de todas as coisas. Todas as perfeições de todas as coisas devem preexistir em
Deus de uma forma superior.
A questão, então, que se
impôs a São Tomás foi a de determinar como podemos conhecer o ser mesmo de Deus
e dizer algo a respeito dele. Não podemos ter conhecimento direto de Deus em si
mesmo. O que podemos é atingir um conhecimento de Deus por analogia. Partindo
dos conteúdos do ser do mundo da experiência e destituindo deles todos os
limites do finito, podemos transportá-los de maneira ascendente para Deus. Isso
é possível porque há semelhança entre as coisas finitas e o ser de Deus. Ora,
se Deus é a causa primeira de todas as coisas finitas, conclui São Tomás, deve
haver certa semelhança entre Deus e as coisas finitas. Não se trata,
evidentemente, de uma semelhança unívoca, como a que existe entre coisas do
mesmo gênero ou espécie, porque Deus ultrapassa todos os modos finitos de ser.
Trata-se de uma semelhança analógica.
Como seja analógico esse
“método” pelo qual podemos conhecer a Deus, só podemos atribuir a Deus os
conteúdos ontológicos da experiência (tais como sabedoria, poder, bondade,
amor, etc.). Por ser analógica, essa forma de conhecimento de Deus deve
guiar-se pela diferença qualitativa entre a forma como esses conteúdos existem
na experiência e a forma como eles existem em Deus. Em Deus, esses conteúdos
ultrapassam tudo aquilo que pensamos e compreendemos, e apontam para dentro do
mistério infinito de Deus. Atribuímos a Deus uma bondade que excede em perfeição
a bondade que encontramos na nossa experiência humana. A bondade de Deus é
infinitamente perfeita e superior à bondade humana. Na transposição dos
conteúdos ontológicos de nossa experiência para Deus, devemos atender na
necessidade de preservar o caráter ilimitado e perfeito deles em Deus.
É no contexto da
possibilidade de conhecimento analógico de Deus que São Tomás fornecerá seus
cinco famosos caminhos pelos quais ele pretendeu demonstrar a existência de
Deus. Uma vez que meu objetivo é também argumentar que uma compreensão teísta
do mundo é inconsistente com a crueldade inerente ao modo de destinação do
real, vou-me limitar a referir as segunda e quinta vias propostas por São
Tomás.
Antes de referir as duas
vias que me interessarão e de comentá-las, quero acrescentar que, na metafísica
cristã, Deus é o suporte do devir (Clemente de Alexandria). Deus é o princípio
dos princípios. Esse princípio é o horizonte de busca para os comportamentos
humanos. Deus é o uno; a unidade é Deus. Deus é o mensurador, sem ser mensurado
(Santo Agostinho). A unidade que Deus é orienta a retidão do pensamento humano.
Deus é o horizonte de inteligibilidade das ações humanas. Deus mensura as ações
humanas. Deus é o Bem Absoluto (Santo Agostinho).
Leiam-se as duas vias de
São Tomás, reproduzidas abaixo:
“A segunda via baseia-se na causa eficiente. Encontramos nas coisas
sensíveis uma ordem de causas eficientes, já que nada pode ser causa eficiente
de si mesmo, pois se assim o fosse existiria antes de si mesmo, o que é impossível.
Também não é possível proceder indefinidamente nas causas eficientes. Em todas
as causas eficientes ordenadas, em primeiro lugar está a causa do que se
encontra no meio, e o que se encontra no meio é causa do que está em último
lugar, tanto se os intermediários forem muitos, quanto se for um só, tiradas as
causas, tira-se o efeito; logo, se não for primeiro nas causas eficientes, não
será nem em último, nem no meio. Se, porém, procedermos de forma indefinida nas
causas eficientes, não haverá primeira causa eficiente, e portanto não haverá
também efeito último nem causas intermediárias, o que é evidentemente falso.
Logo, é necessário admitir alguma causa eficiente primeira, à qual todos chamam
Deus.
A quinta via é derivada do governo das coisas. Vemos que as coisas
que não têm inteligência, como, por exemplo, os corpos naturais, agem para uma
finalidade, o que se mostra pelo fato de sempre ou frequentemente agirem da
mesma forma, para conseguirem o máximo, donde se segue que não é por acaso, mas
intencionalmente, que atingem seu objetivo. As coisas, entretanto, que não têm
inteligência só podem procurar um objetivo dirigidas por alguém que conhece e é
inteligente, como a flecha dirigida pelo arqueiro. Logo, existe algum ser
inteligente que ordena todas as coisas da natureza para seu correspondente
objetivo: a este ser chamamos Deus”.[8]
Da leitura dessas duas
vias tomistas em favor da existência de Deus, podemos concluir que: a) Deus é a
causa incausada da cadeia de causas eficientes; b) Deus é o autor da ordem
teleológica do cosmo. Deus é a causa primeira de todo o devir. Como criador da
ordem de finalidades (ordem teleológica), Deus determina a ação dos entes. Deus
é quem garante a origem e a finalidade de toda criatura. A inteligibilidade de
todo o universo encontra sua condição de possibilidade em Deus. Não há caos:
com Deus, tudo “faz sentido”. Como causa incausada, Deus é o princípio e fim de
toda a criação. Deus é a raiz do devir, bem como o fim do devir. É a unidade
que sustenta a pluralidade do movimento.
Deus é o ser mesmo, o
princípio absolutamente uno (indivisível), transcendente ao espaço, ao tempo e
ao devir. A perfeição de Deus garante que todos os seres “façam sentido”. Como
é necessário que toda imperfeição inerente à pluralidade dos caracteres das
criaturas seja removida de Deus (por exemplo, essência/existência,
substância/acidentes, matéria/forma, gênero/espécie), deve-se, forçosamente,
admitir que Deus só pode ser concebido em sua unidade e unicidade. Unidade quer
dizer, originalmente, a indivisibilidade do ente. Unicidade, por seu turno,
recobre o caráter de ser único. Apesar de a ordem do mundo se compor de uma
pluralidade de entes finitos, essa ordem revela uma unidade. Ora, a unidade da
ordem não pode ser resultado da pluralidade das partes; a unidade da ordem é
constante e estável. Se a unidade da ordem do mundo não é acidental, então sua
causa deve ser um único ser dotado de máxima unidade, a saber, Deus.
Cumpre ainda salientar,
em suma, que o Deus cristão sempre foi a instância que assegura aos entes a sua
identidade (essência) e à existência humana o seu sentido. Deus é, portanto,
“princípio de sustentação de tudo que é e princípio de inteligibilidade última
de todo e qualquer ente” (Cabral, 2015, p. 76). Segundo Cabral (p. 84), “todo
Deus pensado metafisicamente é um Deus teísta”. E acrescenta: “entenda-se por
teísmo o Deus onto-teo-lógico pensado como fundamento e causa suprema
(eficiente e final) de toda realidade contingente”.
Supondo esteja
suficientemente claro o horizonte semântico em que se inscreve o Deus suposto
pelo argumento do desígnio, passo a examiná-lo, a fim de lhe desvelar as
inconsistências. É necessário que o leitor não as perca de vista, quando, na
quarta etapa de meu estudo, eu for abordar a visão de mundo naturalista. Nessa
quarta etapa, procurarei patentear que a visão de mundo teísta não se sustenta
quando nos ocupamos em examinar a natureza do mundo. Essa visão falseia
claramente o modo como o mundo verdadeiramente é.
3.2. O Argumento do Desígnio e suas inconsistências
O Argumento do Desígnio
encerra dois pressupostos que o tornam atraentes para muitas pessoas: 1) é
inspirado no espanto em face da beleza e majestade da natureza; 2) assenta na
crença de que a descrição dos aspectos da natureza que nos causam admiração só
pode ser feita adequadamente se os considerarmos como produtos do trabalho de
uma Inteligência Suprema.
Os ateístas insistem, no
entanto, que a rejeição da hipótese de um Designer Inteligente, sustentada pelo
argumento, não diminui o sentimento de admiração perante o reino natural.
O argumento do desígnio
tem uma versão famosa na analogia do relógio proposta por William Paley (1802)
em sua obra Teologia Natural, cuja
leitura se tornou obrigatória para duas gerações de estudantes britânicos,
incluindo Charles Darwin, que confessou ter-se admirado das conclusões de
Paley.
Com sua analogia do
relógio, Paley argumenta que, se examinarmos o mecanismo complexo e intricado
do relógio, ficaremos, sem sombra de dúvida, convencidos de que sua regularidade
sugere um propósito ou desígnio. Prossegue Paley, afirmando que a complexidade
e regularidade do mecanismo do relógio encaminham a conclusão de que ele foi
inventado. Se o relógio é produto de uma invenção, é forçoso concluir que ele
teve um inventor. Ora, quanto mais intricada ou complexa é a invenção, tanto
mais talentoso e inteligente é o seu inventor, e mais sofisticado é o projeto
ou desígnio.
Essa primeira parte do
argumento não carreia problema algum. Paley orienta-nos para a conclusão final
de que, se observarmos simplesmente o mecanismo interno de um relógio, teremos
de admitir forçosamente que sua ordem e complexidade indicam um projeto
intencional e este, por sua vez, a existência de um relojoeiro inteligente, ou
seja, o projetista.
O segundo momento do
argumento – este, certamente, problemático – começa com um convite de Paley a
que atentemos para o universo. Segundo Paley, observando cuidadosamente as
obras da natureza, veremos que elas parecem resultar de um trabalho de
engenharia ainda mais complexo e maior, e em um grau que excede todas as
estimativas. Por analogia com a complexidade observada no relógio, temos de
concluir que também na natureza manifesta-se um desígnio. Ora, a manifestação
de um desígnio supõe a existência de um agente inteligente (conforme ficou
comprovada na primeira parte do argumento). Logo, deve haver um agente
inteligente na origem da complexidade da ordem natural e, como essa
complexidade excede todas as estimativas, esse agente inteligente não poderia
ser um ser humano. Segue-se daí que o agente inteligente responsável pela
complexidade da natureza é Deus.
Na verdade, o Argumento
do Desígnio baseado na analogia não foi uma invenção de Paley. Ele já fora
atacado por David Hume em seu Diálogos
sobre a religião natural, livro publicado um quarto de século antes de Teologia Natural de Paley.
Vamo-nos concentrar,
primeiramente, nas objeções levantadas por Hume ao argumento do desígnio. O
primeiro erro do argumento, segundo Hume, diz respeito à analogia entre artefatos
humanos (no caso, o relógio) e a ordem natural. Hume nega que haja similaridade
entre os dois, que permita uma comparação inteligente. Para Hume, foi a
experiência que nos habituou a concluir que, quando vemos, por exemplo, uma
“casa” ou um “relógio”, deve ter existido como causa eficiente um inventor. Mas
a desigualdade entre casas e relógios, de um lado; e o universo, de outro, é
tão grande, que o máximo que podemos atingir é uma suspeita concernente a uma
causa similar. E nada mais.
Mesmo admitindo a
analogia, as conclusões a que chegamos acerca do projetista divino são
desconcertantes ou assustadoras. A mais grave delas é que Deus é sujeito a erro
(essa objeção é sustentada pela simples observação dos produtos da evolução
darwinista), uma vez que os eventos e processos naturais são, com frequência,
gratuitos, estranhos e desnecessariamente destrutivos.
Hume, não se contentando
com essas objeções, apresenta mais duas. A primeira das quais consiste em
admitir que não há nenhuma boa razão para privilegiar a mente sobre a matéria,
quando se trata de descrever o mundo. Hume se refere aqui ao fato de o
argumento pressupor uma Inteligência, uma mente racional na origem do universo.
Para Hume, é forçoso perguntar por que devemos tomar o pensamento como modelo de
todo o universo. Hume responde que tal suposição só pode ser explicada pela
vaidade humana. Mas a objeção, sem dúvida, mais forte apresentada por Hume é
que não estamos justificados para crer que ordem indique, necessariamente,
desígnio fundamental. Ora, observa Hume, a coerência entre as partes e a
estabilidade do todo constituem a condição necessária para que um universo
possa existir. Logo, da simples observação da ordem no reino natural não cabe
inferir que ela manifesta um desígnio. Hume argumenta, nesse tocante, que a
ordem, em si, não garante desígnio; é preciso demonstrar que a ordem só pode
existir por meio do desígnio, e isso o argumento do desígnio não demonstra.
Desde a publicação de A Origem das Espécies, em 1859, as
críticas à analogia do argumento do desígnio se apóiam em bases científicas em
vez de puramente filosóficas. Os Novos Ateístas Daniel Dennett e Richard
Dawkins, por exemplo, notam que os defensores do argumento do desígnio, quer na
versão antiga (que data do século XVIII), quer na versão contemporânea, baseiam
sua causa numa falsa disjunção: ou a ordem do universo foi projetada ou é
produto do acaso. Se foi projetada, concluem que seu autor é Deus; se, no
entanto, a complexidade e a ordem são produto do acaso, então ela é simplesmente
absurda.
Dennett e Dawkins afirmam
que há uma falsa escolha aí. Há uma terceira explicação plausível para a ordem
e a complexidade da natureza: a seleção
natural. O mecanismo da seleção natural explica o surgimento da
complexidade e da ordem no reino orgânico sem apelar ao desígnio e ao acaso.
Ora, as mudanças genéticas consequentes da seleção natural aparecem “por
acaso”, mas o próprio processo de seleção natural não é acaso. É importante
reconhecer, com Dennett, que a seleção natural não demonstra a inexistência de
Deus; mas mostra realmente que a hipótese de Deus não é necessária para
explicar a ordem e a complexidade no mundo natural. De minha parte, ainda que
aceitando, provisoriamente, que a seleção natural não demonstre, no sentido
lógico do termo, a inexistência de Deus, preciso enfatizar que ela torna a
hipótese de Deus como projetista insustentável. E, a despeito das evidências
que a tornam insustentável, ainda haja quem ouse mantê-la, esse alguém deverá
resolver as graves dificuldades que na explicação pela seleção natural
inexistem.
Vamos considerar,
doravante, uma versão mais recente do argumento do desígnio, chamado de argumento antrópico. O argumento
antrópico evita os problemas que a seleção natural acarreta para a defesa da
existência de um Designer Inteligente, já que, sob o foco desse argumento, não
se encontra a complexidade do cosmos.
O argumento antrópico
assenta na afirmação de que o universo está tão sintonizado para sustentar a
vida, que tal estado de equilíbrio só pode ser explicado razoavelmente pela
suposição de uma Inteligência divina como causa. O que o argumento antrópico
pressupõe é que quanto maior é o número de condições necessárias para a vida,
menor a probabilidade de serem consequências do acaso. O argumento antrópico implica
a crença de que, de algum modo, o universo “sabia” que vínhamos. Mas será mesmo
que há razão forte para supormos que o universo foi projetado sob medida para
nós, seres humanos?
Faz-se mister notar, em
primeiro lugar, que aqueles que rejeitam o argumento alegam que seus
proponentes confundem sintonia fina com direção. É a vida baseada no carbono
que culminou com o universo, e não o contrário. Ademais, o universo, de modo
algum, está sintonizado com a vida, porque a maior parte de sua imensidão
parece espaço vazio e inóspito à vida. Outros críticos do argumento insistem em
que é provável que haja não só um universo, mas multiversos e em que não há
razão para supor que algum deles, além do nosso, esteja sintonizado com a vida.
Deve-se acrescentar que,
conquanto tenha sido a teoria da evolução de Darwin que arruinou o argumento de
Paley, há, no argumento do desígnio e em suas versões mais recentes, um grave
problema que ele suscita e não resolve. O argumento do desígnio não mostra que
o seu poderoso e infinitamente inteligente projetista é sumamente bom, nem
onipotente, nem onisciente. Há muitos males que qualificamos de “naturais” no
mundo que parecem simplesmente gratuitos e decorrentes de erros de engenharia e
que nenhuma teodiceia conseguiu explicar satisfatoriamente.
Mesmo que a seleção
natural não elida a hipótese da existência do Deus teísta (o que cuido muito
discutível), ela traz sérios problemas para a alegação de que o Criador é
sumamente bom, dado que o mecanismo pelo qual se dá a evolução – isto é, a
seleção natural – envolve muita violência e acarreta sofrimento gratuito às
criaturas, razão por que a hipótese de um Criador sumamente bom se torna
inconciliável com o processo de evolução das espécies.
Não faltam evidências que
apontam para a insustentabilidade da crença num Projetista Inteligente. Muitas
espécies vivas carregam os sinais de modos de vida anteriores, como partes do
corpo que não têm nenhuma utilidade. Essas partes inúteis são conhecidas como
“órgãos vestigiais”. Os órgãos vestigiais recobrem uma série de estruturas
desnecessárias, sem função alguma. Por exemplo, constituem órgãos vestigiais os
olhos dos peixes que vivem em cavernas e os ossos rudimentares dos membros
traseiros de algumas espécies de cobras e baleias. Em nós, seres humanos, há o
apêndice, que, no passado, desempenhou um papel importante na digestão, mas que
hoje não tem nenhuma função orgânica. O cóccix é outra estrutura vestigial
remanescente em nós de ancestrais comuns. Os adolescentes, especialmente, sabem
quão dolorosos podem se tornar os sisos. Os dentes do siso são os terceiros
molares vestigiais que os nossos ancestrais utilizavam para ajudar na
trituração do tecido vegetal. Como os dentes do siso são os últimos dentes
permanentes a nascer, geralmente falta espaço na boca para acomodá-los. Eles
podem ficar embaixo do tecido gengival preso por outros dentes ou osso, do que
resulta inchaço ou dor. Os dentes do siso que chegam a romper o tecido gengival
parcialmente ou nascem mal posicionados podem causar vários problemas de saúde.
Se nossas mandíbulas, na maioria dos casos, não acomodam os dentes do siso, a
mandíbula de nossos ancestrais os acomodava, porque ela era maior. Quem
acredita na existência de um Projetista Sobrenatural Inteligente terá dificuldades
para explicar por que ele, diminuindo as mandíbulas, manteve os dentes do siso?
Somente um processo cego em cuja direção não há finalidade pode explicar por
que os dentes do siso se conservaram mesmo sem desempenhar função alguma e com
o custo de acarretar alguns prejuízos. Sucedeu que a dieta humana se modificou,
as mandíbulas diminuíram por força da seleção natural, mas os terceiros molares
ou dentes do siso ainda podem se desenvolver na boca humana, mesmo que eles já
não sejam mais úteis e possam tornar-se até prejudiciais. Por um feliz acaso, o
homem pode evoluir de modo a tornar-se capaz de corrigir, em muitos casos, os
“erros” de “engenharia” da seleção natural. A hipótese do Designer Inteligente
também não consegue explicar as anomalias orgânicas que são sinais de simples
erro de projeto. Somente a evolução natural pode explicá-los. O sistema nervoso
das girafas, por exemplo, inclui alguns nervos que se estendem do cérebro ao
peito, voltando para a laringe. Esse caminho de ida e volta foi herdado dos
peixes, que não têm pescoço. No peixe, esse caminho faz sentido, mas nas
girafas não. A presença dos órgãos vestigiais constitui, como se pode ver,
evidência suficiente para refutar a crença num Designer Inteligente a comandar
o desenvolvimento das espécies. A alegada “perfeição” e finalidade na
constituição dos seres vivos, que só poderia explicar-se pela suposição de um
Designer Inteligente, são facilmente falseadas por uma observação cuidadosa da
anatomia dos seres vivos.
Não poderia deixar de
notar que o argumento antrópico ignora uma forte evidência que torna falsa a
suposição de que o universo se constituiu de tal modo que parece ter sido
“projetado” para nos receber. Ora, um aspecto importante do fenômeno a que
Darwin chamou “evolução natural” é que nossa história é evolutiva e todos os
seres vivos são primos. Todas as espécies existentes, incluindo, naturalmente,
a espécie humana, ou as já extintas, evoluíram a partir de um ancestral comum
há mais de 3 bilhões de anos. Esse progenitor universal de todos os organismos
sobreviventes é semelhante a algum tipo de bactéria. Nosso DNA guarda enorme
semelhança com o DNA dos chimpanzés, nossos primos mais próximos, mas também
compartilhamos com as bactérias uma grande extensão de sequências de DNA. Ora,
o número de bactérias que povoam a Terra excede espantosamente ao número dos
demais organismos. Desse fato devemos inferir o seguinte: 1) se o mundo foi
projetado, ele parece tê-lo sido para favorecer, com um incrível sucesso, a adaptação
daqueles que são os organismos numericamente dominantes até hoje; 2) se o mundo
foi projetado, suas condições foram de tal modo ajustadas para o aparecimento e
desenvolvimento desses microorganismos que, na escala evolutiva, precederam e favoreceram o aparecimento de todas as
formas de vida existentes ou já extintas. Stephen Gould, em Lance de dados (2001), chamando-nos a atenção para o fato de as
bactérias serem os organismos dominantes na Terra, lembra-nos também que elas
são os tipos de irmãos dos quais, se pudéssemos, preferiríamos manter
distância:
“Por qualquer critério possível, razoável e justo, as
bactérias são – e sempre têm sido – as formas de vida dominantes na Terra. O
fato de não conseguirmos apreender o mais evidente dos fatos biológicos surge,
em parte, da cegueira de nossa arrogância, mas também, em grande parte, como
efeito de escala. Estamos muito acostumados a ver os fenômenos de acordo com a
nossa escala – tamanhos medidos em metros e idades em décadas -, como típicos
da natureza. A bactéria está além de nosso grau de visão e talvez não viva mais
do que o tempo que eu levo para almoçar, ou que o meu avô gastava com o seu
charuto, à noite. Mas então, quem sabe? Para uma bactéria, os corpos humanos
talvez pareçam amplamente dispersos, realmente eternos (ou pelo menos geológicos),
montanhas maciças, adaptados para toda forma de exploração e que representam
pouco perigo, a menos que uma cápsula de penicilina atinja alguns destes
detestáveis irmãos” (p. 241-242)
À guisa de antecipação do
tema sobre cuja discussão me debruçarei na quarta e última etapa desta
exposição, evoco estas lúcidas palavras de Weisberger, que deveriam ser
recitadas como uma oração de penitência por todo aquele que vive numa espécie
de semi-obscuridade no tocante ao mais grave problema implicado na crença do
Deus das três Religiões do Livro:
“A existência do mal é a ameaça mais fundamental ao
conceito ocidental tradicional de um Deus sumamente bom e todo-poderoso. Tanto
o mal natural, o sofrimento que ocorre em resultado de fenômenos físicos, e o
mal moral, o sofrimento que resulta da ação humana, abrangem o problema do mal. Se o mal não pode ser
explicado, então a crença no conceito ocidental tradicional de Deus é absurda”.
(Weisberger, 2010, p. 220, ênfase no original).
Toda a discussão que,
doravante, desenvolverei nesta seção orienta-se pela concepção filosófica
denominada de naturalismo, segundo a
qual não existe nada que seja exterior à natureza, a saber, ao mundo físico e
às forças que produzem os fenômenos naturais. Assim, o naturalismo alija de seu
domínio qualquer elemento sobrenatural ou princípio transcendente.
Duas serão as minhas
preocupações fulcrais: a) em primeiro lugar, buscarei evidenciar a compreensão
do real como intrinsecamente cruel a partir da concepção darwinista da vida
como “luta pela sobrevivência”; 2) em segundo lugar, examinarei duas das
principais teodiceias formuladas para explicar a existência do mal e do
sofrimento num mundo cujo Criador, segundo crença hegemônica no Ocidente, é um
Deus sumamente bom e onipotente. São elas: a teodiceia do mal como um meio para um bem maior e a teodiceia do mal como consequência do
livre-arbítrio. Se, ao cabo dessa tarefa, eu conseguir, pelo menos, assegurar
o valor de verdade da proposição schopenhaueriana, segundo a qual “existe uma
contradição notória em querer viver sem sofrer”, meu objetivo não terá sido de
todo malogrado. Reconhecer a inextricabilidade entre vida e sofrimento,
reconhecer que o sofrimento é constitutivo da tessitura do tecido vital é o
primeiro passo para que superemos nossa mentira vital e reconheçamos que, nas
iniciativas humanistas e solidárias destinadas a amenizar o sofrimento de todos
os viventes capazes de sofrer, devemos estar mobilizados não por um interesse
em recompensas divinas (porque estas não existem), mas pela certeza de que uma
tarefa importante e irrenunciável do processo de viver é combater, na medida de
nossas possibilidades, o sofrimento onde quer que ele faça suas vítimas. Essa
tarefa só pode se revelar urgente, no entanto, para aqueles que alcançaram o
conhecimento de que o sofrimento, tanto quanto a morte, é o que nos iguala a
nós animais humanos aos animais não humanos superiores aos quais a generosa mãe
natureza concedeu também a capacidade de sofrer. Todavia, a solidariedade no
sofrimento, tão bem distribuído na ordem natural, não significa que devamos
insistir em atribuir um sentido a ele. Se, como nos ensina a sabedoria
oriental, da qual Schopenhauer deriva a força e a verdade de seu pensamento,
“viver é sofrer”, devemos também reconhecer que viver é um esforço contínuo de
reconciliação com o real, com a sua inapelável tragicidade. Se o real rejeita a
tentativa de lhe atribuir um sentido último, toda aprovação do real deve ser,
necessariamente, uma aprovação trágica. Ou a aprovação é trágica, ou não há,
como lembra Rosset, aprovação.
Esta última parte deste
estudo – devo confessá-lo – foi a que mais tempo me tomou em seu planejamento.
Durante a pesquisa que precedeu sua confecção, precisei resistir ao desânimo
que, com frequência, se me hospeda em todo o corpo, inibindo-me a vontade, todas
as vezes que me encontro a pensar em questões que, uma vez consideradas com
perícia intelectual e mantidas resguardadas da nossa tendência ingênita à credulidade
que nos desvia do real, me apresentam verdades tão límpidas, que não carecem de
ser enunciadas. Para combater esse desânimo, fortaleço em mim a convicção de
que uma grande maioria de pessoas ou não consegue percorrer o caminho
necessário para apreendê-las, ou, em percorrendo o caminho, insistem, quase
sempre, em rejeitá-las; e essa convicção, por algum momento, me parece
suficiente para me animar o interesse em iluminá-las. Todavia, estou seguramente
convencido de que não é por meio de exercício argumentativo que se consegue
tornar essas verdades de tal modo entranhadas na fisiologia dessas pessoas, que
venham a lhe alterar significativamente o modo de ser. Toda visão de mundo se
constitui de um núcleo duro de crenças que, dada a consistência de sedimentação
delas, dificilmente são destruídas. Fatores pessoais e culturais se misturam
para constituir uma visão de mundo, a qual é responsável pelo modo como
pensamos o mundo e o entendemos. As crenças nucleares da visão de mundo
influenciam decisivamente o nosso comportamento, as nossas reações às
ocorrências do mundo. Estas crenças são axiomáticas, simplesmente aceitas como
“dadas” e revelam nossa identidade, valores éticos, posições políticas, padrões
de avaliação, etc. Por isso, constitui sinal de ingenuidade pretender que a
articulação de argumentos, por mais coerente e afiada que seja, tenha, por si
mesma e independentemente de circunstâncias que podem causar profundos abalos,
um efeito transformador na visão de mundo das pessoas. Consciente disso, todo
este meu texto e, em particular, esta última parte, não se produziu com o
objetivo de modificar a visão de mundo de potenciais leitores. Não obstante, o
valor deste trabalho não deve ser mensurado segundo o alcance transformador em
um público de leitores, mas segundo sua consistência na exposição de verdades
que permanecem sendo verdades, independentemente do modo como nos apeteça
pensar o mundo.
4.1. A vida e a questão do sentido
Aí está você, lançado no
mundo, tendo a morte como seu acontecimento futuro principal. Sem nenhuma razão
para encontrar-se neste meio sócio-cultural em vez de em outro. Você mesmo, um
ser humano trêmulo, habitante de um universo indiferente aos seus objetivos e
aspirações. Para evitar que você sucumba ao desespero total, sua cultura lhe
molda um caráter, lhe constrói uma armadura que o impede de sofrer a invasão de
intuições perturbadoras sobre a natureza verdadeira do mundo. E só depois que
você tenha sido doutrinado numa tradição religiosa e aprendido que a vida tem
sentido, porque existe um Deus que o garante, é que você poderá, na escola,
receber algumas lições sobre biologia. Uma lição de que, provavelmente, você
jamais se esqueceu é a que lhe ensina sobre a cadeia alimentar, que distribui
num sistema os produtores, os consumidores e os decompositores. A cadeia
alimentar constitui a base do ecossistema. Ao longo da cadeia alimentar, os
organismos produtores transferem energia e nutrientes aos consumidores. Essa
transferência é cíclica, pois se completa quando do retorno dos nutrientes aos
produtores. O retorno é possível pela ação dos decompositores que transformam a
matéria orgânica dos cadáveres e os excrementos em compostos mais simples, num
ciclo ininterrupto de transferência de nutrientes. A energia é um bem
indispensável à sobrevivência de todo organismo, por isso todos os organismos,
independentemente do lugar que ocupam na cadeia alimentar, a utilizam para a
manutenção de sua vida. Essa breve e
bastante superficial descrição da cadeia alimentar deve nos permitir apenas
inferir que o metabolismo, isto é, o processo geral pelo qual os organismos
vivos se apropriam e se utilizam da energia de que precisam para desempenhar
suas funções vitais, constitui um aspecto fundamental da definição da vida. São
muitas as definições propostas para o termo vida
nas ciências da natureza e eu não tenho pretensão de adotar alguma delas.
Mas uma lição igualmente importante de nossas aulas de biologia é que um ente
só pode ser considerado um organismo vivo se exibir todos os seguintes fenômenos:
a) desenvolvimento: passagem por
etapas seqüenciais que vão da concepção à morte; b) crescimento: acumulação e reorganização de matéria proveniente do
meio natural; excreção dos produtos indesejáveis; c) movimento, acompanhado ou não de locomoção no ambiente; d) reprodução: capacidade de gerar
indivíduos semelhantes; e) resposta a
estímulos: capacidade sensitiva e de reação às possíveis mudanças no meio
natural; f) evolução: capacidade de
transformação de sucessivas gerações e de adaptação delas ao meio ambiente.
O que aprendemos sobre a
cadeia alimentar nos foi transmitido com os termos técnicos consagrados na
ciência biológica. O objetivo das aulas é simplesmente nos levar a compreender
os mecanismos envolvidos no processo da vida. Não nos é estimulada a
experiência do espanto. Raramente, um aluno é tomado de assombro em face do
fato de a cadeia alimentar não passar de uma cadeia de carnificina incessante
durante a qual a necessidade de matar é condição indispensável à manutenção do
processo de viver nas condições naturais. A vida, nessa perspectiva, não é mais
que um sistema autorregulador cujo desenvolvimento se realiza por meio dos
processos de reprodução e de destruição de organismos que, por sua vez, não são
mais do que máquinas de sobrevivência programadas por seus genes para
satisfazer o “interesse” do conjunto desses genes, qual seja, a perpetuação nas
gerações futuras.
Conforme nos ensina
Dawkins, em seu O Gene Egoísta (2007,
p. 132), toda máquina de sobrevivência tem como objetivo a sua sobrevivência
individual e a reprodução. Por isso, ainda segundo Dawkins,
“Os animais
(...) não medem esforços para encontrar e capturar alimento, para evitar serem
eles mesmos capturados e comidos, para evitar doenças e acidentes, para
proteger-se das condições climáticas desfavoráveis, para encontrar membros do
sexo oposto e persuadi-los a acasalar-se, e para conferir aos seus descendentes
vantagem semelhantes àqueles que eles próprios desfrutam”. (ib.id.).
Os esforços dos animais
descritos por Dawkins no trecho acima constituem evidências que corroboram a
visão da vida como um esforço contínuo de resistência dos organismos à tendência intrínseca da vida ao
aniquilamento, isto é, à morte. A morte não é uma simples circunstância
consequente do processo de viver; ela é um dos momentos constitutivos da
dinâmica do processo de viver (no sentido de que, enquanto vivo, carrego em mim
a possibilidade sempre aí da minha morte). Essa compreensão do processo da vida
pode ser ampliada com a observação de que a extinção é o destino de todas as
espécies. Ora, a vida na Terra começou há cerca de 4 bilhões de anos e evoluiu
em milhões de milhões de direções diferentes, e está destinada a findar em
entropia máxima muito antes do resto do universo. Também o Sol, sem o qual a vida
na Terra não seria possível, explodirá ou se consumirá em cerca de 5 bilhões de
anos, reduzido a cinzas tudo que gira à sua volta. As estrelas não terão
destino diferente. Olhar o universo a partir dessa perspectiva niilista, a qual
acena com a tendência de tudo que existe desaparecer no Nada absoluto, não é
esposar uma visão pessimista sobre a vida; é, na verdade, atingir uma
compreensão radical do caráter deveniente de tudo que há. Consideremos o que significa ser no tempo. Ou
seja, o que significa a experiência do tempo, para nós, humanos? Significa a
experiência do fluxo incessante de todas as coisas, do passar, do fugaz, do
aniquilamento, da dissolução, donde resulta a experiência de nulidade de tudo
que fazemos. Marcel Coche (2000, p. 175) soube bem ver qual é a pergunta mais
radical que subjaz à clássica pergunta “Por que existe alguma coisa em vez de
nada?”. A pergunta mais radical é outra, diz o filósofo. Trata-se de perguntar
“Por que fazer alguma coisa em vez de
nada?” Se a destinação de tudo que há é o aniquilamento, se a experiência
do tempo, que é a do devir, é a própria experiência de estarmos rodeados pelo
nada (já que tudo que é deixa de ser, num fluxo contínuo), por que fazer alguma
coisa em vez de nada fazer?
Já insisti, neste texto e
noutros, que o homem está condenado a produzir sentido. Mas a própria
experiência de construção de sentido, por força da consciência que tem o homem
de ser no tempo, está, em última instância, destinada ao fracasso. Vou explicar
por que a entendo como destinada ao fracasso. Sentido é um termo difícil de definir. Simplesmente porque o sentido é marcado por uma ‘ausência de
si’. Quando nos perguntamos sobre o sentido da palavra “casa”, queremos saber
qual é o significado da palavra “casa”, ou seja, o seu conteúdo semântico, o
seu significado denotativo. Não vou aqui descer a discussões sobre a distinção
entre significado e sentido, como a estabelecida por Frege, nem tecer
considerações sobre o que significa falar em “sentido” nas teorias do discurso.
Para a elucidação de meu pensamento, basta, inicialmente, tomar a palavra “sentido”
como sinônimo de “significado”. Mas o sentido da palavra “casa” não é nem a
estrutura sônica ou, em termos saussureanos, a imagem acústica /kaza/ nem o
referente concreto que o signo “casa” designa no mundo. O sentido está de
permeio, por assim dizer, entre o significante (a imagem acústica) e a coisa
significada. Notemos que o sentido tem um papel de articulação. Todavia,
diferentemente do que pensava Saussure, assumirei que essa articulação não é a
da imagem acústica com a coisa designada pelo signo, mas a da imagem acústica,
ela própria “a imagem psíquica do som” (Saussure), com o conceito, que é também
um componente de ordem mental. Mas o sentido
só pode atualizar-se através de outros signos. Se eu forneço o sentido da
palavra “casa”, o faço através de uma definição que resulta da combinação de
outros signos. Assim, o sentido de “casa” é “edifício destinado à habitação”.
Evidentemente, este é um dos sentidos de “casa”, já que as palavras são
polissêmicas. Mas o aspecto polissêmico das palavras não deve nos interessar.
Disse que o sentido “está
de permeio”, mas como poderia “estar entre duas coisas”, se o sentido é
‘ausência de si’, é um ‘lugar vazio’? Como poderia ‘uma ausência’ ocupar um
lugar? É que o sentido é a determinação de uma ausência que significa na
combinatória de outros signos. Nunca encontramos, de fato, o sentido em si
(veja “eis o sentido!). O sentido de um signo é outro signo ou combinatória de
signos. Evidentemente, esse outro signo significante ou combinatória de signos
só pode atualizar o sentido por convenção, ou seja, são os membros de uma
comunidade linguística que se colocam de acordo quanto ao sentido que vão
atribuir às palavras. Ou seja, são os membros de uma comunidade linguística,
compartilhando experiências de mundo, que acordaram que uma estrutura sonora
como /kaza/ significará ‘edifício destinado à habitação’.
Retomo, agora, a questão que
me motivou a tratar do problema do sentido. Insisto, que o sentido continua
sendo um problema para a Linguística, a filosofia e as ciências cognitivas. A
tradição semiológica nos habitou a pensar no sentido como um componente do
signo, ou seja, uma das duas faces do signo. Saussure chama as duas partes do
signo de “significante” e “significado” e toma o “significado” como sinônimo de
“conceito”. Mas o que não se aprofundou, até onde eu consigo ver, é a distinção
ontológica entre significante, que tem caráter sensível, material (é uma
combinatória de sons articulados), e o significado (ou sentido) que não é um
ente do mundo, que não é um componente material. Só tenho acesso ao significado
ou sentido por meio de outros signos, que, por sua vez, são entidades
dicotomicamente divididas em um significante (estrutura sonora) e um
significado (conceito, conteúdo mental?). Mas só posso acessar o conteúdo
mental que o meu interlocutor associa a um signo por meio de outros signos.
Por que a experiência
humana de construção de sentido está destinada ao fracasso? Se não sabemos o
que é o sentido (na verdade, parece-nos que ele é o próprio vazio, é ausência
de si), então devemos evitar abordá-lo como se ele pudesse nos revelar sua
natureza própria. A forma como podemos agora nos interrogar sobre o sentido
deverá levar em consideração conceitos como o de “coerência”, “articulação”,
“continuidade”, “princípio de inteligibilidade e interpretabilidade”. Quando
dizemos de um texto que ele tem coerência, queremos dizer que ele “faz
sentido”; e um texto “faz sentido” – aqui darei a conhecer apenas um modo de
compreender o que é “fazer sentido” - , quando o leitor consegue estabelecer
uma coesão conceitual cognitiva entre as expressões linguísticas do texto e o
conhecimento de mundo que o leitor tem arquivado em sua memória.[9] Para
fins de argumentação, a palavra-chave que interessa aí é coesão (ligação). Um texto ou um acontecimento faz sentido
quando podemos estabelecer ligações entre os componentes (no caso do texto) ou
entre os episódios (no caso de um acontecimento). Além disso, o sentido, quando
pensado relativamente ao texto, não se encontra no texto em si, mas é
construído na interação entre autor e leitor. A construção do sentido depende
do princípio de inteligibilidade do texto, ou seja, o texto tem de ser
inteligível, tem de construir um ‘mundo textual’, que constitui um modelo de
mundo construído pelo autor e que deve corresponder, ao menos parcialmente, ao
conhecimento de mundo do leitor. Novamente, o sentido do texto depende de que
se possa estabelecer uma ligação, uma articulação entre o mundo construído pelo
texto e o nosso conhecimento de mundo enquanto leitores. O sentido envolve
também a noção de continuidade. Se produzo um texto como “Joana voltou para
casa, mas agora minha mãe está doente”, esse texto, aparentemente, estranho, só
fará sentido se meu interlocutor conseguir estabelecer uma continuidade (de sentidos) entre os conhecimentos ativados pelas
expressões do texto. No exemplo em tela, o leitor precisa conseguir estabelecer
alguma relação entre o evento ‘Joana voltou para a casa’ e ‘minha mãe está
doente’ com base em conhecimentos que já disponha previamente. Note-se que o
enunciado não nos fornece todos os conhecimentos necessários para a sua
compreensão. Boa parte desses conhecimentos deve ser partilhada entre os
interlocutores. Se meu interlocutor sabe que “Joana” é minha irmã, que ela
fugiu de casa, que minha mãe estava aflita e que a família estava preocupada
com a possibilidade de minha mãe adoecer em virtude da preocupação com a
ausência de minha irmã, então lhe será possível reconstruir o sentido
pretendido por mim ao produzir o enunciado. Considerando-se todos os
conhecimentos que se espera sejam partilhados e a estrutura sintática do
enunciado, formado por duas orações articuladas pelo operador “mas”, que
contrapõe um estado-de-coisas a outro, o meu interlocutor pode construir para o
enunciado o sentido: ‘Joana não voltou a tempo para evitar que minha mãe
adoecesse’. Ora, nesse caso, o locutor pretende
que seu interlocutor aceite a interpretação que ele, locutor, faz do ocorrido: Joana agora nos causou outra preocupação, a
saber, a preocupação com o estado de saúde de nossa mãe. Novamente, estamos
diante de um fato bastante interessante: mesmo que o sentido possa ser
compreendido como construção de relações, apreensão de uma continuidade, como
um efeito dependente de princípios de inteligibilidade e de interpretabilidade,
o sentido só se materializa por meio de um complexo sígnico, ou seja, de uma
frase ou texto. Parece que, ao pretendermos capturar o sentido em sua transparência,
como algo que, emergindo das palavras, se pudesse “visualizar”, ele nos lança
novamente para outras palavras, para outros signos e assim sucessivamente. Acredito
ter encontrado uma saída para a dificuldade em que me envolvi na
problematização do sentido, mas não darei a conhecê-la neste texto, já que não
é aqui o lugar adequado para apresentá-la.
Devemos, agora,
considerar o que se segue. Quando pensamos no conceito de “continuidade”,
vem-nos à mente a ideia de ‘caráter ou qualidade do que é contínuo’. “Contínuo,
por sua vez, diz-se do que não é dividido na extensão ou não é interrompido na
duração. Continuidade também se imbrica com a ideia de estabilidade, já que
“estabilidade” supõe também a ideia de “permanência”. Transpondo o conceito de
continuidade, subjacente à compreensão do sentido, para o domínio
ontológico-fenomenológico, busquemos ponderar sobre o que significa dizer que
“minhas atividades fazem sentido”. Se eu digo que minhas atividades fazem
sentido, quero dizer que consigo estabelecer entre elas uma ligação, uma
continuidade (e continuidade implica, nesse caso, estabilidade). Mas cumpre
ainda acrescentar a essa compreensão do sentido um componente fundamental do
homem: o desejo. As atividades que
realizo fazem sentido se elas estiverem em harmonia com o meu desejo, se eu
puder representá-las como meios para a satisfação de meu desejo. E nós não
desejamos senão bens, e o sumo bem que desejamos é, como nos ensinara
Aristóteles, a felicidade. Logo, as atividades que eu realizo só fazem sentido,
em última instância, se a continuidade que posso estabelecer entre elas, as
ligações que elas mantêm entre si me encaminham para a realização de minha
felicidade. Não cabe aqui fazer incursão na tematização filosófica da
felicidade. Basta que aceitemos que ela é o sumo bem a que tende todo homem. Independentemente
da forma como cada pessoa entende o que é uma “vida feliz”, o que estou
tentando mostrar é que o sentido é o efeito de minha capacidade de estabelecer
ligações entre minhas experiências, entre meus atos, minhas atividades, de tal
sorte que essas ligações assegurem a ou me encaminhem para a realização de meu
desejo de felicidade. Uma vida humana da qual se pode dizer que é dotada de
sentido é uma vida em cuja destinação (isto é, cujo modo como a dinâmica de
seus eventos me afeta) se pode estabelecer ligações entre seus momentos e/ou
eventos constitutivos, as quais, por sua vez, devem encaminhar-me para a
realização de minha felicidade.
Por que a experiência de
construção de sentido está destinada a fracassar? Lembro que essa questão se
nos apresenta em função do reconhecimento de que o tempo é o passar incessante de
todas as coisas, é a impossibilidade de que as coisas durem. O tempo nos revela
esta grande verdade: tudo que é torna-se o seu contrário, ou seja, deixa de
ser. Ora, o tempo não nos pode dar a continuidade, a estabilidade, no sentido
de ‘permanência’, exigida pela necessidade que temos de construir sentido.
Assim, por exemplo, quem extrai sentido para a sua vida na experiência do trabalho,
porque esse alguém é um ‘ser no tempo’, está sempre sujeito a perder aquilo que
faz sentido. Essa pessoa pode deixar o cargo que ocupa e que lhe dá certo
status e poder para ocupar um cargo de menor representatividade. Isso pode
significar a redução de seu salário e dos poderes de que antes gozava. Ou, em
caso de uma grave crise econômica, pode vir a perder o emprego. Como diz a
canção, “tudo muda o tempo todo no mundo”. Como não há vida possível senão no
tempo e como o homem é um ser que tem consciência de que vive no tempo, como “o
tempo “segue na mesma marcha” - em nós,
mas independente de nós” (Coche,
2000, p. 182, ênfase minha), somos presas da lei do tempo que tudo encaminha
para o nada e a própria vida torna precária nossa tarefa de atribuir sentido às
nossas experiências, às nossas atividades. Como a vida não pode garantir a
continuidade, a estabilidade exigida pelo sentido por força do fato de ser uma
vida temporal, o homem sente a necessidade de produzir, na imaginação, uma
ligação que transcenda o tempo, uma ligação que o contente na esperança de
existir no mundo do ser, que é o oposto do mundo do devir, onde a lei é a
impermanência de tudo que existe. A experiência do tempo revela ao homem que
ele é também um ente impermanente, destinado a não durar como tudo o mais. A
fugacidade ou a impermanência constitui o modo como a vida se destina para o
homem e essa destinação da vida torna frágil a experiência do sentido. Enquanto
o homem “habita” o tempo, o sentido continua sendo uma experiência precária,
destinada a não resistir à inexorabilidade da lei do tempo. A religião produz
no homem a esperança de que o sentido último de sua vida consista numa ligação
que transcenda o tempo. Por isso, o sentido da vida só pode ser entendido como
sentido transcendente. Esse sentido quer dizer: minha vida extrai sua
coerência, sua coesão, de uma outra vida, de uma vida fora do tempo - a vida
eterna, ou a eternidade -, garantidora da estabilidade, da continuidade
exigidas pela minha necessidade de sentido.
Antes de encerrar esta
subseção, lembro que, ao nos debruçarmos sobre o funcionamento da língua,
observamos que ‘ordem’, em língua, produz sentido. Assim é que a ordem em que
se distribuem os termos da oração determinará um dado sentido. A oração “João
ama Maria”, em que “João” ocupa a posição de sujeito e “Maria” ocupa a posição
de complemento do verbo “amar”, significa uma coisa diferente do que a oração
“Maria ama João”, na qual a ordem em que aparecem os constituintes “João e
“Maria” se alterou. Nesse caso, “João” é o complemento, e “Maria” é o sujeito.
Semanticamente, o que temos é uma troca de papéis semânticos entre os SNs
(sintagmas nominais): em “João ama Maria”, “João” é o experienciador, e “Maria”
é o objeto; em “Maria ama João”, “Maria” é que é o experienciador; e “João”, o
objeto. O que a língua nos ensina, nesse tocante, acerca do sentido é que ele
exige ordem, ordenação, organização. Não há sentido no caos, assim como não há
sentido na sequência que não obedece a
nenhum padrão regular da gramática do português: “de banana comeram bolo o”. Analogamente,
a atribuição de sentido ao viver depende de que nossas experiências, nosso
mundo fático seja dotado de ordem, de organização. A expressão “minha vida está
uma bagunça” confirma que a vida é uma experiência que supõe ordem, ordenação,
organização, e o sentido é produto dessa ordem. O sentido do viver cotidiano é
garantido por esquemas cognitivos pelos quais ordenamos cada ação que
realizamos. Esses esquemas se chamam rotinas.
A forma do destinar-se da vida cotidiana é a da rotina. E rotina implica
ordenação e é ela que nos dá a ilusão de sustentabilidade do sentido. Se a
rotina sofre uma quebra profunda, por exemplo, com a descoberta de um câncer
que nos forçará a freqüentar hospitais, a submeter-se a sessões de
quimioterapia e a suportar estados intensos de debilidade, que envolvem dor,
anemia, diarréia, náusea, vômito, etc., somos lançados numa perturbadora crise
de sentido. O sentido da vida, em circunstâncias como esta, é colocado em
questão, o sofrimento nos expõe à fragilidade da vida, à fragilidade do sentido
e à compreensão do ser, que, em circunstâncias como esta, nos desvela o caráter dramático da finitude do ser-aí que cada um de nós é.
Finitude não significa o caráter
mortal do homem, mas seu modo próprio de existir marcado pela antecipação da
“totalidade de sua existência que se estende como um arco do nascimento à
morte”. (Stein, 1976, p. 71). Essa consciência e antecipação do modo finito de
existir são estruturadoras do modo de ser do Dasein.
4.2. A luta pela sobrevivência
Recordem-se, em
princípio, os dois sentidos em que Rosset (1989) entende a crueldade do real:
1º sentido: a natureza
intrinsecamente dolorosa e trágica da realidade;
2º sentido: a forma
“crua” com que se apresenta o próprio real que impossibilita os ornamentos
metafísicos que o tornem suportável.
Esta subseção será
destinada à exposição de evidências que acenam com o caráter impiedoso da
natureza, para o que me socorrerei do que Charles Darwin nos ensinou sobre o
processo de evolução das espécies e, particularmente, sobre a luta pela
sobrevivência implicada nesse processo. Serão dois os meus objetivos ao longo
desta parte de minha exposição: 1) corroborar o caráter doloroso da realidade,
a que se refere Rosset; b) contribuir para o esclarecimento acerca da
incongruência entre a crença na existência de um Criador sumamente bom que
projeta um mundo cuja ordem revela sua bondade e inteligência infinita e o que
podemos saber acerca do modo como o mundo realmente é. Buscarei argumentar no sentido de que não verificamos aquilo que
esperaríamos encontrar se o mundo tivesse sido criado por um Deus cuja
existência é afirmada pela tradição teísta. A crença na existência do Deus
teísta falseia nossa visão do mundo. Essa crença, como defende Freud, é
ilusória porque decorre do nosso desejo de que o mundo fosse diferente do que
é. Daniel Dennet chama nossa atenção para o fato de que podemos compreender o
caráter ilusório da crença em Deus sob outra ótica: uma parte das pessoas que
diz acreditar na existência de Deus crê,
na verdade, na crença em Deus. Nesse
sentido, a crença na crença em Deus é tão importante quanto a crença na
democracia, no domínio da lei ou no livre-arbítrio. São ilusões tomadas como indispensáveis
ao viver em sociedade e as pessoas, em geral, temendo admitir “que muito da
sabedoria popular tradicional a respeito de Deus não merece mais crença que a sabedoria popular a
respeito de Papai Noel ou da Mulher Maravilha” (ib.id. p. 225) - o que, em
última instância, é um temor por assumir sua liberdade - creem nisso e não se demonstram
dispostas a abandoná-las. Independentemente de Deus existir ou não, conforme
nota Dennett (2006, p. 261), a opinião generalizada é que “sem religião,
cairíamos na anarquia e no caos, em um mundo em que “qualquer coisa vale””. A expressão “crença na crença em Deus”
pretende sublinhar dois fatos: um dos quais, que se deve entrever, é que, na
maioria das vezes, nossas crenças a respeito do mundo implicam a existência das
coisas no mundo, as quais são, assim, a causa de nossas crenças; o outro fato é
que a crença em Deus pode significar apenas crença no conceito de Deus, ou melhor, crença
na funcionalidade do conceito de Deus.
O que o argumento do
desígnio em favor da existência de Deus ignora é que a suposição de um Designer
Inteligente na origem do universo não dá conta do modo como a vida realmente se
manifesta no âmbito da natureza. Uma das razões por que a crença no Designer
Inteligente é inadequada para explicar o mundo tal como é diz respeito aos
defeitos de “engenharia” que podemos observar facilmente nas formas de vida. A
outra razão, que, na seção anterior apontei, e que agora será desenvolvida em
pormenores, é que a vida em seu estado natural se constitui pela luta universal
pela sobrevivência ao longo da qual se verifica uma grande quantidade de
sofrimento e destruição de organismos. Essa luta universal pela sobrevivência
só pode ser explicada adequadamente pela postulação do mecanismo de seleção
natural. A luta pela sobrevivência é um efeito do processo de seleção natural,
ou seja, é uma das formas pelas quais a seleção natural se dá. É somente pelo
mecanismo de seleção natural que podemos apreender a lógica subjacente à
violência inerente ao modo como a vida se manifesta na natureza.
A crença no Designer
Inteligente obscurece nossa consciência da verdade acerca do modo como o mundo
realmente é. Por isso, quem “vê” e entende o mundo com base na crença num
Criador infinitamente bom e sumamente inteligente não vê o mundo tal como é; o
que vê são simulacros de um mundo recriado nas representações coletivas
constituídas e mantidas pelo sistema ideológico que subsidia sua fé. De certo
modo, o mundo que o crente “vê” não é o mesmo mundo visto pelos que não creem
em Deus.
Comecemos por atentar
para o que significa, em termos gerais, a seleção natural. Dawkins, em seu O Gene Egoísta (2007), assim se expressa
a respeito da seleção natural:
“A seleção natural, na sua forma mais geral, significa
a sobrevivência diferencial de entidades. Algumas entidades vivem e outras
morrem, mas, para que a morte seletiva tenha algum impacto sobre o mundo, uma
condição adicional tem de ser satisfeita. Cada entidade tem de existir na forma
de um grande número de cópias e ao menos algumas dessas entidades devem ser potencialmente capazes de sobreviver
como cópias – durante um período significativo de tempo evolutivo” (p. 86,
ênfase no original).
Dizer que a seleção
natural “significa a sobrevivência diferencial de entidades” é dizer que a
seleção natural ou, como também chamou Darwin, “a persistência do mais capaz”,
é o mecanismo pelo qual se preservam as diferenças e as variações individuais
favoráveis e eliminam-se as variações nocivas. A seleção natural é o mecanismo
propulsor da evolução natural. Trata-se de um mecanismo criador da complexidade
biológica. A evolução natural, por sua vez, consiste no longo processo contínuo
através do qual, a partir de um ancestral comum, os seres vivos vão sofrendo
modificações, mudanças, por meio da aquisição de caracteres hereditários.
Trata-se, portanto, de um processo gradual de mudanças químicas e físicas que
começou antes mesmo do surgimento da vida propriamente dita e que continua até
hoje.
Um aspecto fundamental da
seleção natural, suficiente para lançar por terra a crença num Designer
Inteligente, reside no fato de que não há finalidade ou direção nesse processo,
de modo que, “se hoje favorece algumas formas, pode certamente alterar a
pressão a favor de outras formas de acordo com uma nova interação entre os
conjuntos de parâmetros em jogo” (Landim & Moreira, 2009, p. 34).
Uma compreensão do mundo
calcada sobre o princípio da seleção natural e do fenômeno da evolução das
espécies pode afinar-se com a ideia de que os seres vivos são máquinas criadas
pelos seus genes, os quais evoluíram “– em alguns casos, por milhões de anos,
num mundo altamente competitivo” (Dawkins, 2007, p. 39).
Tendo em vista o fato de
que a luta pela sobrevivência é uma consequência inevitável da atuação da
seleção natural, ela deve ser compreendida como um acontecimento indispensável
à manutenção da estabilidade da organização da própria vida. Darwin (2009)
explica esse fato pelo princípio de progressão geométrica do aumento dos
indivíduos. Se o aumento do número de indivíduos se tornasse muito notável, não
haveria regiões que os pudessem alimentar. A vida depende, portanto, da morte
de certo número de seres vivos para que seu equilíbrio e manutenção sejam
possíveis. Segundo Darwin,
“A luta pela sobrevivência resulta inevitavelmente da
rapidez com que os seres vivos organizados tendem a se multiplicar. Todo
indivíduo que durante o estado natural d ávida produz muitos ovos ou muitas
sementes deve ser destruído em qualquer período de sua existência ou durante
uma estação qualquer, porque, de outro modo, dado o princípio do aumento
geométrico, o número dos seus descendentes se tornaria tão notável que
nenhuma região os poderia alimentar. Também, como nascem mais indivíduos do que
os que conseguem sobreviver, deve existir, em cada caso, luta pela sobrevivência,
quer com outro indivíduo da mesma espécie, quer com indivíduos de espécies
diferentes, quer com as condições naturais da vida” (p. 9, ênfase no original).
Conforme podemos ver, a
luta pela sobrevivência constitui também uma medida para solucionar um desperdício:
o nascimento de um número superior de
indivíduos do que a quantidade que consegue sobreviver. Em outras palavras,
a dinâmica cruel da vida opera segundo o princípio de eliminação do excesso:
nascem muito mais seres do que aqueles que conseguirão subsistir. A luta pela
sobrevivência está a serviço da manutenção do equilíbrio inerente à ordem
natural, evitando que existam superpopulações que tornariam, pelo consumo
excessivo, escassos os recursos naturais para a manutenção da vida. Uma região
onde se proliferassem muitos descendentes de uma espécie tornar-se-ia incapaz
de prover a subsistência de todos os seres vivos que a habitassem.
Numa outra passagem,
Darwin deixa claro o caráter funcional da luta pela sobrevivência. Dessa luta
depende o bom funcionamento da seleção natural, já que, na luta pela
sobrevivência, sobrevivem apenas os indivíduos da espécie cujas variações se
demonstraram úteis a esses indivíduos nas relações com outros seres vivos e com
as condições físicas da vida. Seguem-se as palavras de Darwin:
“Devido a esta luta, as variações, por mais fracas que
sejam e seja qual for a sua origem, tendem a preservar os indivíduos de uma
espécie e se transmitir à descendência logo que sejam úteis a esses indivíduos
nas suas relações com os outros seres organizados e com as condições físicas da
vida. Os descendentes terão, por si mesmos, em virtude disso, maior
probabilidade de sobrevida, porque, dos indivíduos de uma espécie nascidos
periodicamente um pequeno número sobrevive. Denominei este preceito, pelo qual
uma variação, por mínima que seja, se conserva e se perpetua se for útil, seleção natural, para indicar as
relações desta seleção com que o homem pode operar”. (p. 6-7).
Darwin também nos alerta
para o fato de que, se ignorarmos o princípio da luta universal pela
sobrevivência, ou não conseguimos ver bem todo o processo de autogestão da
natureza, ou interpretamos de modo errado os casos atinentes à distribuição, à
raridade, à abundância, à extinção e às variações dos seres vivos. Ainda,
segundo Darwin, quem se habitou a ver apenas a exuberante beleza da natureza e
sua superabundância de alimentação não é capaz de ver a natureza em sua
totalidade, isto é, não vê que a beleza exuberante e a generosidade de sua
providência coexistem com sua dinâmica intrinsecamente destrutiva e sua
imprevidência periódica. Em outras palavras, o belo e o feio, a abundância e a
escassez, a criação e a destruição evidenciam que a vida se constitui pela
dinâmica relacional dos contrários. Quem vê apenas um elemento dos pares
parcializa o mundo e, assim, não vê, de fato, como o mundo realmente é.
“Nada mais fácil que admitir a verdade deste
princípio: a luta universal pela sobrevivência; nada; nada mais difícil – e
falo por experiência – do que ter este princípio sempre presente no espírito,
pois, caso contrário, ou se vê mal toda a economia da natureza, ou se atribui
sentido errado a todos os casos relativos à distribuição, à raridade, à
abundância, à extinção e às variações dos seres organizados. Contemplamos a
natureza exuberante de beleza e prosperidade e notamos, muitas vezes, uma
superabundância de alimentação, mas não vemos, ou esquecemos, que as aves, que
cantam empoleiradas descuidadas num ramo, se nutrem principalmente de insetos
ou de grãos; e que, fazendo isto, destroem seres vivos; esquecemos que as aves
carnívoras e os animais de presa estão à espreita para destruir quantidades
consideráveis desses alegres cantores, destruindo-lhes os ovos ou
devorando-lhes os filhos; não nos lembramos sempre que, se há superabundância
de alimentação em certas épocas, o mesmo não se dá em todas as estações do
ano”. (p.7-8).
Esse trecho nos dá
testemunho do caráter cruel do real. A maioria de nós se maravilha com a
majestade do mundo natural ao mesmo tempo em que não demonstra perplexidade em
face do fato de que essa mesma ordem natural majestosa cerca de perigos e pune
mortalmente os seus filhos descuidados.
A visão de mundo
naturalista, consoante se pôde ver, é incompatível com a visão de mundo teísta.
Uma vez que o teísta alega existir um Deus criador, onipotente e sumamente bom,
ele precisará explicar por que um Deus com tais atributos criou uma ordem
natural que, para se conservar, tenha de causar tanto sofrimento e destruição?
Quando observamos a natureza, sem a mistificação da realidade pela crença num
Criador sumamente bom, todo-poderoso e inteligente, podemos nos dispensar de
justificar a existência do mal e do sofrimento no mundo. Uma compreensão da
verdade sobre a natureza nos revela que: a) cada ser orgânico tende sempre a
multiplicar-se; b) logo, cada um deles estará inevitavelmente envolvido numa
luta por certo período de sua vida; c) tanto os mais novos quanto os mais
velhos indivíduos estão sujeitos inevitavelmente a uma destruição incessante, e
isso ocorre durante cada geração, ou em alguns intervalos recorrentes; d)
sempre que a destruição cessa, por um período breve que seja, o número de
indivíduos de uma espécie torna a crescer consideravelmente. O crescimento
exponencial da quantidade desses indivíduos parece exigir a ocorrência de novos
eventos de destruição dos produtos excedentes.
Já se constatou que,
entre as melhores espécies de pombos-cambalhotas de bico curto, morrem mais
filhotes no interior do ovo do que aqueles que conseguem sair, razão por que os
criadores ficam alerta para o momento em que o filhote se esforça para quebrar
a casca do ovo, a fim de ajudá-lo caso haja necessidade. A natureza poderia
produzir um pombo de bico muito curto em benefício da própria ave, mas, nesse
caso, a seleção seria mais lenta e rigorosa e ocorreria ainda dentro do ovo:
somente os que teriam bico mais duro sobreviveriam, já que os que tivessem bico
mole morreriam dentro do ovo. A natureza poderia, alternativamente, produzir
uma casca de ovo mais delgada, a fim de facilitar a saída dos filhotes. A
seleção natural pode modificar profundamente a conformação de um animal, mesmo
que essa modificação só lhe seja útil uma única vez na vida. Não nos podemos
dispensar de perguntar como um projetista sobrenatural inteligente poderia, num
caso, pecar por uma ineficiência nociva; e noutro, cometer um erro de avaliação
de proporcionalidade entre a modificação feita e a duração de sua utilidade.
Esse caráter esbanjador,
desastroso e ineficiente é o que se pode esperar de um processo como o da
seleção natural, que envolve tentativa e erro numa escala gigantesca e sem
planejamento. De fato, há muitos desperdícios ao longo do processo, muito
embora os produtos exibam sinais de sofisticação e elegância. É claro que todo
o processo que culminará com a sobrevivência dos mais capazes tem um custo
grandioso: há muito sangue e sofrimento
envolvidos. Dawkins, em seu O Capelão
do Diabo (2005, p. 24), lembra que “Darwin não estava exatamente brincando
quando cunhou a expressão “capelão do Diabo” numa carta a seu amigo Hooker em
1856: “Um livro e tanto escreveria um capelão do Diabo sobre os trabalhos
desastrosos, esbanjadores, ineficientes e terrivelmente cruéis da natureza!”.
Um dos fatos mais
importantes que a evolução por seleção natural nos dá a conhecer é que no
estado natural da vida a norma é suplantar o seu vizinho na transmissão de
genes às futuras gerações. Nessas, apenas os genes mais bem-sucedidos
orientarão o desenvolvimento das gerações futuras, codificando nos seus
indivíduos uma única mensagem: explorem o meio ambiente, inclusive seus amigos
e parentes, a fim de maximizar o sucesso dos seus genes. Quando o que se
constata, ao estudarmos a configuração da dinâmica vital na natureza, é a
vigência de uma única regra que instrui os organismos vivos a trapacear sempre
que isso lhes trouxer um provável benefício final, somente a necessidade de
perpetuar a autoilusão pode explicar que um grande número de pessoas não
consiga, com os meios de sua capacidade racional, inferir daí que, havendo um
Criador, ele se parece mais com um engenheiro velhaco e inventor da trapaça
como meio de ganhar a vida do que uma autoridade e fonte de todo sentido de
moralidade em relação à qual devemos conduzir nosso comportamento.
Para uma grande linhagem
de pensadores, de Hesíodo a Freud, passando pelos filósofos pré-socráticos da
costa jônica, Empédocles, Hegel, Schopenhauer e Nietzsche, vida e morte não se
opõem de forma irredutível, mas integram a dinâmica do viver. Entre esses dois
estados, se desenvolve uma eterna e renovada dinâmica de construção e
destruição, de geração e corrupção, de nascimento e perecimento, ódio e amor.
Essa compreensão à luz da qual vida e morte são estados estruturantes do real
representa bem o modo como funciona a dinâmica do que chamamos hoje natureza, ou seja, o mundo bio-físico
como totalidade de entes que se distribuem em reinos (mineral, vegetal e
animal) e que está submetida a leis próprias.
Se a violência permeia
toda a dinâmica da vida, a evolução de uma tendência à violência é estratégica.
Assim, os organismos só recorrem à violência em circunstâncias em que os
benefícios esperados superam os custos envolvidos. Segundo Dawkins (2007, p.
69), “esse discernimento é especialmente verdadeiro em espécies inteligentes,
cujos cérebros grandes as tornam sensíveis aos benefícios e custos esperados em
uma dada situação e não tão-só às vantagens adquiridas em média ao longo do
tempo evolutivo”.
Vejamos, antes de pôr
termo a esta subseção, alguns outros exemplos que evidenciam o caráter cruel
(nos dois sentidos entendidos por Rosset) da realidade, especificamente da
ordem natural cuja criação se atribui a um Criador sumamente bom. Novamente,
enfatizo que meu objetivo consiste não só em ampliar a visão que costumamos ter
da natureza, circunscrita à sua exuberância, mas também em mostrar que a crença
num Criador benevolente torna-se absurda quando nos detemos na contemplação da
dinâmica cruel das relações entre as formas vivas.
Os guinchos são aves que
constroem os seus ninhos em grandes colônias. Os ninhos são dispostos no chão
muito distante uns dos outros. Ao nascer, os filhotes são pequenos e indefesos;
por isso, podem ser facilmente engolidos. É bastante comum que uma fêmea espere
a sua vizinha sair, possivelmente para pescar, para, então, avançar sobre um
dos filhotes para devorá-lo. Desse modo, ela obtém uma refeição farta e
nutritiva sem ter o trabalho de apanhar um peixe, deixando o próprio ninho
entregue à investida assassina de um invasor.
As fêmeas do louva-a-deus
são grandes insetos carnívoros. Em geral, eles se alimentam de insetos menores,
como as moscas. Todavia, estão dispostas a atacar tudo quanto se mova. Na época
do acasalamento, o macho, cautelosamente, se dirige até a fêmea, monta nela e
copula. Tendo oportunidade, a fêmea o come, arrancando-lhe, primeiramente, a
cabeça, seja assim que ele se aproximar dela, seja quando estiver montado nela,
seja no fim da cópula. Talvez, fosse mais sensato que ela esperasse a cópula
terminar para devorá-lo. Mas a perda da cabeça não priva o restante do corpo do
cadenciado movimento sexual. Uma vez que a cabeça do inseto abriga alguns
centros inibidores, ao arrancá-la, a fêmea melhora o desempenho sexual do
macho. Mas, se esse for o caso, a melhora do desempenho sexual é um ganho secundário.
O benefício primário é a boa refeição que ela obtém.
Que devemos pensar sobre
o comportamento dos pinguins-imperadores da Antártida, que ficam à beira d’água
hesitantes antes de mergulhar, já que correm o risco de serem devorados por
focas? Mas, para que saibam se há focas ou não, é necessário que um deles se
encoraja a mergulhar. Ocorre que nenhum deles se atreve a fazê-lo, de modo que
todos ficam esperando e, às vezes, chegam a se empurrar uns aos outros para
dentro d’água. A regra do comportamento, nesse caso, é: alguém, desde que não seja eu, deve se sacrificar em favor da espécie,
mesmo sob coação. Para o conjunto de genes, importa sempre garantir a
sobrevivência da espécie, mesmo que, para isso, seja necessário sacrificar um
indivíduo. Devemos, portanto, atender na lição de Dawkins (2007, p.47), ao nos
esclarecer sobre o seguinte: “se são as espécies que competem naquilo que
Darwin chamou de luta pela sobrevivência, o indivíduo deveria ser considerado
um peão no jogo, a ser sacrificado quando o interesse maior da espécie assim o
exigir”.
É comum que filhotes de
gaivotas fiquem a andar a esmo. Em consequência disso, é fácil que venham a se
aproximar do ninho de uma vizinha adulta, sendo quase sempre devorados por ela.
Um relato impressionante
sobre o instinto assassino de animais nos é dado por Steven Pinker, em seu
livro Os anjos bons de nossa natureza
(2013). Conta o autor que, quando chimpanzés estão em equilíbrio de força,
eles, embora interajam de maneira hostil, não chegam a atacar violentamente uns
aos outros, limitando-se, ao contrário, a emitir gritos curtos e repetidos, a
sacudir galhos e a atirar objetos, até que o bando menos numeroso se ponha a
fugir. No entanto, segundo Pinker, a primatóloga Jame Goodaall, observando pela
primeira vez os chimpanzés na natureza por longos períodos, descobriu que,
quando um grupo de chimpanzés encontro outro grupo em menor número ou um
indivíduo sozinho pertencente a outra comunidade, os animais do grupo mais
numeroso não gritam, nem se eriçam, mas aproveitam
a vantagem numérica. Se o estanho for uma fêmea sexualmente receptiva, eles
podem catar seus pelos e tentar se acasalar com ela. Se ela carregar um
filhote, na maioria das vezes, eles a atacam e depois matam e comem o filhote.
Se, ao invés, encontram um macho solitário ou isolado do seu grupo,
perseguem-no com ferocidade assassina. Dois dos perseguidores o imobilizam, os
demais o espacam, arrancam seus dedos e genitália a mordidas, “dilaceram-lhe a
carne e torcem seus membros, bebem seu sangue ou lhe arrancam a traquéia”
(Pinker, 2013, p. 75-76). O desfecho desse caso emblemático de crueldade na
natureza nos é fornecido por Pinker na forma como se segue:
“Em uma comunidade, os chimpanzés escolheram matar
cada macho de uma comunidade vizinha, um evento que, se ocorresse entre seres
humanos, chamaríamos de genocídio. Muitos dos ataques não são desencadeados por
encontros fortuitos; resultam de patrulhamentos de fronteira nos quais um grupo
de machos sorrateiramente procura e ataca qualquer macho solitário que avistar.
Mata-se também dentro da própria comunidade. Uma gangue de machos pode matar um
rival, e uma fêmea forte, ajudada por um macho ou outra fêmea, pode matar a
cria de uma fêmea mais fraca”. (ib.id.).
Os ataques sanguinolentos
dos chimpanzés são, portanto, muitas vezes, resultado de uma tática de
extermínio, que envolve um paciente e cuidadoso trabalho de reconhecimento da
região onde estão as vítimas em potencial, e emboscadas com resultados fatais.
4.3. Deus e o Problema do Mal: uma revisão crítica das
teodiceias
4.3.1. Deus, segundo Clemente de Alexandria (séc. III E.C)
Jô 4: 8 “Aquele
que não ama não conhece a Deus; porque Deus é amor”.
Embora tenha sido pouco
original em suas exposições acerca de Deus, a compreensão que Clemente de Alexandria
tinha de dEle é paradigmática no tocante ao seu efeito de mistificação de nossa
consciência de mundo. Em outros termos, ao apresentar as ideias de Clemente de
Alexandria sobre a natureza de Deus, buscarei mostrar que elas são produtos da
imaginação de seu autor e que contrariam grosseiramente o que sabemos acerca do
mundo. Espero que, tendo em vista tudo o que foi discutido na seção precedente
e o que virei a discutir nas próximas seções, o caráter enganoso das
proposições clementianas não deixem margem a qualquer dúvida de que seus
conteúdos recriam um mundo que não é o mundo da nossa experiência empírica
comum. Começo, pois, por fazer uma sucinta apresentação de quem foi Clemente de
Alexandria.
O primeiro instituto
cristão de ensino superior apareceu na cidade de Alexandria, região para onde
convergia a cultura helenística nos inícios do século III. E.C (Era Comum).
Desse grande centro do saber, onde se cultivavam a filologia e as ciências da
natureza, participou Tito Flávio Clemente, também conhecido como Clemente de
Alexandria, filho de pais gentios, nascido, provavelmente, em Atenas por volta
de 150 E.C.
Clemente de Alexandria,
embora advogasse que a filosofia devesse submeter-se à fé cristã, não deixou de
reconhecer sua utilidade. Para ele, a filosofia era útil para todos os que
professavam a fé cristã. A filosofia serve de um instrumento para a defesa
dessa fé. Clemente acreditava que o estudo da filosofia era um vocação que
contentava a Deus.
Sua Teologia Natural
pautava-se, em linhas gerais, pelas seguintes proposições:
1) A existência de Deus é universalmente conhecida
Clemente julgava que essa
afirmação era evidente. Ele notou que não há povo que não creia em algum ser
supremo. Para ele, todos os homens elaboram uma ideia de Deus, já que essa
ideia lhes estaria inscrita em sua alma. Assim, os homens experimentam uma
espécie de “antecipação” do saber sobre Deus. Esse saber é resultado de uma
influição divina de que se beneficiaram também os filósofos. Também eles, que
já falavam sobre um Deus único, princípio e fim do universo, foram receptores
da iluminação natural de Deus.
2) O conhecimento negativo de Deus se aufere por via analítica
Para alcançar um saber
aproximativo de Deus, devemos recorrer ao processo analítico, através do qual,
partindo dos dados da experiência sensível, podemos chegar ao princípio
espiritual de todas as coisas. Essa análise se desenvolve na forma de uma série
progressiva de abstrações. Na sua primeira etapa, removemos das coisas
sensíveis as três dimensões que a constituem: o comprimento, a altura e a
largura. Mas ainda resta um simples
ponto que continua a ocupar um lugar no espaço. Prosseguindo com o processo,
abstraímos esse ponto espacial, a fim de obter tão somente uma unidade
espiritual, ou uma causa situada acima de todo lugar, de todo tempo e de todo
conhecimento. O processo analítico deve nos conduzir à abstração de todos os
aspectos corporais e incorporais do ser, tendo em vista a elevação à grandeza
de Cristo. Somente quando conseguimos formular o conceito de imensidade,
obteremos certo conhecimento do Todo-Poderoso, muito embora permaneçamos, em
todo caso, ignorantes quanto ao que Deus é. O processo analítico por analogias
deverá nos levar a afirmar a radical transcendência de Deus. Clemente chegou a dizer,
em consonância com Fílon, que Deus está acima da própria Unidade.
4) Deus é o Criador de todas as coisas
Os desdobramentos dessa
proposição têm, para esta discussão, uma relevância imensa. Clemente é pouco
original em suas exposições acerca de Deus como Criador. Ele afirma,
acompanhando de perto a tradição, que Deus
é o criador de todas as coisas e o princípio absoluto de tudo. A despeito
do fato de ele não nos oferecer uma concepção clara e inequívoca da Criação,
esta, segundo afirma, é atribuída ao Logos (o Verbo). Na Bíblia, relata-se que
o Verbo criou o mundo a partir do nada.
Segundo Clemente, a
criação resulta de um ato livre da vontade de Deus. O ato de criação é
expressão da bondade de Deus. Mas Deus não é bom no mesmo sentido em que o fogo
é quente, isto é, não há uma necessidade na bondade de Deus; a bondade de Deus
é voluntária, isto é, livre. Isso significa dizer que Deus escolhe ser bom.
Ora, se a bondade de Deus decorre de uma escolha livre, então Deus pode
escolher, em vez da bondade, a indiferença moral, ou o mal. Da observação da
grande quantidade de mal e sofrimento que há no mundo é razoável inferir que
Deus escolheu uma dessas opções ou as duas em vez da bondade.
Ao assumir que “Deus é o
criador de todas as coisas”, Clemente se compromete com uma afirmação que
responsabiliza Deus pela existência de todo sofrimento e mal que há no mundo.
Como vimos, quando chamei a atenção para a superioridade numérica das bactérias
como habitantes do mundo, se seguirmos Clemente (e todos os autores cristãos) e se não quisermos evitar as exigências da
razão, deveremos responsabilizar Deus pela criação desses microorganismos que,
como sabemos, nos causam muitos males, muitos dos quais mortais. Se Deus é o
criador de todas as coisas, na
extensão desse sintagma – “todas as coisas” - devemos incluir além das
bactérias, os vírus e todos os parasitas que causam doenças aos seres humanos,
animais e plantas. Do Antraz ao Ebola, incluindo o HIV, que segundo estimativas
oficiais, é responsável pela morte de cerca de 25 milhões em todo o mundo,[10] e
a bactéria altamente perigosa chamada Clostridium
difficile, comum em hospitais ao redor do mundo e a Clostridium botulinum, portadora
da toxina botulínica, a mais maligna então conhecida (a Clostridium botulinum é
uma bactéria que interrompe o funcionamento neural, causando botulismo e morte
por paralisia) - todos esses microrganismos malignos, enfim, fazem parte da
Criação e, portanto, foram criados pelo Deus sumamente bom de Clemente.
Ainda segundo Clemente,
todas as coisas existentes, inclusive o tempo, foram criadas pela vontade livre
de Deus. Deus quis criar o mundo (com todos os agentes patológicos que nele
encontramos), e o mundo se fez. A vontade criativa de Deus não é temporal, mas
eterna e intemporal. Tudo que existe se originou de um só ato simples da
vontade de Deus; e tudo que continua a subsistir até então é produto
exclusivamente de sua vontade. Deus é o mantenedor da ordem da criação; é o
sustentador do mundo. Demais, reza Clemente que tudo que Deus criou é bom. Essa proposição segue-se, logicamente,
do que Clemente afirma a respeito de Deus: se Deus é absoluta bondade, segue-se
que tudo que faz é bom. Para Clemente, Deus é bondade e amor (aqui retoma a
posição de João 4: 8). A bondade e o amor são a única razão de sua atividade
criadora, não lhe sendo possível criar algo mau. A julgá-lo por suas crenças
acerca de Deus, Clemente não o tipo de pessoa que gostaríamos de ter como
analista político ou conselheiro conjugal em tempos de crise.
4.3.2. O Problema do Mal: uma revisão crítica das teodiceias
Com vistas a esclarecer
alguns pontos que possivelmente possam estar nebulosos, retome-se a afirmação
de Clemente de Alexandria “tudo que
Deus criou é bom” e nos perguntemos como foi possível que Clemente enunciasse
tal crença? Teria sido ele incapaz de ver que não é verdade que “tudo que Deus
criou é bom”, que, se Deus é o Criador de tudo, então também é o Criador dos
males que nos causam sofrimento e morte? Teria sofrido ele de demência? Supondo
que suas faculdades mentais estivessem preservadas, como foi possível que ele
acreditasse sinceramente no que afirmou? Talvez, jamais saberemos a resposta; só
podemos conjecturar.
Vimos que Freud define a
ilusão como uma crença motivada pelo desejo; vimos observando que a ilusão,
acompanhando a proposta de Becker, prende-se à construção do caráter como meio
de evitar o confronto com a verdade sobre o mundo. Também tive a preocupação de
sublinhar que essas não são as únicas maneiras de teorizar sobre o conceito de
ilusão. Na verdade, ilusão é um fenômeno explicado pela física, pois que
trata-se, deveras, de um erro de percepção que implica sempre um objeto (como
nas chamadas ilusões de óptica). O Dicionário
Técnico de Psicologia (2006) recomenda a distinção entre ilusão e delusão. Delusão, precisa o Dicionário, não deve
ser confundida com ilusão. A definição dada ao termo delusão aplica-se bem ao que vimos considerando como “ilusão”.
Assim, delusão é uma “crença indestrutível numa ideia ou grupo de ideias
obviamente contrárias à lógica, à realidade do meio externo ou às crenças
correntemente aceitas da cultura dos indivíduos” (p. 78). Pelo menos em parte,
parece que Clemente sofreu de delusão. Embora sua crença de que “tudo que Deus
criou é bom” tenha sido aceita em sua época (e ainda hoje não parece suscitar
controvérsia para muitas pessoas), ela é inegavelmente contrária à conformação
fenomênica do mundo. Quem ousaria negar que há muitas coisas no mundo que são
claramente males? Quando o desejo é manter a crença na existência de Deus, a
imaginação ignora os limites impostos pela razão. Sempre é possível
desrespeitá-los, apelando, no entanto, a eles segundo as conveniências do
momento (“os limites de nossa razão impedem-nos de conhecer os desígnios da
divindade”). A teologia é a tentativa de racionalizar a linguagem da
imaginação. Por isso, seu lógos pode
pretender, como o fez em sua história, que os males são “aparências” ou que o
mau é privação do bem (Santo Agostinho). Todo o contorcionismo racional do
discurso teológico parece decorrer, em última instância, de uma tendência
natural do cérebro humano: a de projetar
propósito e mente no mundo.
Crianças, povos
primitivos e animais superiores como cães e gatos têm a propensão a projetar
mente ou intencionalidade em coisas inanimadas e em processos não vivos, como
trovão, vento, desmoronamentos, etc. Essa tendência é particularmente
constante, quando refletimos sobre a existência do universo. Nesse caso, somos
naturalmente habituados a pensar que a existência do universo só pode ser
explicada se supusermos um agente causador inteligente, dotado, portanto, de
intencionalidade. Essa propensão também é comum quando, ocorrendo uma tragédia,
perguntamos “por que esse câncer foi afetar justamente o meu filho?”. Nesse
caso, esperamos que haja um sentido ou propósito nesse acontecimento (é um
aviso de Deus, é um sinal divino para que mudemos nossos comportamentos, etc.).
Mas a possibilidade de fazer tal pergunta não significa que ela tenha uma
resposta. A pergunta somente indica que temos uma propensão psicológica a
projetar sentido e propósito no mundo, a despeito do fato de um exame cuidadoso
do mundo poder nos mostrar que o mundo não revela, em si mesmo, significado ou
propósito em suas ocorrências. Essa propensão a projetar propósito e mente em
coisas inanimadas é uma propriedade do tipo de cérebro de que nos dotou a
evolução.
Considere-se, à guisa de
introdução à abordagem das questões para as quais voltarei minha atenção
adiante, como devemos compreender a “dor” do ponto de vista evolutivo. Quando
consideramos a seleção natural a partir dos genes, suas unidades fundamentais, somos
levados a reconhecer que eles “seguem” uma única orientação: produzir mais e mais cópias de si mesmos.
Os genes só “querem” conservar sua sobrevivência e reprodução. Os genes não se
importam com nosso sofrimento. Na verdade, eles não se importam com nada.
É claro que, numa
perspectiva evolutiva, a dor serve à adaptação biológica. Porquanto é um
sistema de alerta e de motivação da ação, a dor aumenta a sobrevivência e a
reprodução. Assim, a predação, o sofrimento do parasitismo, as dores causadas
por doenças como o câncer se explicam pela natureza da competição, mutação,
genes egoístas e “seleção natural”. Não há nenhum sentido, racionalmente
satisfatório que se possa inferir de eventos como a escassez de alimentos, a
fome e a morte delas decorrentes. Mas esses eventos podem ser explicados nos
termos da biologia evolutiva, ou seja, procurando determinar se há alguma
regularidade passível de ser traduzida em termos lógicos. Essa regularidade
existe e ela pode ser explicada assim: havendo um tempo de fartura, a
consequência será o aumento significativo da população; esse aumento
significativo da população implicará maior consumo dos recursos naturais
disponíveis; em consequência disso, o estado natural de fome e sofrimento será
restaurado.
Se queremos explicar a
quantidade excessiva e gratuita de dor e sofrimento que atinge a nós, seres
humanos, e aos seres sencientes com quem compartilhamos o planeta, devemos ponderar
sobre os processos da evolução. São eles que fizeram evoluir em nós os
mecanismos para sensibilidade à dor, mas não de modo convenientemente
eficiente, que os fizessem saber cessar quando já não mais necessários. E isso
se deve ao fato de que não há uma mente com um propósito a governar tais
processos; eles são desprovidos de inteligência e finalidade.
Portanto, o mecanismo de
dor, em geral, é adaptativo, mas não funciona com perfeição em todas as
situações - e nem poderia. Como, então, é possível ainda evitar reconhecer que
as propriedades que encontramos no universo são justamente aquelas que
esperaríamos encontrar se, desde o momento em que nos puséssemos a pensar sobre
o funcionamento do real, dispensássemos a hipótese de um desígnio ou propósito,
e não supuséssemos nada além de indiferença cega e implacável?
§§
Concentremos nossa
atenção na discussão sobre o problema do mal e nas tentativas de lidar com ele.
Essas tentativas foram chamadas de teodiceia
por Leibniz, em 1710. Há diversos tipos
de teodiceias. Passarei em revista os principais tipos, muito embora só venha a
dispensar atenção especial a dois tipos de teodiceia: a do livre-arbítrio e a que
explica a existência do mal como um meio para produzir um bem maior.
Escolhi ocupar-me delas por acreditar que elas continuam a condicionar a
compreensão que os cristãos de hoje tem do problema do mal quando precisam
defender a sua fé. Essas duas espécies de teodiceias parecem estruturar os discursos
dos religiosos quando se encontram em situações em que precisam fazer a defesa
de sua fé. Evidentemente, na maioria das vezes, essa defesa se desenvolve pela
mera apropriação do legado argumentativo teológico, sem qualquer preocupação em
submeter esse legado a uma crítica filosófica. Assim, quando se trata de
explicar o mal moral, ou seja, o mal consequente dos atos humanos, a explicação
agostiniana ainda atrai muitos defensores. Basta recorrer, assim, ao livre-arbítrio
da vontade, ainda que, ao longo da história da filosofia e mais modernamente
nas neurociências, tanto filósofos quanto cientistas venham contestando a
existência do livre-arbítrio. Neste texto, não irei me aprofundar na exposição
sobre as contribuições das neurociências que apontam no sentido da rejeição do
livre-arbítrio, se bem que alguns insights filosóficos que se confirmariam
nessas ciências não deixarão de ser considerados. É importante deixar claro que rejeitar o
livre-arbítrio não é negar ao homem a liberdade. Livre-arbítrio e liberdade não
podem ser tomados como termos equivalentes. A distinção entre eles já fora
feita em Agostinho e deverá ser mantida, se bem que noutro domínio discursivo
que não o teológico. Não vou, contudo, antecipar a problemática. Basta, por
ora, que tenhamos em mente a ideia de que “livre-arbítrio” não deverá ser
tomado como sinônimo de “liberdade”. Os seres humanos podem ainda continuar a
ser livres, sem, contudo, terem realmente “livre-arbítrio”.
4.3.2.1. O problema do mal e sua inscrição na teologia
Quando nos referimos ao
“problema do mal”, devemos estar cientes de que queremos nos referir a um
problema que se inscreve no domínio do discurso teológico. É evidente que o
“mal” é um problema para o Dasein e é
uma questão pertinente a muitas disciplinas (a sociologia, a psicologia, a política,
etc.). No entanto, a expressão “o problema do mal” deve significar “o problema
que consiste em conciliar a crença na existência de um Deus onipotente e
infinitamente bom com a evidência do mal e do sofrimento no mundo”. Assim, a
expressão “o problema do mal” se apresenta como um problema eminentemente
teológico ou, tomando o cuidado de não excluir de seu tratamento a filosofia,
diremos: um problema eminentemente filosófico-teológico.
Embora consagrado com a
designação argumento do mal, o
argumento que leva em consideração a universalidade do sofrimento mereceria ser
chamado de argumento do sofrimento do
inocente. Esse argumento constitui o
maior desafio à sustentação da crença na existência do Deus teísta. O
argumento do sofrimento do inocente tem, sem dúvida, sua mais irretocável e
significativa expressão no sofrimento da criança, que, para o filósofo francês
contemporâneo Marcel Conche (2000), “é um mal absoluto, mácula indelével na
obra de Deus, e seria suficiente para tornar impossível qualquer teodiceia” (p.
61). Conche, referindo-se a Dotoiévsky, lembra que, para este autor, “toda
teodiceia deve ser julgada pela capacidade de fornecer justificativa para os
sofrimentos das crianças” (p. 55). Creio desnecessário reunir aqui alguns
exemplos de sofrimento de que são acometidas as crianças; basta que o leitor
ligue a televisão, leia os jornais para constatá-los. Sabemos que o problema do
mal preocupou de modo especial Santo Agostinho, e grande parte de sua produção
intelectual foi dedicada ao tratamento dele. Segundo nos dá testemunho Conche,
Agostinho chegou a manifestar seu desconcerto em carta escrita a São Jerônimo
ao confrontar-se com o sofrimento das crianças. Leia-se o trecho abaixo:
“O sofrimento das crianças deveria ser suficiente para
confundir os advogados de Deus. Porém, quando muito, eles o levam em conta.
Santo Agostinho quase chega a constituir uma exceção: “Quando se chega às penas
das crianças”, escreve a São Jerônimo, “fico num grande embaraço e não sei o
que responder... Não são elas derrubadas pelas enfermidades, dilaceradas pelas
dores, torturadas pela fome, pela sede, fragilizadas nos seus membros, privadas
do uso dos sentidos, atormentadas pelos espíritos imundos?... Deus é bom, Deus
é justo, Deus é onipotente, não podemos duvidar disso sem que estejamos loucos,
mas, que nos digam por que justo motivo as crianças são condenadas a sofrer
tantos males”. Gostaríamos de ter sabido qual foi a resposta de Jerônimo, mas
ela não veio. Talvez até mesmo ele tenha ficado embaraçado”. (Conche, 2000, p.
60-61).
Agostinho, numa clara
demonstração de que não estava disposto a abandonar sua fé num Deus que não
pode ser senão o Bem Supremo, julga que seria louco se negasse a Deus os
atributos da bondade, justiça e onipotência. Entanto, a razão intervém em ato
de protesto: loucura é não ver que entre o Deus teísta e o real há uma
incompatibilidade que se impõe a quaisquer manobras de fé. Ora, o próprio Santo
Agostinho inclui entre os males que afetam as crianças a privação do uso dos
sentidos. Comecei a escrever este texto numa semana em que médicos da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Fundação Altino Ventura de
Pernambuco descobriram que a microcefalia causada pelo vírus da zika pode ser a
causa de uma lesão na mácula ocular em bebês. Essa lesão pode gerar desde
problemas visuais leves até a cegueira. Os médicos recomendam que as mães que,
durante a gestação, suspeitaram de ter contraído o vírus da zika levem seus
bebês para fazer exames, ainda que eles não tenham nascido com microcefalia. As
pessoas, em geral, quando não são afetadas diretamente por um mal como este,
isto é, na condição de espectadores, reagem com lástima e receio, que se fundem
nas expressões “Jesus!”, “Meu Deus!”. Essas exclamações funcionam como atos de
fala pelos quais as pessoas pedem indiretamente a Deus que mantenha afastados
esses males de seus filhos e, por compaixão, dos filhos de outras mães
grávidas. Em face de males, as pessoas pedem a Deus proteção e se, por alguma
imperscrutável razão, Deus não atende ao apelo e permite que eles as atinja,
elas buscam, a todo custo, escapar ao desespero, aconselhando-se com um
sacerdote ou buscando respostas na Bíblia. É preciso considerar também que a
lamentação que as pessoas expressam ao constatar que há muitos males naturais
nos espreitando jamais se converte numa revolta espiritual necessária para que
alcancem um verdadeiro estado de reconciliação com o real. A revolta espiritual
consistiria em protestar contra as tentativas de buscar um sentido para os
males que nos afetam. As explicações religiosas do mal buscam justamente isto: o sentido. Elas atendem à necessidade
humana de atribuir sentido ao sofrimento. Não é o sofrimento em si que é
intolerável, mas a falta de sentido do sofrimento. Já procurei demonstrar, em
outros trabalhos, que o sofrimento, no cristianismo, não é experienciado como
um obstáculo para o exercício da fé. E as teodiceias não são mais do que provas
disso. Elas cumprem uma única função: dar
sentido ao sofrimento. Muitos cristãos chegam a afirmar que o sofrimento é
uma experiência necessária ao crescimento espiritual, crença esta que tem apoio
na visão paulina do sofrimento. Essa crença me parece ser uma expressão
ideologizada da mortificação ascética que marcou o comportamento de devotos
cristãos, ao longo da história do desenvolvimento da fé cristã. As pessoas que
a afirmam podem chegar ao absurdo de desejar o sofrimento (mas não o provocar a
si mesmas), por acreditarem que ele é uma oportunidade para imitar a Cristo.
É preciso, no entanto,
ter em mente o seguinte: o argumento do mal só constitui um sério problema para
a fé teísta. Os que sustentam uma visão deísta da divindade não são
constrangidos a responder a ele, simplesmente porque, para o deísmo, o problema
do mal não constitui um verdadeiro problema. Sabe-se que o deísmo sustenta a
crença num Deus criador que não intervém nos assuntos humanos. Para os deístas,
Deus existe e criou o mundo, mas tendo-o criado, dele se afastou e se mantém,
assim, num estado de indiferença em face do curso das coisas e da felicidade
humana.
O argumento do mal põe em
dúvida a existência de Deus apelando para que se leve em conta o sofrimento
difundido e indiscriminado que aflige os seres humanos e os animais não
humanos. Esse argumento deve sua força ao fato de focalizar um fenômeno que
atinge pessoalmente todos nós e que, por isso, não pode ser negado, salvo por
cinismo. Sempre que ocorre um desastre natural que mata centenas de pessoas,
sempre que uma criança morre de leucemia ou de zika, sempre que os seres
humanos matam inocentes, em todas as épocas, há/houve pessoas que não evitaram
perguntar como esses acontecimentos podem conciliar-se com a existência de um
Deus sumamente bom e todo-poderoso. Até hoje, o dilema de Epicuro (341-270 AEC)
não foi solucionado de modo satisfatório; e não o foi – penso eu – porque a
conclusão que ele encaminha não pode ser outra senão a de que Deus não existe. Esquematicamente, o
dilema de Epicuro formaliza o seguinte raciocínio:
1) Deus quer eliminar o
mal, mas não pode;
2) Deus pode eliminar o
mal, mas não quer;
3) Deus não pode nem
quer;
4) Deus quer e pode.
Se 1), então Deus não é
onipotente; se 2), então Deus não é bom; se 3), então Deus é mau; se 4), então
por que o sofrimento inocente no mundo?
Os proponentes do
argumento do mal levam em consideração o sofrimento que acarreta debilidade
física ou mental, ou mesmo a morte, sem que dele se possa inferir algum
propósito. Naturalmente, os homens de religião sempre buscaram evidenciar um
propósito no mal e sofrimento que grassam no mundo, no interesse,
evidentemente, de salvar sua fé em Deus. Susan Neiman, em seu O mal no pensamento moderno: uma história alternativa da filosofia
(2003) sublinha que a teodiceia serve à seguinte função:
“A teodiceia, em sentido estrito, permite ao crente
conservar sua fé em Deus diante dos males do mundo. Num sentido amplo, é uma
maneira de dar significado ao mal que nos ajuda a encarar o desespero. As
teodiceias inserem os males em estruturas que nos permitem continuar a viver no
mundo” (p. 264).
Como se vê, as teodiceias
estão entre os dispositivos pelos quais a ilusão cultural, indispensável para
viver a vida, se expressa. Teodiceias (theos
= Deus; dikaios = justiça) são
argumentos que visam a absolver Deus da responsabilidade pela presença do mal
no mundo. A teodiceia permite ao crente conservar sua fé em Deus diante dos
males do mundo. Em sentido amplo, ela atende à necessidade de dar significado
ao mal, a fim de evitar que sejamos absorvidos pelo desespero extremo.
O sofrimento a que alude
o argumento do mal é uma calamidade que pode ser breve e intensa (como ser
assassinado ou morto por um terremoto) ou prolongada e debilitante (como ser
mortificado pela doença de Lou Gehrig, também conhecida como Esclerose Lateral Amiotrófica, que se caracteriza pela
degeneração progressiva dos neurônios motores e que leva à morte em pouco
tempo). O sofrimento a que se refere o argumento do mal pode também ser causado
por uma força da natureza, como terremoto, enchentes, tsunamis, ataques de
animais não-humanos, vírus, bactérias, ou pode ser causado pela violência de
outro ser humano. Quando o sofrimento é causado por um ser humano (por exemplo,
o assassinato, o espancamento de alguém ou de algum animal), temos o que se
considerou chamar de mal moral.
Quando causado por agentes naturais ou eventos naturais, temos o mal natural ou físico.
Vou atacar o primeiro
tipo de mal, na próxima subseção. Em seguida, concentrarei minha atenção na
discussão do mal natural. Por fim, apresento as teodiceias que podemos
encontrar nas Escrituras Bíblicas, limitando-me a pontuar que elas não
conseguem responder ao anseio de sentido das sensibilidades do mundo de hoje.
Ao cabo desta exposição, aguardarei confiante de que eu tenha sido bem-sucedido
em defender que uma aprovação verdadeira do real só é possível pela rejeição a
qualquer tentativa de atribuir sentido à crueldade inerente à dinâmica da vida.
Aprovação trágica do real quer dizer sim
ao real e ao seu caráter inapelavelmente cruel, nos dois sentidos em que o
adjetivo “cruel” é entendido pelo filósofo francês Rosset.
4.3.2.2. O mal moral
O argumento destinado a
justificar o mal causado pelo ser humano a outro ser humano (e devemos
acrescentar, hoje, a outro animal superior) apela para a existência do
livre-arbítrio da vontade. O argumento que busca inocentar a Deus do mal
causado pelo homem assenta no pressuposto de que o livre-arbítrio é um bem. Ainda hoje, para muitos crentes,
inocentar a Deus da responsabilidade pelo mal provocado pelo ser humano com
base na alegação do mau uso do livre-arbítrio garante-lhes o conforto
necessário para manter a sua fé. O argumento do livre-arbítrio serve tanto para
explicar por que Deus permitiu que uma Suzane Richtofen premeditasse e
viabilizasse o assassinato dos próprios pais quanto para explicar por que Deus
não interveio para salvar os 6 milhões de judeus exterminados nos campos de
concentração de Auschwitz. Desses 6 milhões de seres humanos assassinados pelos
nazistas, no que ficou conhecido como Holocausto, 1, 5 milhões eram crianças.
Entre elas, havia 1 milhão de judias, dezenas de milhares ciganas, além de
crianças alemães portadoras de deficiências físicas e mentais que viviam em
instituições, crianças polonesas, e crianças que moravam nas regiões ocupadas
na União Soviética – todas elas mortas pelo que foi chamado pelos nazistas de
“Solução Final”. Atualmente, dificilmente um filósofo cristão ou teólogo sério
buscará desenvolver uma teodiceia para explicar os acontecimentos de Auschwitz,
sem experimentar um mal-estar moral. Como nota Neiman (2003, p. 280),
“Auschwitz foi conceitualmente devastador porque revelou uma possibilidade na
natureza humana que esperávamos não ver”. Para os que se dedicam seriamente a pensar
sobre o problema do mal, Auschwitz dizimou todas as categorias conceituais
pelas quais Deus foi até então pensado. Depois de Auschwitz, é o próprio
conceito tradicional de Deus que não pode ser mais mantido. É claro que essa
necessidade de repensar a compreensão que temos de Deus, em lugar de
simplesmente negar sua existência, é um problema que se impôs aos intelectuais
que se confrontaram com os acontecimentos de Auschwitz. É claro que houve
ortodoxos judeus que compreenderam o extermínio de 6 milhões de seres humanos
como um juízo de Deus sobre os judeus, os quais estariam sendo punidos por
terem se afastado da lei tradicional (trata-se de uma retomada de uma teodiceia
bíblica para explicar por que o povo escolhido sofria). Essa teodiceia assenta
na crença de que Deus abandona aqueles que se desviam de seu caminho. Uma
segunda maneira de rejeitar o que Auschwitz representa para o compromisso com a
fé em Deus é alegar que os nazistas são demoníacos e que o que os alemães
fizeram não nos diz nada sobre a natureza humana. Não obstante algumas
tentativas de justificar o terror de Auschwitz, fato é que a barbárie ali
cometida arruinou as teodiceias modernas, levou à derrocada as crenças anteriores
no progresso da humanidade. O século XX tornou os modelos de sofrimento em que
Nietzsche inspirou-se para erigir uma filosofia afirmadora do mundo simplesmente
obsoletos. Oportunas são as palavras de Neiman ao comentar sobre a esterilidade
da visão nietzscheana sobre o valor do sofrimento, depois de Auschwitz:
“Descrições de Auschwitz deixam pouco espaço para as
alegações nietzschianas sobre o valor do sofrimento, pois praticamente todos os
observadores compartilhavam a opinião de que esse sofrimento não criou nada de
valor quer para qualquer indivíduo que o tenha testemunhado, quer para a
humanidade como um todo. Esta não é uma afirmação moral, mas empírica.
Auschwitz nada produziu além de possibilidades que jamais deveriam ter sido
abertas, feridas que nunca podem cicatrizar (...)”. (Neiman, 2006, p. 292).
Reforço aqui a ideia de
que, salvo desonestidade intelectual e um descompromisso com um senso de
moralidade, os estudiosos que se dedicam a refletir sobre o problema do mal
dificilmente seriam convincentes ao propor teodiceias calcadas sobre o
livre-arbítrio que ignorassem os acontecimentos de Auschwitz. É verdade, porém,
que, para o homem comum, quase nunca é verdadeira e espiritualmente afetado
pelas implicações que um acontecimento como o de Auschwitz carreia para a sua
confortável defesa de Deus mediante a insistência no mau uso de livre-arbítrio
pelo homem, o genocídio de crianças, em qualquer circunstância, não o leva a
questionar profundamente sua fé. Por mais espantoso que isso possa parecer, não
devemos tomá-lo como alguém racionalmente embotado, mas como alguém para quem é
simplesmente intolerável viver num mundo onde o terror e o sofrimento são
desprovidos de qualquer sentido. Para essa pessoa, vale a frase de Camus: “Não é o sofrimento das crianças que se torna
revoltante em si mesmo, mas sim que nada justifica tal sofrimento”. Na
cotidianidade, reunidos em rebanho, os homens, tementes a Deus, mesmo cônscios
de que o sofrimento de inocentes parece absurdo, seguem na marcha a aguardar a
Revelação Final, que suplantará a “Solução Final” e pela qual, segundo creem, o
Verbo anunciará a Eternidade do Sentido.
4.3.2.3. Santo Agostinho e o problema do mal
4.3.2.3.1. Contextualização
A crença no
livre-arbítrio da vontade, que subjaz ao argumento do livre-arbítrio em favor
da justiça de Deus, deve sua disseminação, na história do pensamento ocidental,
a Santo Agostinho (século IV). Será, por isso, necessário apresentar,
resumidamente, a importância de Agostinho enquanto o mais influente teólogo do
pensamento cristão até hoje. Agostinho
de Hipona foi o grande sintetizador de dois corpora
teóricos da Antiguidade, a saber, o pensamento greco-romano (filosofia) e o
judaico-cristão (fé). Coube ao bispo de Hipona construir as bases de uma nova
cultura que se tornou hegemônica no Ocidente, donde o merecido epíteto “Pai do
Ocidente”.
Foi com Santo Agostinho
que a filosofia patrística e, talvez, a filosofia cristã alcançaram seu apogeu.
Agostinho está entre os raros pensadores cuja filosofia não pode ser dissociada
de sua vida. Sua vida inteira consistiu numa busca de Deus e, no centro de seu
pensamento, sempre esteve o próprio Deus. Em sua busca de Deus, Agostinho não
se esquivou de pensar quiçá o mais espinhoso problema – o da existência do mal
no mundo.
O enfrentamento do
problema do mal por Agostinho se deu num contexto teológico e de vida marcado
pela ruptura com a doutrina maniqueísta, da qual Agostinho fora simpatizante na
qualidade de ouvinte, durante nove anos. Será suficiente delinear o que foi o
maniqueísmo e quais foram seus principais ensinamentos.
O maniqueísmo é uma
religião de origem persa, criado por Manes, no século III, que se difundiu por
todo o Império Romano e pelo Ocidente cristão. Durante esse período, o
maniqueísmo alcançou florescimento e foi muito influente nos primórdios do
cristianismo. Sua doutrina combina aspectos do zoroastrismo, antiga religião
persa fundada pelo profeta Zaratustra, com elementos de outras religiões
orientais e inclusive do cristianismo. Os maniqueus sustentavam que o universo
era governado por dois princípios opostos: o do Bem e o do Mal, isto é, a Luz e
as Trevas. Os seres humanos, por consequência, tinham duas almas: uma presidida
pelo princípio do Bem; e outra, pelo princípio do Mal. O mal era, para os
maniqueus, dotado de natureza metafísica e ontológica. O indivíduo não era
livre, tampouco responsável pelo mal que faz.
Durante o tempo em que
estava sob influência da doutrina maniqueísta, Agostinho concebia a realidade,
Deus e o mal como substâncias materiais. Santo Agostinho jamais chegou a se
tornar um membro plenamente qualificado da seita, mas ficou sobremaneira
admirado com a atitude maniqueísta de repulsa aos dogmas católicos. O espírito
racionalista de Santo Agostinho conciliava-se bem com o caráter acentuadamente
materialista da metafísica maniqueísta.
Dois acontecimentos, no
entanto, foram determinantes para a emancipação espiritual de Santo Agostinho,
a qual se iniciou pela ruptura com o maniqueísmo e culminou, não sem que se
encenasse um turbulento combate em seu espírito, com sua conversão ao
cristianismo: o contato com Santo Ambrósio, ao qual deveu, especialmente, sua
renúncia ao racionalismo; e o contato com o neoplatonismo, doutrina filosófica
que lhe abriu o caminho para uma metafísica do espírito, à luz da qual a
concepção de Deus que até então tinha Agostinho, por influência da sua simpatia
pelo maniqueísmo, se transformou. Doravante, Agostinho passava a conceber a
Deus como ser incorpóreo espiritual. Ao se debruçar sobre o problema do mal,
Agostinho procurava polemizar com os maniqueus. Essa polêmica foi,
especialmente, marcada pela divergência com que Agostinho pensou o mal,
conforme veremos. Mas, antes de trazer à cena discursiva o modo como Agostinho
pensou o problema do mal, convém ainda esclarecer um pouco mais a influência
tanto de Ambrósio quanto do neoplatonismo sobre o pensamento de Santo
Agostinho.
Conquanto as pregações de
Ambrósio não tenham levado Agostinho, de imediato, à Igreja Católica, elas
trouxeram à sua alma algumas luzes e foram, aos poucos, dissipando as dúvidas
que ainda lhe restavam no espírito como sinais da influência maniqueísta.
Graças a Ambrósio, Santo Agostinho pôde manter-se distante do ceticismo. Atento
aos sermões de Ambrósio, o bispo de Hipona colheu deles o conceito de
“substância espiritual”, fundamental para a superação e refutação do
maniqueísmo. Com Ambrósio, Agostinho aprendeu que o Deus do Cristianismo, Uno e
Criador, não é uma substância corpórea ou material, mas espiritual.
No que toca à importância
do neoplatonismo para o desenvolvimento do pensamento de Agostinho, é
indispensável pontuar que especialmente de Plotino Agostinho aproveitou a
famosa tríade na qual o mundo inteligível se divide hierarquicamente em três
hipóstases ou substâncias primeiras: o Uno, a Inteligência ou Noûs e a Alma. No topo da hierarquia, se
acha o Uno, que é o Bem-Superior, transcendente, perfeito, eterno, infinito e
necessário. Desse primeiro Princípio, emana a segunda hipóstase, que é a
Inteligência ( ou Espírito, ou Lógos ou Noûs).
A Inteligência é uma cópia do Uno. Ela foi engendrada imediatamente pelo Uno e,
por isso, é a mais perfeita, embora não tenha a unidade perfeita. A
Inteligência marca o início da multiplicidade, já que carreia em si uma
divisão: por um lado, ela contempla diretamente o Uno, do qual faz parte; e,
por outro lado, contempla a si mesma, sendo consciente de si mesma. A Inteligência é, portanto, ao mesmo tempo,
Inteligência que pensa, e Ser, enquanto é pensada.
O mundo inteligível
encerra-se com a terceira hipóstase, a Alma do mundo, que é uma substância
também espiritual, princípio que anima o universo, que dá vida a todos os
corpos. É importante dizer que a noção plotiniana de hipóstases inteligíveis
como realidade superior ao mundo sensível deu grande impulso ao pensamento de
Agostinho. Em primeiro lugar, porque, através delas, Agostinho corroboraria a
concepção cristã de Deus, que aprendeu com Ambrósio. Deus ou o Super-Bem de
Plotino é um ser único, substância espiritual transcendente, que não tem corpo
nem extensão. Em segundo lugar, Agostinho que, a esta altura já tinha ao menos
tomado conhecimento do Evangelho de São João, pôde, a partir da leitura de
Plotino, estabelecer uma estreita relação entre o Lógos de Plotino e o Verbo do
Evangelho de João.
Fato não menos importante
para a evolução do seu pensamento é o que Agostinho aprendeu a respeito da
matéria no monismo plotiniano. Na sua união com a Alma universal, a matéria dá
origem aos seres corporais. A matéria é a última processão do Uno e, como tal,
é eterna e necessária. Ainda que esteja extremamente afastada do Bem, a matéria
não constitui um princípio ontológico independente. A matéria é o extremo
limite do Uno, de modo que para além dela não há mais processão alguma, ou não
existe mais nada. Em virtude de sua extrema distância relativamente ao Bem ou
Uno, a matéria é o lugar da obscuridade, da multiplicidade, logo fonte ou
possibilidade do mal. Quando a matéria encontra-se em estado de natureza pura,
isto é, sem estar unida à Alma do mundo, Plotino considera-a como privação –
falta de forma, indeterminação, distanciamento do Bem, o não-Ser, ao qual
Plotino dá o nome de “nada”. A noção de “nada” como equivalente de não-ser irá
influenciar profundamente o pensamento de Santo Agostinho e veremos que essa
noção será decisiva na concepção agostiniana do mal.
4.3.2.3.2. O
enfrentamento agostiniano do problema do mal
O enfrentamento do
problema do mal por Agostinho iniciou-se a partir da perspectiva
ontológico-metafísica. As questões de que se ocuparia Agostinho eram as
seguintes: a) qual a substância do mal?; b) onde ela está?; c) qual é a sua
origem?; d) como ele entra a fazer parte do mundo?
No que tange à primeira
questão, é conhecida a solução dada por Agostinho: o mal carece de substância (essência).
Em outras palavras, o mal é destituído de realidade ontológica, isto é, é o
não-ser. Essa conclusão se segue, necessariamente, de duas premissas que
fundamentam todo o pensamento agostiniano: 1) Deus é o Bem; 2) tudo que provém
de Deus tem de ser bom. Logo, sendo Deus o Bem, ele não pode ser autor do mal.
Como se pode ver, não há,
para Agostinho, uma oposição entre substância do bem e substância do mal, pois
o mal carece de substância; o mal é privação do bem. Se o Bem é a integralidade
da natureza do ente, o mal é a degradação da integralidade da natureza do ser.
Para Agostinho, uma vez que Deus é o Bem Supremo, todas as coisas criadas
carreiam o princípio do bem. Uma oposição entre o bem e o mal fica, portanto,
impedida pelo fato de que, sendo Deus o Bem Supremo e Criador, não pode haver
mal na criação. Se houvesse uma oposição entre coisas boas e coisas más, o
Criador seria destituído do controle sobre as coisas criadas e, se assim fosse,
ele estaria sempre sujeito à derrota pelo mal. A possibilidade de uma derrota
para o mal tornaria o Sumo Bem corruptível e, portanto, mutável. Mas o Bem
Supremo, que é Deus, é incorruptível e imutável. Deus é absolutamente imutável.
À medida que Agostinho
vai avançando no tratamento do problema do mal, ele se vê obrigado a
considerá-lo na relação com Deus, donde a necessidade de lidar com a seguinte
questão desconcertante: como o Deus
cristão, incorruptível Criador e Senhor de todas as coisas, não tem
participação no mal? Lembremo-nos do pressuposto estruturador de toda a
filosofia agostiniana: existe um Deus
Criador e Soberano; o homem e tudo o mais que existe são suas criaturas.
Agora, vejamos quais são os problemas que se seguem desse pressuposto no
enfrentamento do problema do mal:
1) se não foi Deus que criou o mal, então Deus não é mais o Criador de
todas as coisas, pois o mal não faz mais parte da criação;
2) se, por outro lado, Deus é, de fato, o Criador de todas as coisas,
então o mal é parte da Criação e, consequentemente, Deus é o autor do mal.
Ora, Agostinho nega,
justamente, que Deus seja o autor do mal. Uma terceira questão ainda se impõe
no curso do enfrentamento do problema do mal:
3) como pode Deus ter criado o mal, se após a criação viu Deus que todas
as coisas são boas? (Gênesis 1, 31).
Devemos ter em mente que
a incorruptibilidade de Deus é um postulado de fé; por isso, é inegociável. A
crença na incorruptibilidade de Deus alicerça todo o pensamento teológico
agostiniano. Estar sujeito à corrupção não é um bem, mas é afastar-se do bem.
Deus, sendo o Sumo Bem, não pode estar afastado do bem. Deus é a substância
suprema do Bem.
Ao ver-se flertando com
uma aporia, Agostinho decide operar uma “virada” na abordagem do mal. Agostinho
procurará desenvolver a partir de então uma abordagem moral do problema do mal.
§
Influenciado por
Ambrósio, que sublinhou a adequação da interpretação alegórica dos textos
bíblicos para a sustentação da tese da boa natureza da criação, e munido de
conceitos colhidos do pensamento de Plotino, Agostinho operou um deslocamento
do problema do mal, até então situado no domínio estrito da discussão
metafísica, para o domínio da moral. Cabe dizer que Agostinho não abandonou a
convicção de que Deus não é o autor do mal e que o mal é apenas uma ausência de
bem.
Tendo deslocado o
problema do mal para o domínio da moral, Agostinho fez aparecer a centralidade
do homem, que passaria a ser responsável pela introdução do mal no mundo. A
causa do mal reside, assim, no mau uso do livre-arbítrio da vontade, que é um
bem relativo. O livre-arbítrio envolve a crença na indeterminação da vontade e
na responsabilidade absoluta. Se o homem pode responder pelo curso da vontade,
então ele tem responsabilidade absoluta. O livre-arbítrio deve ser entendido
como o único conceito da tradição ocidental que dá conta da culpa. Mas é
preciso desfazer uma compreensão bastante limitada e comum da relação do
problema do mal com o livre-arbítrio. Os cristãos pouco instruídos na letra da
doutrina tendem a pensar a relação do mal com o livre-arbítrio como um problema
circunscritamente moral. O texto bíblico, no entanto, não autoriza essa
limitação e uma leitura do Catecismo da
Igreja Católica (2000) é suficientemente esclarecedora da repercussão
do mau uso do livre-arbítrio na totalidade do Cosmo. Voltarei a esse tema, mais
adiante, quando me detiver na exposição sobre o Pecado Original.
Sublinhe-se que, ao
atribuir à responsabilidade humana a introdução do mal no mundo, Agostinho
preserva a onipotência e a imutabilidade de Deus. O mal continua carecendo de
substância. Mas, sendo ele, agora, consequência do mau uso do livre-arbítrio, o
mal passa a ser visto como uma perversão da vontade que se desvia de Deus. Em
uma palavra, o mal é agora o pecado.
Para Agostinho, o mal moral é o pecado. Assim, o mal não se encontra em Deus
(Deus não é o autor do mal), mas no homem, sempre que se afasta do Sumo Bem por
ato de corrupção da vontade.
A doutrina agostiniana do
mal contempla, assim, dois vieses: do ponto de vista ontológico-metafísico, o
mal nada é; mas, do ponto de vista moral, o mal é o pecado. O pecado é a
vontade que viola a ordem estabelecida na criação. O pecado é um distanciamento
do bem pelo uso da vontade livre do homem. A vontade, porque foi concedida por
Deus ao homem, é boa. Mas, por força do livre-arbítrio, o homem pode optar pelo
mal, tornando-a má.
Se o mal moral pode ser
explicado pelo mau uso do livre-arbítrio, como Agostinho explica a existência
do mal natural? Aqui Agostinho parece pecar por uma “economia teórica”. As
doenças, os terremotos, enchentes são males naturais cuja causa, segundo
Agostinho, reside no pecado, vale dizer, no mal moral. Esses males são
consequência do pecado original. Como o pecado original tem em sua centralidade
o homem, o problema do mal, em Agostinho, é, por conseguinte, um problema
genuinamente humano.
Antes de explicar o que
Agostinho entende por “livre-arbítrio”, façamos uma pausa para que possamos
compreender a doutrina do Pecado Original, da qual a explicação do mal pelo
exercício do livre-arbítrio toma a sua coerência. O Pecado Original, também
conhecido como A Queda, impossibilita que o livre-arbítrio forneça o horizonte
de sentido no interior do qual a natureza humana é reintegrada. O Pecado
Original caracteriza a tendência congênita da corrupção dos atos humanos.
4.3.3. O Pecado Original
O pecado original é um problema ontológico, cuja origem está num ato
de desobediência a Deus cometido pelo primeiro homem. O pecado original
significa a deterioração da ordem do todo. Essa deterioração ou perversão da
totalidade se deu pelo uso do livre-arbítrio.
O texto do Catecismo (2000) reza que “a partir do
primeiro pecado, uma verdadeira “invasão” do pecado inunda o mundo” (§ 401, p.
113). Nesse mesmo texto, aprendemos que, em decorrência do pecado original, se
deu “uma corrupção universal”. Conforme vemos, é a harmonia de toda criação que
se torna corrompida, que é rompida, e “a criação visível tornou-se para o homem
estranha e hostil” (ib.id.). A acosmia, a cujo significado me referi no início
deste trabalho e que encontramos no espanto pascaliano, é, portanto, explicada
pelo pecado original. O pecado original torna o cosmo um lugar inóspito ao
homem e o homem não encontra nesse lugar um horizonte de realização de si, donde
a experiência de abandono na imensidão de espaços escuros e indiferentes.
O texto do Catecismo elenca as graves consequências
que o primeiro pecado acarretou ao homem: 1) “o domínio das faculdades
espirituais da alma sobre o corpo é rompido”; 2) “a união entre o homem e a
mulher é submetida a tensões”; 3) “suas relações serão marcadas pela cupidez
(cobiça) e pela dominação” (ib.id.). Por fim, por causa do pecado cometido pelo
homem, “a morte entra na história da humanidade” (ib.id.).
Todos nós, seres humanos,
sofremos a pena pelo pecado cometido por Adão. O texto do Catecismo é explícito: “todos os homens estão implicados no pecado
de Adão” (§ 402, p. 114). O que parece uma atribuição injusta de crime é
justificado pela sentença: “o gênero humano inteiro é em Adão como um só corpo
de um só homem” (§ 4004, p. 115). O pecado original é transmitido
congenitamente, isto é, a todos os descendentes de Adão. É que a justiça e a
santidade originais foram concedidas a toda a natureza humana. Ao pecarem, Adão
e Eva transmitem seu pecado à natureza humana, a qual, doravante, se torna
decaída. O pecado original é, assim, “um pecado que será transmitido por
propagação à humanidade inteira, isto é, pela transmissão de uma natureza
humana privada da santidade e da justiça originais” (§ 404, p. 115). O pecado
original é um pecado contraído; é um estado e não um ato.
O pecado original não tem
caráter de falta pessoal em nenhum descendente de Adão. O Pecado original é uma
condição ontológica. Esse pecado submete cada ser humano a um estado de
privação de santidade e justiça originais. A natureza humana tornou-se, com
ele, subjugada pela ignorância, pelo sofrimento e pela necessidade da morte. É
a natureza humana que, a partir do pecado original, torna-se irremediavelmente
inclinada ao pecado, isto é, ao mal moral.
4.3.4. O livre-arbítrio como faculdade de escolha
Para Agostinho, o
livre-arbítrio não é o mesmo que liberdade. Para ele, livre-arbítrio é a
faculdade de escolha com a qual nascem todos os homens. Por sua vez, a liberdade
é, segundo Agostinho, amor ao bem. O homem é tanto mais livre quanto mais
próximo ao bem está. Ou, dizendo doutro modo, quanto mais próximo do bem está o
homem mais livre é a sua vontade. Embora não caiba aqui adentrar na discussão
sobre o papel da Graça na condução do livre-arbítrio para o bem, não me
escusarei de dizer que, sem o auxílio da graça, que provém de Deus, a vontade
humana não pode escolher o bem.
A liberdade, para
Agostinho, é sempre orientada para Deus; é, por isso, uma liberdade vertical. O
livre-arbítrio, por sua vez, é um componente da vontade que, uma vez
corrompida, impulsiona o homem a escolher o que é mau. O livre-arbítrio é a
faculdade de escolha entre o bem e o mal. Quando o livre-arbítrio destina-se a
Deus, o homem experimenta a glória; mas sucede, com frequência, que o homem
orienta seu livre-arbítrio para a busca de bens inferiores. Ao escolher o mal,
o homem escolhe bens criados e finitos que o afasta de Deus. É a escolha de
bens inferiores no lugar de bens superiores que caracteriza a escolha do mal.
Assim, o mal supõe que não há um único bem, e sim muitos bens, consistindo
precisamente o pecado na escolha incorreta entre os bens. E por que o
livre-arbítrio tende a escolher os bens mutáveis e inferiores? Porque, segundo
Agostinho, o livre-arbítrio, embora seja um bem, é um bem deficiente. O homem,
pelo Pecado Original, tornou-se incapaz de conduzir o livre-arbítrio para a
escolha dos bens superiores, sem o auxílio de Deus. A vontade peca sempre que se afasta do Bem
imutável para orientar-se para o seu bem particular, quer interior, quer
exterior. Em O livre-arbítrio (1995),
Agostinho não dá margem à dúvida ao nos ensinar sobre essa propensão da
vontade:
“Ela volta-se para seu bem particular, quando quer ser
senhora de si mesma; para um bem exterior, quando se aplica a apropriar-se de
coisas alheias, ou de tudo o que lhe diz respeito; e volta-se para um bem
inferior, quando ama os prazeres do corpo”. (p. 141)
Como eminente conhecedor
da alma humana, Agostinho reconhece que o homem não escolhe o mal pelo mal, até
porque o mal é destituído de realidade ontológica. As escolhas más são as de
bens inferiores que nos afastam do Bem Supremo, que é Deus. O homem nunca
quererá o mal para si; por isso, nota Agostinho, “acontece que aqueles bens
desejados pelos pecadores não são maus de modo algum” (ib.id.). Tampouco a
vontade livre do homem é má. Para Agostinho, “o mal consiste na aversão da
vontade ao Bem imutável para se converter aos bens transitórios” (p. 142). Como
a aversão ao Bem Supremo e a escolha dos bens mutáveis não são resultado de
coação, observa Agostinho “o infortúnio que se segue será um castigo justo e
merecido”. (p. 142).
Cumpre, por fim, notar
que por vontade devemos entender uma
disposição para agir. A vontade consiste numa atividade pessoal e consciente
que resulta de um desejo e que se realiza na intenção de se obter um fim
determinado. A vontade é um querer livre, um querer que se autodetermina, mas
ela mesma é indeterminada, isto é, nada, a priori, determina o seu curso. É
essa compreensão da vontade que subjaz à noção de livre-arbítrio da vontade. Como
o livre-arbítrio é um bem relativo, ele pode ou não proporcionar um bem.
Cuido suficientes esses
esclarecimentos sobre a concepção agostiniana do livre-arbítrio, tendo em vista
os propósitos que subjazem ao curso de minha exposição doravante. As próximas
seções serão destinadas à revisão crítica das teodiceias. Começarei pela
crítica à teodiceia do livre-arbítrio, que pretende justificar a existência do
mal moral no mundo. Posteriormente, examinarei o problema do mal natural e articularei
algumas objeções a dois tipos de teodiceias, as quais não são necessariamente
estanques, mas podem-se apresentar enredadas: a teodiceia pedagógica e a teodiceia
do mal como meio necessário para o bem. Finalmente, na última parte deste
estudo, aponto as teodiceias que se podem entrever nos textos bíblicos, sem
pretender discuti-las, já que uma discussão competente pode ser encontrada em O Problema com Deus (2008), de Bart D.
Ehrmann.
4.4. O mal moral e o argumento do livre-arbítrio
Já foi dito que o mal moral é a espécie de males causados
pelo homem e que a teodiceia que busca justificar a bondade de Deus e
inocentá-lo a despeito desses males apela para o uso do livre-arbítrio. A
teodiceia do livre-arbítrio deve sua expressão teológica a Santo Agostinho.
Quando examinamos a concepção agostiniana de livre-arbítrio, aprendemos que ele
é um bem. O argumento do livre-arbítrio, portanto, afirma que o livre-arbítrio
é bom. É preciso explicitar o pressuposto que confere ao argumento seu poder de
persuasão. O argumento do livre-arbítrio pressupõe que é melhor ser uma
criatura capaz de tomar decisões livres do que ser um autômato programado para
agir de determinado modo, mesmo que esse modo seja bom. Assim, como Deus seja
onisciente ele sabia disso, quando concedeu o livre-arbítrio aos seres humanos,
mas também sabia que poderia ser usado para fazer o mal e causar sofrimento no
mundo. Não obstante, assegura o argumento, a bondade intrínseca do
livre-arbítrio – pois Deus, como vimos em Santo Agostinho, não é autor do mal –
tem mais importância que o mal que ele pode ocasionar. Seria um mal muito
maior, se Deus o tivesse negado aos homens.
Assim, por exemplo,
sempre que acontece um assassinato ou sempre que um homem-bomba detona a bomba
atada ao seu corpo matando inocentes à sua volta, há alguém que saca do
argumento do livre-arbítrio para justificar o mal, se for confrontada com o
silêncio divino. Ao longo da história ocidental, os homens, com frequência,
mataram em nome de Deus ou em nome da fé em Deus. No mundo cristão, são
exemplos disso As Cruzadas e a Inquisição. No mundo árabe, bastar citar os
atentados terroristas que nos assombram nos dias atuais. De modo algum,
pretendo sugerir que a fé tenha sido e seja o único fator envolvido nesses
eventos, tampouco suponho possível estabelecer uma equivalência sócio-histórica
entre eles. Mas, embora ciente de que esses acontecimentos têm cada qual suas
especificidades culturais, políticas, militares, ideológicas e teológicas,
todos eles se inspiram na crença de que os atos cometidos são justos aos olhos
de Deus. O terrorismo islâmico, embora beba na fonte de um inextirpável
ressentimento que remonta a décadas ou mesmo a séculos e embora tenha motivações
políticas e econômicas, também se inspira na crença de que seus atos são
consonantes com a Vontade de Deus, independentemente do fato de a comunidade
mulçumana repudiá-la e aos atos insistindo que os extremistas não representam o
que realmente prega o Islã. O que pretendo fazer ver é que o argumento do
livre-arbítrio falha sempre que atos moralmente condenáveis cometidos por seres
humanos envolvem, de algum modo, a referência ao nome de Deus como uma das
motivações. Se Deus não pode ser responsabilizado por atos criminosos cometidos
em seu nome, como suporiam os defensores do argumento do livre-arbitrio, é
difícil não responsabilizá-lo por omissão, pela indiferença. Mesmo que Deus não
se sentisse motivado a intervir para evitar que inocentes morram (que é o que
esperaríamos de um Deus bom e todo-poderoso), ele deveria, ao menos, intervir
pelo bem de sua reputação, tal como faria qualquer pessoa que prezasse pela
moral e que soubesse (e Deus, porque onisciente, sabe) que seu nome está sendo
usado para justificar atos hediondos e condenáveis. Mas Deus não o faz, o que
deveria levar os que nele creem a repensar seriamente o que pensam a seu
respeito. O silêncio de Deus deveria sinalizar para os crentes sua completa
indiferença para com o sacrifício de inocentes, mas também sua indiferença perante
sua imagem pública. Há algo moralmente inaceitável na crença de que Deus esteja
justificado em assistir sentado seus filhos matando seus irmãos inocentes,
muitos dos quais crianças, pelo simples fato de que ele os presenteou com o
poder de livre escolha. Ademais, a doutrina do livre-arbítrio, conforme vimos,
envolve a crença de que os homens são incapazes de orientar seu livre-arbítrio
para a busca de bens superiores sem a condução de Deus. Se Deus sabe que sua
condução é necessária para que os homens façam bom uso do livre-arbírtrio, por
que não os orienta tal como um pai responsável mantém o equilíbrio de seu filho
na condução de uma bicicleta? Pode-se negar que a firmação de que a
interferência de Deus no livre-arbítrio humano é um mal maior que a não
interferência. Basta pensarmos no comportamento de seres humanos e novamente
atentar para o comportamento que se espera de um pai. É absurdo afirmar que um
pai não deve impedir que seu filho brinque com fogos de artifício, porque, se o
fizesse, seria um mal maior do que ver seu filho com os dedos da mão decepados.
Ora, se é moralmente apropriado intervir para proteger o próprio filho, por que
não é até mais apropriado nosso Deus Pai intervir para evitar nossa propensão
para a destruição mútua. Quando levamos em conta os acontecimentos terríveis de
que são protagonistas hoje os terroristas e de que foram, no passado, Hitler,
Stalin e Pol Pot, a necessidade de uma intervenção de Deus passa a ter uma
urgência significativa.
Até aqui minha
argumentação se desenvolveu no terreno comum em que viceja a crença na
existência de Deus. Em nenhum momento, suscitei que só podemos explicar
razoavelmente a indiferença de Deus pela afirmação de sua inexistência. De
fato, essa é a minha posição pessoal: Deus não pode intervir para evitar que os
homens continuem a matar inocentes em seus conflitos aterradoramente absurdos
simplesmente porque Deus não existe.
Ao postular a inexistência de Deus, evitamos todos os impasses e o tempo
desperdiçado em discussões sobre a justiça divina (teodiceia), alterando o
estatuto do mal e do sofrimento, que deixariam de ser um problema teológico ou
metafísico, para ser um problema que merece um tratamento efetivamente
orientado pela necessidade de adotar medidas que possam, senão extirpá-lo
(pois, como venho mostrando, o mal e o sofrimento são inerentes aos processos
que tornam possível a dinâmica da vida), evitá-lo quando possível ou atenuar
seus efeitos deletérios.
Retomando-se o problema
com o argumento do livre-arbítrio, creio que, desde sua elaboração até seu uso
corrente, ele se apresentou como suficientemente explicativo, contribuindo para
alimentar a crença de que não há outros fatores implicados na decisão de
cometer um ato mau, ou se há, esses fatores são muito pouco influentes. No
entanto, ignorar que haja fatores sociais, econômicos, psicológicos – e
atualmente, como mostram as neurociências e a biologia evolutiva – genéticos a
influenciar de modo significativo o curso de nossas ações é compreender de modo
deficiente – para dizer o mínimo - a complexidade da natureza humana.
Devemos ter em conta,
para que não haja nenhum estorvo a dificultar a compreensão da sequência de
minha exposição, a necessidade de distinguir entre livre-arbítrio e liberdade. A
palavra “arbítrio” recorta um campo semântico do qual fazem parte as noções de
‘resolução’, ‘decisão’, ‘escolha’, ‘determinação’. Assim, o árbitro é aquele
que detém o poder (não absoluto) de decidir sobre uma questão, de determinar o
que deve ser feito. Quando se anexa o adjetivo “livre” ao substantivo
“arbítrio” no composto “livre-arbítrio”, quer-se, com esse procedimento,
comunicar a ideia de que o arbítrio não está limitado a nada, razão por que
Santo Agostinho dirá que a vontade é indeterminada. Não há nada que a obrigue a
fazer isso ou aquilo. O livre-arbítrio confere ao homem total poder para
decidir sobre o curso de seus atos. O livre-arbítrio, portanto, parece existir
em completa independência de um ambiente estruturado com balizadores que
restringem ou refreiam nosso poder de agir. A postulação da liberdade humana,
no entanto, não supõe a existência de um ambiente em que o homem viveria
segundo os caprichos do seu bel-prazer. Ao contrário, a liberdade é um
postulado necessário para explicar ontologicamente um tipo específico de ente
que foi capaz de construir um mundo que lhe é próprio, um mundo cuja existência
sinaliza o desarrancamento desse ente dos imperativos da ordem natural
original. A liberdade não está em contradição com um ambiente constituído de
normas, regras de conduta, expectativas sociais, leis, etc. Ao contrário, as
normas, as regras, as leis são dispositivos que, organizando o ambiente
institucional, que é produto das atividades humanas, devem visar a garantir o
exercício da liberdade dos homens. Escapa à alçada deste trabalho um tratamento
filosófico do tema da liberdade, que recebeu interpretações variadas segundo os
filósofos e as doutrinas que esposaram, a ponto de alguns negarem que os homens
sejam verdadeiramente livres em qualquer sentido (vejam-se, por exemplo,
Schopenhauer e, contemporaneamente, Guy Debord).
A fim de que a defesa do
livre-arbítrio seja bem-sucedida é necessário, em primeiro lugar, demonstrar
que o livre-arbítrio é realmente bem muito valioso, de modo que sua inexistência
significaria um grande prejuízo. Em segundo lugar, é necessário demonstrar que
possuir livre-arbítrio está necessariamente ligado ao mal no mundo, de tal
sorte que não poderiam existir seres humanos com livre-arbítrio sem mal.
Estou ainda me movimentando
pelo domínio epistemológico comum no qual se mantém a crença na existência do
livre-arbítrio. Vale dizer que para muitos pensadores, entre os quais se acham
filósofos como Spinoza, Schopenhauer, Nietzsche, John Searle e neurocientistas
como Benjamin Libet e Stefan Bode, entre outros, a crença no livre-arbítrio é
uma ilusão . De qualquer modo, para fins de argumentação, continuarei mantendo
que os seres humanos são dotados de livre-arbítrio e que ele desempenhe a
função alegada pela tradição teológica.
A crítica à teodiceia do
livre-arbítrio deve começar por insistir em que não é óbvio que haja uma
impossibilidade lógica ou outra na existência de seres humanos dotados de
livre-arbítrio que têm a incapacidade de deliberadamente pecar, ou pelo menos a
incapacidade de cometer os crimes abomináveis que desfilam pela história. Mas é
verdade que Platinga argumenta em favor de que Deus não tinha o poder de criar
um mundo onde haveria pessoas livres sem a possibilidade de mal moral..
Cunhando o conceito de “depravação
transmundial”, Platinga busca demonstrar que, em qualquer mundo possível em que
uma pessoa é livre, essa pessoa, em alguma ocasião, agiria de modo moralmente
errado. Platinga entende por “escolha livre” as ações que não são determinadas
por forças externas ao indivíduo. Os indivíduos verdadeiramente livres também
não estão determinados a agir de certo modo em virtude da pressão de forças
internas, como pulsões, obsessão psicológica, etc.
Contrariamente ao que
pensa Platinga, é possível dizer que podemos imaginar um mundo possível no qual
as pessoas têm a capacidade de agir incorretamente, mas nunca o fazem.
Novamente, quando se trata de inquirir sobre o que Deus poderia ter feito,
sobre as implicações de sua onipotência, a imaginação é uma aliada dos
raciocínios. Bastaria, então, imaginar que Deus poderia criar seres humanos
que, embora tivessem a capacidade para
agir incorretamente em algumas ocasiões, mas nunca o fizessem em
circunstância alguma. A liberdade para escolher seria preservada, mas não
haveria mal moral, porque as ações pecaminosas não seriam escolhidas.
Há, portanto, que ter em
mente a distinção entre a capacidade de
escolher livremente e a capacidade de
cometer o ato. Todos experienciamos a escolha de objetivos que nunca se
realizam, mas da não realização dos objetivos não se segue que nossa escolha
não foi livre. Parece, pois, razoável defender que se pode escolher livremente
sem que sejamos capazes de efetivar o ato que é resultado da escolha. A questão
que se coloca é, então, se por livre-arbítrio devemos entender “o poder fazer
de outro modo” ou “o poder escolher de outro modo”. Se estivermos de acordo com
a ideia de que a escolha livre não precisa recobrir “o poder fazer de outro
modo” e que ela se define apenas como “poder escolher de outro modo”, sendo
essa a condição a ser respeitada para que seja uma escolha livre, então devemos
perguntar por que Deus não tornou irrealizáveis as ações resultantes de escolhas
que produziriam males atrozes.
Uma vez que a imaginação,
nesta seara, não parece encontrar limites rigorosos, por que não podemos nos
permitir imaginar um mundo idêntico ao mundo em que vivemos, exceto pelo fato
de que as pessoas seriam dotadas de um poder especial que lhes permitiria
impedir o dano resultante de um ato mau? Nesse mundo possível, o mal seria
evitado só se a pessoa em questão, por exemplo, na condição de testemunha de
uma iminente decapitação, escolhesse livremente usar esse poder. Os atos maus
continuariam a ser cometidos às escondidas, mas as carnificinas terrificantes
poderiam ser evitadas. Em tal mundo possível, não se exigiria a intervenção
direta de Deus, nem o homem seria privado do livre-arbítrio.
O argumento do
livre-arbítrio não dá conta de males que não decorrem da imoralidade humana,
embora envolvam seres humanos quer como agentes cujas ações não tinham por
finalidade provocar o mal, quer como pacientes de circunstâncias infelizes. Há
males que, embora envolvam seres humanos, são efeitos de erro humano. Assim,
alguém pode calcular mal a rapidez com que faz uma curva, bater com o carro em
outro veículo matando todos os ocupantes dentro dele. Há também acontecimentos
que causam a morte de pessoas inocentes que não seriam o tipo de coisa que
esperaríamos se houvesse um Deus providente. Em 2012, uma jovem é atingida mortalmente,
quando estava na calçada, por uma roda de caminhão que se soltou. Ainda que se
tenha descoberto que a vistoria do veículo estava atrasada, não houve, nesse
caso, uma intenção deliberada do motorista do veículo de causar a morte da
vítima. Trata-se de um acidente, um acaso infeliz dentre os muitos acasos
infelizes de que tomamos conhecimento ao longo da vida (v. http://globoplay.globo.com/v/2116701/).
Outro caso de morte acidental que não se esperaria se realmente existisse um
Deus providente, zeloso, administrando o mundo, é o de um sargento cujo
casamento durou menos de seis horas. O rapaz, que trazia no bolso uma tulipa,
corria brincando com uma das madrinhas quando tropeçou e caiu. Na queda, a
tulipa quebrou e lhe abriu um corte na veia femural (v. http://oglobo.globo.com/rio/noivo-morre-ao-cair-com-copo-no-bolso-em-casamento-na-ilha-6772943).
4.4.1. O livre-arbítrio: uma ilusão cultural
Depois de apresentadas
algumas objeções à crença teológica no livre-arbítrio da vontade, passarei
agora a encaminhar uma refutação do argumento do livre-arbítrio servindo-me,
para tanto, de pressupostos do materialismo filosófico. Procurarei questionar
justamente o que a crença no livre-arbítrio pressupõe: a existência de uma vontade livre. O desenvolvimento dessa crítica,
em todos os seus pormenores, o leitor poderá encontrar em Viver (2008), de Sponville.
Principio pretendendo que
o leitor aceite a conclusão do seguinte raciocínio. Se concordarmos com a
crença de que o homem não escolhe o mal pelo mal, mas que busca sempre um bem
para si (como vimos em Agostinho), ainda que por meios reprováveis (uma pessoa
decide assassinar outra para ficar com a riqueza da vítima), então devemos nos
perguntar se um ato mau que executa pressupõe sempre uma escolha livre por não fazê-lo. O segundo ponto a
considerar é que o “eu” que escolhe é uma história, e, por trás dele, à sua
revelia, atuam “forças” (pulsões), das quais ele não está consciente e as quais
influenciam as suas decisões. As nossas escolhas não se fazem apenas segundo
cálculos racionais; nossas emoções, paixões, crenças, temperamento terão também
uma influência.
Mas é necessário avançar
com o argumento. Para tanto, servindo-me, como disse, de pressupostos
materialistas, assumirei que a alma ou mente não existe sem o cérebro; mas vou
além disso: alma e corpo são uma coisa só. Dessa proposição devemos extrair uma
conclusão importante: a alma ou o “eu” não é uma substância. Por não ser uma
substância, o “eu” é determinado como efeito. A crença no livre-arbítrio está
calcada sobre a crença na substancialidade do “eu”, ou seja, o livre-arbítrio
envolve a existência de um “eu” como senhor de sua casa (o corpo). Destarte,
crer no livre-arbítrio é crer que um mesmo indivíduo, num mesmo momento, possa
querer duas ações contraditórias (cometer um assalto ou não cometer um
assalto), entre as quais ele poderia escolher livremente. Assim, haveria um
“eu” que existe independentemente de suas escolhas, um “eu” que as precede como
sujeito ou causa delas. A crença no livre-arbítrio supõe também que o “eu”
permanece idêntico a si mesmo depois de ter escolhido. O livre-arbítrio
decorre, portanto, de uma visão substancialista do “eu”, que culmina com a
noção de alma. Mas, se, por outro lado, o “eu” não existe em si mesmo, se a
alma não existe como substância, então o “eu” deve reduzir-se à sucessão de
seus atos, seus desejos ou volições.
Os homens creem-se livres
porque ignoram as causas que o fazem querer. Eles chamam livre esse querer – a
vontade -, que é um efeito, cujas causas ignoram. Os homens, na verdade,
ignoram quase tudo: em primeiro lugar, ignoram quem eles são; ignoram sua
história, ignoram o que está a lhe acontecer no interior de seu corpo/cérebro.
Cada homem ignora o peso de seu passado. Conforme assinala Sponville (2008, p.
88), “o eu é sempre finito e atual, mas infinita a cadeia de causas”.
É preciso, no entanto,
afastar a conclusão de que o passado determine completamente quem somos.
Trata-se de assumir que a vontade age segundo uma ordem de causas que constitui
o presente, que é o próprio real. Por conseguinte, uma vontade absolutamente livre
não existe. Há tão-só uma vontade necessária, porque real, que é o efeito
finito e determinado, a cada vez, de uma cadeia infinita de causas. Chamamos
vontade o resultado último, num dado momento, dessas causas todas que
ignoramos. Mas, por ser resultado, essa vontade não pode ser livre, ou seja,
diferente do que é. Há uma identidade entre quem eu sou e os meus atos, meus
desejos, de modo que “o eu só é sujeito de seus atos na medida em que é
sujeitado a suas causas” (Sponville, 2008, p. 89). O eu é tão instável,
flutuante quanto instáveis, flutuantes são esses atos, esses desejos, sendo tão
determinado quanto estes. O eu não é nada mais do que o conjunto de seus atos.
O eu é sua vida, que não poderia se escolher nem os escolher.
A crença no livre-arbítrio
supõe a anterioridade do sujeito em relação a seus atos e sua independência, ao
menos relativa, em face deles. Mas, se a realidade do homem se reduz ao que ele
faz, ele é uma causa entre as causas (muitas vezes, determinante, porque
vontade), mas sempre determinada, porque causa entre causas, efeito entre
efeitos. O eu é o que ele faz, e o que ele faz o constitui, por isso também o
eu não é uma substância, mas sua história.
Ocorre que o fazer que o faz o eu não poderia escolher, uma vez que ele é
resultado desse fazer. Nem pode o eu evitar esse fazer, pois que esse fazer é a
sua vida mesma. Assim, segundo Sponville (p. 90), “o eu nos domina por sua
ausência mesma e nos encerra em seu nada”.
Se, por um lado, nos
parece que “eu faço o que eu quero” é verdadeiro; por outro lado, é igualmente
verdadeiro que o que eu quero resulta do que eu sou; mas o que eu sou resultado
que eu fui (história) ou fiz (minhas ações passadas). Segue-se daí que o “eu é
sempre prisioneiro de si (ib.id.). O “eu” é seu corpo, sua história, suas
fantasias, seus traumas, do que se depreende que “ninguém se escolhe, cada um
se suporta” (ib.id.). Sponville sumaria o caráter ilusório da crença no
livre-arbítrio no que se segue:
“A crença no livre-arbítrio repousa pois nessa
sensação de uma defasagem, no âmago da ação, entre sua realidade e sua
potencialidade, entre o que eu faço e o que poderia fazer. Mas essa defasagem,
se pode ser vivida ou sentida durante a ação, não existe nela (uma ação é o que
é, não o que teria podido ser), mas diante dela: é a defasagem entre a ação
efetiva, quando esta ocorre, e a imaginação dessa ação antes dela ter ocorrido,
quer esse “antes” designe uma anterioridade real (se imaginamos o que vamos
fazer), quer uma anterioridade reconstruída (se repensamos a posteriori no que teríamos podido fazer” (Sponville, 2008, p.
92-93).
A esta altura, gostaria
de pontuar que a crença no livre-arbítrio tem seu origem num domínio discursivo
específico: o teológico. Essa crença nasce para dar conta de questões que preocupavam,
particularmente, Santo Agostinho, as quais são subsumidas no problema do mal.
Santo Agostinho não tinha à sua disposição os conhecimentos, as pesquisas de
que dispomos hoje. Embora grande conhecedor da psique humana, não chegou a
conceber a possibilidade de haver algo nos homens que age à revelia deles, algo
a partir do qual eles agem sem saber que o fazem.[11]
Em outras palavras, Agostinho não chegou a elaborar a hipótese de um
inconsciente que determinasse a vida consciente do homem. A hipótese do inconsciente,
embora prefigurada em Nietzsche, foi a principal contribuição de Freud à
psicologia. O inconsciente é a hipótese estruturadora de toda a teoria
psicanalítica. E sua elaboração permitiu a Freud afirmar que “o eu não é o
senhor nem mesmo em sua própria casa”. Todas as nossas ações, escolhas,
tendências, desejos têm, em última instância, causas inconscientes. Nenhuma de
nossas ações, escolhas, tendências e desejos escapam ao domínio do
inconsciente.
O livre-arbítrio – cabe
acrescentar – se representa relativamente a um futuro condicional (“eu poderia
ter feito x”). O indivíduo, na imaginação, põe a si um futuro já disponível,
mas aberto. Na representação, ele crê ter a opção entre vários futuros e crê
que foi ele mesmo quem, enquanto causa suficiente, fez um destes futuros se
atualizar. Todavia, isso suporia que esses futuros, antes mesmo de virem à
efetividade do presente, já estivessem, paradoxalmente, presentes (no tempo)
como futuros.
Uma ação só pode ser
considerada livre antes de ela ocorrer. O livre-arbítrio não diz respeito à
ação enquanto ocorre, mas sim à anterioridade (ao momento da escolha) da ação,
ou seja, ao espaço de tempo em que ela ainda não se deu. Portanto, só se crê no
livre-arbítrio antes da ação. Liberdade não é o mesmo que livre-arbítrio: a
liberdade é liberdade para fazer o que se faz; o livre-arbítrio, por sua vez, é
uma faculdade ou liberdade de querer.
4.4.2. A vontade não é livre de querer ou não querer
A vontade só pode ser
livre no respeitante às ações ainda não consumadas. Vontade é o próprio querer,
mas o querer é o ato da vontade. Cabe sublinhar essa identidade da vontade com
o ato: a vontade e o ato são a mesma
coisa.
Uma vez que se assuma
essa identidade entre a vontade e o ato, pode-se compreender melhor o que está
em jogo no conceito de livre-arbítrio. O livre-arbítrio está calcado sobre a
suposição de que para todo ato que se produza num instante t2 é
sempre possível imaginar que o indivíduo teria podido, em t1, decidir não o consumar. Acontece que aqui a imaginação
intervém a posteriori, ou seja, é
somente depois que o ato se realiza num instante t2 que
acreditamos ter sido possível ao sujeito não consumá-lo. Cremos que o sujeito
que age, em t2, era livre
em t1 de consumar ou não
o ato, visto que t2 ainda
não existia. Destarte, tomamos a vontade como causa livre de um ato que se deu
por força dessa causa. Ocorre, contudo, que, se esse for o caso, ignoramos que
a vontade é um efeito de uma cadeia de causas, necessariamente, precedentes.
Não explicamos o que causa a vontade.
O filósofo Daniel Dennett
deu uma contribuição importante para a discussão sobre a possibilidade ou
impossibilidade do livre-arbítrio, que vale aqui mencionar. Ele argumentou que,
se pensarmos bem, jamais desejaríamos que uma alma tivesse a liberdade para
fazer tudo que quiser. Se o comportamento fosse escolhido por uma vontade
absolutamente livre, então as pessoas não poderiam ser, de fato, consideradas
responsáveis por suas ações. Pode parecer estranha essa forma de argumentar,
tão acostumados que estamos a pensar que a responsabilidade só pode ser
imputada a alguém que é livre para agir. Mas o que Dennett quer dizer é que, na
vida real, nossas decisões sobre quais ações devemos tomar se dão em
consideração à ameaça de punição, de tal sorte que a responsabilidade deve ser
imputada ao sujeito porque ele sabe que, ao agir, deve fazê-lo respeitando as
normas vigentes. Segundo Dennett, um indivíduo que tivesse vontade livre não se
envergonharia com a perspectiva de opróbrio, tampouco recearia sentir uma
pontada de culpa que, talvez, inibisse a tentação de cometer um ato perverso no
futuro. Uma vontade totalmente livre é simplesmente incompatível com a
esperança de que os códigos morais e legais reduzam atos malignos, já que a
vontade livre envolve sempre a possibilidade de um agente livre poder agir num
domínio diferente do das relações de causa e efeito. A moralidade e a lei
deixariam de ter utilidade. Até poderíamos punir o transgressor, mas a punição
se daria a título de vingança, porque ela não teria nenhum efeito previsível
sobre o comportamento futuro do transgressor ou de pessoas cientes da punição.
Parece que Dennett quer nos chamar a atenção para o fato de que a vontade é
passível de certo controle, ou orientação. Não podemos fazer tudo que queremos
porque o mundo em que vivemos é de tal modo organizado que a vontade só pode
querer aquilo que está autorizada a querer. A vontade não é totalmente livre,
porque o sujeito, ao decidir sobre uma ação é sempre afetado pela perspectiva
de apreço ou vergonha, recompensa ou punição. É o superego que fará seu
trabalho aqui: não sou livre para querer porque há uma voz do Outro em mim que
me proíbe de querer qualquer coisa. A vontade é, assim, sempre compelida (ao
menos probabilisticamente) a respeitar as possíveis consequências das ações.
Vejamos, agora, outro
problema que torna falsa a crença no livre-arbítrio. Refiro-me à existência dos
psicopatas. O senso-comum e a psicanálise nos permitem dizer que a psicopatia
ou transtorno de personalidade antissocial caracteriza um tipo humano. A crença
de que os psicopatas possam ser “tipos humanos” está implícita em nossas
reações habituais sempre que, tomados por perplexidade, nos perguntamos como
uma pessoa pôde fazer o que fez. Em geral, tendemos a ver os psicopatas como
tipos humanos perversos, cruéis, diferentes da maioria das pessoas. Cremos
haver alguma coisa neles que os leva a fazer o que fazem. E a psicanálise e as
neurociências autorizam-nos a dizer que isso é verdade. Um assassino pode não
ser um lunático, mas é possível, hoje, detectar alterações na estrutura
morfológica de seu cérebro que não se verificam na média da população. Entre
essas alterações, pode-se referir uma amígdala diminuída, um hipermetabolismo
em seus lobos frontais ou um gene deficiente para a monoamina oxidase A, que
atua em seu descontrole (Pinker, 2004, p. 244). Se submetido a um teste
psicológico, é possível que um psicopata demonstre uma antevisão cronicamente
limitada, o que o faz ignorante das consequências, ou uma teoria da mente que o
torna incapaz de avaliar o sofrimento dos outros.
“Afinal, se não existe fantasma na máquina, alguma coisa no hardware do criminoso tem de
torná-lo diferente da maioria das pessoas, as que não feririam ou matariam nas
mesmas circunstâncias” (ib.id.).
O transtorno de
personalidade antissocial ou psicopatia é um distúrbio de comportamento no qual
intervém duas espécies de causas: uma de ordem neurológica e outra
socioafetiva. Segundo o psiquiatra Antony Storr, autor do livro A agressividade humana (2012), “um
quarto e metade dos psicopatas agressivos demonstra anomalias no ritmo elétrico
do cérebro, que podem ser detectadas e gravadas por meio de
eletroencefalograma” (p. 168). Uma menor quantidade de psicopatas exibem
anomalia genética. O autor, que escreveu o livro em 1968, afirma que “se fazem
necessárias muitas pesquisas adicionais até que se estabeleçam os tipos físicos
e psicológicos das personalidades psicopatas” (p. 169). Hoje já dispomos de uma
vasta bibliografia dedicada ao estudo da psicopatia. Independentemente dos
tipos de fatores envolvidos, os quais podem ser reunidos em dois grupos –
relações parentais, marcadas por carência de afetividade e anomalias
neurológicas -, é ponto pacífico que os psicopatas são incapazes de empatia, de
amor, compaixão, culpa, arrependimento ou remorso. Eles têm uma personalidade
perversa, que pode acompanhar-se ou não de um sadismo sexual, e matam por puro
prazer, porque – fato importante para esta discussão – não conseguem comandar e protelar seus impulsos destrutivos. (Veloso,
2010)[12]. Storr
confirma essa incapacidade que tem o psicopata de controlar seus impulsos
destrutivos. Segundo o autor, “não há dúvidas (...) de que há uma parcela da
população cujo controle imediato está abaixo da média e que algumas dessas pessoas sofrem de
imperfeições provindas da natureza ou da criação”. (p. 169, grifo meu).
Como se pode ver, a existência de psicopatas não só lança sérias dificuldades
sobre a tese do livre-arbítrio, como também se soma ao conjunto de saberes
sobre o mundo que tornam absurda a crença na existência de um Deus bom e
onipotente. E permita-me o leitor a elaboração de um raciocínio que não exigirá
muito esforço em termos de processamento cognitivo. Em primeiro lugar, é
inegável que existem os assassinos, que muitos deles sofrem de psicopatia e
que, por isso, cometem atos com tamanha crueldade e indiferença ao sofrimento
do outro, e que só podemos explicar seu comportamento se pudermos mostrar que
há algo neles que os pré-dispõem a fazer o que fazem. O psicopata, portanto,
não escolhe matar, simplesmente porque ele sofre de um déficit em termos de
controle de seus impulsos destrutivos. Uma das características mais
assustadoras do comportamento de um psicopata reside no fato de que ele não
sente ou sente muito pouco remorso por sua conduta. Nas mesmas circunstâncias,
a maioria dos seres humanos experimentaria um extremo sentimento de culpa.
Se, portanto, é possível
explicar a anormalidade do comportamento de um psicopata pela conjugação de
causas neurológicas e socioafetivas, se, em parte, o psicopata sofre de
defeitos oriundos da natureza, é forçoso concluir que a crença num Deus bom e
Criador, que aliás é também onisciente, para ser minimamente razoável, depende
de que consigamos explicar por que Deus fez existirem pessoas pré-dispostas à
psicopatia. Já vimos nos autores cristãos visitados neste estudo que Deus é o
Criador de todas as coisas e que tudo que ele criou é bom. Se isso é verdade,
devemos concluir que a psicopatia é boa e que os psicopatas são bons, o que é
absurdo. Ora, a razão obriga-nos a admitir que, se há psicopatas, Deus os fez
assim e sabendo de antemão das atrocidades que viriam a cometer. Se podemos
demonstrar que a psicopatia tem, em parte, uma base neurológica, orgânica ou
genética, então devemos responsabilizar a Deus por sua nefasta engenharia. É
possível que, no futuro, eu venha a reunir mais evidências que corroborem esta
conclusão; mas ela já vale, desde já: não podemos escapar da conclusão de que,
se Deus existe, ele é responsável ou culpado da existência de pessoas que
desenvolvem a psicopatia e que matam inocentes. O crente tem de lidar com a
questão “por que, afinal, Deus permitiu que existissem no mundo pessoas com
comportamento psicopata?”, se quiser preservar a razoabilidade da crença em
Deus.
Deve-se concluir, por
tudo que se expôs, que a crença no livre-arbítrio não passa de uma ilusão
cultural, que pretendendo garantir a justiça de Deus, pretendendo justificar a
própria esperança na existência de Deus, protege as pessoas contra o absurdo e
contra o tormento causado pela visão da crueldade do real. Mas a crueldade do
real se nos impõe de modo que não nos dá o direito à escapatória. A crueldade
do real nos mostra que há seres humanos cuja perversidade pode extrapolar os
limites do que a própria natureza parece admitir como tolerável. O homem, com
ódio, tira prazer do ato de prolongar a agonia de suas vítimas indefesas e
demonstra engenhosidade na criação de métodos de tortura que causem o mais
excruciante sofrimento com uma duração que excede o suportável (e a história
está repleta de exemplos disso; vejam-se os instrumentos de tortura inventados
na Idade Média). Esse comportamento sádico e cruel próprio do homem não
encontra explicação convincente na suposição da existência de um livre-arbítrio
da vontade.
Encerro esta subseção com
uma passagem do filósofo judeu alemão Hans Jonas, colhida de seu livro O conceito de Deus após Auschwitz
(2016), no qual o autor nos faz ver que o evento de Auschwitz não pode ser
explicado por nenhuma das teodiceias elaboradas para justificar a Deus em face
da presença do mal no mundo. Segundo o filósofo alemão, Auschwitz nos obriga a
repensar o conceito tradicional de Deus, e Jonas delegou a si essa tarefa.
Basta evocar as palavras com as quais o autor denuncia a inadequação das
teodiceias tradicionais para lidar com o aterrador acontecimento de Auschwitz:
“Nem fidelidade ou infidelidade, crença ou descrença,
nem culpa ou punição, nem julgamento, testemunho e esperança messiânica, não,
nem mesmo a força ou fraqueza, heroísmo ou covardia, aprovação ou submissão
tiveram ali um lugar. De tudo isso, Auschwitz, que também devorou as crianças e
bebês, nada sabia, por nada disso (com raras exceções) o trabalho, como o de
máquinas de uma fábrica, teve lugar. Não pelo amor de sua fá as vítimas
morreram (como morreram, afinal, as “Testemunhas de Jeová”), nem por causa de
sua fé ou por qualquer autodeclarado desvio de seu ser como pessoas foram elas
assassinadas. A desumanização pela absoluta degradação e privação precedeu suas
mortes, nenhum vislumbre da humanidade foi deixado àqueles destinados à solução
final, dificilmente um traço de dignidade foi encontrado nos espectros
esqueléticos sobreviventes dos campos libertados. E, entretanto, paradoxo dos
paradoxos: foi o antigo povo da “aliança”, na qual já não acreditava nenhum dos
envolvidos, nem assassinos nem vítimas, mas, no entanto, apenas esse povo e
nenhum outro, sob ficção de raça, tinha sido escolhido para essa indiscriminada
aniquilação, a mais monstruosa inversão da eleição em maldição, que desafiou
toda possível atribuição de sentido. De fato, então, apesar de tudo, existe uma
conexão de um tipo totalmente perverso entre os seguidores de Deus e profetas
de outrora, cujos descendentes foram assim reunidos fora da diáspora e reunidos
na unidade da morte conjunta. E Deus
deixou isso acontecer. [Mas] Que Deus poderia deixar isso acontecer? (p.
19-20, grifo meu).
4.5. O mal natural
O chamado mal natural compreende o sofrimento que
atinge os animais não-humanos e a nós mesmos quando somos vítimas de desastres
naturais, de doenças e da morte. É fato que a dor natural, a decadência e a
morte são inevitáveis nas criaturas orgânicas. Mas, no momento em que se crê
num Deus todo-poderoso e sumamente bom que estaria na origem de tudo que
existe, a pergunta que reclama uma resposta é: haveria alguma transgressão da ordem natural, se Deus, por exemplo,
fizesse regiões da Terra que são especialmente suscetíveis de desastres
naturais serem tão inóspitas aos seres humanos e aos animais que elas se
tornariam praticamente inabitadas? É realmente necessário que haja tantos
vírus prontos para nos causar prejuízos e mesmo a morte? Será mesmo que o Deus
Todo-Poderoso dos cristãos não poderia ter criado um mundo menos hostil? Estima-se que, no Brasil, 132 pessoas morrem
por ano atingidas por raios.[13]
Ora, isso não o tipo de coisa que esperaríamos num mundo criado e governado por
um Deus sumamente bom e todo-poderoso. Mortes causadas por descargas elétricas
provindas do céu evidenciam a indiferença da natureza e deveriam ser
suficientes para tornar falsas as alegações de que existe um Deus que está no
controle de todas as ocorrências do mundo. Quando se trata de refutar a crença
no Deus teísta pela observação do mal natural, o ateu tem à disposição um
número incalculável de evidências que apontam para a conclusão da inexistência
desse Deus como o único caminho razoável. Por isso, chega a ser um desperdício
de tempo intentar a exaustão na coleta de casos empíricos.
No entanto, o tempo que seria dispensado à apresentação das
evidências do mal natural que concorreriam para elaboração de uma argumentação
sólida em favor da inexistência do Deus teísta pode ser empregado na discussão
das teodiceias que foram produzidas com o propósito de explicar o mal natural.
Entre estas, citem-se as seguintes:
1) o mal é necessário como contraparte do bem;
2) o mal é necessário como meio para o bem;
2.1) O mal é necessário para um bem de curto ou de longo prazo;
2.2) o mal é necessário como castigo do pecado;
2.3) O mal é necessário como aviso da natureza para a humanidade;
3) O mal é subproduto necessário das leis causais.
Se conseguirmos
demonstrar que poderia haver menos abundância de sofrimento, então algum
sofrimento é desnecessário ou gratuito, de sorte que não pode ser explicado
pela hipótese da existência de Deus. A crença no Deus teísta não se sustenta,
se não for possível oferecer uma explicação razoável para o mal natural.
Quando o teísta alega que
o mal é necessário para alcançar um bem maior, seu raciocínio opera com base na
crença na instrumentalidade do mal para o atingimento de um fim desejável, ou
seja, o bem. Ora, ateus e teístas dificilmente estariam em desacordo quanto ao
fato de que o mal não é desejável, mas eles discordam quanto a suposta
utilidade do mal. É importante enfatizar que toda teodiceia pretende dar
sentido a um fenômeno cuja existência é reconhecida por todos os seres humanos
– o sofrimento. O sofrimento não é apenas objeto de saber, é algo que
experienciamos em nosso corpo, é um mal que sentimos, que nos afeta enquanto
viventes.
Os que defendem ser o mal
necessário para alcançar um bem de curto ou longo prazo recorrem, geralmente, a
analogias que, se bem examinadas, não funcionam. Um exemplo tipicamente
empregado é o do cirurgião ou do dentista que extrai um dente. A despeito do
fato de que, nesses casos, evita-se a dor pelo uso de anestesia - o que atesta
ser o sofrimento ou a dor por si mesmos sem função para o alcance do bem-estar
-, admitamos que o pós-operatório seja um estado desagradável, mas, ainda
assim, um bem maior do que o estado anterior em que nos encontrávamos – o de
enfermidade.
Há graves problemas nessa
analogia. O primeiro deles é que os tipos de males que encontramos no mundo e
aos quais se refere o argumento do mal são de natureza muito diferente, de
sorte que não se prestam a tais analogias. Os males que encontramos no mundo
não acarretam nenhum bem de curto ou longo prazo. Que bem se segue de um
desastre natural como um terremoto que destrói uma cidade inteira, matando
grande parte de seus habitantes, incluindo crianças? Em segundo lugar, a explicação que toma o mal como meio para um
bem maior não dá conta do sofrimento dos animais, aos qual Darwin se refere ao
descrever a luta pela sobrevivência no mundo natural.
Uma vez que se assuma que
o Deus cuja existência se pretende seja compatível com o mal é um Deus
onipotente, é-nos lícito dizer que Deus poderia ter criado um mundo no qual os
males não fossem tão excruciantes, disso resultando a necessidade de uma menor
quantidade de mal para alcançar bens futuros. Todavia, a experiência empírica
mostra-nos que a intensidade dos males é desproporcional ao resultado final.
Uma criança que sofre de Tay-Saches, uma doença congênita que causa grave
deterioração das habilidades mentais e físicas, cegueira, surdez, incapacidade
de engolir, atrofiamento dos músculos até a paralisia, e que vem a morrer por
causa desse mal, deveria nos fazer repudiar qualquer justificação do mal como
um meio para um bem maior, mais ainda se inspirada no conforto desprezível de
imaginar que a criança estará junto de Deus. Ora, uma vez que se crê que Deus é
capaz de transgredir as leis naturais para produzir “milagres”, tais
sofrimentos parecem ainda mais gratuitos.
Espero que eu tenha conseguido
demonstrar, sem deixar espaço para algum tipo de objeção que já não seja
prevista, que um Deus todo-poderoso e sumamente bom poderia dar origem ao bem
sem o mal, ou pelo menos dar origem a menos mal do que o terrível sofrimento de
que o mundo está impregnado.
Antes de levar a cabo
esta seção, gostaria de apresentar três objeções a um tipo de teodiceia que
explica o mal, sobretudo o mal natural, pela alegação de que o mal tem uma
funcionalidade pedagógica. Os teístas, assim, não raro, no esforço inveterado
de inocentar a Deus pelos males do mundo, costumam recorrer ao argumento
segundo o qual o mal ou o sofrimento é um expediente necessário para
desenvolver espiritual e moralmente os seres humanos. Esse tipo de teodiceia é
uma variante das teodiceias anteriormente citadas, já que nela também se
pressupõe que o mal serve para alcançar algum bem. No entanto, o bem a que
visaria a permissão divina do mal é o aperfeiçoamento espiritual e moral dos
homens. Essa teodiceia é chamada de teodiceia
pedagógica.
1ª objeção. Nem sempre o sofrimento acarreta melhora moral ou
espiritual. Ao contrário – e nossa psicologia intuitiva o confirma -, mais
frequentemente produz personalidades traumatizadas, com sérios problemas de
comportamento. Frequentemente, o mal infligido a uma pessoa arrasa sua saúde
física e seu bem-estar psicológico. Se os males que nos afetam fossem capazes
de produzir um bem, os consultórios de psicanálise deveriam estar todos vazios.
Muitas pessoas que passam por acontecimentos traumáticos (assaltos, acidentes
de carro, terremotos, inundações, etc.) desenvolvem uma perturbação de
pós-stress traumático.
2ª objeção. A extensão e intensidade do sofrimento que acomete os seres
humanos são desproporcionais ao objetivo que consistiria em formar a alma e
contrárias à bondade de Deus. Com certeza, para que os seres humanos sejam
capazes de compaixão e solidariedade, não precisam ser submetidos a pesares
excruciantes.
3ª objeção. O sofrimento que atinge os animais não-humanos é
surpreendentemente horrível. Parece sem sentido e, portanto, cruel da parte de
um Criador permiti-lo.
Quanto mais Charles
Darwin descobria sobre o mundo orgânico mais convencido ficava de que o
sofrimento e a morte eram as duas grandes constantes nele. Animais atacam
animais, grande parte da prole perece antes de poder se reproduzir, e fome,
doença e predação matam espécies inteiras. Embora a imagem seja de Tennyson e
não de Darwin, ele não teve dificuldade para avaliar a natureza como tendo
“dentes e garras agressivos”.
A vespa icnêumone, bela e
delicada criatura, veio a simbolizar, para Darwin, a crueldade inerente da
natureza. A fêmea da espécie põe ovos dentro de lagartas vivas que ela paralisa
com uma ferroada. As larvas chocam dentro da lagarta viva e a devoram de dentro
para fora. Depois de descrever esse modo horrivelmente carnívoro de parir, em
uma carta ao biólogo de Havard Asa Gray, Darwin concluiu: “Não vejo, tão
claramente quanto outros veem, provas do desígnio e da caridade em nenhuma
parte à nossa volta. Parece-me haver miséria demais no mundo”.
Richard Holloway, em seu Entre o monstro e o santo (2013), faz
uma observação sobre a crueldade da natureza que nenhuma das partes do debate
pode ignorar:
“A natureza é
impiedosa (...). Pode ser esplêndida em sua ferocidade implacável, mas
também é assombrosa em sua indiferença. Metade dos filhotes de urso polar morre
no primeiro ano de vida. O Kalahari mata elefantes jovens que tentam
atravessá-lo à procura de água. E por todo reino animal os predadores emboscam
a vítima antes de se lançarem ao ataque paralisante. Em meio à vida, estamos na morte. É a crueldade da ordem natural que fortalece o ateu contra qualquer
ideia da existência de um criador benevolente. Isso foi logo o que Darwin
observou, embora ele mesmo tenha sido benevolente demais ao presumir o papel
que descreveu: “Que livro um capelão dos infernos escreveria sobre as obras
desajeitadas, desperdiçadas, equivocadas, baixas e terrivelmente cruéis da
natureza”. O fato é que a natureza é uma
vasta cadeia alimentar, e matar é tão intrínseco à sua finalidade quanto o
sexo. A luta é tão fundamental quanto a trepada. A vida que engatinhava há
bilhões de anos no mar de substâncias químicas luta não só para se reproduzir,
mas para se manter principalmente caçando outras criaturas” (p. 63, grifos
meus).
Os excertos destacados em
negrito dão testemunho das teses principais defendidas neste texto: 1) a
natureza é cruel; 2) a dinâmica da vida se manifesta como geração e destruição,
luta e morte; 3) a vida é, essencialmente, luta pela sobrevivência. Queiramos
admitir ser a natureza impiedosa, como pensa o autor, queiramos entendê-la, ao
invés, como simplesmente indiferente ao sofrimento de suas criaturas, o fato é
que qualquer das maneiras como a compreendamos patenteia que a crença no Deus
teísta é inconsistente com as ocorrências do mundo. Há, por assim dizer, uma
antinomia entre a crença nesse Deus e a visão do modo como o mundo
dinamicamente se constitui. Ou ainda: essa antinomia da crença no Deus teísta
com o mundo revela que a natureza do mundo consiste num conflito incessante
entre forças que atuam pela necessidade
de dominação, de crescimento à custa do sofrimento e destruição das criaturas
vivas. Evitando mascarar a crueldade dessa dinâmica do mundo com adornos
metafísicos, não escapamos de dar razão a Nietzsche: a trama do real é
resultado de um jogo agonístico de vontades de poder.
4.6. As teodiceias bíblicas: crítica e síntese
Ehrman é uma autoridade
reconhecida nos estudos sobre as origens do cristianismo e sobre a vida de
Jesus. Em seu livro O problema com Deus
(2008), o autor investiga as respostas bíblicas à questão que, como vim
mostrando, abala desde a raiz a crença na existência do Deus teísta, qual seja,
por que sofremos? Na qualidade de
historiador da Bíblia, Ehrman contesta, nesse livro, as explicações dadas pelos
autores bíblicos acerca dos motivos de um Deus onipotente permitir que
soframos.
Deste excelente livro, me
aproveitarão duas contribuições importantes. A primeira delas se expressa na
forma de um testemunho honesto do autor. Leiamo-lo:
“Se há no mundo um Deus todo-poderoso e amoroso, por
que há tanta dor excruciante e tanto sofrimento indizível? O problema do
sofrimento me atormentou durante muito tempo. Foi o que me levou a pensar na
religião quando jovem, e foi o que me fez questionar minha fé quando mais
velho. Por fim, foi a razão pela qual eu perdi minha fé (...)”. (p. 11).
Essa confissão de Ehrman
a respeito do que o levou a abandonar sua fé suscita-nos a questão: por que a maioria das pessoas não chega a
abandonar sua fé quando confrontada com a mesma questão que inquietou Ehrman
durante muito tempo? Essa é uma questão que persiste em me acompanhar,
desde que a fé deixou de fazer qualquer sentido para mim, desde que passei a
rejeitar com veemência a crença no Deus judaico-cristão. Essa é a questão que
me impele ao estudo da religião. A veemência com que rejeitei a crença no Deus
teísta, com o tempo, foi-se abrandando em face da perplexidade com que constato
que a crença em Deus permanece ainda forte no mundo, mesmo que sejam acessíveis
as evidências – incontáveis! – que a tornam falsa, insustentável, em uma
palavra, ilusória. No que tange à questão que me faço e que Ehrman nos permite
fazer, ela pode ser respondida – e é uma resposta admitida pelos estudiosos –
através da alegação de que as pessoas precisam da crença em Deus para evitar
sucumbir ao desespero total, que sobreviria à perda dela. A crença em Deus,
malgrado não resistir ao que, de fato, sabemos sobre o mundo, é, para muitas
pessoas, confortante; e isso, para além de quaisquer argumentos que se
pretendam persuasivos, lhes basta. Se aquela resposta parece satisfazer a
questão sobre a razão por que as pessoas não abandonam a crença em Deus, ela
não dá conta de explicar como o conforto pode justificar interpretações de
acontecimentos que podem até ser mesmo ofensivas.
Vejamos um exemplo de
interpretações ofensivas. Crer em Deus envolve a crença na possibilidade de
milagres. Uma pessoa pode acreditar sinceramente que foi por um milagre que seu
filho, uma criança, foi curado de um linfoma. Sucede que, como sabemos pela
experiência, com frequência, enquanto uma criança se cura de um linfoma, outra
morre. Assim, há uma contradição evidente entre dois fatos: uma pessoa se
alegra com a cura de seu filho e crê que isso se deu por um milagre de Deus,
enquanto uma outra pessoa pranteia a morte de seu filho por causa de um câncer.
Escusa elaborar mais exemplos análogos, pois sabemos que há pessoas que, por
uma série de circunstâncias felizes (explicáveis em termos biológicos), superam
um câncer grave enquanto outras, por uma série de circunstâncias infelizes, não
sobrevivem. Se a pessoa que crê no milagre como explicação para a cura de seu
filho estiver certa, como explicar que Deus, autor do milagre, não tenha
conferido a mesma graça ao filho da outra pessoa, que veio a morrer? Há algo
problemático na distribuição da justiça divina. Como a pessoa que crê no
milagre pode estar justificada para crer que seu filho foi curado por Deus, se
o filho da outra pessoa, também uma criança, não mereceu a mesma graça? Como
crianças, os filhos das duas pessoas têm igual merecimento, são ambos inocentes
de qualquer imputação de “falta”. Se a pessoa cujo filho foi curado agradece a
Deus e manifesta esse agradecimento publicamente, ela não faz senão externar
sua total indiferença para com o sofrimento alheio. Há algo de imoral na crença
dessa pessoa, que nos justifica a censura de um gesto de agradecimento público
a Deus. As pessoas podem crer no que quiserem, mesmo que suas crenças sejam
absurdas; mas não podem ou não poderiam publicar essas crenças quando elas
sinalizam egoísmo e indiferença para com o sofrimento alheio.
Com esse exemplo, quero
mostrar que a suposta graça de Deus não é distribuída com justiça. Muitas crianças
morrem de AIDS na África; por isso, uma criança que tenha conseguido sobreviver
com o vírus HIV durante muito tempo sem manifestar a doença até que pudesse se
tratar e gozar de uma saúde tão boa quanto a de uma pessoa soronegativo não
pode ser considerada como agraciada por Deus. Sua sobrevida pode ser explicada
por outros fatores, como, por exemplo, o fato de algumas doenças não tomarem o
curso que naturalmente se esperam delas. Outros fatores estão associados ao
organismo da pessoa, seus hábitos de vida, etc. Sabe-se que algumas pessoas são
mais resistentes ao vírus HIV que outras; algumas sequer desenvolvem AIDS. Esse
fato é objeto de pesquisa científica, e os cientistas vem se debruçando
atualmente sobre a investigação das causas que fazem com que algumas pessoas
não desenvolvam AIDS. O que se sabe até agora é que o CD-8, uma célula de
defesa do organismo, pode refrear o vírus, liberando um grande número de
moléculas inibidoras. Mas há casos de pessoas que apresentam uma mutação no
gene HLA B54 que influenciaria o aumento das células assassinas que combatem o
HIV. [14].
Outros estudos apontam que a ausência de um receptor chamado CCR-5 nas células
de algumas pessoas explicam a razão por que elas podem ficar mais de 20 anos
sem desenvolver AIDS. Tudo indica, portanto, que a resposta está no interior do
organismo delas e não num suposto “milagre” divino.
Uma criança que morra por
causa do vírus da zika, entre cem ou mais que se curam, deve ser suficiente
para demonstrar que a justiça e a bondade de Deus, ignorando-se as alegações que
insistem em que justiça e bondade são atributos inconsistentes entre si,
tornando o conceito de Deus autocontraditório, não podem ser críveis. Pode-se
ainda argumentar que uma única criança que morre de zika, num grupo de cem, do
qual 99 sobrevivem, deveria ser suficiente para nos convencer de que Deus não
existe.
Se as pessoas que creem
em Deus se ocupassem, por alguns momentos que sejam, dos acontecimentos do
mundo, talvez conseguissem concluir que a sobrevivência de cem crianças a uma
epidemia mortal, por exemplo, não pode ser sinal de providência divina, quando
uma única criança é vítima fatal dessa mesma epidemia. Na década de 1980, os
hemofílicos estavam entre os grupos mais vitimados pela AIDS. É possível
estimar que o número de crianças, depois de terem sido submetidas à transfusão de sangue, e que
contraíram HIV, fosse também bastante alto. Mesmo que algumas tenham
sobrevivido, uma única que não conseguisse sobreviver seria suficiente para
desacreditar da Providência divina. O caso do adolescente Ryan White, que ficou
conhecido por ter sido expulso do colégio por ter contraído HIV, durante uma
transfusão de sangue, é bastante emblemático para a sustentação da inexistência
de Deus. O rapaz era hemofílico e contraíra o vírus HIV em 1986. Ele veio a
falecer em 1991. Sua sobrevida ao longo de 5 anos surpreendeu os médicos, que
lhe fizeram, à época, um prognóstico de sobrevida que não ultrapassaria seis
meses. Ryan morreu com 18 anos, pouco antes de completar a high school (educação secundária). Luciane Aparecida Conceição, a
primeira criança a receber o tratamento contra AIDS, na década de 1990, morreu em
2012, em decorrência de complicações causadas pela AIDS.[15]
Ela decidira parar com o tratamento, durante cinco anos. A moça, que viria a
completar 25 anos poucos dias depois da sua morte, deixou uma filha de 4 anos,
que nascera sem o vírus (graças aos antirretrrovirais usados atualmente
no combate à AIDS). Esse caso deve também servir como evidência que aponta para
a afirmação de que não há nenhum Deus providente intervindo em benefício das
pessoas. No caso de Conceição, o que a mantinha viva eram os medicamentos que
ela tomava. A suspensão do uso dos medicamentos trouxe-lhe as complicações da
AIDS e sua morte. Na África, 90% das crianças convivem com o HIV e 50% das
quais morrem antes de completar 5 anos de vida[16]
e, a menos que lhes seja dado o acesso ao tratamento de que se beneficiam as
demais crianças em todo o mundo, o número de crianças a morrerem continuará a
crescer, o que prova que não se pode esperar que, por um milagre, essas
crianças consigam sobreviver. Mas esse é um tipo de esperança que estaríamos
justificados a acalentar se, de fato, houvesse um Deus cioso de seus filhos.
A segunda contribuição de
Ehrman que me interessa é a apresentação que ele faz do conjunto de respostas
ao problema do sofrimento, dadas pelos autores bíblicos. Segundo Ehrman (2008,
p. 16), a) alguns autores (os profetas) acreditavam que o sofrimento era
infligido por Deus como punição pelo pecado; b) outros acreditavam que o
sofrimento era causado pelos inimigos cósmicos de Deus como meio de prejudicar
aqueles que observavam os preceitos de Deus; c) outro grupo acreditava que o
sofrimento era um teste para atestar se as pessoas continuavam fiéis a Deus
apesar do sofrimento; d) outros autores afirmavam que o sofrimento é um
mistério e que é errado questionar por que Deus o permite. O elenco de
respostas não se limita a estas, mas esse elenco é bastante para mostrar que
nenhuma delas é consistente com a representação cristã de Deus como fonte
irradiadora de todo amor e de suma bondade.
As respostas dadas ao
problema do sofrimento variavam segundo o contexto sócio-histórico em que os
autores bíblicos escreveram. Assim, no contexto do Exílio e mais
especificamente do pós-exílio, encontramos o profeta Isaías a defender uma
posição que combina três tipos de teodiceia: a pedagógica, a de comunhão e a do
livre-arbítrio. A ideia basilar aí é que o sofrimento do homem justo é uma
oferta para libertar o povo do pecado cometido. Na literatura bíblica, existe
uma heterogeneidade de teodiceias, que não podem ser neste texto examinadas uma
a uma. Não obstante, não escusarei de pontuar que a todas elas subjazem as
seguintes ideias: 1) o mal é uma realidade; 2) Deus é justo; 3) há uma relação
entre o pecado e o sofrimento; 4) vale a pena ser justo; 5) Deus fará justiça
sobre a injustiça.
Nos escritos
neotestamentários, encontramos grande parte das respostas apresentadas ao
problema do mal que se acham na Bíblia hebraica, fato que não surpreende quando
consideramos que o cristianismo constitui, do ponto de vista sociológico, uma
derivação da fé judaica. No entanto, as respostas cristãs ao problema do mal
incluem algumas peculiaridades que convém sublinhar:
1) Jesus é o Deus-homem que sofre pelos pecados da humanidade;
2) Satanás e os demônios são responsabilizados pelo sofrimento, pelas
doenças e pelo pecado que assolam a existência humana;
3) há uma ênfase na escatologia: a expectativa do retorno de Cristo, a esperança
na ressurreição, a chegada do Reino de Deus e o Apocalipse favoreceram uma
religiosidade ascética e a negação do mundo;
4) O elogio do sofrimento, o qual é pensado como uma oportunidade de se
imitar a Cristo e de crescimento espiritual (Romanos, 5: 3-5). Essa visão do sofrimento predomina em São
Paulo.
5) Ênfase na graça divina e no pessimismo. O cristianismo
neotestamentário, por influência paulina, endossa a ideia de que o homem é
irremediavelmente pecador e que sua natureza é tão incorrigível que nada pode
fazer para reconciliar-se com Deus. Por isso, o homem necessita da graça divina
(que vimos em Agostinho), para poder encontrar o perdão e a absolvição. Sua
salvação depende exclusivamente da fé em Cristo.
5. Palavras finais
Ao longo desta exposição,
procurei argumentar no sentido de demonstrar a consistência da concepção que o
filósofo Clément Rosset tem do real como inerentemente cruel. Os dois sentidos
com que a noção de crueldade no
sintagma crueldade do real foi
pensada por Rosset - a saber, 1) o caráter trágico e doloroso do real e 2) seu
caráter inapelável e irremediável - foram discutidos a partir do pressuposto
básico de que o filósofo e o religioso são tipos humanos antagônicos.
Sem fazer qualquer
concessão à validade desse pressuposto, lancei-me ao exame do modo de ser
típico do homem na cotidianidade, a fim de mostrar que ele precisa de ilusões
para continuar a viver. Uma dessas ilusões é a crença em Deus e em sua
providência, sem a qual o homem comum seria absorvido num desespero profundo. A
crença em Deus impede que o homem comum se confronte com a crueldade do real e
tire desse confronto suas consequências últimas. Longe de dizer que o homem
religioso ignora que, durante alguma parte da vida ele sofre e que há no mundo
bastante sofrimento, o que procurei
mostrar é que a crença em Deus ajuda-o a dar sentido ao sofrimento. Assim, o
que é intolerável para o homem comum não é existir o sofrimento, mas existir o
sofrimento sem sentido. As teodiceias vêm em socorro da necessidade que o homem
tem de atribuir sentido ao mundo e a tudo que experiencia. No entanto, conforme
mostrei, as teodiceias são todas elas falhas em algum sentido. Nenhuma das
teodiceias já propostas explica satisfatoriamente por que sofremos e por que há
tanto mal no mundo. Se as teodiceias são explicações insatisfatórias e a crença
em Deus é absurda, resta ao indivíduo decidido a renunciar ao suicídio a
afirmação desesperada do real. E o verdadeiro filósofo da pós-modernidade deve
ser capaz de pensar o mundo e o homem a partir deste “sim” desesperador ao
real, gesto esse que deve ser inaugurador de um discurso cuja única razão de
ser será demonstrar que esse desespero, que resta, após a demolição de todas as
promessas metafísicas, pode ser, no entanto, um desespero alegre. Alegria trágica – é esta a possibilidade
que o pensamento filosófico deve tornar efetiva como o único sentido (direção)
para uma vida destituída de qualquer horizonte metafísico de sentido.
[1] Sentido, para Heidegger, é aquilo que é articulável
na interpretação e, ao mesmo tempo, mais originariamente no discurso. (Ser e Tempo, p. 223).
[2] O conceito de ideologia de Bakhtin não será objeto de
mais esclarecimentos do que espero seja enunciado nesta proposição: a
ideologia, para Bakhtin, como “o conjunto de reflexos e interpretações da
realidade social e natural que tem lugar no cérebro do homem e que se expressa
por meio das palavras (...) ou outras formas sígnicas”.
[3] Bakhtin se refere a duas outras propriedades da
palavra: a pureza semiótica e a neutralidade. A pureza semiótica diz
respeito ao fato de a palavra poder funcionar e circular como signo ideológico
em toda e qualquer esfera da vida social. A neutralidade, por seu turno, diz
respeito ao fato de a palavra poder encerrar qualquer função ideológica,
dependendo do modo como ela aparece num enunciado concreto. Neutralidade,
portanto, não significa que haja palavras que não sejam índices de algum ponto
de vista valorativo; ao contrário, significa isto sim que toda palavra pode
assumir qualquer função ideológica.
[4] As ideias são entendidas por Schopenhauer
como os graus determinados e fixos de objetivação da vontade. Esses graus
aparecem, nos objetos particulares, como as suas formas eternas, como seus
protótipos, concepção esta claramente inspirada na Teoria das Ideias de Platão.
[5]
Refiro-me aqui não só ao sentido humanamente vinculativo de nossas ações, de
nossos valores, de interesses, de nossas metas etc. – sentidos estes que, por
serem construídos na imanência da dinâmica dos modos de a vida se configurar,
são sentidos humanos e, portanto, frágeis, mas também me refiro ao sentido
metafísico em virtude do qual a existência se justifica. A crença em Deus como
a instância metafísica vinculadora de sentido à existência humana exemplifica o
que entendo por “sentido metafísico”, isto é, um sentido que deve ser buscado
na transcendência, no para além do mundo, e não no mundo. Não obstante sua
aparência de universalidade, esse sentido metafísico, exemplificado na crença
no Deus teísta, é parte da produção dos significados culturais. Um exame inspirado na desconstrução
patentearia que mesmo o sentido metafísico, que se crê doado por uma instância
radicalmente absoluta e transcendente ao mundo, é produto do gênio humano. Em
outros termos, esse sentido metafísico que tem em Deus sua fonte de irradiação
é um constructo sócio-histórico.
[6] Já
observei, em algum lugar, que a preocupação legitimamente humana com “o sentido
da vida” supõe que o sentido sobre o qual se pergunta é um sentido metafísico.
Quem faz a pergunta – isto é, o homem – não pode ser ele, nesse caso, o doador
de sentido. Além disso, o sentido a que nos referimos no sintagma “o sentido da
vida” não pode encontrar na própria vida seu fundamento, já que, em caso
contrário, como explicaríamos que o fundamento pudesse continuar a ser aquilo
que fornece à vida sua razão de ser. Por definição, o fundamento deve preceder
logicamente aquilo de que é fundamento. Portanto, na expressão ‘o sentido da
vida’, o sentido sobre o qual nos perguntamos deve nos remeter ao fundamento do
sentido, a uma instância metafísica que justifica o sentido estruturante da
vida. A remissão é feita a um em-si... Entendendo que esse sentido é da ordem
da transcendência, já que doada por uma instância radicalmente superior à vida
(por exemplo, Deus), resta perguntar se o homem não pode ser construtor de
sentido enquanto é um existente. A resposta é sim. O homem, parafraseando
Sartre, está condenado a produzir sentido, a significar. O homem dota suas
ações, as atividades nas quais se envolve de sentido. Uma existência que se lhe
revelasse completamente absurda seria um convite ao suicídio. Mas esse sentido
construído pelo homem é, naturalmente, um sentido humano, tem rosto humano. Ao
produzir cultura, o homem produz sua teia de sentidos onde a vida deles
acontece. Não raro, alguns fios dessa teia se rompem e o homem se dá conta da
fragilidade de sua condição como construtor de sentido. Assim, uma pessoa pode
investir de sentido sua atividade profissional e crer, por exemplo, que o sentido
da sua vida está em fazer o que faz. Seja essa pessoa um professor. Ocorre que
o absurdo ronda suas tentativas de sustentar-se seguramente nessa estrutura de
sentido da qual é o próprio homem o construtor. As incumbências passam a pesar,
o salário não dignifica, o desinteresse dos estudantes, aliado à negligência do
governo, desestimula, a pergunta ‘faz sentido o que faço?’ faz ecoar o drama de
Sísifo. A pergunta descerra o absurdo: que sentido há em fazer o que faço
quando ninguém parece se importar? E se uma doença grave chega para acentuar a
vanidade de sua faina, o absurdo geme, grita e se escancara. A doença é
portadora do absurdo; ela aviva a consciência do homem de que ele mesmo é um
ser absurdo. E o sentimento da morte inevitável, que, nessa circunstância,
irrompe com pujança desvela o abismo sob toda pretensão de sentido.
[7]
Estimativa esta baseada no portal de notícias Gospel Prime, cujo endereço eletrônico é: https://noticias.gospelprime.com.br/cristianismo-maior-religiao-mundo/
(acessado em junho de 2016).
[8] Trechos colhidos de: MARCONDES, Danilo. Textos
Básicos de Filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2007, p. 68-70
[9] A
construção da coerência textual envolve muito mais do que essa operação
cognitiva. O leitor poderá encontrar neste blog textos nos quais trato dessa
questão em profundidade.
[11]
Assim, conforme assinala Wetzel (2011, p. 43), “Agostinho nunca idealizará um
eu conflitante”. Mesmo na condição de ser decaído, o homem é uma alma que tem o
controle sobre as ações.
[14] https://noticias.terra.com.br/ciencia/pesquisa/estudo-imunes-a-aids-tem-celulas-assassinas-mais-fortes,ac0cc4bdea737310VgnCLD100000bbcceb0aRCRD.html
[15]
http://www.estadao.com.br/noticias/geral,primeira-crianca-do-mundo-a-receber-coquetel-contra-aids-morre-aos-24-anos-imp-,940923
[16]
http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/05/africa-concentra-90-das-criancas-com-virus-da-aids-diz-unaids.html
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